ANCHIETANOS - episódio

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               ANCHIETANOS
               episódio da série
               A COMÉDIA DA VIDA PRIVADA

               roteiro de Jorge Furtado,
               Carlos Gerbase
               e Giba Assis Brasil

               sexto tratamento - 29/06/1997
              (formato de especial de TV)

               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
               para TV Globo

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[BLOCO 1]

CENA 01 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

A luz de um estúdio se acende. CHICO entra caminhando lentamente.
Põe uma cadeira no centro do estúdio. Posiciona uma câmera,
acerta o quadro, liga um equipamento de vídeo, põe a fita no
gravador. Chico senta na cadeira. Olha para a câmara.

               CHICO
               Bom... Para começar, esta história não é uma
               comédia. Tem umas partes que talvez você ache
               engraçadas mas não é uma comédia. Esta história
               terminou agora (olha o relógio), duas horas atrás,
               com o resultado da eleição. Alguém tinha que
               ganhar. Mas eu não sei exatamente quando esta
               história começou. Talvez tenha sido no colégio
               Anchieta, há muito tempo.

CENA 02 - PORTÃO DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA

Os ALUNOS chegam para as aulas: descem de ônibus escolares,
kombis e carros e vão entrando na escola.

               CHICO (OFF)
               O ano era mil novecentos e setenta e dois e quase
               todas as pessoas que existiam tinham treze anos.
               Enquanto a ditadura tomava conta do país, nós
               vivíamos num mundo protegido, aprendendo o que
               podíamos sobre amizade, sexo e movimento retilíneo
               uniforme. Mais sobre amizade e sexo. Nós éramos o
               futuro do país do futuro.

CENA 03 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA

A PROFESSORA DE INGLÊS, escreve "Elephant" no quadro. Ela bate
uma caneta na mesa para chamar a atenção dos alunos.

               PROFESSORA
               Atention, please...

               CHICO (OFF)
               A primeira vez que eu vi o Luciano foi numa aula
               de inglês. A gente se entendeu rápido.

               PROFESSORA
               (com forte sotaque) Que animal é este? Listen:
               (marcando bem a pronúncia) élefant!

LUCIANO e CHICO, 13 anos cada, levantam a mão, sérios.

               LUCIANO
               Pingüim!

               PROFESSORA
               (rindo) No, no, no.

               CHICO
               Urubu!

               LUCIANO
               Capivara!

               PROFESSORA
               No, no, no.

EMÍLIO, 13 anos, levanta a mão.

               CHICO (OFF)
               O mais católico, quase sempre o Emílio, acabava
               com a tortura.

               EMÍLIO
               Elefante.

Chico e Luciano se olham, aborrecidos. A professora aponta para
Emílio.

               PROFESSORA
               That's it! (Escrevendo "Hippopotamus" no quadro)
               And now... Ráipopótamusss...

Luciano levanta a mão. A professora vira-se para a classe e
aponta para Luciano.

               LUCIANO
               Vaca!

               CHICO
               Égua!

               LUCIANO
               Jumenta!

CENA 05 - CAMPO DE FUTEBOL - EXTERIOR/DIA

Campo de futebol. O juiz pede que eles escolham cara ou coroa e
sorteia o início do jogo. Andrew ganha o sorteio e pega a bola.

               CHICO (OFF)
               A primeira vez que eu vi o Andrew foi na semifinal
               do Interescolar Pérola, um campeonato de futebol
               patrocinado por um óleo de soja. O Andrew, é
               claro, não era anchietano. Ele jogava no gol do
               outro time, a Escola Técnica de Viamão.

Chico e Andrew se cumprimentam e trocam flâmulas.

CENA 04 - MUSEU DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA

A turma de Chico entra, caminhando em fila, no salão de
exposições do museu da escola. Chico troca olhares com Cristina
através das vitrines. Eles se cruzam várias vezes, sempre
separados por aves empalhadas. Atrás de Cristina, um relógio de
parede marcando 5:24.

               CHICO (OFF)
               A primeira vez que eu vi a Cristina eu me
               apaixonei. Eram cinco e vinte e quatro da tarde de
               um dia de março, numa aula de ciências, no museu
               do colégio. Cristina era linda como uma Heliconius
               Phyllis, pura como um Troquilídeo. Eu acho que
               agora bicho empalhado deve ser politicamente
               incorreto, mas na época ainda não tinham inventado
               a ecologia.

CENA 42 - BIBLIOTECA DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA

Chico (criança) está sentado na biblioteca, lendo uma revista em
quadrinhos. Cristina (criança) senta na outra ponta da mesa.
Chico levanta os olhos e olha para Cristina.

               CHICO (OFF)
               A primeira vez que eu falei com a Cristina foi na
               biblioteca... alguns anos depois.

Chico (adulto) olhando. Cristina (adulta) sorri. Chico sorri e
volta a olhar para o livro.

               CHICO (OFF)
               Ela está lendo um livro em francês. Acho que é em
               francês. Vou perguntar. Vou perguntar nada, vou
               ficar na minha. Vou fingir que ela nem está aqui.

Chico ergue os olhos outra vez. Cristina está lendo,
aparentemente compenetrada. Cristina pega da bolsa, meio
escondida, uma bolacha.

               CHICO (OFF)
               Pelo menos ela podia me oferecer uma bolacha.
               Estou morrendo de fome.

Chico volta a prestar atenção no livro.

               CRISTINA
               Tem horas?

               CHICO
               (nervoso) Não, obrigado. Ah, horas?... Faltam
               cinco.

               CRISTINA
               Cinco o quê?

               CHICO
               Cinco minutos pra acabar o recreio. São dez e
               vinte e cinco.

               CRISTINA
               Quer uma bolacha?

               CHICO
               Não, obrigado.

Chico volta a ler.

               CHICO (OFF)
               Por que você disse não, sua anta? A guria
               ofereceu, você estava a fim. Agora azar, vou ficar
               na minha.

Chico volta a erguer os olhos. Pelo decote de Cristina, percebe
uma nesga de sutiã preto.

               CHICO (OFF)
               Ela está de sutiã. Sutiã preto! Ai meu deus do
               céu, ai meu deus do céu... Sutiã preto, ela nem
               tem muito peito. Ou será que tem?

Cristina olha para ele e fecha o último botão da blusa. Chico
baixa os olhos rapidamente, constrangido.

               CHICO (OFF)
               Ela se deu conta que eu estava olhando os peitos
               dela. Azar, quem mandou usar sutiã preto. Vou
               ficar na minha.

Cristina surge ao lado de Chico.

               CRISTINA
               Você já fez o trabalho de física?

               CHICO
               Do pêndulo? Não.

               CRISTINA
               A gente podia fazer junto, lá em casa.

Chico tenta, e consegue, disfarçar a excitação.

               CHICO
               Legal. Quando?

               CRISTINA
               Hoje à tarde.

               CHICO
               Tudo bem.

Cristina pega um papel e anota um endereço. Entrega para Chico.

               CRISTINA
               É bem aqui perto, conhece a rua?

Chico faz que sim.

               CRISTINA
               Duas horas?

               CHICO
               Duas horas.

               CRISTINA
               Legal.

Cristina levanta e vai saindo. Luciano chega.

               LUCIANO
               Oi, Cristina.

Luciano senta ao lado de Chico.

               LUCIANO
               Essa mina é louca mas é muito gostosa. O Emílio te
               mostrou o cavador?

               CHICO
               (ainda em estado de choque) Acho que não.

               LUCIANO
               O Emílio comprou um cavador bárbaro. Tá dizendo
               que hoje ninguém ganha dele.

               CHICO
               (lembrando-se) O campeonato de botão! Não vai
               poder ser hoje.

               LUCIANO
               Como? Você disse que estava tudo certo!

               CHICO
               É que a minha mãe tem novena e elas vão usar a
               garagem.

               LUCIANO
               Novena??? Pô, Chico, hoje de manhã eu ainda falei
               contigo do campeonato, você esqueceu que...

Cristina volta.

               CRISTINA
               Esqueci minhas bolachas. (para Luciano) Você já
               fez o trabalho de física?

               LUCIANO
               Não. Por quê?

               CRISTINA
               A gente podia fazer um grupo de três. Eu e o Chico
               vamos trabalhar lá em casa, às duas.

               LUCIANO
               Hoje? (olhando para Chico) Hoje. Tudo bem. Eu vou
               com o Chico.

               CRISTINA
               Legal.

Cristina sai. Luciano e Chico ficam olhando Cristina se afastar,
enquanto Emílio chega, excitado.

               EMÍLIO
               (abrindo a pasta) Chico, aposto que você nunca viu
               um cavador de acrílico com três camadas...
               (mostra)

               CHICO
               (distraído) Não...

               LUCIANO
               (cortando) Não vai ter campeonato hoje, Emílio.

               EMÍLIO
               Por quê???

Chico olha para a porta da biblioteca, por onde Cristina vai
saindo.

               LUCIANO
               Novena. Eu e o Chico temos novena.

Emílio fica olhando para eles, com o cavador na mão. Neste
momento, toca a campainha que indica o final do recreio.

CENA 43 - CASA DE CRISTINA - INTERIOR/DIA

Cristina, de pés descalços sobre um pufe cor-de-rosa, segura um
pêndulo, que se move lentamente. Chico e Luciano, sentados no
chão da sala, entre papéis e gráficos espalhados, ficam parados,
sem conseguir tirar os olhos dela.

               CHICO (OFF)
               Se ela não tivesse esquecido aquelas bolachas
               talvez a nossa vida fosse completamente diferente.
               (rindo) Sem falar que o prefeito da cidade podia
               até ser outro.

CENA 06 - ESCADARIA DA FACULDADE - INTERIOR/DIA

Escadaria da faculdade, apinhada de gente e forrada de cartazes.
Andrew, de braços cruzados, ouve com ar sério. LUCIANO, de
pijama, faz um discurso. Por trás dele, CHICO, com OUTRO0
ESTUDANTE, segura uma faixa de pano onde está escrito: "FAIXA DE
PANO".

               CHICO (OFF)
               O Andrew eu só reencontrei na faculdade de
               comunicação, em setenta e nove. O Luciano e eu
               formamos uma chapa na eleição do centro acadêmico.
               Andrew concorria pela situação.

               LUCIANO
               (BG) Exigimos anistia ampla, geral e irrestrita a
               todos os presos políticos. (sobe o áudio) Exigimos
               que todos os congressos da UNE se realizem em
               cidades com praia. Exigimos a renúncia imediata do
               presidente dos Estados Unidos da América. Se
               nossas exigências não forem atendidas em quarenta
               e oito horas nós ficaremos bastante chateados.
               Muito obrigado!

A platéia ri, vaia e aplaude.

               ANDREW
               O inimigo mais perigoso não está na direita,
               companheiros. O inimigo mais perigoso (aponta para
               Luciano) está camuflado de progressista e tenta
               ridicularizar a luta dos estudantes.

Luciano segura um travesseiro. Parte da platéia se diverte.

               ANDREW
               Operários foram presos em São Paulo por lutar pelo
               direito de greve. (olhando para Luciano) E isso
               não é engraçado. A luta dos camponeses por terra,
               a luta dos trabalhadores por melhores salários...

               LUCIANO
               Engraçado é chamar alguém de camponês. No Brasil
               não existe camponês. Chama um agricultor de
               camponês e ele acerta o seu pé com a enxada.

A platéia se manifesta ruidosamente.

               ANDREW
               Eu não lhe concedi aparte!

               LUCIANO
               O seu discurso é importado e a tradução é muito
               ruim!

               ANDREW
               E o seu discurso serve à ditadura. O anarquismo é
               a direita vestida de palhaço.

               LUCIANO
               O que serve à direita é a incompetência da
               esquerda.

Os dois gritam ao mesmo tempo. Luciano pega um grande
despertador. O despertador toca, aumentando o caos. A platéia
vaia, grita e aplaude.

CENA 07 - TEATRO/BASTIDORES - INTERIOR/NOITE

Chico caminha com dificuldades pela coxia de um teatro. Ao fundo,
placas indicam erradamente ESQUERDA e DIREITA. Chico pede
informações a um COELHO, que lhe indica o caminho.

