Giba Assis Brasil

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Humanos, chineses e o STF

O comentário ao qual você está respondendo não existe.

Excelente o artigo, que o Jorge me passou, de Sérgio Salomão Shecaira, professor de Direito Penal da USP, sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal no recente julgamento da Ação Penal 470. Me esclareceu muitas coisas. Foi publicado na revista virtual do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), apenas para assinantes, mas está disponível em muitos blogs, inclusive o do Luis Nassif.

Gosto particularmente do título do artigo, "Nihil humani a me alienum puto", que eu conheci décadas atrás como sendo "uma das citações favoritas de Karl Marx". Na verdade, o texto em latim é a forma reduzida e mais conhecida de uma frase retirada do "Heauton timorumenos" ("O autopunidor"), comédia de Terêncio escrita em 163 a.C., que teria sido parcialmente traduzida e recriada a partir de um original grego do século anterior, de Menandro, mas que não chegou até os nossos dias. De qualquer maneira, seja própria ou traduzida, a frase de Terêncio continuou fazendo sentido no século XIX e até hoje:

"Homo sum, humani nihil a me alienum puto"

Sou humano, (portanto) nada do que é humano me é estranho. Um bom ponto de partida para muita coisa, inclusive para tentar entender a sede de justiçamento moral que corre em nosso país hoje em dia. E é por aí que vai o artigo do Professor Shecaira.
 
Mas o que realmente me chamou atenção foi o primeiro parágrafo.
 
"Mao Tsé-Tung, principal líder da revolução chinesa, foi indagado por um repórter estrangeiro, logo após a vitória dos comunistas na guerra civil, qual a opinião sobre a Revolução Francesa de 1789. O líder comunista, mais de cento e cinquenta anos depois, responde que 'ainda era muito cedo para avaliar'."
 
Sempre soube que essa frase era do Chu En-Lai (ou Zhou Enlai, conforme a transliteração pinyin). Fui pesquisar no Google e, sim, quem disse ou teria dito a tal frase foi Zhou, durante a visita de Nixon e Kissinger à China em 1971.
 
O problema é que, segundo informações recentes, tudo não passou de um mal-entendido de tradução. Perguntado, em inglês-mandarim, sobre o impacto da "French Revolution and the Paris Commune", o primeiro-ministro chinês teria entendido que a pergunta era sobre a revolta estudantil de maio de 1968 (ocorrida apenas 3 anos antes) e respondido, em mandarim-inglês, que era "too early to say".
 
Em 2011, Kissinger lançou seu livro de memórias diplomáticas "On China". Num seminário sobre o livro, em Washington, o diplomata aposentado Chas Freeman, que havia participado da delegação norte-americana em Beijing (na época, Pequim) contou esta versão, que aparentemente foi confirmada por Kissinger através de um assessor (mas não está no livro). Segundo Freeman, o engano foi percebido na época, mas a frase era "deliciosa demais para ser corrigida" ("too delicious to invite correction").
 
Isso tudo está num artigo de Richard McGregor para o Financial Times, de 10 de junho de 2011. Como eu perdi um bom tempo pra me registrar e conseguir ler o artigo, copio ele abaixo, pra quem tiver interesse.

Interessante, não? A tradicional paciência chinesa, pelo menos da forma como a conhecemos, não deixa de ser mais um mito ocidental. Delicioso demais para ser corrigido. Guardadas as proporções, é o que muita gente deve ter pensado sobre as "criações mentais" do Roberto Jefferson, ou os erros de tradução do Joaquim Barbosa ao lidar com a "teoria do domínio do fato".

**********

TEM MAIS:
 
ZHOU'S CRYPTIC CAUTION LOST IN TRANSLATION
By Richard McGregor in Washington
Financial Times (London), 10/06/2011 | 08:03
 
The impact of the French Revolution? "Too early to say."
 
Thus did Zhou Enlai - in responding to questions in the early 1970s about the popular revolt in France almost two centuries earlier - buttress China's reputation as a far-thinking, patient civilisation.
 
The former premier's answer has become a frequently deployed cliché, used as evidence of the sage Chinese ability to think long-term - in contrast to impatient westerners.
 
The trouble is that Zhou was not referring to the 1789 storming of the Bastille in a discussion with Richard Nixon during the late US president's pioneering China visit. Zhou's answer related to events only three years earlier - the 1968 students' riots in Paris, according to Nixon's interpreter at the time.
 
At a seminar in Washington to mark the publication of Henry Kissinger's book, On China, Chas Freeman, a retired foreign service officer, sought to correct the long-standing error.
 
"I distinctly remember the exchange. There was a mis­understanding that was too delicious to invite correction," said Mr Freeman.
 
He said Zhou had been confused when asked about the French Revolution and the Paris Commune. "But these were exactly the kinds of terms used by the students to describe what they were up to in 1968 and that is how Zhou understood them."
 
Geremie Barme, of the Australian National University, said Zhou's quote fitted with the widespread western view of an "oriental obliquity" that thought far into the future and was "somehow profound". "Whereas, in China, you mostly hear that the leadership is short-sighted, radically pragmatic and anything but subtle," he said.
 
Dr Barme added that Chinese researchers with access to the foreign ministry archives in Beijing said that the records made clear that Zhou was referring to the 1968 riots in Paris.
 
The Chinese archives also record Zhou's conversation as being with Henry Kissinger.
 
A spokeswoman for Dr Kissinger said that "he has no precise recollection but that the Freeman version seems much more plausible".
 
Zhou's cryptic caution also reflected the murderous political climate in Beijing at the time, and the premier would not have risked passing judgment on the radical French Maoists involved in the Paris riots.
 
It is not the first time a mis­interpretation of a Chinese leader's saying has mistakenly entered mainstream parlance.
 
Deng Xiaoping, who launched the country's market reforms, is credited with saying, "To get rich is glorious", although there is no record that he said it.
 
The oft-quoted Chinese curse, "May you live in interesting times", does not exist in China itself, scholars say.
 

Enviado por Eduardo Escorel em 31 de julho de 2015.

Olá, Giba, como vai?
Você já assistiu "Adeus à linguagem". A resposta atribuída ao Mao reaparece.
Pelo visto, Godard não lê seu blog. Pior para ele.
Abraço.