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               ANCHIETANOS
	               episódio da série
	               A COMÉDIA DA VIDA PRIVADA
	               roteiro de Jorge Furtado,
	               Carlos Gerbase
	               e Giba Assis Brasil
	               sexto tratamento - 29/06/1997
	              (formato de especial de TV)
	               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
	               para TV Globo
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[BLOCO 1]
CENA 01 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
	A luz de um estúdio se acende. CHICO entra caminhando lentamente.
	Põe uma cadeira no centro do estúdio. Posiciona uma câmera,
	acerta o quadro, liga um equipamento de vídeo, põe a fita no
	gravador. Chico senta na cadeira. Olha para a câmara.
	               CHICO
	               Bom... Para começar, esta história não é uma
	               comédia. Tem umas partes que talvez você ache
	               engraçadas mas não é uma comédia. Esta história
	               terminou agora (olha o relógio), duas horas atrás,
	               com o resultado da eleição. Alguém tinha que
	               ganhar. Mas eu não sei exatamente quando esta
	               história começou. Talvez tenha sido no colégio
	               Anchieta, há muito tempo.
CENA 02 - PORTÃO DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA
	Os ALUNOS chegam para as aulas: descem de ônibus escolares,
	kombis e carros e vão entrando na escola.
	               CHICO (OFF)
	               O ano era mil novecentos e setenta e dois e quase
	               todas as pessoas que existiam tinham treze anos.
	               Enquanto a ditadura tomava conta do país, nós
	               vivíamos num mundo protegido, aprendendo o que
	               podíamos sobre amizade, sexo e movimento retilíneo
	               uniforme. Mais sobre amizade e sexo. Nós éramos o
	               futuro do país do futuro.
CENA 03 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA
	A PROFESSORA DE INGLÊS, escreve "Elephant" no quadro. Ela bate
	uma caneta na mesa para chamar a atenção dos alunos.
	               PROFESSORA
	               Atention, please...
	               CHICO (OFF)
	               A primeira vez que eu vi o Luciano foi numa aula
	               de inglês. A gente se entendeu rápido.
	               PROFESSORA
	               (com forte sotaque) Que animal é este? Listen:
	               (marcando bem a pronúncia) élefant!
LUCIANO e CHICO, 13 anos cada, levantam a mão, sérios.
	               LUCIANO
	               Pingüim!
	               PROFESSORA
	               (rindo) No, no, no.
	               CHICO
	               Urubu!
	               LUCIANO
	               Capivara!
	               PROFESSORA
	               No, no, no.
EMÍLIO, 13 anos, levanta a mão.
	               CHICO (OFF)
	               O mais católico, quase sempre o Emílio, acabava
	               com a tortura.
	               EMÍLIO
	               Elefante.
	Chico e Luciano se olham, aborrecidos. A professora aponta para
	Emílio.
	               PROFESSORA
	               That's it! (Escrevendo "Hippopotamus" no quadro)
	               And now... Ráipopótamusss...
	Luciano levanta a mão. A professora vira-se para a classe e
	aponta para Luciano.
	               LUCIANO
	               Vaca!
	               CHICO
	               Égua!
	               LUCIANO
	               Jumenta!
CENA 05 - CAMPO DE FUTEBOL - EXTERIOR/DIA
	Campo de futebol. O juiz pede que eles escolham cara ou coroa e
	sorteia o início do jogo. Andrew ganha o sorteio e pega a bola.
	               CHICO (OFF)
	               A primeira vez que eu vi o Andrew foi na semifinal
	               do Interescolar Pérola, um campeonato de futebol
	               patrocinado por um óleo de soja. O Andrew, é
	               claro, não era anchietano. Ele jogava no gol do
	               outro time, a Escola Técnica de Viamão.
Chico e Andrew se cumprimentam e trocam flâmulas.
CENA 04 - MUSEU DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
	A turma de Chico entra, caminhando em fila, no salão de
	exposições do museu da escola. Chico troca olhares com Cristina
	através das vitrines. Eles se cruzam várias vezes, sempre
	separados por aves empalhadas. Atrás de Cristina, um relógio de
	parede marcando 5:24.
	               CHICO (OFF)
	               A primeira vez que eu vi a Cristina eu me
	               apaixonei. Eram cinco e vinte e quatro da tarde de
	               um dia de março, numa aula de ciências, no museu
	               do colégio. Cristina era linda como uma Heliconius
	               Phyllis, pura como um Troquilídeo. Eu acho que
	               agora bicho empalhado deve ser politicamente
	               incorreto, mas na época ainda não tinham inventado
	               a ecologia.
CENA 42 - BIBLIOTECA DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
	Chico (criança) está sentado na biblioteca, lendo uma revista em
	quadrinhos. Cristina (criança) senta na outra ponta da mesa.
	Chico levanta os olhos e olha para Cristina.
	               CHICO (OFF)
	               A primeira vez que eu falei com a Cristina foi na
	               biblioteca... alguns anos depois.
	Chico (adulto) olhando. Cristina (adulta) sorri. Chico sorri e
	volta a olhar para o livro.
	               CHICO (OFF)
	               Ela está lendo um livro em francês. Acho que é em
	               francês. Vou perguntar. Vou perguntar nada, vou
	               ficar na minha. Vou fingir que ela nem está aqui.
	Chico ergue os olhos outra vez. Cristina está lendo,
	aparentemente compenetrada. Cristina pega da bolsa, meio
	escondida, uma bolacha.
	               CHICO (OFF)
	               Pelo menos ela podia me oferecer uma bolacha.
	               Estou morrendo de fome.
Chico volta a prestar atenção no livro.
	               CRISTINA
	               Tem horas?
	               CHICO
	               (nervoso) Não, obrigado. Ah, horas?... Faltam
	               cinco.
	               CRISTINA
	               Cinco o quê?
	               CHICO
	               Cinco minutos pra acabar o recreio. São dez e
	               vinte e cinco.
	               CRISTINA
	               Quer uma bolacha?
	               CHICO
	               Não, obrigado.
Chico volta a ler.
	               CHICO (OFF)
	               Por que você disse não, sua anta? A guria
	               ofereceu, você estava a fim. Agora azar, vou ficar
	               na minha.
	Chico volta a erguer os olhos. Pelo decote de Cristina, percebe
	uma nesga de sutiã preto.
	               CHICO (OFF)
	               Ela está de sutiã. Sutiã preto! Ai meu deus do
	               céu, ai meu deus do céu... Sutiã preto, ela nem
	               tem muito peito. Ou será que tem?
	Cristina olha para ele e fecha o último botão da blusa. Chico
	baixa os olhos rapidamente, constrangido.
	               CHICO (OFF)
	               Ela se deu conta que eu estava olhando os peitos
	               dela. Azar, quem mandou usar sutiã preto. Vou
	               ficar na minha.
Cristina surge ao lado de Chico.
	               CRISTINA
	               Você já fez o trabalho de física?
	               CHICO
	               Do pêndulo? Não.
	               CRISTINA
	               A gente podia fazer junto, lá em casa.
Chico tenta, e consegue, disfarçar a excitação.
	               CHICO
	               Legal. Quando?
	               CRISTINA
	               Hoje à tarde.
	               CHICO
	               Tudo bem.
Cristina pega um papel e anota um endereço. Entrega para Chico.
	               CRISTINA
	               É bem aqui perto, conhece a rua?
Chico faz que sim.
	               CRISTINA
	               Duas horas?
	               CHICO
	               Duas horas.
	               CRISTINA
	               Legal.
Cristina levanta e vai saindo. Luciano chega.
	               LUCIANO
	               Oi, Cristina.
Luciano senta ao lado de Chico.
	               LUCIANO
	               Essa mina é louca mas é muito gostosa. O Emílio te
	               mostrou o cavador?
	               CHICO
	               (ainda em estado de choque) Acho que não.
	               LUCIANO
	               O Emílio comprou um cavador bárbaro. Tá dizendo
	               que hoje ninguém ganha dele.
	               CHICO
	               (lembrando-se) O campeonato de botão! Não vai
	               poder ser hoje.
	               LUCIANO
	               Como? Você disse que estava tudo certo!
	               CHICO
	               É que a minha mãe tem novena e elas vão usar a
	               garagem.
	               LUCIANO
	               Novena??? Pô, Chico, hoje de manhã eu ainda falei
	               contigo do campeonato, você esqueceu que...
Cristina volta.
	               CRISTINA
	               Esqueci minhas bolachas. (para Luciano) Você já
	               fez o trabalho de física?
	               LUCIANO
	               Não. Por quê?
	               CRISTINA
	               A gente podia fazer um grupo de três. Eu e o Chico
	               vamos trabalhar lá em casa, às duas.
	               LUCIANO
	               Hoje? (olhando para Chico) Hoje. Tudo bem. Eu vou
	               com o Chico.
	               CRISTINA
	               Legal.