               CHICO (OFF)
               A Cristina, que também adorava uma platéia, foi
               fazer teatro. Ela me convidou para uma sessão de
               sensibilização, onde a gente ia explorar os nossos
               sentidos em busca do autoconhecimento. Por via das
               dúvidas, escovei bem os dentes.

CENA 08 - TEATRO/PALCO - INTERIOR/NOITE

Chico entra no palco e é recebido por Cristina, Abraão e outros
atores, todos nus. Chico fica num constrangimento total.

               CHICO
               Cristina?

               CRISTINA
               Chico! Pessoal, este é o Chico.

               CHICO
               Tudo bem?

               CRISTINA
               Que bom que você veio. Eu sempre achei que a gente
               devia fazer alguma coisa juntos.

Chico fica olhando para ela, hipnotizado. Abraão se aproxima.

               CRISTINA
               Chico, este é o Abraão.

               ABRAÃO
               A Cristina fala muito de você.

               CHICO
               Legal. (olhando para cima) Interessante estas
               luzes...

               ABRAÃO
               É verdade. Ela lhe falou sobre o exercício?

               CHICO
               Falou, falou. Eu... acho super interessante esta
               história de autoconhecimento e tudo, mas é que...
               Eu posso ficar de cueca?

Chico e Cristina, frente a frente, muito próximos. Eles tocam o
rosto um do outro. Chico tenta controlar-se

               ABRAÃO
               Você é um ser vivo. Um animal, uma árvore. Você é
               um corpo. Você é o seu corpo. Explorem os
               sentimentos do outro com a ponta dos dedos. Toquem
               os sentimentos do outro.

               CHICO
               Cristina, tem um sentimento meu que está ficando
               fora de controle.

               CRISTINA
               Deixe os sentimentos crescerem.

               CHICO
               Pois é, é exatamente disso que eu estou falando...

               CRISTINA
               Qual é o problema? Relaxe. Não tenha medo de
               demostrar o que você sente. Não tente se
               controlar.

Chico olha para Cristina alguns segundos e então a agarra, tasca-
lhe um beijão.

               CRISTINA
               Chico! Controle-se!

               CHICO
               Eu sou um animal! Eu sou uma árvore! Eu sou uma
               árvore enorme! Eu sou um jequitibá!

               CRISTINA
               Socorro!

CENA 09 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA

Luciano, na sala de redação, batendo a máquina.

               CHICO (OFF)
               O Luciano conseguiu um emprego numa estação local
               de tevê. Ele escrevia os textos da madame Mirna.

               LUCIANO
               (falando sozinho) Câncer...

CENA 10 - ESTÚDIO DE TV/CENÁRIO ASTRAL - INTERIOR/DIA

Cenário de um programa de horóscopo na TV. MADAME MIRNA fala com
leve sotaque castelhano. Luciano opera a dália, com o texto.

               MADAME MIRNA
               Aos nativos de Câncer a recomendação é cautela e
               caldo de galinha. O posicionamento de Marte em
               Virgem e a frente fria argentina favorecem a gripe
               e os distúrbios pulmonares. Tome cuidado com
               pessoa invejosa. Cor bege, número vinte e três.

CENA 11 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA

Luciano está em sua mesa numa sala de redação. É um lugar meio
decadente. Chico está sentado em uma cadeira à frente. Luciano
põe sobre a mesa um roteiro.

               LUCIANO
               "Seis Personagens à procura de um país", roteiro
               inédito de Luciano de Almeida, para um programa de
               televisão que você vai dirigir. A Cristina faz a
               Primeira Atriz. Você já viu a peça?

Chico pega o roteiro, folheia.

               CHICO
               Não.

               LUCIANO
               Eu dei pro Velho ler, ele achou "interessante",
               que é o máximo que ele acha de qualquer coisa.

               CHICO
               Por que você mesmo não dirige?

               LUCIANO
               Não, obrigado. Eu só escrevi este roteiro por
               causa da Cristina. Eu fui falar com ela depois da
               peça, no camarim. Ela estava especialmente linda,
               tirando a maquilagem...

CENA 12 - CAMARIM - INTERIOR/NOITE

Cristina, no camarim, tirando a maquilagem. Luciano, de pé ao
lado dela, só observa, tentando aparentar naturalidade.

               LUCIANO (OFF)
               Me olhou com aqueles olhos profundos e disse que
               sempre quis fazer alguma coisa junto comigo.

VOLTA PRA CENA 11 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/NOITE

Chico olha pra Luciano, disfarçando a surpresa.

               CHICO
               Sei.

               LUCIANO
               Escrevi o roteiro numa noite. Eu não quero ser
               diretor, nem jornalista, nem trabalhar em
               televisão.

               CHICO
               E o que você está fazendo aqui?

               LUCIANO
               Juntando dinheiro pra abrir a minha produtora, a
               Lucky Vídeo.

Chico acha graça.

               LUCIANO
               É sério. Já tenho até um sócio uruguaio. Pra
               ganhar dinheiro um sujeito precisa de um sócio
               uruguaio.

O VELHO, um sujeito de uns quarenta e cinco anos, aparência
cansada, abre a porta que dá para a sala de redação. Faz um sinal
para Luciano. Ele levanta.

               LUCIANO
               Vamos lá. Cadê a fita?

Chico tira da mochila uma fita de vídeo U-Matic.

CENA 13 - PÁTIO DE ESCOLA (MONITOR) - EXTERIOR/DIA

Chico, no pátio de uma escola, entrevista algumas crianças.
Edição de imagens com trilha. Sobem os créditos. Roteiro e
Direção: Francisco Freire... (Trilha: "Como o Diabo Gosta", do
Belchior)

CENA 14 - SALA DO VELHO - INTERIOR/DIA

O velho está sentado a uma velha escrivaninha. O Velho acende um
cigarro. Durante todo o diálogo ele divide a atenção entre Chico
e o jornal aberto sobre a mesa.

               VELHO
               (não muito animado) Interessante.

               CHICO
               O equipamento de vídeo da faculdade não é muito
               bom.

               VELHO
               Deve ser melhor que o nosso. Você já sabe o
               salário?

               CHICO
               O Luciano me disse.

               VELHO
               E o horário?

               CHICO
               Madrugada, tudo bem.

               VELHO
               (para Luciano) O Andrew já terminou a edição?

               LUCIANO
               Deve estar terminando.

               VELHO
               Diz pra ele dar uma chegada aqui.

Luciano sai. O Velho procura uma xícara de cafezinho que esteja
limpa. Não encontra, despeja o conteúdo de uma xícara usada em
outra, serve-se de café na garrafa térmica.

               VELHO
               A audiência do jornal é mínima, mas sempre tem
               alguém que acorda às sete da manhã e liga a tevê,
               não me pergunte por quê. A editora chefe é a Dona
               Miriam Junqueira, conhece?

Chico faz que não.

               VELHO
               Ela não dá a mínima pro texto das matérias, desde
               que não tenha três linguodentais fricativas na
               mesma frase. Eu já vi ela trocar "os assaltantes
               são sete" por "os ladrões eram oito".

Andrew entra na sala.

               VELHO
               Andrew, este é o Chico.

               ANDREW
               A gente já se conhece da faculdade. Tudo bem?

Cumprimentam-se.

               VELHO
               O Chico vai segurar a outra alça da mala.

               ANDREW
               Já avisou das linguodentais fricativas?

               VELHO
               Já. (para Chico) Passa no departamento de pessoal
               pra acertar tudo. Tem certificado de reservista?

               CHICO
               (levantando) Tenho.

               VELHO
               Meu pai dizia que tudo que um homem precisa é um
               pênis, um emprego e um certificado de reservista.

               CHICO
               Então tá tudo em ordem.

CENA 15 - VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA

Numa ruela, Chico, Andrew e um CINEGRAFISTA descem da caminhonete
com o equipamento. Na porta de uma casa de madeira, Andrew
entrevista uma MULHER, que fala emocionada. Chico interrompe,
Andrew não entende. Chico posiciona a mulher na luz e manda
recomeçar o depoimento.

               CHICO (OFF)
               Eu e o Andrew logo formamos uma dupla. A gente
               fazia reportagens sobre demissões, desemprego,
               violência, poluição. Ele dizia que toda matéria
               tinha que ter um opressor e um oprimido.

CENA 16 - ILHA DE EDIÇÃO TV - INTERIOR/NOITE

Andrew opera a ilha. Chico, ao lado, sugere modificações. Os dois
parecem satisfeitos com o trabalho.

               CHICO (OFF)
               Eu não entendia disso: pra mim eram sempre o
               mocinho e o bandido. E o mocinho tinha que estar
               bem iluminado. A gente se entendeu rápido.

               CHICO
               Você lembra da semifinal do Interescolar Pérola de
               setenta e três?

               ANDREW
               Semifinal? Não. Mas eu lembro que a gente perdeu a
               final pro Colégio Militar. Foi tudo armado.

               CHICO
               (achando graça) Você acha que a ditadura estava
               preocupada com o resultado do Interescolar Pérola?

               ANDREW
               Você não acredita? O juiz e um bandeirinha eram
               militares da reserva.

               CHICO
               Andrew, eu vi a final. Vocês levaram cinco a um.

               ANDREW
               Veja bem, a imagem que a direita tentava passar
               dos militares era a de...

               CHICO
               Tudo bem, Andrew. (apontando pro monitor) Fade
               out.

FADE OUT.

CENA 17 - CORREDORES DA TV - INTERIOR/NOITE

Chico, Andrew, Luciano e Cristina entram na televisão. Salas
vazias. Chico e Luciano acendem luzes e equipamentos.

               CHICO (OFF)
               Na madrugada, nós tomávamos conta da televisão.
               Enquanto todos dormiam, a gente sonhava.

CENA 18 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE

Chico está na central técnica, com cara de sono, mexendo nos
controles da mesa. O relógio na parede marca 3:47.

CENA 19 - ESTÚDIO DE TV/MONITOR - INTERIOR/NOITE

Cristina, interpretando "Alice no país das maravilhas", agita os
braços na frente de um fundo azul.

               CRISTINA
               Dinah vai sentir muito a minha falta esta noite,
               eu acho...

No monitor, graças ao "chroma-key", Cristina-Alice parece estar
caindo em um poço sem fundo.

               CRISTINA
               Dinah, eu queria que você estivesse comigo aqui.
               Não tem nenhum rato no ar, infelizmente, mas bem
               que você podia pegar um morcego...

De repente, o fundo do "chroma-key" termina, e Alice fica
sacudindo os braços no ar sobre as imagens de uma tv fora do ar.

               CRISTINA
               ... é igualzinho a um rato, sabe? Mas, gatos comem
               morcegos? Gatos comem morcegos?

               CHICO (OFF)
               (no microfone) Parou. Terminou a base do chroma.
               São quase quatro da manhã, eu reedito depois.
               Ficou ótimo.

De repente, a imagem do estúdio surge em outro monitor. Neste
monitor está escrito "NO AR". Chico se assusta.

               CHICO
               O que é isso?

Luciano entra em cena, seguido por Andrew. Luciano tem um baseado
na mão e faz sinais para Chico, apontando para o lado. Cristina e
Andrew morrem de rir. Chico liga uma tv comum, muda de canal, daí
encontra a imagem do Luciano.

               CHICO
               (erguendo-se) O Luciano enlouqueceu! A tevê está
               no ar!

Chico verifica a mesa.

               CHICO
               (assustado, grita no comunicador) Porra, Luciano,
               você é louco! Desliga esta merda, Luciano!

               CRISTINA
               Que foi?

               CHICO
               (levantando) Ele ligou o transmissor. A tevê tá no
               ar! (sai)

Cristina fica rindo. Luciano pega o livro "Alice no país das
maravilhas" na mão, dá uma tragada e segura a fumaça nos pulmões.
Abre o livro.

