por Ana Luiza Azevedo
(palestra proferida no Simpósio Estadual "Arte-Educação e a Construção da Cidadania", Porto Alegre, Casa de Cultura Mario Quintana, 23 de junho de 1995, org. Suzana Rangel Vieira da Cunha)
Há um ano e meio eu terminei um documentário sobre direitos reprodutivos no Brasil chamado "Ventre livre". Esta foi a primeira vez que eu fiz um documentário, o que me levou a descobrir uma série de coisas sobre a imagem.
Lembro de uma mulher na periferia de Recife que me concedeu uma entrevista, que acabaria sendo muito importante para o filme. Era evidentemente a primeira vez que ela dava uma entrevista. No final, ela esperou a equipe desmontar o equipamento, me chamou para um canto e me pediu uma geladeira. Assim: eu quero uma geladeira. Claro, eu tinha uma câmara, tinha viajado quatro mil quilômetros para botar essa câmara na frente dela e roubar-lhe a imagem para dentro da câmara. Se alguns índios brasileiros acreditam que a fotografia rouba a alma da pessoa fotografada, imagina o que não faz uma câmara de cinema. Era óbvio que, se eu tinha o controle da câmara, o controle da imagem daquela mulher, eu tinha que ter também uma geladeira para dar a ela. Dentro das minhas possibilidades, eu expliquei que não, que eu não tinha uma geladeira, que eu não podia lhe dar uma geladeira. Ela não se convenceu muito e perguntou: mas nem um vídeo-cassete? Quer dizer: se ela não podia recuperar materialmente o que ela tinha perdido ao ceder a imagem dela para mim, que pelo menos ela ficasse com um instrumento capaz também de manipular as imagens dos outros.
Fiquei pensando que o cinema, e o cinema documentário em particular, é mais ou menos isso: assumir o controle e se apropriar da imagem dos outros para construir um discurso. E será que sempre foi assim?
Cem anos atrás os irmãos Lumière faziam a primeira exibição de cinema. Mostravam a uma pequena platéia em Paris a chegada de uma locomotiva à estação. O que certamente surpreendia aquela pequena platéia era que aquela locomotiva, naquele registro, diferente de uma fotografia, diferente de uma pintura realista, podia se movimentar, O cinema nascia como a mais perfeita forma de representar a realidade.
Mesmo tendo nascido como documentário, não é este gênero que vai promover o grande desenvolvimento da linguagem cinematográfica. Ainda no final do século passado, outro francês, George Méliès, usa o cinematógrafo para contar histórias ficcionais, usando atores e mostrando cenas ensaiadas. Méliès era um encenador e usa a máquina como boca de cena. Meio por acaso ele cria a trucagem. Ainda nas suas primeiras experiências estava filmando uma cena de rua e o cinematógrafo tranca: onde tinha uma carruagem agora não tem nada. A partir deste momento, ele passa a pesquisar efeitos possíveis com a máquina. E foi esta busca, a tentativa de encontrar novas formas de contar histórias, que possibilitou o desenvolvimento da linguagem cinematográfica.
O cinema passa a ser, no século vinte, a grande janela para o mundo, para a fantasia. Mais do que a pintura, mais do que o teatro, é no cinema e na televisão que as pessoas vão buscar o sonho, o mundo perfeito, o amor impossível. É através do cinema que podemos viajar pelo mundo. E se não é um mundo perfeito, é a possibilidade de representá-lo que muitas vezes faz com que a gente o compreenda melhor Em entrevista para a Folha de São Paulo os irmãos Taviani disseram que foram levados a fazer cinema quando, logo depois da guerra, assistiram ao filme Paisá, de Rossellini, e compreenderam muito melhor o que tinha sido a guerra, mesmo tendo vivido dentro dela.
É com esta possibilidade de mostrar o que acontece no mundo que o cinema documentário ganha uma importância muito grande. Através das imagens registradas nos campos de concentração é que podemos conhecer ainda hoje as atrocidades cometidas pelo Nazismo. Mas é principalmente a possibilidade de fragmentar e montar a imagem registrada que faz do cinema documentário um produto muito poderoso. A partir do momento em que se utiliza a montagem no documentário, que o registro não é mais a câmera parada - ela roda, desliga, revela e exibe, como faziam os irmãos Lumiêre - tudo é mentira, ou tudo é parcialmente verdade. A montagem é a essência do cinema, é este recurso que nos permite mostrar espaços e tempos diferentes num mesmo momento, que nos permite fragmentar a imagem, que nos permite enganar tão bem. A montagem sintetiza o que foi pensado no roteiro e o que foi filmado.
No caso de Ventre Livre partimos das seguintes informações: no Brasil muitas mulheres morrem em conseqüência de abortos provocados, ou mal provocados; 27% das brasileiras já estão esterilizadas e é cada vez maior o número de adolescentes grávidas. Considerando a importância de se fazer um filme sobre o assunto, qual seria a melhor forma de realizá-lo? Desde o início decidi que queria ouvir histórias. Achava que só poderíamos entender aqueles números tão absurdos se abríssemos o microfone e a câmara para que as pessoas que fizeram aborto, se esterilizaram ou ficaram grávidas com 15, 16 anos nos contassem por que fizeram, por que ficaram. Era importante, mais do que mostrar os números, mostrar quem eram os números. E era muito importante também mostrar que aquele era um pequeno fragmento da realidade, uma visão dela. Podem existir várias explicações, aquela é apenas uma delas.
Acho que não podemos perder nunca a noção de que um documentário, uma reportagem, é apenas uma versão da história. E é por isso que hoje, quando se fala em arte-educação, a gente tem, também, que falar das artes audiovisuais. Não só pela suas possibilidades expressivas, mas porque temos obrigação de oportunizar que crianças e adultos aprendam a decodificar esta linguagem que está presente na nossa vida a cada minuto. Quando se olha para uma pintura é muito mais evidente a escolha do pintor. Se ele optou em pintar o cavalo de vermelho ninguém deixa de acreditar que o cavalo continua sendo marrom ou preto. Mas a falsa idéia de que o cinema e a televisão representam a realidade nos faz muitas vezes acreditar que o ministro Ricupero foi um pobre velhinho, religioso, que só quer o bem dos seres humanos, mas que por um momento deslizou.
Se o cinema foi “a arte do século XX”, se foi a que melhor expressou seus contrastes, se o cinema mudou a forma de vermos o mundo, então nós temos que aprender a vê-lo. Nós estamos entrando no século XXI com imagem virtual, comunicação via Internet, bytes, megabytes, winchesters e não sabemos ainda que o jornal Nacional é apenas uma versão da história.
Em Ventre Livre, talvez fique mais evidente que é apenas uma versão. Mesmo assim, depois do filme pronto, ficamos com um discurso construído em cima de apenas algumas das imagens captadas, mais uma porção de imagens que não foram e nunca vão ser aproveitadas. Saímos por aí a mostrar o filme, a discutir o filme, a tentar sobreviver com ele. E enquanto isso, lá no nosso objeto de estudo, numa aldeia indígena ou na periferia de Recite, ficam as pessoas que nos cederam as imagens, com a sua vida normal, mas certamente pensando que foram enganadas - que não ganharam a geladeira que mereciam, ou pelo menos o vídeo-cassete que a gente se negou a dar.
(c) Ana Luiza Azevedo 1995