	Cristina sai. Luciano e Chico ficam olhando Cristina se afastar,
	enquanto Emílio chega, excitado.
	               EMÍLIO
	               (abrindo a pasta) Chico, aposto que você nunca viu
	               um cavador de acrílico com três camadas...
	               (mostra)
	               CHICO
	               (distraído) Não...
	               LUCIANO
	               (cortando) Não vai ter campeonato hoje, Emílio.
	               EMÍLIO
	               Por quê???
	Chico olha para a porta da biblioteca, por onde Cristina vai
	saindo.
	               LUCIANO
	               Novena. Eu e o Chico temos novena.
	Emílio fica olhando para eles, com o cavador na mão. Neste
	momento, toca a campainha que indica o final do recreio.
CENA 43 - CASA DE CRISTINA - INTERIOR/DIA
	Cristina, de pés descalços sobre um pufe cor-de-rosa, segura um
	pêndulo, que se move lentamente. Chico e Luciano, sentados no
	chão da sala, entre papéis e gráficos espalhados, ficam parados,
	sem conseguir tirar os olhos dela.
	               CHICO (OFF)
	               Se ela não tivesse esquecido aquelas bolachas
	               talvez a nossa vida fosse completamente diferente.
	               (rindo) Sem falar que o prefeito da cidade podia
	               até ser outro.
CENA 06 - ESCADARIA DA FACULDADE - INTERIOR/DIA
	Escadaria da faculdade, apinhada de gente e forrada de cartazes.
	Andrew, de braços cruzados, ouve com ar sério. LUCIANO, de
	pijama, faz um discurso. Por trás dele, CHICO, com OUTRO0
	ESTUDANTE, segura uma faixa de pano onde está escrito: "FAIXA DE
	PANO".
	               CHICO (OFF)
	               O Andrew eu só reencontrei na faculdade de
	               comunicação, em setenta e nove. O Luciano e eu
	               formamos uma chapa na eleição do centro acadêmico.
	               Andrew concorria pela situação.
	               LUCIANO
	               (BG) Exigimos anistia ampla, geral e irrestrita a
	               todos os presos políticos. (sobe o áudio) Exigimos
	               que todos os congressos da UNE se realizem em
	               cidades com praia. Exigimos a renúncia imediata do
	               presidente dos Estados Unidos da América. Se
	               nossas exigências não forem atendidas em quarenta
	               e oito horas nós ficaremos bastante chateados.
	               Muito obrigado!
A platéia ri, vaia e aplaude.
	               ANDREW
	               O inimigo mais perigoso não está na direita,
	               companheiros. O inimigo mais perigoso (aponta para
	               Luciano) está camuflado de progressista e tenta
	               ridicularizar a luta dos estudantes.
Luciano segura um travesseiro. Parte da platéia se diverte.
	               ANDREW
	               Operários foram presos em São Paulo por lutar pelo
	               direito de greve. (olhando para Luciano) E isso
	               não é engraçado. A luta dos camponeses por terra,
	               a luta dos trabalhadores por melhores salários...
	               LUCIANO
	               Engraçado é chamar alguém de camponês. No Brasil
	               não existe camponês. Chama um agricultor de
	               camponês e ele acerta o seu pé com a enxada.
A platéia se manifesta ruidosamente.
	               ANDREW
	               Eu não lhe concedi aparte!
	               LUCIANO
	               O seu discurso é importado e a tradução é muito
	               ruim!
	               ANDREW
	               E o seu discurso serve à ditadura. O anarquismo é
	               a direita vestida de palhaço.
	               LUCIANO
	               O que serve à direita é a incompetência da
	               esquerda.
	Os dois gritam ao mesmo tempo. Luciano pega um grande
	despertador. O despertador toca, aumentando o caos. A platéia
	vaia, grita e aplaude.
CENA 07 - TEATRO/BASTIDORES - INTERIOR/NOITE
	Chico caminha com dificuldades pela coxia de um teatro. Ao fundo,
	placas indicam erradamente ESQUERDA e DIREITA. Chico pede
	informações a um COELHO, que lhe indica o caminho.
	               CHICO (OFF)
	               A Cristina, que também adorava uma platéia, foi
	               fazer teatro. Ela me convidou para uma sessão de
	               sensibilização, onde a gente ia explorar os nossos
	               sentidos em busca do autoconhecimento. Por via das
	               dúvidas, escovei bem os dentes.
CENA 08 - TEATRO/PALCO - INTERIOR/NOITE
	Chico entra no palco e é recebido por Cristina, Abraão e outros
	atores, todos nus. Chico fica num constrangimento total.
	               CHICO
	               Cristina?
	               CRISTINA
	               Chico! Pessoal, este é o Chico.
	               CHICO
	               Tudo bem?
	               CRISTINA
	               Que bom que você veio. Eu sempre achei que a gente
	               devia fazer alguma coisa juntos.
Chico fica olhando para ela, hipnotizado. Abraão se aproxima.
	               CRISTINA
	               Chico, este é o Abraão.
	               ABRAÃO
	               A Cristina fala muito de você.
	               CHICO
	               Legal. (olhando para cima) Interessante estas
	               luzes...
	               ABRAÃO
	               É verdade. Ela lhe falou sobre o exercício?
	               CHICO
	               Falou, falou. Eu... acho super interessante esta
	               história de autoconhecimento e tudo, mas é que...
	               Eu posso ficar de cueca?
	Chico e Cristina, frente a frente, muito próximos. Eles tocam o
	rosto um do outro. Chico tenta controlar-se
	               ABRAÃO
	               Você é um ser vivo. Um animal, uma árvore. Você é
	               um corpo. Você é o seu corpo. Explorem os
	               sentimentos do outro com a ponta dos dedos. Toquem
	               os sentimentos do outro.
	               CHICO
	               Cristina, tem um sentimento meu que está ficando
	               fora de controle.
	               CRISTINA
	               Deixe os sentimentos crescerem.
	               CHICO
	               Pois é, é exatamente disso que eu estou falando...
	               CRISTINA
	               Qual é o problema? Relaxe. Não tenha medo de
	               demostrar o que você sente. Não tente se
	               controlar.
	Chico olha para Cristina alguns segundos e então a agarra, tasca-
	lhe um beijão.
	               CRISTINA
	               Chico! Controle-se!
	               CHICO
	               Eu sou um animal! Eu sou uma árvore! Eu sou uma
	               árvore enorme! Eu sou um jequitibá!
	               CRISTINA
	               Socorro!
CENA 09 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA
Luciano, na sala de redação, batendo a máquina.
	               CHICO (OFF)
	               O Luciano conseguiu um emprego numa estação local
	               de tevê. Ele escrevia os textos da madame Mirna.
	               LUCIANO
	               (falando sozinho) Câncer...
CENA 10 - ESTÚDIO DE TV/CENÁRIO ASTRAL - INTERIOR/DIA
	Cenário de um programa de horóscopo na TV. MADAME MIRNA fala com
	leve sotaque castelhano. Luciano opera a dália, com o texto.
	               MADAME MIRNA
	               Aos nativos de Câncer a recomendação é cautela e
	               caldo de galinha. O posicionamento de Marte em
	               Virgem e a frente fria argentina favorecem a gripe
	               e os distúrbios pulmonares. Tome cuidado com
	               pessoa invejosa. Cor bege, número vinte e três.
CENA 11 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA
	Luciano está em sua mesa numa sala de redação. É um lugar meio
	decadente. Chico está sentado em uma cadeira à frente. Luciano
	põe sobre a mesa um roteiro.
	               LUCIANO
	               "Seis Personagens à procura de um país", roteiro
	               inédito de Luciano de Almeida, para um programa de
	               televisão que você vai dirigir. A Cristina faz a
	               Primeira Atriz. Você já viu a peça?
Chico pega o roteiro, folheia.
	               CHICO
	               Não.
	               LUCIANO
	               Eu dei pro Velho ler, ele achou "interessante",
	               que é o máximo que ele acha de qualquer coisa.
	               CHICO
	               Por que você mesmo não dirige?
	               LUCIANO
	               Não, obrigado. Eu só escrevi este roteiro por
	               causa da Cristina. Eu fui falar com ela depois da
	               peça, no camarim. Ela estava especialmente linda,
	               tirando a maquilagem...
CENA 12 - CAMARIM - INTERIOR/NOITE
	Cristina, no camarim, tirando a maquilagem. Luciano, de pé ao
	lado dela, só observa, tentando aparentar naturalidade.
	               LUCIANO (OFF)
	               Me olhou com aqueles olhos profundos e disse que
	               sempre quis fazer alguma coisa junto comigo.
VOLTA PRA CENA 11 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/NOITE
Chico olha pra Luciano, disfarçando a surpresa.
	               CHICO
	               Sei.
	               LUCIANO
	               Escrevi o roteiro numa noite. Eu não quero ser
	               diretor, nem jornalista, nem trabalhar em
	               televisão.