               LUCIANO
               "Era briluz. As lesmolisas touvas roldavam e
               relviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as
               pintalouvas e os momirratos davam grilvos". E
               agora com vocês, nosso comentarista comunista e
               pobre, Andrew Silva Ribeiro Terceiro.

Luciano passa o baseado para Andrew. Ele dá uma tragada e vem
para frente da câmara.

               ANDREW
               Trabalhadores do Brasil! Pão, orgasmo e maconha
               para todos! Hay que endurecerse, pero sin faltar
               la marijuana jamás!

Chico desliga o transmissor. O monitor "NO AR" se apaga. Chico
entra no estúdio e desliga a luz. Luciano entra em cena.

               LUCIANO
               Camaradas! Mercenários a soldo do capitalismo
               ianque estão invadindo nossos estúdios. Querem
               calar a nossa voz, camaradas! A Tele Rebelde,
               canal nove, uma emissora da Fundação Raul
               Seixas...

Luciano fica falando mas não se ouve o que ele diz. Chico cortou
o som dos microfones. Chico entra em cena, ainda irritado,
gesticulando muito. Luciano estende o baseado para Chico. Ele
pára de discutir, pega o cigarro e fuma.

CENA 20 - TEATRO/CENÁRIO DE ALICE - INTERIOR/NOITE

Um cenário de teatro infantil. Cristina dá o texto final de
"Alice no País das Maravilhas".

               CRISTINA
               Ela estava cercada de outras crianças e fazia os
               olhos delas brilharem quando lhes contava
               histórias curiosas, talvez até mesmo o sonho do
               País das Maravilhas, de há muito tempo atrás.

Chico, mais Andrew com sua mulher SÍLVIA e uma FILHA no colo, 2
anos, no meio de uma platéia de mães com seus filhos, batem
palmas.

CENA 21 - CAMARIM - INTERIOR/NOITE

No camarim lotado, clima de alegria, confusão, todos falando ao
mesmo tempo. Chico abraça Cristina. Chico apresenta Abraão para
Andrew.

               ABRAÃO (OFF)
               Eu não tenho orgulho nenhum de ter sido preso. Eu
               nem era comunista.

CENA 22 - CAMARIM (MONITOR) - INTERIOR/NOITE

Reportagem sobre Abraão: se maquilando, no palco, dando aulas.
Fotos de Abraão em outras peças.

               ABRAÃO
               Eu só não gostava do que os militares faziam:
               torturar gente, prender músicos, proibir filmes. E
               eu fazia teatro, dava aula de filosofia, estas
               coisas. (...) Os caras que me torturaram me
               chamavam de "judeu!", "veado!", "atorzinho!".

Abraão, sentado no cenário da peça, termina de tirar a
maquilagem.

               ABRAÃO
               Tinha um lado irônico: era tudo verdade, eu era
               mesmo um atorzinho veado e judeu. Irônico, mas não
               engraçado. (...) Eu continuo querendo mudar o
               mundo, eu continuo acreditando nas pessoas, eu
               continuo sendo... esquerdo.(...) Tem uma frase no
               Orlando... "Eu estou crescendo. Estou perdendo
               algumas ilusões. Talvez para adquirir outras."
               Tomara que sim.

CENA 23 - ILHA DE EDIÇÃO TV - INTERIOR/DIA

Chico dá pause no VT. O Velho fica olhando para o monitor
apagado. Chico e Andrew ficam esperando uma resposta do Velho.

               VELHO
               (muito sério) Interessante. Muito interessante. Só
               que não vai ao ar.

Chico ri, como quem não acredita. Andrew não esboça uma reação.

               CHICO
               Por quê?

               VELHO
               Ele é muito gordo.

               CHICO
               Velho...

               VELHO
               (levantando) Chico, por favor, não vamos começar
               uma conversa adolescente a esta hora. Ele fala de
               tortura. Não é o momento de provocar os militares,
               você sabe disso.

Andrew ri.

               ANDREW
               Como é que você se conforma com um papel desses,
               Velho?

               VELHO
               Da mesma maneira que vocês: eu sou pago pra isso.

Andrew levanta, começa a pegar suas coisas, papéis, livros.

               ANDREW
               Eu não. Não mais. Já aprendi o que tinha pra
               aprender nessa tevê. Eu vou sair e botar a boca.

               VELHO
               Onde? No bar? Ou no jornalzinho do sindicato? Não
               seja ridículo, Andrew.

               ANDREW
               Sabe qual é o seu problema, Velho? É que você
               cansou. Cansou, de tanto levar porrada, e resolveu
               colaborar. Tudo bem, dá pra compreender. Mas eu
               ainda nem comecei e não vou me submeter aos seus
               critérios nazistas. Eu tô fora.

Andrew sai. Chico senta e fica olhando para o Velho.

               VELHO
               E você Chico? Vai pegar ou vai continuar? O prêmio
               está acumulado em dez milhões.

               CHICO
               Deixa de ser cínico, Velho.

               VELHO
               Deus me livre! Ser cínico é que me faz suportar
               idiotas como vocês dois. Vocês querem comover meia
               dúzia de donas de casa que acordam cedo para fazer
               o café pro marido. "Ele foi torturado? Pobrezinho,
               que maldade..." São as mesmas donas de casa que
               bateram panela na rua, rezando e pedindo o golpe
               militar. O Ibope de vocês é zero, Chico! Não se
               faz revolução nenhuma dando zero no Ibope.

O Velho vai saindo. Chico senta na cadeira do editor. Apóia a
cabeça com a mão.

               VELHO
               Termina de editar o jornal e vai dormir. Você tem
               uma entrevista amanhã cedo. (pausa) O Andrew te
               falou que recebeu uma proposta pra trabalhar numa
               rádio?

               CHICO
               (surpreso) Não.

               VELHO
               Três vezes o salário daqui. Ele quer sair dando
               uma de ofendido. E você quer perder o emprego e
               quer que eu arrisque o meu pelas bichices de um
               atorzinho?

               CHICO
               Você esqueceu de dizer que ele é judeu.

               VELHO
               Podia ser pior. Ele podia ser negro. Boa noite.

CENA 44 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA

Chico entra apressado no saguão do aeroporto. Encontra Luciano,
que vem em sentido contrário. Eles procuram Cristina em meio a um
grupo de passageiros que acaba de desembarcar.

               CHICO
               Já chegou o vôo dela?

               LUCIANO
               Não tenho certeza.

               CHICO
               O que ela foi fazer na Índia?

               LUCIANO
               Você lembra que ela tava se tratando num analista?

               CHICO
               Indiano?

               LUCIANO
               Não. Freudiano. Ela ficava muito ansiosa por não
               lembrar dos sonhos, para contar pro analista.

CENA 45 - BANCA DE REVISTAS - EXTERIOR/DIA

Cristina compra uma revista numa banca. O nome da revista é "BONS
SONHOS".

               LUCIANO (OFF)
               Aí ela comprou uma revista de interpretação de
               sonhos, pra decorar um sonho qualquer que era dado
               como exemplo.

CENA 46 - CENTRO DA CIDADE - EXTERIOR/DIA

Cristina caminha quase nua pelo centro da cidade. Tenta se
esconder com um jornal. As PESSOAS passam por ela mas não prestam
atenção. Um GUARDA se aproxima.

               LUCIANO (OFF)
               Ela leu e contou pro analista que tinha sonhado
               que estava nua no centro da cidade quando um
               guarda aparecia e pedia uma informação. O guarda
               queria saber onde ele podia pegar o ônibus para
               Passo Fundo.

CENA 47 - CONSULTÓRIO - INTERIOR/DIA

Cristina, numa poltrona, conta o sonho pro analista.

               LUCIANO (OFF)
               O analista disse que ela estava se sentindo
               exposta, que eles precisavam falar sobre o pai
               dela. A revista disse que sonhar com guarda é
               sinal de sorte e que sonhar com ônibus é camelo.

CENA 48 - PIRÂMIDES - INTERIOR/DIA

Cristina, em meio às pirâmides do Egito, encontra o ARGENTINO, um
homem de mãos fortes e de cabeça raspada.

               LUCIANO (OFF)
               Ela largou a análise e embarcou pro Egito no dia
               seguinte.

               CHICO (OFF)
               Egito? Não era Índia?

               LUCIANO (OFF)
               Acontece que no Egito ela encontrou um argentino.
               Disse que era o homem da vida dela. Eles viajaram
               juntos pra Calcutá.

VOLTA PRA CENA 44 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA

Chico e Luciano esperando Cristina.

               CHICO
               Mas então o argentino vem junto?

               LUCIANO
               Não, ela foi tomar banho no Ganges, teve uma
               infecção por estafilococos e voltou pro Brasil. Me
               ligou hoje de manhã do Rio.

               CHICO
               (aponta uma mulher) É ela?

               LUCIANO
               Muito alta!

Por trás deles, chega uma mulher com um traje krishna completo.
Luciano e Chico se viram e olham direito para o rosto da krishna:
é Cristina. Os dois ficam pasmos.

               CHICO
               Cristina...

               CRISTINA
               (sorrindo) Hare-krishna.

               CHICO
               (tentando aparentar normalidade) Igualmente.

Chico, depois de um momento de hesitação, decide cumprimentá-la à
maneira ocidental, com um beijo, mas Cristina o detém com um
gesto.

               CRISTINA
               (sempre sorrindo) Desculpe, Chico, mas o beijo é
               maia. Nós não somos casados.

Chico fica sem saber o que fazer.

               LUCIANO
               Apertar a mão pode?

               CRISTINA
               (sorrindo) Pode.

Os três apertam as mãos.

CENA 49 - FRENTE DO TEMPLO - EXTERIOR/DIA

Cristina e seus COMPANHEIROS KRISHNA abanam para Chico e Luciano,
que estão no carro, em frente ao templo.

CENA 25 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA

Luciano trabalhando na redação da TV. Ele segura o telefone no
ombro e fala com Chico. Sobre a mesa, mapa astral.

               CHICO (OFF)
               Foi nesta época que o Luciano começou a utilizar
               seus conhecimentos astrológicos para investir na
               bolsa de valores.

               LUCIANO
               (para Chico) Você tem o ascendente em peixes e
               peixes é água e a cor simbólica das águas
               primordiais é o verde. Verde. É óbvio, você deve
               comprar dólar. Poupança é coisa de
               capricorniano.(ao telefone) Sim? (...)Setenta e
               dois. (...) Sei. (...) Davi, o Ibarri tá me
               dizendo isso desde março... (...) Certeza? (...)
               Isso daria uns quarenta e cinco por cento numa
               semana... (...) E dá pra acreditar? (...) Claro,
               Davi, nem precisa falar. Sigilo absoluto.

CENA 26 - PARQUE - EXTERIOR/DIA

Um parque florido, cenário de piquenique, toalha estendida na
grama, entre as flores. Em destaque, uma cesta de vime com pães
de diferentes tipos. Ao lado, RENATA, uma modelo muito bonita,
com um roteiro na mão, tenta decorar o texto. Em volta dela, a
EQUIPE DE PRODUÇÃO prepara a gravação. Luciano fala com ela e vem
até a câmara, onde está Chico.

               RENATA
               Gostosos, deliciosos e... Não. (olhando o texto)
               Gostosos, macios e fofinhos. (pra câmara,
               sorrindo) Gostosos, fofios e... Não. (volta o
               olhar o texto).

               CHICO (OFF)
               Foi esta não tão improvável mistura de astrologia
               e mercado futuro que mudou a vida do Luciano. E a
               nossa também. O primeiro trabalho da Lucky Vídeo
               foi um comercial de pão.  E eu comecei a descobrir
               o poder que tem um diretor.

Afastado dela, olhando por monitor, Chico pensa em voz alta.
Luciano se aproxima.

               CHICO
               Podia ter um pipoqueiro lá no fundo...

               LUCIANO
               Um pipoqueiro lá no fundo! Rápido!

               PRODUTOR (OFF)
               Um pipoqueiro!

               CHICO
               Essa guria não vai conseguir dar o texto.

               LUCIANO
               Claro que vai, Chico, olha que gracinha.
               (oferecendo a Chico) Quer uma bala?

