por Giba Assis Brasil
setembro de 2001
Algum tempo atrás, circulou pela Internet um pequeno artigo de autor desconhecido que partia de uma indagação curiosa: por que a bitola padrão das ferrovias dos Estados Unidos é exatamente quatro pés, oito polegadas e meia? Segundo o autor do texto, esta era a bitola das ferrovias inglesas, e chegou aos Estados Unidos através dos seus colonizadores, os ingleses. E este era o padrão na Inglaterra porque, antes mesmo de existirem ferrovias, as estradas inglesas para veículos de tração animal eram construídas com sulcos desta exata largura. Bom, mas e por que as estradas inglesas eram assim? Porque este era o padrão das estradas romanas, na época em que todos os caminhos levavam a Roma, e todos os caminhos tinham sulcos escavados a quatro pés, oito polegadas e meia. Por quê? Porque os romanos movimentavam as suas tropas e os seus produtos através de bigas, que eram veículos conduzidos por uma parelha de cavalos, e, enfim, esta era exatamente a largura média de duas bundas de cavalos romanos.
O artigo terminava fazendo uma observação ainda mais curiosa: recentemente, quando engenheiros norte-americanos desenvolveram tanques de combustível sólido para os seus ônibus espaciais, eles a princípio tinham desenhado estes tanques um pouco mais largos do que eles terminaram sendo. Isso porque, para serem transportados de Utah, onde foram construídos, até a Florida, onde seriam usados, os tais tanques deveriam passar por túneis em estradas de ferro, os quais, é claro, tendo sido dimensionados de acordo com a bitola das ferrovias, não permitiriam a passagem de nada que tivesse mais de quatro pés, oito polegadas e meia. Ou seja: no fim das contas, o veículo de transporte mais moderno já desenvolvido pela humanidade teve que se adequar ao padrão determinado pelas bundas de cavalo do Império Romano.
Ora, todos estes padrões, bitolas e normas nunca são totalmente arbitrários, mas muitas vezes terminam durando muito mais do que as circunstâncias históricas em que eles foram criados. Então, sempre que a gente se perguntar por que as camisas têm seis botões, ou por que os meses têm trinta dias, ou mesmo por que os curta-metragens têm quinze minutos, na verdade o que a gente está fazendo é procurar a bunda de cavalo por trás do número.
Na ainda curta história do cinema, pouco mais de cem anos, já houve três padrões de durações para os filmes: quarenta e cinco segundos, quinze minutos, duas horas.
O primeiro padrão, estabelecido pelos irmãos Lumière em 1895, foi de 45 a 50 segundos. No caso, a bunda de cavalo é fácil de ser encontrada. O filme usado pelos Lumière vinha em rolos de 35 mm de largura por 15 metros de comprimento, os quais, passando pelo cinematógrafo na velocidade média de então (entre 16 e 18 quadros por segundo) dava um tempo de filmagem e de projeção em torno de 45 a 50 segundos.
É claro que, poucos anos depois, se descobriu que os filmes podiam ser montados, a princípio apenas emendados fisicamente uns nos outros, e logo conceitualmente agrupados para contar uma única história. Haveria algum limite pra isso? Teoricamente, os carretéis dos projetores poderiam crescer indefinidamente. Mas não as latas em que os filmes prontos eram armazenados e transportados. Por isso, a partir da virada do século 19 para o século 20, o padrão de duração dos filmes exibidos nos cinemas do mundo inteiro, quer se tratasse de comédias, dramas românticos ou de aventuras, passou a ser de 13 a 15 minutos - exatamente o tempo de projeção, com a velocidade média da época, de mil pés de filme 35 mm, ou o conteúdo máximo de uma lata, a unidade básica de armazenamento e transporte dos filmes de uma sala de exibição para outra. Em seguida, é claro, foram feitas experiências de filmes mais longos. Mas não eram filmes de 30 ou 45 minutos, eram filmes de 2 ou 3 latas, de 2 ou 3 rolos. Ou seja, a unidade padrão, a bunda de cavalo, permanecia.
A primeira experiência bem sucedida comercialmente de um filme de duração muito acima do padrão foi feita por David Wark Griffith, nos Estados Unidos, em 1915, com "O Nascimento de uma nação". Era um filme de mais de duas horas de duração, que contava uma história com uma complexidade e quantidade de personagens e eficiência narrativa jamais vistas, que custou a fortuna (para a época) de 110 mil dólares e foi assistido, só nos EUA, por mais de 100 milhões de espectadores. E, claro, criou um novo padrão, uma nova bunda de cavalo: a duração, se não definitiva, bastante duradoura, uma vez que permanece como padrão até hoje, de duas horas de espetáculo cinematográfico.
E eu me divirto em pensar que, se o primeiro padrão de duração dos filmes tinha origem no processo de fabricação original dos rolos de negativo, e se o segundo padrão tinha a ver com o sistema de transporte das cópias, o terceiro e mais duradouro padrão terminou ficando até os nosso dias muito provavelmente por se referir diretamente ao espectador e suas fraquezas. Ora, não é por acaso que duas horas é também a duração padrão de espetáculos de teatro ou de música: é o tempo limite que uma platéia média consegue ficar sentada coletivamente numa sala, sem que a maioria comece a sentir fome ou dor nas costas ou principalmente vontade de fazer xixi.
A partir da década de 20, no mundo inteiro, entende-se "filme" como uma história contada em imagens (e, mais tarde, também sons) com duração entre 90 e 120 minutos. Qualquer coisa que sair deste padrão necessita de um qualificativo extra: filme de curta-metragem, filme de duração extraordinária.