	               CHICO
	               E o que você está fazendo aqui?
	               LUCIANO
	               Juntando dinheiro pra abrir a minha produtora, a
	               Lucky Vídeo.
Chico acha graça.
	               LUCIANO
	               É sério. Já tenho até um sócio uruguaio. Pra
	               ganhar dinheiro um sujeito precisa de um sócio
	               uruguaio.
	O VELHO, um sujeito de uns quarenta e cinco anos, aparência
	cansada, abre a porta que dá para a sala de redação. Faz um sinal
	para Luciano. Ele levanta.
	               LUCIANO
	               Vamos lá. Cadê a fita?
Chico tira da mochila uma fita de vídeo U-Matic.
CENA 13 - PÁTIO DE ESCOLA (MONITOR) - EXTERIOR/DIA
	Chico, no pátio de uma escola, entrevista algumas crianças.
	Edição de imagens com trilha. Sobem os créditos. Roteiro e
	Direção: Francisco Freire... (Trilha: "Como o Diabo Gosta", do
	Belchior)
CENA 14 - SALA DO VELHO - INTERIOR/DIA
	O velho está sentado a uma velha escrivaninha. O Velho acende um
	cigarro. Durante todo o diálogo ele divide a atenção entre Chico
	e o jornal aberto sobre a mesa.
	               VELHO
	               (não muito animado) Interessante.
	               CHICO
	               O equipamento de vídeo da faculdade não é muito
	               bom.
	               VELHO
	               Deve ser melhor que o nosso. Você já sabe o
	               salário?
	               CHICO
	               O Luciano me disse.
	               VELHO
	               E o horário?
	               CHICO
	               Madrugada, tudo bem.
	               VELHO
	               (para Luciano) O Andrew já terminou a edição?
	               LUCIANO
	               Deve estar terminando.
	               VELHO
	               Diz pra ele dar uma chegada aqui.
	Luciano sai. O Velho procura uma xícara de cafezinho que esteja
	limpa. Não encontra, despeja o conteúdo de uma xícara usada em
	outra, serve-se de café na garrafa térmica.
	               VELHO
	               A audiência do jornal é mínima, mas sempre tem
	               alguém que acorda às sete da manhã e liga a tevê,
	               não me pergunte por quê. A editora chefe é a Dona
	               Miriam Junqueira, conhece?
Chico faz que não.
	               VELHO
	               Ela não dá a mínima pro texto das matérias, desde
	               que não tenha três linguodentais fricativas na
	               mesma frase. Eu já vi ela trocar "os assaltantes
	               são sete" por "os ladrões eram oito".
Andrew entra na sala.
	               VELHO
	               Andrew, este é o Chico.
	               ANDREW
	               A gente já se conhece da faculdade. Tudo bem?
Cumprimentam-se.
	               VELHO
	               O Chico vai segurar a outra alça da mala.
	               ANDREW
	               Já avisou das linguodentais fricativas?
	               VELHO
	               Já. (para Chico) Passa no departamento de pessoal
	               pra acertar tudo. Tem certificado de reservista?
	               CHICO
	               (levantando) Tenho.
	               VELHO
	               Meu pai dizia que tudo que um homem precisa é um
	               pênis, um emprego e um certificado de reservista.
	               CHICO
	               Então tá tudo em ordem.
CENA 15 - VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA
	Numa ruela, Chico, Andrew e um CINEGRAFISTA descem da caminhonete
	com o equipamento. Na porta de uma casa de madeira, Andrew
	entrevista uma MULHER, que fala emocionada. Chico interrompe,
	Andrew não entende. Chico posiciona a mulher na luz e manda
	recomeçar o depoimento.
	               CHICO (OFF)
	               Eu e o Andrew logo formamos uma dupla. A gente
	               fazia reportagens sobre demissões, desemprego,
	               violência, poluição. Ele dizia que toda matéria
	               tinha que ter um opressor e um oprimido.
CENA 16 - ILHA DE EDIÇÃO TV - INTERIOR/NOITE
	Andrew opera a ilha. Chico, ao lado, sugere modificações. Os dois
	parecem satisfeitos com o trabalho.
	               CHICO (OFF)
	               Eu não entendia disso: pra mim eram sempre o
	               mocinho e o bandido. E o mocinho tinha que estar
	               bem iluminado. A gente se entendeu rápido.
	               CHICO
	               Você lembra da semifinal do Interescolar Pérola de
	               setenta e três?
	               ANDREW
	               Semifinal? Não. Mas eu lembro que a gente perdeu a
	               final pro Colégio Militar. Foi tudo armado.
	               CHICO
	               (achando graça) Você acha que a ditadura estava
	               preocupada com o resultado do Interescolar Pérola?
	               ANDREW
	               Você não acredita? O juiz e um bandeirinha eram
	               militares da reserva.
	               CHICO
	               Andrew, eu vi a final. Vocês levaram cinco a um.
	               ANDREW
	               Veja bem, a imagem que a direita tentava passar
	               dos militares era a de...
	               CHICO
	               Tudo bem, Andrew. (apontando pro monitor) Fade
	               out.
FADE OUT.
CENA 17 - CORREDORES DA TV - INTERIOR/NOITE
	Chico, Andrew, Luciano e Cristina entram na televisão. Salas
	vazias. Chico e Luciano acendem luzes e equipamentos.
	               CHICO (OFF)
	               Na madrugada, nós tomávamos conta da televisão.
	               Enquanto todos dormiam, a gente sonhava.
CENA 18 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE
	Chico está na central técnica, com cara de sono, mexendo nos
	controles da mesa. O relógio na parede marca 3:47.
CENA 19 - ESTÚDIO DE TV/MONITOR - INTERIOR/NOITE
	Cristina, interpretando "Alice no país das maravilhas", agita os
	braços na frente de um fundo azul.
	               CRISTINA
	               Dinah vai sentir muito a minha falta esta noite,
	               eu acho...
	No monitor, graças ao "chroma-key", Cristina-Alice parece estar
	caindo em um poço sem fundo.
	               CRISTINA
	               Dinah, eu queria que você estivesse comigo aqui.
	               Não tem nenhum rato no ar, infelizmente, mas bem
	               que você podia pegar um morcego...
	De repente, o fundo do "chroma-key" termina, e Alice fica
	sacudindo os braços no ar sobre as imagens de uma tv fora do ar.
	               CRISTINA
	               ... é igualzinho a um rato, sabe? Mas, gatos comem
	               morcegos? Gatos comem morcegos?
	               CHICO (OFF)
	               (no microfone) Parou. Terminou a base do chroma.
	               São quase quatro da manhã, eu reedito depois.
	               Ficou ótimo.
	De repente, a imagem do estúdio surge em outro monitor. Neste
	monitor está escrito "NO AR". Chico se assusta.
	               CHICO
	               O que é isso?
	Luciano entra em cena, seguido por Andrew. Luciano tem um baseado
	na mão e faz sinais para Chico, apontando para o lado. Cristina e
	Andrew morrem de rir. Chico liga uma tv comum, muda de canal, daí
	encontra a imagem do Luciano.
	               CHICO
	               (erguendo-se) O Luciano enlouqueceu! A tevê está
	               no ar!
Chico verifica a mesa.
	               CHICO
	               (assustado, grita no comunicador) Porra, Luciano,
	               você é louco! Desliga esta merda, Luciano!
	               CRISTINA
	               Que foi?
	               CHICO
	               (levantando) Ele ligou o transmissor. A tevê tá no
	               ar! (sai)
	Cristina fica rindo. Luciano pega o livro "Alice no país das
	maravilhas" na mão, dá uma tragada e segura a fumaça nos pulmões.
	Abre o livro.
	               LUCIANO
	               "Era briluz. As lesmolisas touvas roldavam e
	               relviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as
	               pintalouvas e os momirratos davam grilvos". E
	               agora com vocês, nosso comentarista comunista e
	               pobre, Andrew Silva Ribeiro Terceiro.
	Luciano passa o baseado para Andrew. Ele dá uma tragada e vem
	para frente da câmara.
	               ANDREW
	               Trabalhadores do Brasil! Pão, orgasmo e maconha
	               para todos! Hay que endurecerse, pero sin faltar
	               la marijuana jamás!
	Chico desliga o transmissor. O monitor "NO AR" se apaga. Chico
	entra no estúdio e desliga a luz. Luciano entra em cena.
	               LUCIANO
	               Camaradas! Mercenários a soldo do capitalismo
	               ianque estão invadindo nossos estúdios. Querem
	               calar a nossa voz, camaradas! A Tele Rebelde,
	               canal nove, uma emissora da Fundação Raul
	               Seixas...
	Luciano fica falando mas não se ouve o que ele diz. Chico cortou
	o som dos microfones. Chico entra em cena, ainda irritado,
	gesticulando muito. Luciano estende o baseado para Chico. Ele
	pára de discutir, pega o cigarro e fuma.