               CHICO
               Eu odeio esse negócio, eu odeio publicidade.

Chico pega a bala. Um pipoqueiro, que parece não estar entendendo
nada, surge na cena.

               LUCIANO
               Claro. Você já me disse isso. Acontece que você
               aceitou fazer este comercial e acontece que a
               gente só tem mais uma hora de equipamento.

               CHICO
               Fica melhor sem o pipoqueiro.

               LUCIANO
               Sem o pipoqueiro! Tirem esse pipoqueiro daí!

               PRODUTOR (OFF)
               Tirem esse pipoqueiro daí!

O pipoqueiro é arrastado para fora da cena.

               LUCIANO
               Chico, o sol tá caindo, Chico... Olha lá a Renata.
               Ela é linda. Ela vai comer o pão e dizer que é
               gostoso, macio e fofinho. Todo mundo vai acreditar
               nela, porque ela é linda. Publicidade é isso aí.

Chico fica olhando para Luciano. Depois dá uma olhada para
Renata. Ela dá um sorriso simpático para Chico. Chico retribui.

CENA 27 - PARQUE (MONITOR) - EXTERIOR/DIA

Na tela de uma tevê, Renata começa a comer o pãozinho, linda e
simpática. Detalhes do pão, que parece delicioso. Musiquinha no
fundo. Ela fica comendo o pão, com mordidas pequenas.

               LOCUTOR 1
               Cláudia foi contratada para dizer que os pãezinhos
               Ibarri são gostosos, macios e fofinhos. Cláudia
               foi escolhida porque ela também é gostosa, macia e
               fofinha. Ela está ganhando um ótimo cachê só para
               dizer isso, que os pãezinhos Ibarri são gostosos,
               macios e fofinhos. É um serviço fácil. Cláudia...
               Por favor, Cláudia: o texto! Cláudia!

Ela ainda está comendo. Entra a assinatura da Lucky Bread, com a
locução final.

               LOCUTOR 2
               Pãezinhos Ibarri. Gostosos, macios e fofinhos.

CENA 28 - APARTAMENTO DE LUCIANO - INTERIOR/NOITE

Chico, Luciano e Renata estão na sala do apartamento de Luciano,
assistindo televisão. Luciano aplaude, entusiasmado.

               LUCIANO
               Ficou ótimo!

               CHICO
               É...

               RENATA
               (sem entender) Cadê o meu texto?

               LUCIANO
               (beijando Renata) Era um subtexto.

Renata continua sem entender.

               LUCIANO
               Subtexto... um texto que fica por baixo do outro,
               não aparece, eles usam muito nos Estado Unidos.
               Under-text. (Dá outro beijo.) Cláudia, você tá
               linda.

Renata fica mais contente.

               RENATA
               Renata! Obrigado.

               LUCIANO
               Isso vai vender montanhas de pão. (abre o
               champagne) Parabéns, Chico.

               CHICO
               (sem muita convicção) Eu detesto publicidade.

               LUCIANO
               (erguendo o copo de champagne) Longa vida ao
               Chico, um publicitário que detesta publicidade.

Brindam, alegres. Luciano dá um beijo em Renata.

CENA 29 - BAR - INTERIOR/NOITE

O Velho está numa mesa de bar, sozinho. Na sua frente, um copo
com um resto de chope, várias "bolachas" e um copinho de cachaça.
Ele faz sinal para CHUMBO, o garçom, que passa sem lhe dar
atenção. Chico entra no bar, procura e encontra o Velho. Vai até
a mesa.

               CHICO
               Tá sozinho?

Velho vira-se com a dificuldade natural dos bêbados, olha para
cima, reconhece Chico.

               VELHO
               (discursando) Sozinho, não! Com os trabalhadores
               na luta pelo socialismo!

Chico puxa uma cadeira e senta.

               CHICO
               Eu preciso falar com você.

               VELHO
               Quando alguém que JÁ está falando com você diz que
               precisa falar com você, pode ter certeza que tem
               sacanagem no meio. Tem, teve ou vai ter.

               CHICO
               Eu vou sair da tevê.

               VELHO
               Não te falei? Eu não disse? No caso, VAI TER
               sacanagem.

               CHICO
               Eu e o Luciano, a gente fez uns comerciais, o
               Luciano vai abrir uma produtora, me convidou pra
               trabalhar com ele.

               VELHO
               Você vai virar publicitário. (chamando) Ôoo...
               Chumbo! Pelo amor de deus, Chumbo, faz duas horas
               que eu pedi um conhaque e um chope! Quer o pedido
               por escrito?

               CHICO
               Velho, eu quero é fazer os meus projetos. A minha
               condição pra trabalhar na produtora é não fazer SÓ
               comerciais.

               VELHO
               Você vai virar publicitário, Chico. Se você quer
               virar publicitário, tudo bem, eu entendo.
               Publicitário vive cercado de modelos maravilhosas,
               trabalha pouco, se diverte muito... Em compensação
               ganha uma fortuna. Tudo bem, Chico. Vai fundo.

Chumbo chega e larga dois copos de chope na mesa.

               VELHO
               E o conhaque? Ôoo... Chumbo! E o conhaque?

Chumbo já foi. Chico faz menção de devolver o copo, o Velho não
deixa.

               VELHO
               Deixa aí! Vamos fazer um brinde...

               CHICO
               Não, Velho. Amanhã cedo eu começo a trabalhar no
               meu roteiro.

               VELHO
               Claro. Mas primeiro um brinde. Um brinde... ao
               Chumbo! Um brinde ao Chumbo, que não vai virar
               publicitário e, um dia, vai me trazer o conhaque.

CENA 30 - PISCINA DE COMERCIAL/MONITOR - EXTERIOR/DIA

Uma modelo loura pula na água. A entrada na água é desastrosa, de
barriga. A modelo morena pula e entra na água com perfeição.

Planos submarinos da loura. Planos submarinos da morena.

A loura sai da água e experimenta o iogurte. A morena sai da água
e experimenta o iogurte. As duas saem da água e experimentam dois
iogurtes.

CENA 31 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

Luciano está sentado ao lado de Chico e fala sem olhar para o
monitor. Chico, ao contrário, não tira os olhos da tela. No
monitor, uma modelo loura, num trampolim, prepara-se para
mergulhar na piscina. A modelo loura pula do trampolim e cai de
barriga na água. O EDITOR congela o quadro, volta lentamente a
imagem até o ponto em que a modelo loura quase toca na água.

               CHICO (OFF)
               Eu não comecei a trabalhar no meu roteiro na manhã
               seguinte. Nem na outra. Nem nos próximos cinco
               anos. Em compensação, fiz mais de trezentos
               comerciais, ganhei alguns prêmios e um monte de
               dinheiro. Eu vendia de tudo. Quase tudo.

               LUCIANO
               Um candidato é um produto como qualquer outro,
               Chico. Um cigarro, um iogurte...

               CHICO
               (irônico) Tá bom... Isso. Agora põe a morena.

O monitor agora mostra a imagem submarina da modelo morena
mergulhando, em câmara lenta. O editor congela a imagem no
momento em que se percebe claramente que o cabelo dela é preto.
Ele recua a imagem alguns quadros antes. Ele aciona a máquina,
que faz a edição. No monitor, a modelo loura pula no trampolim, a
modelo morena mergulha, a modelo loura sai da água.

               LUCIANO
               Qual a diferença?

               CHICO
               A diferença é que o iogurte não quer ser prefeito
               da cidade.

               LUCIANO
               O Davi vai ser candidato de qualquer jeito, você
               não pode impedir isso.

               CHICO
               Mas não preciso ser cúmplice. (para o editor) O
               plano submarino ficou um pouco curto.

O editor começa a refazer a edição.

               LUCIANO
               O Davi tem direito de ser candidato. Vota nele
               quem quer.

               CHICO
               E compra iogurte quem quer, vê televisão quem
               quer... Você sabe que não é assim, Luciano. As
               pessoas querem acreditar em alguma coisa. A gente
               diz pra elas que comendo este iogurte, cheio de
               conservantes ela vai ser forte, saudável e
               sexualmente atraente. (imagens do comercial) A
               gente diz e elas acreditam, porque elas tão super
               a fim de acreditar em qualquer coisa que tire elas
               da vida medíocre que levam, seja um iogurte, um
               cigarro ou um candidato a prefeito. Só que um
               candidato a prefeito pode ser mais cancerígeno que
               qualquer cigarro. Um candidato NÃO é um produto
               qualquer.

               LUCIANO
               Chico, a verba da campanha do Davi pra televisão é
               de dois milhões de dólares.

No monitor, a edição completa do comercial: a modelo loura pula
do trampolim, o plano submarino mostra a modelo morena, a modelo
loura sai da água, pega uma embalagem do iogurte e toma um gole.
Entra a assinatura em computação gráfica.

Luciano oferece uma bala para Chico. Chico aceita.

CENA 32 - ESTÚDIO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

PINTORES, OPERÁRIOS e CENOTÉCNICOS aprontam o estúdio de
gravação. Numa parede terminam de ser colocadas, em frente a um
grande céu aerografado, as letras que formam a palavra "DAVI".

Chico supervisionando alguma coisa, assina papéis. Alguém chama
atenção para a TV. Chico aumenta o som.

CENA 33 - ESTÚDIO DE TV (MONITOR) - INTERIOR/NOITE

Apresentadora de telejornal no estúdio.

               APRESENTADORA
               O candidato da Aliança Liberal, Davi Capitelli,
               continua subindo nas pesquisa. Ele esteve hoje
               falando às donas de casa.

CENA 33A - RUA - EXTERIOR/NOITE

Davi aparece na TV, dando uma entrevista.

               DAVI
               Os governos municipais são omissos, transferindo a
               questão da segurança para o governo estadual e
               federal. Enquanto isso a população se tranca em
               suas casas, entrincheirada nesta guerra sem
               fronteiras em que estão mergulhadas as grandes
               cidades brasileiras.

VOLTA PRA CENA 33 - ESTÚDIO DE TV (MONITOR) - INTERIOR/NOITE

               APRESENTADORA
               E o último candidato na corrida para a prefeitura
               foi definido hoje...

(32) Chico aumenta o volume. Alguém vem falar com ele.

               CHICO
               Só um pouquinho.

               APRESENTADORA
               ...na tumultuada convenção da Frente Democrática.
               As candidaturas do economista Joaquim Canhette e
               do deputado Luiz Renato ameaçavam rachar a Frente.
               A solução acabou sendo a terceira via,
               representada pelo azarão da noite e agora
               candidato a prefeito, o radialista e líder
               comunitário Andrew Ribeiro.

CENA 34 - COMITÊ DE ANDREW (MONITOR) - EXTERIOR/DIA

Repórter falando pra câmara.

Andrew (identificado por caracteres) dá entrevista, vários
microfones na frente.

               ANDREW
               A Frente Democrática tem todas as condições de
               conquistar a prefeitura porque tem o melhor
               programa de governo. A Frente defende os
               interesses...

CENA 35 - SALA DE DAVI - INTERIOR/DIA

Chico assiste ao jornal na sala aparentemente vazia.

               ANDREW
               ...da imensa maioria da população. Nossos
               oponentes defendem os interesses das elites, que
               estão em menor número. Na hora da eleição a gente
               vale o mesmo que eles.

Davi desliga o VT.

               DAVI
               Ele era seu amigo, não era?

               CHICO
               Era.

               DAVI
               Isso faz diferença?

               CHICO
               Eu assinei um contrato, não assinei?

Davi fica alguns segundos observando Chico.

[BLOCO 2]

VOLTA PRA CENA 1 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

Chico continua sentado na cadeira, olhando pra câmara.

               CHICO
               Eu podia ter me recusado a fazer a campanha do
               Davi: era só dizer que o Andrew era meu amigo, que
               isso mudava tudo. Mas não mudava.

CENA 37 - SALA DE DAVI - INTERIOR/DIA

Chico continua sentado na mesma posição. Alguns ASSESSORES entram
na sala, junto com Luciano. Davi apresenta Chico.

