por Jorge Furtado
maio de 2003
Nas últimas duas semanas um debate importante ganhou espaço na mídia: critérios para distribuição de verbas públicas para a cultura, especialmente para o cinema. Dei várias entrevistas, escrevi alguns textos, participei de debates na televisão. Agora preciso voltar a trabalhar.
Estou envolvido no lançamento nacional (13 de junho, dia de Santo Antônio) de "O Homem Que Copiava" (www.ohomemquecopiava.com.br). Estou dando algumas entrevistas e, provavelmente, algumas pessoas vão me perguntar sobre este assunto. Se você está lendo este texto, talvez seja uma delas. No lançamento do filme quero falar sobre o filme, projeto no qual estou trabalhando há sete anos, e não sobre política cinematográfica. O tempo é curto, o assunto é complexo, não dá para comentar com duas ou três frases. Mas não quero deixar de dar minha opinião, acho que é o momento de todos os trabalhadores da cultura se manifestarem. Por isso este texto.
O caso é uma disputa por dinheiro público, nada mais que isso. Uma disputa legítima e da qual depende o cinema que faremos nos próximos anos. Vamos deixar de fora (não por muito tempo) para não paralisar totalmente a produção, o debate sobre leis de incentivo que pretendiam criar uma indústria auto-sustentável e não criaram. E vamos deixar de fora, só para não complicar demais a discussão, as empresas privadas que fazem com seu dinheiro o que bem querem. (O conceito é questionável, leis de incentivo à cultura baseadas em isenção fiscal - ou seja, em dinheiro que o governo deixa de arrecadar - também poderiam exigir "contrapartidas", ou não?)
Inquestionável mesmo é a idéia que empresas públicas ou semi-públicas (BR, Eletrobras, Furnas, etc.) TÊM QUE prestar contas publicamente sobre a maneira como gastam o MEU dinheiro. E têm que ter critérios claros e públicos de aplicação deste dinheiro. Têm que ter mas, atualmente, não têm. Quanto estas empresas investiram em cada projeto? Alguém sabe? Há algum site na internet ou publicação que liste e quantifique os investimentos? Se houver, por favor, me avisem, não conheço. O primeiro passo para a democratização na distribuição dos recursos, me parece, é tornar público o valor dos patrocínios para cada projeto, com a publicação (na internet e na imprensa) de todas as verbas liberadas. E fazer a fiscalização rigorosa da aplicação das verbas e dos prazos de realização dos projetos.
Os critérios inicialmente esboçados pelos textos da Eletrobras e de Furnas eram ruins, demagógicos, confusos, ineficientes e totalmente subjetivos. O governo agiu muito bem em suprimi-los. Privilegiar, por exemplo, projetos que "valorizem a imagem do Brasil no exterior" parece ser uma boa política para a Embratur mas duvido que acabe em bons filmes. O que valoriza a imagem do Brasil no exterior são filmes brasileiros bons. O bate-boca teve alguns excessos mas também teve o grande mérito de colocar o assunto em pauta. Agora me parece o momento de dar folga aos adjetivos e tentar sugerir critérios melhores. Seria péssimo se o debate interrompesse a produção e prejudicasse o bom momento do cinema brasileiro. Mas será pior se não for feito e, daqui há três anos e meio, descobrirmos que o governo Lula simplesmente manteve a política cultural do governo FHC (o mesmo vale para o salário mínimo, a reforma agrária, a geração de empregos, etc.).
O julgamento dos critérios será sempre subjetivo e, por isso mesmo, deve ser feito por um grupo diversificado e representativo de pessoas. O grupo é capaz de cometer erros mas será sempre melhor (para este tipo de trabalho) que uma única cabeça, também capaz de cometer erros e muito mais sensível a pressões de todo tipo. A composição deste grupo deve ser debatida, com a participação das entidades, das empresas, dos exibidores e distribuidores, dos artistas e produtores, sob a coordenação do governo (eleito para isso, governar). O grupo deve ser trocado periodicamente, é claro. Eu sei que a idéia de formar "comissões de notáveis" ou qualquer tipo de júri é sempre assustadora mas, me parece, inevitável. Se alguém tem uma idéia melhor para selecionar projetos que vão receber dinheiro público (palitinho, pôquer ou par-ou-ímpar) me avise. Atualmente os critérios são obscuros e pessoais e as verbas liberadas são quase secretas. Uma boa idéia, sugerida pela APACI, é que o acesso ao patrocínio cultural seja regido por EDITAIS PÚBLICOS para cada segmento da produção cultural, com datas fixas para publicação
Se é óbvio que deve haver ALGUM critério, a questão é: que critérios são estes? E quais seus objetivos? Alguns palpites, sem adjetivos:
OBJETIVOS
. Garantir, no mínimo, a continuidade da produção de filmes. Se possível, aumentar a produção.
. Aumentar o público dos filmes brasileiros que, este ano, pode chegar a 10% do total de espectadores de cinema. (Em 2002 o público do cinema brasileiro foi de 8%).
. Garantir e incentivar a diversidade (temática, de gêneros...)
. Promover a regionalização (ou, se preferirem, evitar a centralização excessiva) da produção.
. Garantir o acesso de estreantes a uma fatia das verbas.
CRITÉRIOS POSSÍVEIS PARA ESCOLHA DOS PROJETOS
. Transparência total. (óbvio e indiscutível)
. Fiscalização rigorosa da aplicação da verba, com prazos. (idem)
. Qualidade artística. (subjetivo)
. Currículo dos realizadores, empresas e pessoas. (mais ou menos objetivo).