CENA 20 - TEATRO/CENÁRIO DE ALICE - INTERIOR/NOITE
	Um cenário de teatro infantil. Cristina dá o texto final de
	"Alice no País das Maravilhas".
	               CRISTINA
	               Ela estava cercada de outras crianças e fazia os
	               olhos delas brilharem quando lhes contava
	               histórias curiosas, talvez até mesmo o sonho do
	               País das Maravilhas, de há muito tempo atrás.
	Chico, mais Andrew com sua mulher SÍLVIA e uma FILHA no colo, 2
	anos, no meio de uma platéia de mães com seus filhos, batem
	palmas.
CENA 21 - CAMARIM - INTERIOR/NOITE
	No camarim lotado, clima de alegria, confusão, todos falando ao
	mesmo tempo. Chico abraça Cristina. Chico apresenta Abraão para
	Andrew.
	               ABRAÃO (OFF)
	               Eu não tenho orgulho nenhum de ter sido preso. Eu
	               nem era comunista.
CENA 22 - CAMARIM (MONITOR) - INTERIOR/NOITE
	Reportagem sobre Abraão: se maquilando, no palco, dando aulas.
	Fotos de Abraão em outras peças.
	               ABRAÃO
	               Eu só não gostava do que os militares faziam:
	               torturar gente, prender músicos, proibir filmes. E
	               eu fazia teatro, dava aula de filosofia, estas
	               coisas. (...) Os caras que me torturaram me
	               chamavam de "judeu!", "veado!", "atorzinho!".
	Abraão, sentado no cenário da peça, termina de tirar a
	maquilagem.
	               ABRAÃO
	               Tinha um lado irônico: era tudo verdade, eu era
	               mesmo um atorzinho veado e judeu. Irônico, mas não
	               engraçado. (...) Eu continuo querendo mudar o
	               mundo, eu continuo acreditando nas pessoas, eu
	               continuo sendo... esquerdo.(...) Tem uma frase no
	               Orlando... "Eu estou crescendo. Estou perdendo
	               algumas ilusões. Talvez para adquirir outras."
	               Tomara que sim.
CENA 23 - ILHA DE EDIÇÃO TV - INTERIOR/DIA
	Chico dá pause no VT. O Velho fica olhando para o monitor
	apagado. Chico e Andrew ficam esperando uma resposta do Velho.
	               VELHO
	               (muito sério) Interessante. Muito interessante. Só
	               que não vai ao ar.
Chico ri, como quem não acredita. Andrew não esboça uma reação.
	               CHICO
	               Por quê?
	               VELHO
	               Ele é muito gordo.
	               CHICO
	               Velho...
	               VELHO
	               (levantando) Chico, por favor, não vamos começar
	               uma conversa adolescente a esta hora. Ele fala de
	               tortura. Não é o momento de provocar os militares,
	               você sabe disso.
Andrew ri.
	               ANDREW
	               Como é que você se conforma com um papel desses,
	               Velho?
	               VELHO
	               Da mesma maneira que vocês: eu sou pago pra isso.
Andrew levanta, começa a pegar suas coisas, papéis, livros.
	               ANDREW
	               Eu não. Não mais. Já aprendi o que tinha pra
	               aprender nessa tevê. Eu vou sair e botar a boca.
	               VELHO
	               Onde? No bar? Ou no jornalzinho do sindicato? Não
	               seja ridículo, Andrew.
	               ANDREW
	               Sabe qual é o seu problema, Velho? É que você
	               cansou. Cansou, de tanto levar porrada, e resolveu
	               colaborar. Tudo bem, dá pra compreender. Mas eu
	               ainda nem comecei e não vou me submeter aos seus
	               critérios nazistas. Eu tô fora.
Andrew sai. Chico senta e fica olhando para o Velho.
	               VELHO
	               E você Chico? Vai pegar ou vai continuar? O prêmio
	               está acumulado em dez milhões.
	               CHICO
	               Deixa de ser cínico, Velho.
	               VELHO
	               Deus me livre! Ser cínico é que me faz suportar
	               idiotas como vocês dois. Vocês querem comover meia
	               dúzia de donas de casa que acordam cedo para fazer
	               o café pro marido. "Ele foi torturado? Pobrezinho,
	               que maldade..." São as mesmas donas de casa que
	               bateram panela na rua, rezando e pedindo o golpe
	               militar. O Ibope de vocês é zero, Chico! Não se
	               faz revolução nenhuma dando zero no Ibope.
	O Velho vai saindo. Chico senta na cadeira do editor. Apóia a
	cabeça com a mão.
	               VELHO
	               Termina de editar o jornal e vai dormir. Você tem
	               uma entrevista amanhã cedo. (pausa) O Andrew te
	               falou que recebeu uma proposta pra trabalhar numa
	               rádio?
	               CHICO
	               (surpreso) Não.
	               VELHO
	               Três vezes o salário daqui. Ele quer sair dando
	               uma de ofendido. E você quer perder o emprego e
	               quer que eu arrisque o meu pelas bichices de um
	               atorzinho?
	               CHICO
	               Você esqueceu de dizer que ele é judeu.
	               VELHO
	               Podia ser pior. Ele podia ser negro. Boa noite.
CENA 44 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA
	Chico entra apressado no saguão do aeroporto. Encontra Luciano,
	que vem em sentido contrário. Eles procuram Cristina em meio a um
	grupo de passageiros que acaba de desembarcar.
	               CHICO
	               Já chegou o vôo dela?
	               LUCIANO
	               Não tenho certeza.
	               CHICO
	               O que ela foi fazer na Índia?
	               LUCIANO
	               Você lembra que ela tava se tratando num analista?
	               CHICO
	               Indiano?
	               LUCIANO
	               Não. Freudiano. Ela ficava muito ansiosa por não
	               lembrar dos sonhos, para contar pro analista.
CENA 45 - BANCA DE REVISTAS - EXTERIOR/DIA
	Cristina compra uma revista numa banca. O nome da revista é "BONS
	SONHOS".
	               LUCIANO (OFF)
	               Aí ela comprou uma revista de interpretação de
	               sonhos, pra decorar um sonho qualquer que era dado
	               como exemplo.
CENA 46 - CENTRO DA CIDADE - EXTERIOR/DIA
	Cristina caminha quase nua pelo centro da cidade. Tenta se
	esconder com um jornal. As PESSOAS passam por ela mas não prestam
	atenção. Um GUARDA se aproxima.
	               LUCIANO (OFF)
	               Ela leu e contou pro analista que tinha sonhado
	               que estava nua no centro da cidade quando um
	               guarda aparecia e pedia uma informação. O guarda
	               queria saber onde ele podia pegar o ônibus para
	               Passo Fundo.
CENA 47 - CONSULTÓRIO - INTERIOR/DIA
Cristina, numa poltrona, conta o sonho pro analista.
	               LUCIANO (OFF)
	               O analista disse que ela estava se sentindo
	               exposta, que eles precisavam falar sobre o pai
	               dela. A revista disse que sonhar com guarda é
	               sinal de sorte e que sonhar com ônibus é camelo.
CENA 48 - PIRÂMIDES - INTERIOR/DIA
	Cristina, em meio às pirâmides do Egito, encontra o ARGENTINO, um
	homem de mãos fortes e de cabeça raspada.
	               LUCIANO (OFF)
	               Ela largou a análise e embarcou pro Egito no dia
	               seguinte.
	               CHICO (OFF)
	               Egito? Não era Índia?
	               LUCIANO (OFF)
	               Acontece que no Egito ela encontrou um argentino.
	               Disse que era o homem da vida dela. Eles viajaram
	               juntos pra Calcutá.
VOLTA PRA CENA 44 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA
Chico e Luciano esperando Cristina.
	               CHICO
	               Mas então o argentino vem junto?
	               LUCIANO
	               Não, ela foi tomar banho no Ganges, teve uma
	               infecção por estafilococos e voltou pro Brasil. Me
	               ligou hoje de manhã do Rio.
	               CHICO
	               (aponta uma mulher) É ela?
	               LUCIANO
	               Muito alta!
	Por trás deles, chega uma mulher com um traje krishna completo.
	Luciano e Chico se viram e olham direito para o rosto da krishna:
	é Cristina. Os dois ficam pasmos.
	               CHICO
	               Cristina...
	               CRISTINA
	               (sorrindo) Hare-krishna.
	               CHICO
	               (tentando aparentar normalidade) Igualmente.
	Chico, depois de um momento de hesitação, decide cumprimentá-la à
	maneira ocidental, com um beijo, mas Cristina o detém com um
	gesto.
	               CRISTINA
	               (sempre sorrindo) Desculpe, Chico, mas o beijo é
	               maia. Nós não somos casados.
Chico fica sem saber o que fazer.
	               LUCIANO
	               Apertar a mão pode?
	               CRISTINA
	               (sorrindo) Pode.
Os três apertam as mãos.