               DAVI
               Fulano, esse é o Chico, nosso mago das telinhas.
               Graças a ele, eu nunca vendi tanto iogurte.

               FULANO
               (rindo) Prazer.

               DAVI
               Ele já me deixou mais rico. Agora vai me deixar
               mais famoso.

Luciano senta ao lado de Chico. Davi se dirige aos dois.

               DAVI
               Nós fomos colegas no Anchieta, não da mesma turma,
               eu era um pouco mais velho que vocês. Não sou
               mais.

Os assessores riem muito.

               DAVI
               No colégio me chamavam de Luis, meu nome é Luis
               Davi, mas eu não queria que pensassem que eu era
               judeu. Agora eu quero.

Os assessores riem muito.

               DAVI
               O Luciano vai expor rapidamente qual é a nossa
               estratégia de marketing, nosso target, e qual é o
               recall esperado com a primeira fase da campanha.

Luciano começa a falar e põe sobre a mesa alguns gráficos. Chico
finge que presta muita atenção. Um GARÇOM serve cafezinho para
todos.

CENA 38 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/DIA

Passagem de tempo. Copos de café e cigarros atestam que a reunião
já dura algumas horas. As pessoas gritam e gesticulam mas Chico
não escuta mais.

               CHICO (OFF)
               Eu tenho que ter uma idéia, uma idéia só. Todo
               mundo já disse as obviedades de sempre, já marcou
               posição, já puxou o saco, já pediu café. Agora é
               hora de alguém ter realmente alguma idéia.

Chico escreve o nome DAVI, uma, duas, muitas vezes, num pedaço de
papel.

               CHICO (OFF)
               Uma idéia... A maioria vai esperar pra ver o que o
               Davi acha pra depois achar alguma coisa. De
               qualquer maneira, no máximo em quinze minutos,
               todos vão concordar que é melhor pensar com calma
               e voltar a conversar amanhã e eu vou poder pegar
               um vídeo e ir para casa, tomar banho e dormir na
               frente da televisão. Pra tudo isso acontecer,
               basta eu ter uma idéia, uma idéia de verdade.

Chico rasga a folha de papel, isolando o nome DAVI num papelzinho
bem pequeno. Chico rasga o nome DAVI ao meio, inverte as sílabas
e lê: VIDA. Volta a inverter: DAVI. Chico fica olhando para
aquele pedacinho de papel. Levanta os olhos, encara Davi.

               CHICO
               Eu tive uma idéia.

CENA 39 - ESTÚDIO DE SOM - INTERIOR/DIA

Num estúdio de som, quatro cantores e alguns músicos gravam o
jingle da campanha de Davi. A palavra "Vida" cantada várias vezes
se transforma em "Davi". Chico acompanha a gravação.

CENA 40 - GRÁFICA - INTERIOR/DIA

Uma máquina imprime um cartaz com a marca "DAVIDAVIDAVI". Um
FUNCIONÁRIO corta uma folha com várias tiras, em que a marca
"DAVIDAVIDAVI" aparece em um padrão ligeiramente diferente.
QUATRO CEGOS colocam presilhas na parte anterior de alguns
buttons, todos com a marca "DAVIDAVIDAVI". MULHERES colam
adesivos com a marca "DAVIDAVIDAVI" em caixas de fósforos.

CENA 41 - VÍDEO-LOCADORA - INTERIOR/NOITE

Chico está agachado, tentando ler o título dos filmes na lombada
das caixinhas de vídeo nas prateleiras mais baixas, numa
coreografia meio ridícula. Cristina se aproxima e reconhece
Chico.

               CRISTINA (OFF)
               Chico...

Chico olha pra cima. Levanta-se.

               CHICO
               Cristina!

Beijam-se, carinhosos e realmente felizes por terem se
encontrado. O cartaz indica a sessão de vídeos: þCLÁSSICOSþ

CENA 44A - ARQUIVO

Um avião desce.

               CHICO (OFF)
               Como você já percebeu, a Cristina está sempre
               entrando e saindo desta história.

CENA 44B - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA

Chico entra apressado no saguão do aeroporto. Encontra Luciano,
que vem em sentido contrário.

               CHICO (OFF)
               E eu estou sempre esperando por ela. Não sozinho,
               é claro.

Chico e Luciano procuram Cristina em meio a um grupo de
passageiros que acabam de desembarcar.

               CHICO
               Já chegou o vôo dela?

               LUCIANO
               Não tenho certeza.

Chico aponta para uma mulher, de costas, juntando uma mala.

               CHICO
               É ela?

               LUCIANO
               Não pode ter engordado tanto.

               CHICO
               O que ela foi fazer na Austrália?

               LUCIANO
               Você lembra que ela tava fazendo sonoterapia?

               CHICO
               Australiana?

               LUCIANO
               Não. Você não vai acreditar, mas numa sessão ela
               sonhou com o antigo analista dela montado num
               camelo.

CENA 48A - BANCA DE BICHO - INTERIOR/DIA

Cristina conversa com o CAIXA DO BAR. Ele anota o palpite dela no
bicho: camelo.

               LUCIANO (OFF)
               Ela resolveu jogar uma grana no camelo, invertido
               do primeiro ao quinto. Juntando com aquele sonho
               de dois anos antes, que ela tinha inventado, mas
               que também tinha camelo, sei lá.

Cristina deixa cair a carteira. Vai juntar e é ajudada pelo
ASTRÓLOGO.

               LUCIANO (OFF)
               Deu elefante, mas ela conheceu um cara na banca do
               bicho.

               CHICO (OFF)
               Australiano?

               LUCIANO (OFF)
               Não. Astrólogo. Ela largou a sonoterapia e foi com
               ele prum congresso de astrologia em Sidney.

VOLTA PRA CENA 44B - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA

Chico e Luciano esperando Cristina.

               CHICO
               Mas então o australiano vem junto?

               LUCIANO
               Não sei. Ela me disse que vinha sozinha, mas que
               tinha uma surpresa.

               CHICO
                Como se eu ainda fosse me surpreender com a
               Cristina.

Por trás deles, chega uma mulher com um cabelo punk e uma jaqueta
de couro. Luciano e Chico se viram e olham direito para o rosto
dela: é Cristina. Chico faz um ar de quem não se surpreende.

               CHICO
               Cristina...

Cristina abre a jaqueta e mostra um barrigão de grávida.

               CRISTINA
               (sorrindo) Chico, Luciano. Esse é o José.

Os dois ficam pasmos. Cristina agarra Luciano e lhe dá um super
beijo na boca. Em seguida, ela larga Luciano, agarra Chico e
repete a dose.

CENA 50 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Chico, Luciano e Cristina estão sentados em volta de uma mesa,
com roupas de inverno, cabeça baixa. Silêncio absoluto, como se
estivessem num ritual religioso. Em volta deles, velas, velas e
mais velas. Luciano está enrolado num cobertor.

               CHICO (OFF)
               Em menos de dois anos ela deixou de ser punk e
               virou mãe e Rajneesh. Felizmente, a vó era
               católica e adorava criança.

               CRISTINA
               (gritando) STOP!

Os três, que estavam estáticos, se agitam muito.

               CHICO
               Não acredito! Você conseguiu animal com "ene"?

               CRISTINA
               Animal com "ene" é fácil. Difícil foi novela com
               "ene". Nino, o Italianinho.

               LUCIANO
               Ene? Não era "Eme"?

               CRISTINA
               Não, Luciano, tá brincando que você fez tudo com
               "Eme"! Eu falei dez vezes, e-ne, e-ne, e-ne!

               LUCIANO
               Acho que o meu cérebro congelou com o frio.

               CRISTINA
               (encarando Chico) Quem teve a idéia de vir para a
               praia com esse frio?

               CHICO
               Eu gosto. Não tem ninguém pra encher o saco. A
               gente pode fazer qualquer coisa.

               CRISTINA
               Qualquer coisa?

CENA 51 - PRAIA - EXTERIOR/DIA

Chico e Luciano, sentados na areia da praia, morrendo de frio.
Olham para a frente.

               CHICO
               Qual é a diferença entre krishna e Rajneesh?

               LUCIANO
               Na prática, é o seguinte: antes ela não beijava
               ninguém, e agora ela dá pra todo mundo.

               CHICO
               (impressionado) Ah, é?

Cristina sai correndo do mar e chega perto deles. Ela está
vestindo uma roupa vermelha de borracha completa. Cristina dá um
beijo em cada um.

               CRISTINA
               O último a chegar em casa é um pingüim!

E sai correndo. Os dois se olham por um instante. Depois, também
saem atrás.

CENA 53 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE

Luciano, andando por uma rua deserta, procurando alguma coisa.

               CRISTINA (OFF)
               O Bhagwan ensina que, quando a gente quer alguma
               coisa, tem que lutar por ela...

CENA 52 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Cristina e Chico, sentados lado a lado em frente à mesa,
separando baralhos.

               CRISTINA
               ... Não pode abrir mão daquilo que te leva ao
               prazer.

               CHICO
               O Luciano me explicou rapidamente.

               CRISTINA
               Como se ele entendesse... O Luciano é uma criança.
               Ele precisa é de uma mãe.

               CHICO
               Todo mundo precisa.

               CRISTINA
               Você também?

               CHICO
               Por que não?

               CRISTINA
               Não sei. Você sempre me pareceu tão forte, tão
               seguro.

               CHICO
               (confere o baralho) Tá faltando a dama de copas.

               CRISTINA
               (mostrando a dama de copas) Está aqui.

VOLTA PRA CENA 53 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE

Luciano bate na porta fechada de um bar.

VOLTA PRA CENA 52 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Um beijo longo, quente e apaixonado entre Cristina e Chico.

VOLTA PRA CENA 53 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE

Luciano conversa com o dono do bar.

               LUCIANO
               ... e eu tinha uma seqüência de ouros, só faltava
               o sete, e esse meu amigo estava como o sete,
               esperando o oito, que estava comigo, mas isso,
               claro, não importa. Só que esse meu amigo ele tem
               um tipo meio raro de hipoglicemia e PRECISA comer
               um chocolate, se não comer um chocolate ele tem
               uma crise horrível. Eu sei que são mais de meia-
               noite e que... (olha a placa) isso é uma peixaria,
               mas será que o senhor, por acaso, não teria, em
               algum lugar, um chocolate?

CENA 56 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE

Chico e Cristina sentados lado a lado.

               CRISTINA
               Este fim-de-semana aqui foi muito importante pra
               eu poder me decidir.

               CHICO
               Sei.

               CRISTINA
               Eu sempre achei que não precisava de ninguém. Mas
               descobri que eu preciso.

               CHICO
               Claro.

               CRISTINA
               Eu preciso de alguém que precise de mim. Acho que
               foi isso que me fez decidir.

Chico fica olhando alguns segundos para Cristina. Luciano,
sentado ao lado dela, oferece um pedaço de ovo de páscoa aos
dois.

               LUCIANO
               Querem mais chocolate?

Chico aceita.

CENA 57 - AEROPORTO - INTERIOR/NOITE

Chico abana no aeroporto. Luciano abana no aeroporto. Na escada
rolante, Cristina, com José no colo, abana para os dois.

VOLTA PRA CENA 41 - VÍDEO-LOCADORA - INTERIOR/NOITE

Chico e Cristina agora estão em frente à sessão "NOVIDADES".

               CHICO
               Alguém me falou que você tinha voltado...

               CRISTINA
               Já faz um tempo.

               CHICO
               E o José?

               CRISTINA
               Tá na escola. Segundo ano já.

               CHICO
               Já? Que loucura...

               CRISTINA
               Precisa ver que gracinha ele falando alemão. Tem
               visto o Luciano?

               CHICO
               Tenho. Tá igual. Tudo bem com você?

               CRISTINA
               Tudo. Estou voltando a fazer teatro.

               CHICO
               É mesmo?

               CRISTINA
               Uma peça infantil. Bem legal, direção do Abraão.
               Ele sempre fala naquele roteiro dos "Seis
               Personagens". Você ainda pensa em dirigir?

               CHICO
               Penso, claro... Problema é arranjar tempo.