Mas, apesar de ter sido superado como padrão, o curta-metragem permaneceu na história do cinema como duração alternativa para alguns tipos específicos de filmes. Em primeiro lugar, para as comédias ligeiras, de humor visual, que contavam histórias que se resolviam satisfatoriamente em um tempo médio de 15 minutos - uma tradição que vem do cinema mudo, é claro, com os filmes curtos de Chaplin, Buster Keaton, Max Linder, toda a história do pastelão, mas que chega ao período falado com o Gordo e o Magro e invade a televisão com Os Três Patetas. E é no novo veículo que a comédia curta, estendendo-se um pouco mais para permitir a inserção de intervalos comerciais, chega ao formato de 25 a 30 minutos da "sitcom".
Em segundo lugar, o curta surge como duração adequada para o cinema experimental, desde 1928, quando Luis Buñuel e Salvador Dali realizam "Um Cão andaluz", provavelmente o filme mais chocante, surpreendente e revolucionário da história do cinema - e tudo isso em apenas 17 minutos de duração. A partir daí, boa parte dos "filmes-manifesto" buscam a duração curta para as suas experiências radicais de linguagem, tanto as bem sucedidas quanto as apenas curiosas ou mesmo as insuportavelmente chatas.
Também no campo do documentário e do filme social, principalmente a partir dos anos 40, com os trabalhos dos ingleses John Grierson e Basil Wright, o curta-metragem de 20 a 30 minutos permanece como padrão, outro que também vai mais tarde aumentar de tamanho para chegar à televisão.
Antes disso, entre as décadas de 20 e 30, Walt Disney e outros pioneiros definem 6 a 8 minutos como o tempo ideal para os filmes de animação. Ainda que o próprio Disney vá mais tarde constituir um verdadeiro império com seus longas animados, foi com os curtas que ele ganhou a maior parte dos seus mais de 30 Oscars. E foi também a partir do curta de animação, de seu ritmo e forma de utilização da linguagem, de sua evolução em termos de capacidade de síntese e impacto visual, que surgiu o produto audiovisual que movimenta a maior quantidade de dólares no mundo inteiro hoje em dia: o comercial de 30 segundos.
Enfim, a partir dos anos 50, com a aceitação do cinema como matéria acadêmica (idéia até então restrita à União Soviética), e com a conseqüente disseminação de escolas de cinema pelo mundo todo, inclusive os Estados Unidos, o curta-metragem veio a ser adotado como formato por excelência do filme de estudante.
E no Brasil? Na maior parte do século, é claro, a evolução do cinema brasileiro esteve condicionada ao que acontecia no resto do mundo, especialmente Europa e Estados Unidos. Mas nem sempre. Certamente não foi assim no início dos anos 60, quando o Cinema Novo brasileiro esteve na vanguarda mundial da síntese entre o cinema social do neo-realismo e o cinema autoral da nouvelle vague.
E talvez também não tenha sido assim com a "Escola do Curta" surgida nos anos 80. Ainda está para ser devidamente estudada a importância do cinema brasileiro na revitalização mundial do curta-metragem ocorrida nos últimos 20 anos: seja pela quantidade de festivais dedicados ao formato, pelo espaço aberto nas televisões ou pelos inúmeros fundos de apoio à produção, a verdade é que o curta não é mais apenas espaço de experimentação, ou restrito a gêneros específicos, ou apenas ensaio para a produção de longas. Curta-metragem é hoje nem mais nem menos que um formato de cinema.
E, para isso, tiveram grande importância os filmes de cineastas como Jorge Furtado, Arthur Omar, Franciso César Filho, José Roberto Torero, Cecílio Neto, Rafael Conde, Fernando Severo, etc, mas também as suas circunstâncias de produção. A chamada "Lei do Curta", resultado de uma luta histórica da ABD (Associação Brasileira de Documentaristas), é sem dúvida uma das chaves para se entender este fenômeno.
Criada em 1974, implantada em 1977, reformulada em 1985 e inviabilizada em 1990, a Lei do Curta em poucos anos criou um mercado para a produção e distribuição de filmes de curta-metragem no país. Atraiu os maiores talentos de toda uma geração de cineastas, desestimulada com o declínio do sistema Embrafilme de financiamento para longas. Promoveu a descentralização e a diversidade, gerou novos núcleos de produção, recolocou o Brasil no mapa da inovação cinematográfica.
De lá pra cá, e não só por teimosia ou saudosismo, a produção de curtas no país continuou a existir, em função de mecanismos de produção criados em diversos estados e municípios e também da cada vez mais numerosa vitrine dos festivais. Mas faltava, e continua faltando, um mecanismo de exibição de curtas para o grande público. Algo como o Curta nas Telas de Porto Alegre.
Ao exibir curtas para espectadores de cinema, o Curta nas Telas trata o curta como cinema, não como efêmera atração de festival. Ao superar a obrigatoriedade de exibição, substituindo-a por um acordo possível entre realizadores e exibidores, o Curta nas Telas abre a discussão, também na área cultural, da criação de espaços públicos não estatais, e da redefinição do papel do Estado. Se hovesse no país 10 municípios com a vontade política da Prefeitura de Porto Alegre e de sua Coordenação de Cinema, o debate em torno de uma possível volta da Lei do Curta já teria sido superado na prática. Restariam, é claro, as suas marcas históricas, bem mais visíveis que as dos cavalos da Roma antiga nos ônibus espaciais.
(c) Giba Assis Brasil
Publicado na revista Cinemais nº 30, Editorial Cinemais, Rio de Janeiro, julho-agosto/2001 (p. 171-177);
e também no Catálogo "5 Anos de Curta nas Telas", SMC/Porto Alegre, setembro/2001;