CENA 49 - FRENTE DO TEMPLO - EXTERIOR/DIA
	Cristina e seus COMPANHEIROS KRISHNA abanam para Chico e Luciano,
	que estão no carro, em frente ao templo.
CENA 25 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA
	Luciano trabalhando na redação da TV. Ele segura o telefone no
	ombro e fala com Chico. Sobre a mesa, mapa astral.
	               CHICO (OFF)
	               Foi nesta época que o Luciano começou a utilizar
	               seus conhecimentos astrológicos para investir na
	               bolsa de valores.
	               LUCIANO
	               (para Chico) Você tem o ascendente em peixes e
	               peixes é água e a cor simbólica das águas
	               primordiais é o verde. Verde. É óbvio, você deve
	               comprar dólar. Poupança é coisa de
	               capricorniano.(ao telefone) Sim? (...)Setenta e
	               dois. (...) Sei. (...) Davi, o Ibarri tá me
	               dizendo isso desde março... (...) Certeza? (...)
	               Isso daria uns quarenta e cinco por cento numa
	               semana... (...) E dá pra acreditar? (...) Claro,
	               Davi, nem precisa falar. Sigilo absoluto.
CENA 26 - PARQUE - EXTERIOR/DIA
	Um parque florido, cenário de piquenique, toalha estendida na
	grama, entre as flores. Em destaque, uma cesta de vime com pães
	de diferentes tipos. Ao lado, RENATA, uma modelo muito bonita,
	com um roteiro na mão, tenta decorar o texto. Em volta dela, a
	EQUIPE DE PRODUÇÃO prepara a gravação. Luciano fala com ela e vem
	até a câmara, onde está Chico.
	               RENATA
	               Gostosos, deliciosos e... Não. (olhando o texto)
	               Gostosos, macios e fofinhos. (pra câmara,
	               sorrindo) Gostosos, fofios e... Não. (volta o
	               olhar o texto).
	               CHICO (OFF)
	               Foi esta não tão improvável mistura de astrologia
	               e mercado futuro que mudou a vida do Luciano. E a
	               nossa também. O primeiro trabalho da Lucky Vídeo
	               foi um comercial de pão.  E eu comecei a descobrir
	               o poder que tem um diretor.
	Afastado dela, olhando por monitor, Chico pensa em voz alta.
	Luciano se aproxima.
	               CHICO
	               Podia ter um pipoqueiro lá no fundo...
	               LUCIANO
	               Um pipoqueiro lá no fundo! Rápido!
	               PRODUTOR (OFF)
	               Um pipoqueiro!
	               CHICO
	               Essa guria não vai conseguir dar o texto.
	               LUCIANO
	               Claro que vai, Chico, olha que gracinha.
	               (oferecendo a Chico) Quer uma bala?
	               CHICO
	               Eu odeio esse negócio, eu odeio publicidade.
	Chico pega a bala. Um pipoqueiro, que parece não estar entendendo
	nada, surge na cena.
	               LUCIANO
	               Claro. Você já me disse isso. Acontece que você
	               aceitou fazer este comercial e acontece que a
	               gente só tem mais uma hora de equipamento.
	               CHICO
	               Fica melhor sem o pipoqueiro.
	               LUCIANO
	               Sem o pipoqueiro! Tirem esse pipoqueiro daí!
	               PRODUTOR (OFF)
	               Tirem esse pipoqueiro daí!
O pipoqueiro é arrastado para fora da cena.
	               LUCIANO
	               Chico, o sol tá caindo, Chico... Olha lá a Renata.
	               Ela é linda. Ela vai comer o pão e dizer que é
	               gostoso, macio e fofinho. Todo mundo vai acreditar
	               nela, porque ela é linda. Publicidade é isso aí.
	Chico fica olhando para Luciano. Depois dá uma olhada para
	Renata. Ela dá um sorriso simpático para Chico. Chico retribui.
CENA 27 - PARQUE (MONITOR) - EXTERIOR/DIA
	Na tela de uma tevê, Renata começa a comer o pãozinho, linda e
	simpática. Detalhes do pão, que parece delicioso. Musiquinha no
	fundo. Ela fica comendo o pão, com mordidas pequenas.
	               LOCUTOR 1
	               Cláudia foi contratada para dizer que os pãezinhos
	               Ibarri são gostosos, macios e fofinhos. Cláudia
	               foi escolhida porque ela também é gostosa, macia e
	               fofinha. Ela está ganhando um ótimo cachê só para
	               dizer isso, que os pãezinhos Ibarri são gostosos,
	               macios e fofinhos. É um serviço fácil. Cláudia...
	               Por favor, Cláudia: o texto! Cláudia!
	Ela ainda está comendo. Entra a assinatura da Lucky Bread, com a
	locução final.
	               LOCUTOR 2
	               Pãezinhos Ibarri. Gostosos, macios e fofinhos.
CENA 28 - APARTAMENTO DE LUCIANO - INTERIOR/NOITE
	Chico, Luciano e Renata estão na sala do apartamento de Luciano,
	assistindo televisão. Luciano aplaude, entusiasmado.
	               LUCIANO
	               Ficou ótimo!
	               CHICO
	               É...
	               RENATA
	               (sem entender) Cadê o meu texto?
	               LUCIANO
	               (beijando Renata) Era um subtexto.
Renata continua sem entender.
	               LUCIANO
	               Subtexto... um texto que fica por baixo do outro,
	               não aparece, eles usam muito nos Estado Unidos.
	               Under-text. (Dá outro beijo.) Cláudia, você tá
	               linda.
Renata fica mais contente.
	               RENATA
	               Renata! Obrigado.
	               LUCIANO
	               Isso vai vender montanhas de pão. (abre o
	               champagne) Parabéns, Chico.
	               CHICO
	               (sem muita convicção) Eu detesto publicidade.
	               LUCIANO
	               (erguendo o copo de champagne) Longa vida ao
	               Chico, um publicitário que detesta publicidade.
Brindam, alegres. Luciano dá um beijo em Renata.
CENA 29 - BAR - INTERIOR/NOITE
	O Velho está numa mesa de bar, sozinho. Na sua frente, um copo
	com um resto de chope, várias "bolachas" e um copinho de cachaça.
	Ele faz sinal para CHUMBO, o garçom, que passa sem lhe dar
	atenção. Chico entra no bar, procura e encontra o Velho. Vai até
	a mesa.
	               CHICO
	               Tá sozinho?
	Velho vira-se com a dificuldade natural dos bêbados, olha para
	cima, reconhece Chico.
	               VELHO
	               (discursando) Sozinho, não! Com os trabalhadores
	               na luta pelo socialismo!
Chico puxa uma cadeira e senta.
	               CHICO
	               Eu preciso falar com você.
	               VELHO
	               Quando alguém que JÁ está falando com você diz que
	               precisa falar com você, pode ter certeza que tem
	               sacanagem no meio. Tem, teve ou vai ter.
	               CHICO
	               Eu vou sair da tevê.
	               VELHO
	               Não te falei? Eu não disse? No caso, VAI TER
	               sacanagem.
	               CHICO
	               Eu e o Luciano, a gente fez uns comerciais, o
	               Luciano vai abrir uma produtora, me convidou pra
	               trabalhar com ele.
	               VELHO
	               Você vai virar publicitário. (chamando) Ôoo...
	               Chumbo! Pelo amor de deus, Chumbo, faz duas horas
	               que eu pedi um conhaque e um chope! Quer o pedido
	               por escrito?
	               CHICO
	               Velho, eu quero é fazer os meus projetos. A minha
	               condição pra trabalhar na produtora é não fazer SÓ
	               comerciais.
	               VELHO
	               Você vai virar publicitário, Chico. Se você quer
	               virar publicitário, tudo bem, eu entendo.
	               Publicitário vive cercado de modelos maravilhosas,
	               trabalha pouco, se diverte muito... Em compensação
	               ganha uma fortuna. Tudo bem, Chico. Vai fundo.
Chumbo chega e larga dois copos de chope na mesa.
	               VELHO
	               E o conhaque? Ôoo... Chumbo! E o conhaque?
	Chumbo já foi. Chico faz menção de devolver o copo, o Velho não
	deixa.
	               VELHO
	               Deixa aí! Vamos fazer um brinde...
	               CHICO
	               Não, Velho. Amanhã cedo eu começo a trabalhar no
	               meu roteiro.
	               VELHO
	               Claro. Mas primeiro um brinde. Um brinde... ao
	               Chumbo! Um brinde ao Chumbo, que não vai virar
	               publicitário e, um dia, vai me trazer o conhaque.
CENA 30 - PISCINA DE COMERCIAL/MONITOR - EXTERIOR/DIA
	Uma modelo loura pula na água. A entrada na água é desastrosa, de
	barriga. A modelo morena pula e entra na água com perfeição.
Planos submarinos da loura. Planos submarinos da morena.