               CRISTINA
               (animada) Ah, eu vi a sua foto no jornal. Você
               está fazendo a campanha do Andrew.

Chico, meio desconfortável, em frente à prateleira de "SUSPENSE",
tenta não olhar diretamente para Cristina.

               CHICO
               Não, não... Do outro. O Davi.

               CRISTINA
               Ah... O Davi é aquele...?

               CHICO
               É.

               CRISTINA
               Ele é legal?

               CHICO
               Político, né? Estou fazendo pela grana. Pelo menos
               ele é melhor que esses caras que estão aí.

               CRISTINA
               Claro. Publicidade é assim mesmo.

               CHICO
               Eu até pensei em ligar para você. A gente está
               testando umas apresentadoras.

               CRISTINA
               Quem sabe? O José está louco por uma bicicleta.

               CHICO
               Então? Quer uma bala?

Cristina aceita a bala.

CENA 58 - ESTÚDIO DA PRODUTORA (MONITOR) - INTERIOR/NOITE

Cristina como apresentadora da campanha, no monitor.

               CRISTINA
               A prioridade número um da Aliança Liberal é a
               saúde, o trabalho, a educação e a segurança da
               cidade. Você já sabe: vida melhor com Davi.

CENA 61 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico e Cristina na cama, seminus, semiabraçados, olhando
Cristina na TV. Chico tem o controle remoto na mão.

               CHICO
               Você está ótima.

               CRISTINA
               A prioridade número um são quatro? Você tem
               certeza?

               CHICO
               (beijando-a) Você está linda.

               CRISTINA
               Publicidade é isso aí.

Eles se beijam.

[BLOCO 3]

CENA 60 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/DIA

Na TV, um VENDEDOR fala olhando para a câmara, muito sério.

               VENDEDOR
               Eu acordava de manhã e não via motivo pra sair da
               cama. Eu me irritava com o trânsito, com os meus
               colegas e com o meu chefe. E quando eu voltava do
               trabalho eu me irritava com a minha mulher, com
               meus filhos, com o jornal e com a novela.

O vendedor abre um grande sorriso. Ao seu lado há uma caixa de um
produto chamado "Happy Life".

               VENDEDOR
               Tudo isso mudou quando eu conheci "Happy Life".
               Com "Happy Life"...

VOLTA PRA CENA 61 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico aciona o controle remoto e troca de canal. Chico e Cristina
estão na cama, nus. Cristina está abraçada em Chico, ele assiste
televisão.

CENA 62 - SALÃO DE FESTAS - EXTERIOR/NOITE

Um APRESENTADOR vestido como mergulhador entrevista uma SOCIALITE
em traje de gala. Ela está de braço dado com um SUJEITO DE
SMOKING que, durante a entrevista, fica abanando para algumas
pessoas fora de quadro.

               APRESENTADOR
               ...você poderia explicar em poucas palavras o que
               é neurolingüística?

               SOCIALITE
               (gritando) O quê?

               APRESENTADOR
               (gritando) Eu estou pedindo para você explicar
               para o público o que é o seu trabalho, o que é
               neurolingüística!

               SOCIALITE
               Ah..! É que por trás de tudo que você faz, cada
               gesto, cada ação, existe um procedimento
               programado, como se você fosse um computador...

               APRESENTADOR
               Até pra namorar?

Eles acham graça.

               APRESENTADOR
               Por falar nisso, você não me apresentou o seu
               namorado.

               SOCIALITE
               (rindo) Ele não é meu namorado.

               APRESENTADOR
               E televisão? É verdade que você vai fazer uma
               novela?

VOLTA PRA CENA 61 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Chico muda de canal. Dá de cara com o comercial que ele fez,
aquele da piscina. Volta para o canal da socialite e aciona o
"mute".

               CRISTINA
               Eu acho legal que isso tenha acontecido agora e
               não quando a gente se conheceu. (pausa) Você não
               tinha certeza que isso um dia ia acontecer?

               CHICO
               O quê?

               CRISTINA
               A gente.

               CHICO
               Ah...

               CRISTINA
               Você achava que podia acontecer?

               CHICO
               Achava, sim.

               CRISTINA
               Eu tinha certeza. A minha médica disse que eu
               confundo desejo com destino. (pausa) Você não
               perguntou o que é que eu fiz nos últimos cinco
               anos.

               CHICO
               O que é que você fez nos últimos cinco anos?

               CRISTINA
               Fiquei tentando entender o que aconteceu nos
               últimos trinta anos. (pausa) Eu só queria ter a
               idade do José sabendo o que eu sei hoje.

Chico continua olhando para a tevê, onde a socialite continua
dando entrevista. Ela gesticula muito. Ele troca de canal.

CENA 63 - RUA - EXTERIOR/DIA

Davi é entrevistado na rua. (61) Chico tira do "mute".

               DAVI
               ... do cidadão consciente. O eleitor não se deixa
               mais levar por frases de efeito, por palavras de
               ordem. Talvez por isso a nossa proposta esteja
               atingindo tanto os corações quanto as mentes.

CENA 64 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE

Apresentador com fundo em chroma-key: ELEIÇÕES.

               APRESENTADOR
               Com uma campanha mais modesta e um discurso mais
               agressivo, o jornalista Andrew Ribeiro subiu mais
               seis pontos na pesquisa. Ele explica.

CENA 65 - RUA - EXTERIOR/DIA

Andrew fala pra câmara.

               ANDREW
               Antigamente, as elites dominavam as eleições na
               retórica, manobrando a massa analfabeta. Hoje,
               essas mesmas elites controlam a linguagem
               audiovisual e conseguem...

Chico aciona o "Mute". Imagens da campanha de Andrew, que parece
muito simpático.

VOLTA PRA CENA 61 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE

Cristina, na cama, falando pra Chico.

               CRISTINA
               Às vezes eu pensava que era ruim ser tão amiga do
               Luciano e de você. Amizade de meninos e meninas só
               funciona antes dos treze anos. Depois fica tudo
               esquisito. Tem umas coisas que a gente ganha. Mas
               tem muitas que a gente perde. Você não acha?

Chico fica alguns segundos vendo Andrew na tevê.

               CHICO
               Acho.

CENA 66 - CASA DE ANDREW - EXTERIOR/DIA

Chico bate palmas em frente à casa de Andrew. Sílvia aparece na
porta. Um cachorrinho late muito.

               SÍLVIA
               Sim?

               CHICO
               Sílvia? Lembra de mim? Eu sou o Chico, amigo do
               Andrew.

               SÍLVIA
               (não muito animada) Ah...

               CHICO
               O Andrew... ele está?

               SÍLVIA
               O Andrew não mora mais aqui. Faz mais de um ano.

               CHICO
               Ah... E você não sabe o novo endereço ou...

               SÍLVIA
               Eu não sei do Andrew. Só pelo jornal. Mas eu não
               vou dar nenhuma entrevista, muito menos para
               ajudar aquele Davi, se é isso que você quer.

               CHICO
               Não, Sílvia, claro que não. (pausa) Eu só queria
               conversar com o Andrew, fora do comitê... (pausa)
               O filho de vocês deve estar grande...

               SÍLVIA
               Filha. Clarissa. Agora ela está melhor.

               CHICO
               Ela esteve doente?

               SÍLVIA
               Teve meningite, quase morreu. O Andrew não te
               falou?

               CHICO
               Na verdade eu não vejo o Andrew há algum tempo...

               SÍLVIA
               Mas ela ficou boa, graças a deus. Depois teve
               rubéola, mas rubéola tudo bem.

               CHICO
               Claro. O José, filho da Cristina, também teve
               rubéola. Tudo bem.

CENA 67 - ESTÚDIO PRODUTORA - INTERIOR/DIA

O céu aerografado, no estúdio. Davi está sentado em frente ao
cenário, olhando diretamente para a câmara.

               CHICO (OFF)
               Você já usou drogas?

               DAVI
               (rindo) Não. Mas eu conheço...

Chico está sentado num banquinho, ao lado da câmara. Um grande
número de assessores observa a cena.

               CHICO
               Por favor, Davi, não ria quando responder
               perguntas. Você fica parecendo pedante.

Davi fica sério, um pouco seguindo instruções, um pouco porque
não gostou da objetividade agressiva de Chico.

               CHICO (OFF)
               Você já usou drogas?

               DAVI
               Não. Mas eu conheço pessoas que usam.

               CHICO (OFF)
               Você é amigo de drogados?

               DAVI
               Não é isso, é que eu acho que..

               CHICO
               Diga que você não usa, nunca usou, ponto. Se ele
               perguntar mais, diga que você não é juiz de
               ninguém, que os viciados devem ser tratados, que
               os traficantes devem ser presos, enfim, o óbvio.

Davi acha graça.

               CHICO
               E não diga "eu acho". Achar, qualquer um acha,
               parece chute, palpite. Você quer ser o prefeito.
               Diga "eu penso" ou "eu acredito". Se você se
               comportar no debate e subir dez pontos nas
               pesquisas eu deixo você usar "eu creio".

Os assessores riem.

               DAVI
               (achando graça) Tudo bem.

               CHICO (OFF)
               Você já usou drogas?

               DAVI
               Não.

               CHICO (OFF)
               Acredita em Deus?

               DAVI
               Eu sou católico.

               CHICO
               Diga que acredita, mas acha que religião é uma
               opção pessoal, íntima. Diga exatamente aquilo que
               todos já disseram, que é exatamente aquilo que
               todos querem ouvir. Não tente ser original. Isso
               assusta as pessoas.

               DAVI
               Certo.

               CHICO (OFF)
               Qual sua opinião sobre o aborto?

               DAVI
               Eu acho que... Eu acredito que... o aborto é crime
               e portanto... (pausa) O que eu devo dizer?

Chico desce do banquinho e aproxima-se de Davi.

               CHICO
               (para o cinegrafista, fora de cena) Chega, pode
               parar. (para Davi) Não sei. Qual a sua opinião
               sobre o aborto?

A luz do estúdio é desligada. Chico e Davi ficam silhuetados
contra o céu do estúdio.

               DAVI
               Não sei, nunca pensei nisso. O que a prefeitura
               tem a ver com isso? Por que interessa a minha
               opinião sobre deus, drogas ou aborto?

               CHICO
               Não sei, Davi. Não tenho a menor idéia. (olha o
               relógio) Nós temos que ir. E por favor, não fala
               mais naquele negócio das trezentas mil casas
               populares.

               DAVI
               Por que não? É uma estimativa muito simples. Se
               cada habitante da cidade tiver acesso a um
               financiamento...

               CHICO
               (cortando) Cada habitante da cidade? Pelo amor de
               Deus, Davi...

               DAVI
               Tudo bem, tudo bem.

CENA 68 - COMITÊ DA VILA/MONITOR - EXTERIOR/DIA

Davi, pilchado, discursa na frente do "Comitê da Vila Caixa
D'Água pela vitória de Davi", que é um casebre caindo aos
pedaços. Umas TRINTA PESSOAS à sua frente. Algumas bandeiras de
Andrew ao fundo. A equipe de TV registra, sob o comando do Chico.

               DAVI
               (empolgado, no final do discurso) ... Podem dizer
               que eu sonho, que é demagogia, mas quando eu falo
               em trezentas mil casas populares eu não sonho com
               casas prontas que caem do céu. Eu sonho com o
               material de construção, com os terrenos, com o
               dinheiro a juros baixos, com a capacidade de cada
               um erguer, a partir de seus sonhos, uma morada
               mais digna, mais saudável...

CENA 69 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/DIA

Na ilha de edição, estão sentados Chico, Cristina e um editor. No
monitor, seguem as imagens da Vila, com o jingle de Davi ao
fundo. O telefone da ilha toca, Cristina atende.

               CRISTINA
               É para você.

               CHICO
               Agora eu não posso atender.

               CRISTINA
               Ele não pode atender. (...) Tudo bem.

Cristina desliga o telefone. Ela aparece no monitor.