. Diversidade temática, regional, de gêneros... (subjetivo)
. Cotas específicas para estreantes e filmes de baixo orçamento. (objetivo)
. Potencial de público. (totalmente subjetivo)
. Relação entre custo e potencial de público. (idem)
Volto a lembrar que os critérios "qualidade artística" ou "potencial de público" são, e serão sempre, subjetivos. Seria bastante possível supor que um filme como "Carandiru", dirigido pelo Babenco, baseado num livro de sucesso sobre um assunto que mobilizou a opinião pública nacional e com alguns atores conhecidos, tivesse um bom potencial de público. Ou que "Houve Uma Vez Dois Verões", apesar de sua inegável qualidade, com atores iniciantes e captado em digital, não vai lotar muitas salas dos multiplex. Mas quem poderia dizer que um filme sem atores conhecidos, protagonizado por estreantes e ambientado numa favela carioca como "Cidade de Deus" faria 3 milhões de espectadores? Quem poderia prever que um documentário (com 3 ou 4 cópias) sobre "o olhar" como "Janela da Alma" teria mais de 100 mil espectadores? Ou que um filme de oportunidade sobre a vedete da hora como "Cinderela Baiana" seria um fracasso retumbante? Subjetivo ou não, acho que o potencial de público é um critério que precisa ser levado em conta. Filmes de qualidade e de grande público prestam um serviço importante à cultura brasileira (atingem o espectador, que é quem paga a conta) e também ao cinema brasileiro como um todo (quem foi ver um filme brasileiro e gostou, está mais disposto para ver outro filme). Acho que a idéia não é (e não deve ser) pulverizar os recursos (escassos) para contentar muita gente que quer fazer filmes e sim utilizá-los da forma mais racional e produtiva possível.
Acho que, neste debate, devemos pensar um pouco menos em quem quer (e recebe para) fazer filmes e um pouco mais em quem merece (e paga para) ver os filmes. Temos que fazer a maior quantidade de bons filmes e, ao mesmo tempo, ampliar o público para o cinema brasileiro. O sucesso da política audiovisual no governo Lula será medido, ao final de quatro anos, não apenas pela quantidade de filmes feitos (ou prêmios nos festivais de Cucamonga e Santa Rita do Passa Quatro) mas também pelo PÚBLICO do cinema brasileiro. O ano passado nosso público foi de 8%, este ano deve passar de 10%, isso com filmes nascidos no governo FHC. Como será 2004, 2005 e 2006?
O critério da "contrapartida social" é muito simpático mas ninguém falou seriamente como seria feito, no caso do cinema. Um livro pode reservar uma cota para bibliotecas públicas, uma peça de teatro pode até fazer sessões para escolas, mas o produtor de cinema não tem poder de diminuir o preço dos ingressos, ele mal consegue espaço para exibir seu filme numa sala qualquer. Empregar pessoas de comunidades carentes na produção? Isso me parece demagogia pura, não resolve nada, só atenua a culpa de gastar uma fortuna fazendo filmes num país pobre.
Outro assunto, que ninguém está tocando: o ingresso é de cinema é muito caro. Quando "Dona Flor" fez 8 milhões de espectadores o ingresso custava menos de 50 centavos de dólar. Hoje custa 2 dólares na média, 4 nos finais de semana. Exibidores e distribuidores não querem nem falar nisso mas meus filhos e os amigos deles falam disso sempre, escolhem filmes para ver pelo preço. A maioria da população que vive de salário mínimo ou pouco mais, não vai pagar 10, 12 ou 14 reais para ver um filme. Com a pipoca, namorada e estacionamento, ir ao cinema num sábado custa 50 reais. Com 50 reais você compra 2 DVDS numa banca de revista e assiste, em casa, dois filmes ótimos. E fica com os DVDS. É fundamental criar circuitos alternativos para exibição de filmes brasileiros, a custo mais baixo.
Outra questão, que parece estar sendo esquecida no debate é a relação "público / mídia em televisão" dos recentes sucessos do cinema brasileiro. Sem entrar na questão da qualidade dos filmes, é evidente que a participação da Globo Filmes (com a conseqüente mídia na TV Globo) é diretamente responsável pelos sucesso de público de "Carandiru", "Cidade de Deus" e "Deus é brasileiro". É claro que a Globo Filmes se associou aos projetos que já tinham maior potencial de mercado ("Vende mais por que é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?") mas está mais que provado que a velha reivindicação de parceria entre televisão e cinema é fundamental para a ampliação do público. (O que revela o óbvio: quem anuncia em televisão vende mais, seja um filme, cerveja ou chinelos). Esta parceria precisa ser incentivada, ampliada, envolver as outras redes de televisão.
Os critérios de participação da Globo, uma empresa privada, em um ou outro filme são critérios da empresa, mas sempre haverá quem queira proibir a participação da Globo nos filmes ou obrigá-la a participar de todos os filmes, parece ser nosso destino viver num estado onde o que não é proibido é obrigatório. (Por favor, não me venham com aquela conversa que as tevês são concessões públicas, a concessão não prevê espaço de mídia para filmes brasileiros, essa conversa é muito antiga e não dá em nada.) Eu sei que o assunto em pauta não é esse, mas acho que seria fundamental discutirmos outras formas de dar visibilidade ao cinema brasileiro na televisão, incentivando a criação da SBT Filmes, da Bandeirantes Filmes, etc. Ou reservando parte da verba de patrocínio das estatais para a divulgação e lançamento dos filmes. Ou ainda... não sei. Pensem.
E, é claro, não se esqueçam de fazer filmes bons. No final das contas, é isso que vale.
Abraço a todos.
Jorge Furtado
Porto Alegre, 15 de maio de 2003.