	A loura sai da água e experimenta o iogurte. A morena sai da água
	e experimenta o iogurte. As duas saem da água e experimentam dois
	iogurtes.
CENA 31 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
	Luciano está sentado ao lado de Chico e fala sem olhar para o
	monitor. Chico, ao contrário, não tira os olhos da tela. No
	monitor, uma modelo loura, num trampolim, prepara-se para
	mergulhar na piscina. A modelo loura pula do trampolim e cai de
	barriga na água. O EDITOR congela o quadro, volta lentamente a
	imagem até o ponto em que a modelo loura quase toca na água.
	               CHICO (OFF)
	               Eu não comecei a trabalhar no meu roteiro na manhã
	               seguinte. Nem na outra. Nem nos próximos cinco
	               anos. Em compensação, fiz mais de trezentos
	               comerciais, ganhei alguns prêmios e um monte de
	               dinheiro. Eu vendia de tudo. Quase tudo.
	               LUCIANO
	               Um candidato é um produto como qualquer outro,
	               Chico. Um cigarro, um iogurte...
	               CHICO
	               (irônico) Tá bom... Isso. Agora põe a morena.
	O monitor agora mostra a imagem submarina da modelo morena
	mergulhando, em câmara lenta. O editor congela a imagem no
	momento em que se percebe claramente que o cabelo dela é preto.
	Ele recua a imagem alguns quadros antes. Ele aciona a máquina,
	que faz a edição. No monitor, a modelo loura pula no trampolim, a
	modelo morena mergulha, a modelo loura sai da água.
	               LUCIANO
	               Qual a diferença?
	               CHICO
	               A diferença é que o iogurte não quer ser prefeito
	               da cidade.
	               LUCIANO
	               O Davi vai ser candidato de qualquer jeito, você
	               não pode impedir isso.
	               CHICO
	               Mas não preciso ser cúmplice. (para o editor) O
	               plano submarino ficou um pouco curto.
O editor começa a refazer a edição.
	               LUCIANO
	               O Davi tem direito de ser candidato. Vota nele
	               quem quer.
	               CHICO
	               E compra iogurte quem quer, vê televisão quem
	               quer... Você sabe que não é assim, Luciano. As
	               pessoas querem acreditar em alguma coisa. A gente
	               diz pra elas que comendo este iogurte, cheio de
	               conservantes ela vai ser forte, saudável e
	               sexualmente atraente. (imagens do comercial) A
	               gente diz e elas acreditam, porque elas tão super
	               a fim de acreditar em qualquer coisa que tire elas
	               da vida medíocre que levam, seja um iogurte, um
	               cigarro ou um candidato a prefeito. Só que um
	               candidato a prefeito pode ser mais cancerígeno que
	               qualquer cigarro. Um candidato NÃO é um produto
	               qualquer.
	               LUCIANO
	               Chico, a verba da campanha do Davi pra televisão é
	               de dois milhões de dólares.
	No monitor, a edição completa do comercial: a modelo loura pula
	do trampolim, o plano submarino mostra a modelo morena, a modelo
	loura sai da água, pega uma embalagem do iogurte e toma um gole.
	Entra a assinatura em computação gráfica.
Luciano oferece uma bala para Chico. Chico aceita.
CENA 32 - ESTÚDIO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
	PINTORES, OPERÁRIOS e CENOTÉCNICOS aprontam o estúdio de
	gravação. Numa parede terminam de ser colocadas, em frente a um
	grande céu aerografado, as letras que formam a palavra "DAVI".
	Chico supervisionando alguma coisa, assina papéis. Alguém chama
	atenção para a TV. Chico aumenta o som.
CENA 33 - ESTÚDIO DE TV (MONITOR) - INTERIOR/NOITE
Apresentadora de telejornal no estúdio.
	               APRESENTADORA
	               O candidato da Aliança Liberal, Davi Capitelli,
	               continua subindo nas pesquisa. Ele esteve hoje
	               falando às donas de casa.
CENA 33A - RUA - EXTERIOR/NOITE
Davi aparece na TV, dando uma entrevista.
	               DAVI
	               Os governos municipais são omissos, transferindo a
	               questão da segurança para o governo estadual e
	               federal. Enquanto isso a população se tranca em
	               suas casas, entrincheirada nesta guerra sem
	               fronteiras em que estão mergulhadas as grandes
	               cidades brasileiras.
VOLTA PRA CENA 33 - ESTÚDIO DE TV (MONITOR) - INTERIOR/NOITE
	               APRESENTADORA
	               E o último candidato na corrida para a prefeitura
	               foi definido hoje...
(32) Chico aumenta o volume. Alguém vem falar com ele.
	               CHICO
	               Só um pouquinho.
	               APRESENTADORA
	               ...na tumultuada convenção da Frente Democrática.
	               As candidaturas do economista Joaquim Canhette e
	               do deputado Luiz Renato ameaçavam rachar a Frente.
	               A solução acabou sendo a terceira via,
	               representada pelo azarão da noite e agora
	               candidato a prefeito, o radialista e líder
	               comunitário Andrew Ribeiro.
CENA 34 - COMITÊ DE ANDREW (MONITOR) - EXTERIOR/DIA
Repórter falando pra câmara.
	Andrew (identificado por caracteres) dá entrevista, vários
	microfones na frente.
	               ANDREW
	               A Frente Democrática tem todas as condições de
	               conquistar a prefeitura porque tem o melhor
	               programa de governo. A Frente defende os
	               interesses...
CENA 35 - SALA DE DAVI - INTERIOR/DIA
Chico assiste ao jornal na sala aparentemente vazia.
	               ANDREW
	               ...da imensa maioria da população. Nossos
	               oponentes defendem os interesses das elites, que
	               estão em menor número. Na hora da eleição a gente
	               vale o mesmo que eles.
Davi desliga o VT.
	               DAVI
	               Ele era seu amigo, não era?
	               CHICO
	               Era.
	               DAVI
	               Isso faz diferença?
	               CHICO
	               Eu assinei um contrato, não assinei?
Davi fica alguns segundos observando Chico.
[BLOCO 2]
VOLTA PRA CENA 1 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
Chico continua sentado na cadeira, olhando pra câmara.
	               CHICO
	               Eu podia ter me recusado a fazer a campanha do
	               Davi: era só dizer que o Andrew era meu amigo, que
	               isso mudava tudo. Mas não mudava.
CENA 37 - SALA DE DAVI - INTERIOR/DIA
	Chico continua sentado na mesma posição. Alguns ASSESSORES entram
	na sala, junto com Luciano. Davi apresenta Chico.
	               DAVI
	               Fulano, esse é o Chico, nosso mago das telinhas.
	               Graças a ele, eu nunca vendi tanto iogurte.
	               FULANO
	               (rindo) Prazer.
	               DAVI
	               Ele já me deixou mais rico. Agora vai me deixar
	               mais famoso.
Luciano senta ao lado de Chico. Davi se dirige aos dois.
	               DAVI
	               Nós fomos colegas no Anchieta, não da mesma turma,
	               eu era um pouco mais velho que vocês. Não sou
	               mais.
Os assessores riem muito.
	               DAVI
	               No colégio me chamavam de Luis, meu nome é Luis
	               Davi, mas eu não queria que pensassem que eu era
	               judeu. Agora eu quero.
Os assessores riem muito.
	               DAVI
	               O Luciano vai expor rapidamente qual é a nossa
	               estratégia de marketing, nosso target, e qual é o
	               recall esperado com a primeira fase da campanha.
	Luciano começa a falar e põe sobre a mesa alguns gráficos. Chico
	finge que presta muita atenção. Um GARÇOM serve cafezinho para
	todos.
CENA 38 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/DIA
	Passagem de tempo. Copos de café e cigarros atestam que a reunião
	já dura algumas horas. As pessoas gritam e gesticulam mas Chico
	não escuta mais.
	               CHICO (OFF)
	               Eu tenho que ter uma idéia, uma idéia só. Todo
	               mundo já disse as obviedades de sempre, já marcou
	               posição, já puxou o saco, já pediu café. Agora é
	               hora de alguém ter realmente alguma idéia.
	Chico escreve o nome DAVI, uma, duas, muitas vezes, num pedaço de
	papel.
	               CHICO (OFF)
	               Uma idéia... A maioria vai esperar pra ver o que o
	               Davi acha pra depois achar alguma coisa. De
	               qualquer maneira, no máximo em quinze minutos,
	               todos vão concordar que é melhor pensar com calma
	               e voltar a conversar amanhã e eu vou poder pegar
	               um vídeo e ir para casa, tomar banho e dormir na
	               frente da televisão. Pra tudo isso acontecer,
	               basta eu ter uma idéia, uma idéia de verdade.
	Chico rasga a folha de papel, isolando o nome DAVI num papelzinho
	bem pequeno. Chico rasga o nome DAVI ao meio, inverte as sílabas
	e lê: VIDA. Volta a inverter: DAVI. Chico fica olhando para
	aquele pedacinho de papel. Levanta os olhos, encara Davi.