CENA 69A - ESTÚDIO PRODUTORA (MONITOR) - INTERIOR/DIA

               CRISTINA
               Davi esteve hoje na Vila Cai-Cai ouvindo as
               necessidades dos moradores. (FAST até o final da
               frase.) (68)

               DAVI
               ...morada mais digna, mais saudável e mais humana.
               Muito obrigado.

Uma grande vaia responde ao final do discurso. Há alguns aplausos
e "muito bens", mas a reação da maioria é nitidamente negativa.
Davi reage bem: ergue as mãos, aponta os que o aplaudem e
agradece. (69) Logo que as vaias começam, Chico interrompe:

               CHICO
               Dá pause aí. Tira esse muito obrigado.

Chico alcança uma fita ao editor. Confere a ficha da fita.

               CHICO
               Dez minutos e trinta segundos. Edita esse aplauso
               no final do discurso.

CENA 70 - OUTRA VILA (MONITOR) - EXTERIOR/DIA

O editor coloca a fita: é uma pequena multidão começando a
aplaudir um discurso de Davi. Muitas bandeiras. Clima festivo.

VOLTA PRA CENA 69 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/DIA

Toca o telefone outra vez. Cristina atende.

No monitor, Davi termina o discurso e a reação das pessoas,
agora, é positiva.

               CRISTINA
               Chico...

               CHICO
               Publicidade é isso aí.

Chico pára e percebe que Cristina não está com a cara boa.

               CHICO
               Que foi, Cristina? Morreu alguém?

Cristina fica parada olhando para Chico.

CENA 71 - PONTE DO GUAÍBA - EXTERIOR/DIA

Ponte sobre o Rio Guaíba. Chico aproxima-se de dois policiais que
estão na beira da ponte. Eles apontam para o chão, lá embaixo.
Chico olha para baixo.

CENA 72 - ESCADAS DA PONTE - EXTERIOR/DIA

Chico desce as escadas da ponte. Aproxima-se de um pequeno grupo
que está junto a um terreno cheio de lixo e montes de areia. Há
um plástico cobrindo um corpo, no chão. Chico se aproxima e ergue
o plástico.

CENA 73 - CEMITÉRIO - INTERIOR/NOITE

Chico examina (73A) o rosto do Velho no caixão. Velório. Algumas
PESSOAS ocupam uma capela do cemitério. Os rostos são tristes e
encaram Chico, que passa por eles em direção à capela, com aquele
respeito excessivo dos velórios. Madame Mirna aproxima-se de
Chico.

               MADAME MIRNA
               Ninguém pode saber ao certo se ele pulou ou foi
               empurrado. Gente pra fazer uma maldade é que não
               falta. Ele saiu do restaurante naquele estado,
               você sabe...

Chico se distrai e começa a olhar em volta, mas Madame Mirna
continua falando, compulsivamente.
 

               MADAME MIRNA (OFF)
               Coitado, um homem de tanto talento. Ele já tinha o
               físico muito enfraquecido. Capricórnio e álcool
               não se dão bem. Coitado, descansou.

Andrew entra na sala. Sua chegada causa alguma agitação. Andrew
cumprimenta as PESSOAS. Chico sai da sala, tentando evitar um
encontro.

CENA 74 - CORREDORES DO CEMITÉRIO - INTERIOR/NOITE

Chico sai do banheiro dos homens. Caminha pelo corredor do
cemitério, meio perdido. As paredes estão cobertas por túmulos,
com as fotos dos mortos e algumas flores de plástico. Chico dobra
uma esquina e se vê a poucos passos de Andrew, que se aproxima.

               ANDREW
               Chico.

               CHICO
               Tudo bem?

               ANDREW
               Tudo bem. E você?

               CHICO
               Tudo bem.

Andrew passa por Chico, vai se afastando, pára.

               ANDREW
               Eu queria te avisar de uma coisa, como é que se
               diz... em nome dos velhos tempos. Esse Davi é uma
               fria. Eu nem comecei a usar o que eu tenho contra
               ele. Você já fez um grande trabalho trazendo ele
               até aqui. Caia fora antes do último debate, se
               puder.

               CHICO
               (rindo) Andrew, você me conhece o suficiente pra
               saber que eu só jogo pra ganhar.

               ANDREW
               Principalmente se o jogo for a dinheiro.

               CHICO
               Engano seu, o dinheiro é só uma desculpa. Eu não
               gosto é de perder. Me ensinaram que os mocinhos
               sempre ganham.

               ANDREW
               E você acreditou? (rindo) Na vida real os mocinhos
               perdem quase todas. Quase. Esta eleição os
               mocinhos vão ganhar. E os anchietanos vão perder.

Vai saindo. Chico sai atrás dele, irritado.

               CHICO
               Você não entende nada de vida real, Andrew. A vida
               real tem pessoas e você não gosta muito das
               pessoas. Elas às vezes não se encaixam na sua
               lógica perfeita. Aí você pega as pessoas,
               classifica e se livra delas. O Velho era um
               "nazista", lembra? O Abraão "um desbundado", a
               Cristina e o Luciano eram uns "porra-loucas". E eu
               sou "anchietano" E você, Andrew? O que você é?

Andrew não pára de caminhar e fala sem olhar para Chico.

               ANDREW
               Mantenha a discussão no plano político,
               companheiro. Você está sem argumentos.

               CHICO
               Plano político! Plano político é muito bom. Eu
               procurei você, muitas vezes, telefonei, deixei
               recado. Mas os anchietanos não faziam mais parte
               da sua estratégia. (pausa) Eu falei com a Sílvia,
               lembra dela?

               ANDREW
               O que é, Chico? O que você quer? Aliviar sua culpa
               cristã em cima de mim?

               CHICO
               Ela me disse que há um ano você não vê a sua
               filha. Pediu pra avisar que a Clarissa teve
               rubéola.

               ANDREW
               Você escolheu o seu lado, Chico, e está sendo
               muito bem pago pra isso. Vá em frente.

               CHICO
               Você só consegue raciocinar dividindo o mundo em
               dois, Andrew, e isso não tem nada a ver com a vida
               real.

Andrew pára e encara Chico.

               ANDREW
               Quem dividiu o mundo em dois não fui eu. Quando eu
               nasci ele já era assim. E eu nasci no lado errado,
               no lado sujo, sem água, sem esgoto, sem ar
               condicionado. Sem futuro. Mas o futuro a gente
               inventa, Chico. Fique com o Davi. De qualquer
               jeito, os anchietanos acabam jogando sempre no
               mesmo time.

Andrew se afasta. Chico fica parado, olhando.

[BLOCO 4]

CENA 75 - CAMPO DE FUTEBOL - EXTERIOR/DIA

DOIS TIMES DE FUTEBOL de adolescentes e um JUIZ esperam a
cobrança de um pênalti. O batedor é Chico. O goleiro é ANDREW.
Chico ajeita a bola. Andrew chuta a trave para limpar a chuteira.
Chico toma distância. Andrew coloca-se no centro do gol. Chico
olha para um canto da goleira. Andrew olha para a bola. Chico
olha para o outro canto da goleira. Andrew olha para os pés de
Chico. Chico e Andrew se olham. Chico corre para a bola.

               CHICO (OFF)
               Interescolar Pérola, mil novecentos e setenta e
               dois. Para chegar à final o nosso time precisava
               ganhar da escola do Andrew. Ele jogava no gol. O
               time deles tinha melhor saldo e jogava pelo
               empate. A gente teve um pênalti a nosso favor bem
               no fim do jogo. Eu bati o pênalti.

Chico aproxima-se da bola. Andrew flexiona os joelhos. Chico
chuta a bola. Andrew salta. A bola dirige-se para o canto
esquerdo do gol. Andrew pulou para a direita. A bola continua seu
caminho para as redes. Andrew tenta inverter a direção do seu
salto. É muito tarde. Andrew estica a perna para a esquerda,
inutilmente. A bola aproxima-se das redes. Andrew cai junto ao
poste direito. A bola bate no poste esquerdo. O time de Andrew
comemora. Chico fica parado, mãos na cintura. Andrew levanta e é
abraçado. Luciano dá um tapinha de consolo nas costas de Chico. O
juiz apita o final da partida.

CENA 76 - ESTÚDIO DE TV/MONITOR - INTERIOR/NOITE

Andrew e Davi preparam-se para o debate final na TV. Cada um está
de pé em um púlpito. O cenário tem um logotipo "DEBATE FINAL".
Chico está próximo de Davi e lhe dá algumas instruções. O
ASSISTENTE DE ESTÚDIO faz sinal de que o programa vai recomeçar.
Chico e os ASSESSORES saem. O APRESENTADOR fala.

               APRESENTADOR
               Conforme as regras estabelecidas para o debate,
               neste bloco os candidatos fazem perguntas um para
               o outro. A primeira pergunta, por ordem de
               sorteio. É do candidato da Frente Democrática,
               jornalista Andrew Ribeiro.

               ANDREW
               Eu gostaria de perguntar ao candidato da Aliança
               Liberal qual a opinião dele sobre as drogas.

               DAVI
               Não uso e nunca usei drogas de nenhum tipo, mas eu
               não sou juiz de ninguém. Acho que os viciados
               devem ser tratados e que o tráfico deve ser
               combatido. O tráfico resiste porque é acobertado
               pelos políticos tradicionais. Se o estado se
               preocupasse mais com a segurança, a saúde, a
               educação, e menos em manter empresas deficitárias,
               poderia combater mais diretamente o narcotráfico.

               ANDREW
               Muito bem. E como o senhor explica a apreensão
               pela polícia federal, em sua propriedade
               (mostrando um documento), a fazenda Santa Fé, na
               fronteira com a Argentina, de oitenta quilos de
               cocaína num avião bimotor de propriedade de
               Domingo Alvarez Ibarri, (mostrando foto do Ibarri
               junto com Luciano) sócio na empresa "Lucky Vídeo
               Limitada", de um dos patrocinadores de sua
               campanha e seu amigo, o empresário Luciano de
               Almeida. Eu tenho aqui todos os documentos que
               comprovam a apreensão. Os jornais, talvez
               atendendo a pedidos de um grande anunciante como o
               senhor, não noticiaram. Isso foi em maio do ano
               passado. O senhor poderia esclarecer o fato aos
               seus eleitores.

               DAVI
               (um pouco tenso) É muito simples. Um avião de um
               sujeito que eu não conheço, com o qual eu não
               tenho ou tive qualquer relação, pessoal ou
               comercial, este avião, transportando drogas,
               invadiu o espaço aéreo brasileiro e pousou na
               pista de pouso de um sítio, uma fazenda que eu
               tenho. A polícia federal apreendeu a droga e o
               avião e os traficantes estão presos. Eu não tenho
               nada a ver com isso, não fui acusado de nada. O
               senhor está me acusando de alguma coisa? (pausa)
               Porque se o senhor está me acusando eu vou lhe
               exigir que prove suas acusações.

CENA 77 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

Cristina chega. Chico está vendo o debate, agora reproduzido num
telejornal.

               DAVI
               (gritando) ...ou então eu vou processá-lo por
               calúnia, injúria e difamação!

CENA 78 - ESTÚDIO DE TV (MONITOR) - INTERIOR/NOITE

Entra o apresentador do jornal, que faz uma cara de desconfiado e
depois sorri.

               APRESENTADOR
               Amanhã é o último dia da campanha na televisão e a
               vantagem de Davi caiu de...

VOLTA PRA CENA 77 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

Chico tira o som da TV.

               CRISTINA
               O que você achou?

               CHICO
               Bem ruinzinho.

               CRISTINA
               Você encontrou o Luciano?

               CHICO
               Não. Ele sumiu.

               CRISTINA
               Sumiu como?

               CHICO
               Sumiu. Não está em casa, ninguém sabe. Tem um
               monte de gente atrás dele.

               CRISTINA
               Você acha que ele sabia do cara? Eu não acredito.

Chico ri.

               CHICO
               Não sei.

               CRISTINA
               Saiu a pesquisa?

Chico faz que sim.

               CRISTINA
               E aí?

               CHICO
               O Andrew ficou na mesma. O Davi caiu um pouco.

               CRISTINA
               Um ponto?