	               CHICO
	               Eu tive uma idéia.
CENA 39 - ESTÚDIO DE SOM - INTERIOR/DIA
	Num estúdio de som, quatro cantores e alguns músicos gravam o
	jingle da campanha de Davi. A palavra "Vida" cantada várias vezes
	se transforma em "Davi". Chico acompanha a gravação.
CENA 40 - GRÁFICA - INTERIOR/DIA
	Uma máquina imprime um cartaz com a marca "DAVIDAVIDAVI". Um
	FUNCIONÁRIO corta uma folha com várias tiras, em que a marca
	"DAVIDAVIDAVI" aparece em um padrão ligeiramente diferente.
	QUATRO CEGOS colocam presilhas na parte anterior de alguns
	buttons, todos com a marca "DAVIDAVIDAVI". MULHERES colam
	adesivos com a marca "DAVIDAVIDAVI" em caixas de fósforos.
CENA 41 - VÍDEO-LOCADORA - INTERIOR/NOITE
	Chico está agachado, tentando ler o título dos filmes na lombada
	das caixinhas de vídeo nas prateleiras mais baixas, numa
	coreografia meio ridícula. Cristina se aproxima e reconhece
	Chico.
	               CRISTINA (OFF)
	               Chico...
Chico olha pra cima. Levanta-se.
	               CHICO
	               Cristina!
	Beijam-se, carinhosos e realmente felizes por terem se
	encontrado. O cartaz indica a sessão de vídeos: þCLÁSSICOSþ
CENA 44A - ARQUIVO
Um avião desce.
	               CHICO (OFF)
	               Como você já percebeu, a Cristina está sempre
	               entrando e saindo desta história.
CENA 44B - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA
	Chico entra apressado no saguão do aeroporto. Encontra Luciano,
	que vem em sentido contrário.
	               CHICO (OFF)
	               E eu estou sempre esperando por ela. Não sozinho,
	               é claro.
	Chico e Luciano procuram Cristina em meio a um grupo de
	passageiros que acabam de desembarcar.
	               CHICO
	               Já chegou o vôo dela?
	               LUCIANO
	               Não tenho certeza.
Chico aponta para uma mulher, de costas, juntando uma mala.
	               CHICO
	               É ela?
	               LUCIANO
	               Não pode ter engordado tanto.
	               CHICO
	               O que ela foi fazer na Austrália?
	               LUCIANO
	               Você lembra que ela tava fazendo sonoterapia?
	               CHICO
	               Australiana?
	               LUCIANO
	               Não. Você não vai acreditar, mas numa sessão ela
	               sonhou com o antigo analista dela montado num
	               camelo.
CENA 48A - BANCA DE BICHO - INTERIOR/DIA
	Cristina conversa com o CAIXA DO BAR. Ele anota o palpite dela no
	bicho: camelo.
	               LUCIANO (OFF)
	               Ela resolveu jogar uma grana no camelo, invertido
	               do primeiro ao quinto. Juntando com aquele sonho
	               de dois anos antes, que ela tinha inventado, mas
	               que também tinha camelo, sei lá.
	Cristina deixa cair a carteira. Vai juntar e é ajudada pelo
	ASTRÓLOGO.
	               LUCIANO (OFF)
	               Deu elefante, mas ela conheceu um cara na banca do
	               bicho.
	               CHICO (OFF)
	               Australiano?
	               LUCIANO (OFF)
	               Não. Astrólogo. Ela largou a sonoterapia e foi com
	               ele prum congresso de astrologia em Sidney.
VOLTA PRA CENA 44B - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA
Chico e Luciano esperando Cristina.
	               CHICO
	               Mas então o australiano vem junto?
	               LUCIANO
	               Não sei. Ela me disse que vinha sozinha, mas que
	               tinha uma surpresa.
	               CHICO
	                Como se eu ainda fosse me surpreender com a
	               Cristina.
	Por trás deles, chega uma mulher com um cabelo punk e uma jaqueta
	de couro. Luciano e Chico se viram e olham direito para o rosto
	dela: é Cristina. Chico faz um ar de quem não se surpreende.
	               CHICO
	               Cristina...
Cristina abre a jaqueta e mostra um barrigão de grávida.
	               CRISTINA
	               (sorrindo) Chico, Luciano. Esse é o José.
	Os dois ficam pasmos. Cristina agarra Luciano e lhe dá um super
	beijo na boca. Em seguida, ela larga Luciano, agarra Chico e
	repete a dose.
CENA 50 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
	Chico, Luciano e Cristina estão sentados em volta de uma mesa,
	com roupas de inverno, cabeça baixa. Silêncio absoluto, como se
	estivessem num ritual religioso. Em volta deles, velas, velas e
	mais velas. Luciano está enrolado num cobertor.
	               CHICO (OFF)
	               Em menos de dois anos ela deixou de ser punk e
	               virou mãe e Rajneesh. Felizmente, a vó era
	               católica e adorava criança.
	               CRISTINA
	               (gritando) STOP!
Os três, que estavam estáticos, se agitam muito.
	               CHICO
	               Não acredito! Você conseguiu animal com "ene"?
	               CRISTINA
	               Animal com "ene" é fácil. Difícil foi novela com
	               "ene". Nino, o Italianinho.
	               LUCIANO
	               Ene? Não era "Eme"?
	               CRISTINA
	               Não, Luciano, tá brincando que você fez tudo com
	               "Eme"! Eu falei dez vezes, e-ne, e-ne, e-ne!
	               LUCIANO
	               Acho que o meu cérebro congelou com o frio.
	               CRISTINA
	               (encarando Chico) Quem teve a idéia de vir para a
	               praia com esse frio?
	               CHICO
	               Eu gosto. Não tem ninguém pra encher o saco. A
	               gente pode fazer qualquer coisa.
	               CRISTINA
	               Qualquer coisa?
CENA 51 - PRAIA - EXTERIOR/DIA
	Chico e Luciano, sentados na areia da praia, morrendo de frio.
	Olham para a frente.
	               CHICO
	               Qual é a diferença entre krishna e Rajneesh?
	               LUCIANO
	               Na prática, é o seguinte: antes ela não beijava
	               ninguém, e agora ela dá pra todo mundo.
	               CHICO
	               (impressionado) Ah, é?
	Cristina sai correndo do mar e chega perto deles. Ela está
	vestindo uma roupa vermelha de borracha completa. Cristina dá um
	beijo em cada um.
	               CRISTINA
	               O último a chegar em casa é um pingüim!
	E sai correndo. Os dois se olham por um instante. Depois, também
	saem atrás.
CENA 53 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE
Luciano, andando por uma rua deserta, procurando alguma coisa.
	               CRISTINA (OFF)
	               O Bhagwan ensina que, quando a gente quer alguma
	               coisa, tem que lutar por ela...
CENA 52 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
	Cristina e Chico, sentados lado a lado em frente à mesa,
	separando baralhos.
	               CRISTINA
	               ... Não pode abrir mão daquilo que te leva ao
	               prazer.
	               CHICO
	               O Luciano me explicou rapidamente.
	               CRISTINA
	               Como se ele entendesse... O Luciano é uma criança.
	               Ele precisa é de uma mãe.
	               CHICO
	               Todo mundo precisa.
	               CRISTINA
	               Você também?
	               CHICO
	               Por que não?
	               CRISTINA
	               Não sei. Você sempre me pareceu tão forte, tão
	               seguro.
	               CHICO
	               (confere o baralho) Tá faltando a dama de copas.
	               CRISTINA
	               (mostrando a dama de copas) Está aqui.
VOLTA PRA CENA 53 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE
Luciano bate na porta fechada de um bar.
VOLTA PRA CENA 52 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Um beijo longo, quente e apaixonado entre Cristina e Chico.
VOLTA PRA CENA 53 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE
Luciano conversa com o dono do bar.
	               LUCIANO
	               ... e eu tinha uma seqüência de ouros, só faltava
	               o sete, e esse meu amigo estava como o sete,
	               esperando o oito, que estava comigo, mas isso,
	               claro, não importa. Só que esse meu amigo ele tem
	               um tipo meio raro de hipoglicemia e PRECISA comer
	               um chocolate, se não comer um chocolate ele tem
	               uma crise horrível. Eu sei que são mais de meia-
	               noite e que... (olha a placa) isso é uma peixaria,
	               mas será que o senhor, por acaso, não teria, em
	               algum lugar, um chocolate?
CENA 56 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE
Chico e Cristina sentados lado a lado.
	               CRISTINA
	               Este fim-de-semana aqui foi muito importante pra
	               eu poder me decidir.
	               CHICO
	               Sei.
	               CRISTINA
	               Eu sempre achei que não precisava de ninguém. Mas
	               descobri que eu preciso.
	               CHICO
	               Claro.