               CHICO
               Um POUCO. Quatro pontos.

               CRISTINA
               Quatro! A diferença ficou...

               CHICO
               Três pontos.

               CRISTINA
               Isso foi antes do debate?

               CHICO
               Antes do debate.

               CRISTINA
               Então já era. O Davi acabou.

               CHICO
               Ainda não. Falta um programa, amanhã.

Cristina ri. Levanta.

               CRISTINA
               Você não pode mudar o caráter do Davi com dez
               minutos de vídeo-tape.

               CHICO
               Mas talvez eu possa mostrar o do Andrew.

               CRISTINA
               Chico. Vamos embora.

               CHICO
               Quer ver o que eu já editei?

Não espera resposta. Aciona a máquina que começa a rodar o VT.

CENA 79 - COMÍCIO DE ANDREW (MONITOR) - EXTERIOR/DIA

No monitor, imagens de Andrew discursando. Sua fúria é ressaltada
pelo slow da fita e pela música dramática. As imagens são
intercaladas com um amanhecer na cidade, destacando o prédio da
prefeitura. O gabinete do prefeito, a decoração clássica do
prédio e a tranqüilidade da manhã formam um grande contraste com
a fúria do candidato no comício.

               CRISTINA (OFF)
               A cidade vai escolher seu prefeito, o homem que
               vai ocupar esta casa nos próximos quatro anos.
               Este homem precisa ter preparo, tranqüilidade,
               moderação. Este homem precisa ser DAVI. Ou você
               entregaria a cidade a este homem?

Fusão para o rosto enfurecido de Andrew no discurso.

VOLTA PRA CENA 77 - ILHA DE EDIÇÃO PRDUTORA - INTERIOR/NOITE

Chico desliga o VT.

               CHICO
               Mantenha a plebe longe dos cristais de Versalhes.

               CRISTINA
               Muito bom. (pausa) Mas não é o suficiente, você
               sabe disso. Você fez o possível, Chico, vamos
               embora. São quase duas da manhã.

               CHICO
               Eu vou ficar mais um pouco.

Cristina levanta, vai saindo.

               CRISTINA
               Me liga amanhã?

               CHICO
               Ligo.

Chico continua sentado na cadeira de comando da ilha de edição. A
mesma imagem congelada da multidão continua nos monitores.

Chico arqueia as costas, tentando relaxar. Pega um cigarro,
levanta-se.

CENA 80 - MORRO DA TELEVISÃO - EXTERIOR/NOITE

Chico caminha pelo estacionamento. Ouve passos que se aproximam.
Volta-se. É Luciano.

               CHICO
               Lucky Luciano...

               LUCIANO
               Fazer o quê? Joguei camelo, deu elefante.

               CHICO
               E o teu sócio uruguaio?

               LUCIANO
               Descobri, entre outras coisas, que ele é chileno.

CENA 81 - MORRO DA TELEVISÃO - EXTERIOR/NOITE

Chico e Luciano, sentados sobre o capô do carro de Chico,
observam a cidade silenciosa.

               CHICO
               Lembra dos dez mandamentos?

               LUCIANO
               Não serve os sete anões? Dunga, Atchim, Dengoso...

               CHICO
               Não, não serve.

               LUCIANO
               Tudo bem. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao
               próximo como a ti mesmo. Não matar, não roubar,
               não levantar falso testemunho, não cobiçar a
               mulher do próximo, honrar pai e mãe...

               CHICO
               Não usar o nome de Deus em vão. Não tinha um sobre
               dias santos e feriados?

               LUCIANO
               Não lembro. Não fabricar imagens, essa é boa.
               Falta algum?

               CHICO
               Perdi a conta. Acho que falta.

               LUCIANO
               Que eu saiba, nunca matei ninguém.

Eles ficam alguns segundos em silêncio.

               CHICO
               Para onde você vai?

               LUCIANO
               Não sei. Talvez para o Acre. Você explica para a
               Cristina? Eu não posso ir até lá.

               CHICO
               Eu explico.

Luciano levanta.

               LUCIANO
               Eu tenho que ir. Obrigado pelo carro. Eu não sei
               quando eu vou poder devolver.

               CHICO
               Tudo bem.

               LUCIANO
               Diz para a Cristina que eu mandei um beijo.

               CHICO
               Eu digo.

Luciano entra no carro de Chico, liga o motor e parte.

CENA 82 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

Chico volta para a ilha de edição. Senta e observa as imagens
congeladas de Andrew furioso. Aperta um botão e começa a rever o
final da edição.

               CRISTINA (OFF)
               ...ou você entregaria a cidade a este homem?

Chico congela a imagem no rosto de Andrew. Pega uma fita na
gaveta. Põe na máquina. Posiciona a fita. Aperta o botão
"PREVIEW". Entra a imagem final da edição.

               CRISTINA (OFF)
               ...ou você entregaria a cidade a este homem?

Surge, numa continuação da edição, a imagem de Andrew no debate.

               ANDREW
               Eu gostaria de perguntar ao meu oponente qual a
               opinião dele sobre o uso de drogas.

Andrew, alguns anos mais moço, no estúdio da TV, com um baseado
na mão.

               ANDREW
               Trabalhadores do Brasil! Pão, orgasmo e maconha
               para todos! Hay que endurecerse, pero sin faltar
               la marijuana jamás!

A edição intercala as duas imagens de Andrew.

               ANDREW
               ...sobre o uso de drogas / maconha para todos! /
               uso de drogas / orgasmo / qual a opinião dele /
               sin faltar marijuana / sobre o uso de drogas / Hay
               que endurecerse, pero sin faltar la marijuana
               jamás!

Congela na expressão de chapado de Andrew.

               CRISTINA (OFF)
               Você entregaria a cidade a este homem?

Chico fica alguns segundos avaliando o efeito devastador da
edição. As máquinas voltam aos pontos originais, as imagens da
pancadaria e a pergunta de Andrew no debate. O botão "EDIT" fica
piscando em vermelho. Ao seu lado, apagado, o botão "CANCEL".
Chico fica olhando o botão piscar. O botão EDIT continua
piscando. Chico aperta o botão "EDIT".

CENA 83 - SUPERMERCADO - INTERIOR/NOITE

Cristina e José no balcão das frutas. Ao fundo, uma parede cheia
de aparelhos de tv ligados. Entra a imagem do Andrew fumando
maconha. Cristina pára, estupefata. Algumas PESSOAS param para
ver.

[BLOCO 5]

CENA 84 - IGREJA DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA

Um bando de MENINOS e MENINAS estão na fila do confessionário.
Eles esperam encostados na parede, em silêncio. Quando um
desocupa o confessionário, o outro vai. Chico, na fila, observa
os vitrôs da igreja, de onde os santos o espreitam.

               CHICO (OFF)
               No colégio, toda primeira sexta-feira do mês a
               gente tinha que se confessar. Nós inventávamos
               todos os pecados. O roteiro dos meus pecados era
               subliteratura infantil: bati na minha irmã, roubei
               uma fruta do quintal do vizinho e - para dar
               alguma credibilidade - disse palavrão. Três
               Avemaria, três Santoanjo, três Painosso! Pagava
               minha dívida antes mesmo de sair da igreja e podia
               começar a pecar de novo, do zero. São os milagres
               da fé. Eu ainda não sabia que inventar pecados é o
               mesmo que cometê-los. Quase o mesmo.

CENA 85 - COMITÊ DE ANDREW - INTERIOR/NOITE

Andrew dá entrevista para vários REPÓRTERES. Ele parece estar
muito tranqüilo.

               ANDREW
               Foi uma grande vitória, uma vitória dos
               trabalhadores, da sociedade organizada. Elegemos
               um grande número de vereadores, quase que dobrando
               a nossa bancada. Só não ganhamos a prefeitura
               porque no último instante nossos adversários
               apelaram para calúnias e difamações. A Frente
               Democrática inclusive pretende recorrer até ao
               Supremo Tribunal Eleitoral...

CENA 86 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

Festa. Davi é carregado nos ombros da galera. Todos cantam o
jingle da campanha. As grandes letras D A V I foram arrancadas do
céu do estúdio e são erguidas pela TURBA como troféus de uma
batalha. Cristina passa, cumprimentada por todos, carregando José
pela mão. Olha para Chico e o cumprimenta da mesma maneira que
cumprimentou todos os outros, com um meio-sorriso. Ela se afasta.
Chico a segue.

               CHICO
               Cristina, você quer me ouvir?

               CRISTINA
               Não, Chico, não quero te ouvir.

Cristina sai do estúdio. Chico a segue.

CENA 87 - ESTACIONAMENTO - EXTERIOR/NOITE

Cristina faz sinal para um táxi. O táxi passa, ocupado. Cristina
volta a caminhar.

               CHICO
               Você não quer uma carona?

               CRISTINA
               Não.

Cristina começa a atravessar a rua. Chico a segue.

               CHICO
               Cristina, eu só mostrei que eles são todos iguais.

               CRISTINA
               Pode ser. Mas eu achei que você era diferente.

               CHICO
               Isso é só um trabalho, um emprego.

Eles param no canteiro no meio da avenida. Cristina encara Chico.
José fica assistindo a cena.

               CRISTINA
               (rindo) Você tem sempre uma belíssima
               justificativa pra tua covardia, você tem sempre
               uma ótima desculpa pra fazer o que é mais fácil,
               mais cômodo, mais conveniente.

               CHICO
               Eu só fiz o que precisava ser feito.

               CRISTINA
               Você fez mais do que precisava ser feito. E você
               gostou de fazer. Você só faz o que gosta, Chico.

Cristina atravessa a rua. Chico a segue.

               CHICO
               Quem disse que eu gosto?

Cristina faz sinal para um táxi. O táxi pára. Ela abre a porta.
José entra no táxi.

               CRISTINA
               Você faz e parece gostar. Pra mim é o suficiente.
               Tchau, Chico.

Cristina entra no táxi. José abana para Chico, que fica parado,
na calçada, vendo o táxi se afastar.

CENA 88 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

Davi é colocado sobre um palanque improvisado. Pede silêncio.
Todos ficam quietos. Davi faz uma longa e emocionada pausa.

               DAVI
               Meus amigos e minhas amigas. Eu creio...

Chico, num canto do estúdio, fecha os olhos, suspira. Davi
continua o seu discurso, mas Chico não escuta mais. A multidão
aplaude.

               CHICO (OFF)
               A história está acabando e quase todas as pessoas
               que existem têm trinta anos. Ou mais.

CENA 89 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE

Chico, no estúdio, continua gravando o depoimento para a câmara.

               CHICO
               Eu avisei que não era uma comédia. Se você achou
               que era, o problema é seu.

CENA 90 - SAÍDA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA

Saída do colégio. Chico espera ao lado do carro. José sai
caminhando, Chico se aproxima, José o reconhece. Chico entrega
uma fita para José. Chico aponta para uma bicicleta que está
presa ao carro. José larga a mochila e vai correndo vê-la. 

               CHICO (OFF)
               Tem umas partes que eu acho engraçadas, mais no
               começo. Se você quiser, mostre esta fita para a
               sua mãe. Talvez esta história não precise acabar
               aqui. Eu queria ter a sua idade sabendo o que eu
               sei hoje e acho que foi por isso eu gravei esta
               fita, para te dizer o que eu sei hoje.

Chico põe a fita na mochila e entrega a José que, quase sem se
despedir, parte com a bicicleta.

CENA 90A - RUA - EXTERIOR/DIA

José pedala sua bicicleta pela cidade.

               CHICO (OFF)
               Deixa ver... Novela com "ene". Nino, o
               italianinho. O que mais? Não aceite balas de
               estranhos. Nem de conhecidos. No pênalti, o
               goleiro normalmente escolhe um canto e pula. Dê um
               chute forte, no meio do gol. Se você for para
               praia no inverno, leve chocolate. A diferença
               básica entre krishna e rajneesh é a seguinte...
               (vai a BG)

Créditos finais. Música.

FIM

*****************************************************************

(C) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1993-1997
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

29/07/1997

AnexoTamanho
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