	               CRISTINA
	               Eu preciso de alguém que precise de mim. Acho que
	               foi isso que me fez decidir.
	Chico fica olhando alguns segundos para Cristina. Luciano,
	sentado ao lado dela, oferece um pedaço de ovo de páscoa aos
	dois.
	               LUCIANO
	               Querem mais chocolate?
Chico aceita.
CENA 57 - AEROPORTO - INTERIOR/NOITE
	Chico abana no aeroporto. Luciano abana no aeroporto. Na escada
	rolante, Cristina, com José no colo, abana para os dois.
VOLTA PRA CENA 41 - VÍDEO-LOCADORA - INTERIOR/NOITE
Chico e Cristina agora estão em frente à sessão "NOVIDADES".
	               CHICO
	               Alguém me falou que você tinha voltado...
	               CRISTINA
	               Já faz um tempo.
	               CHICO
	               E o José?
	               CRISTINA
	               Tá na escola. Segundo ano já.
	               CHICO
	               Já? Que loucura...
	               CRISTINA
	               Precisa ver que gracinha ele falando alemão. Tem
	               visto o Luciano?
	               CHICO
	               Tenho. Tá igual. Tudo bem com você?
	               CRISTINA
	               Tudo. Estou voltando a fazer teatro.
	               CHICO
	               É mesmo?
	               CRISTINA
	               Uma peça infantil. Bem legal, direção do Abraão.
	               Ele sempre fala naquele roteiro dos "Seis
	               Personagens". Você ainda pensa em dirigir?
	               CHICO
	               Penso, claro... Problema é arranjar tempo.
	               CRISTINA
	               (animada) Ah, eu vi a sua foto no jornal. Você
	               está fazendo a campanha do Andrew.
	Chico, meio desconfortável, em frente à prateleira de "SUSPENSE",
	tenta não olhar diretamente para Cristina.
	               CHICO
	               Não, não... Do outro. O Davi.
	               CRISTINA
	               Ah... O Davi é aquele...?
	               CHICO
	               É.
	               CRISTINA
	               Ele é legal?
	               CHICO
	               Político, né? Estou fazendo pela grana. Pelo menos
	               ele é melhor que esses caras que estão aí.
	               CRISTINA
	               Claro. Publicidade é assim mesmo.
	               CHICO
	               Eu até pensei em ligar para você. A gente está
	               testando umas apresentadoras.
	               CRISTINA
	               Quem sabe? O José está louco por uma bicicleta.
	               CHICO
	               Então? Quer uma bala?
Cristina aceita a bala.
CENA 58 - ESTÚDIO DA PRODUTORA (MONITOR) - INTERIOR/NOITE
Cristina como apresentadora da campanha, no monitor.
	               CRISTINA
	               A prioridade número um da Aliança Liberal é a
	               saúde, o trabalho, a educação e a segurança da
	               cidade. Você já sabe: vida melhor com Davi.
CENA 61 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Chico e Cristina na cama, seminus, semiabraçados, olhando
	Cristina na TV. Chico tem o controle remoto na mão.
	               CHICO
	               Você está ótima.
	               CRISTINA
	               A prioridade número um são quatro? Você tem
	               certeza?
	               CHICO
	               (beijando-a) Você está linda.
	               CRISTINA
	               Publicidade é isso aí.
Eles se beijam.
[BLOCO 3]
CENA 60 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/DIA
Na TV, um VENDEDOR fala olhando para a câmara, muito sério.
	               VENDEDOR
	               Eu acordava de manhã e não via motivo pra sair da
	               cama. Eu me irritava com o trânsito, com os meus
	               colegas e com o meu chefe. E quando eu voltava do
	               trabalho eu me irritava com a minha mulher, com
	               meus filhos, com o jornal e com a novela.
	O vendedor abre um grande sorriso. Ao seu lado há uma caixa de um
	produto chamado "Happy Life".
	               VENDEDOR
	               Tudo isso mudou quando eu conheci "Happy Life".
	               Com "Happy Life"...
VOLTA PRA CENA 61 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Chico aciona o controle remoto e troca de canal. Chico e Cristina
	estão na cama, nus. Cristina está abraçada em Chico, ele assiste
	televisão.
CENA 62 - SALÃO DE FESTAS - EXTERIOR/NOITE
	Um APRESENTADOR vestido como mergulhador entrevista uma SOCIALITE
	em traje de gala. Ela está de braço dado com um SUJEITO DE
	SMOKING que, durante a entrevista, fica abanando para algumas
	pessoas fora de quadro.
	               APRESENTADOR
	               ...você poderia explicar em poucas palavras o que
	               é neurolingüística?
	               SOCIALITE
	               (gritando) O quê?
	               APRESENTADOR
	               (gritando) Eu estou pedindo para você explicar
	               para o público o que é o seu trabalho, o que é
	               neurolingüística!
	               SOCIALITE
	               Ah..! É que por trás de tudo que você faz, cada
	               gesto, cada ação, existe um procedimento
	               programado, como se você fosse um computador...
	               APRESENTADOR
	               Até pra namorar?
Eles acham graça.
	               APRESENTADOR
	               Por falar nisso, você não me apresentou o seu
	               namorado.
	               SOCIALITE
	               (rindo) Ele não é meu namorado.
	               APRESENTADOR
	               E televisão? É verdade que você vai fazer uma
	               novela?
VOLTA PRA CENA 61 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
	Chico muda de canal. Dá de cara com o comercial que ele fez,
	aquele da piscina. Volta para o canal da socialite e aciona o
	"mute".
	               CRISTINA
	               Eu acho legal que isso tenha acontecido agora e
	               não quando a gente se conheceu. (pausa) Você não
	               tinha certeza que isso um dia ia acontecer?
	               CHICO
	               O quê?
	               CRISTINA
	               A gente.
	               CHICO
	               Ah...
	               CRISTINA
	               Você achava que podia acontecer?
	               CHICO
	               Achava, sim.
	               CRISTINA
	               Eu tinha certeza. A minha médica disse que eu
	               confundo desejo com destino. (pausa) Você não
	               perguntou o que é que eu fiz nos últimos cinco
	               anos.
	               CHICO
	               O que é que você fez nos últimos cinco anos?
	               CRISTINA
	               Fiquei tentando entender o que aconteceu nos
	               últimos trinta anos. (pausa) Eu só queria ter a
	               idade do José sabendo o que eu sei hoje.
	Chico continua olhando para a tevê, onde a socialite continua
	dando entrevista. Ela gesticula muito. Ele troca de canal.
CENA 63 - RUA - EXTERIOR/DIA
Davi é entrevistado na rua. (61) Chico tira do "mute".
	               DAVI
	               ... do cidadão consciente. O eleitor não se deixa
	               mais levar por frases de efeito, por palavras de
	               ordem. Talvez por isso a nossa proposta esteja
	               atingindo tanto os corações quanto as mentes.
CENA 64 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE
Apresentador com fundo em chroma-key: ELEIÇÕES.
	               APRESENTADOR
	               Com uma campanha mais modesta e um discurso mais
	               agressivo, o jornalista Andrew Ribeiro subiu mais
	               seis pontos na pesquisa. Ele explica.
CENA 65 - RUA - EXTERIOR/DIA
Andrew fala pra câmara.
	               ANDREW
	               Antigamente, as elites dominavam as eleições na
	               retórica, manobrando a massa analfabeta. Hoje,
	               essas mesmas elites controlam a linguagem
	               audiovisual e conseguem...
	Chico aciona o "Mute". Imagens da campanha de Andrew, que parece
	muito simpático.
VOLTA PRA CENA 61 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE
Cristina, na cama, falando pra Chico.
	               CRISTINA
	               Às vezes eu pensava que era ruim ser tão amiga do
	               Luciano e de você. Amizade de meninos e meninas só
	               funciona antes dos treze anos. Depois fica tudo
	               esquisito. Tem umas coisas que a gente ganha. Mas
	               tem muitas que a gente perde. Você não acha?
Chico fica alguns segundos vendo Andrew na tevê.
	               CHICO
	               Acho.
CENA 66 - CASA DE ANDREW - EXTERIOR/DIA
	Chico bate palmas em frente à casa de Andrew. Sílvia aparece na
	porta. Um cachorrinho late muito.
	               SÍLVIA
	               Sim?
	               CHICO
	               Sílvia? Lembra de mim? Eu sou o Chico, amigo do
	               Andrew.
	               SÍLVIA
	               (não muito animada) Ah...
	               CHICO
	               O Andrew... ele está?
	               SÍLVIA
	               O Andrew não mora mais aqui. Faz mais de um ano.
	               CHICO
	               Ah... E você não sabe o novo endereço ou...
	               SÍLVIA
	               Eu não sei do Andrew. Só pelo jornal. Mas eu não
	               vou dar nenhuma entrevista, muito menos para
	               ajudar aquele Davi, se é isso que você quer.
	               CHICO
	               Não, Sílvia, claro que não. (pausa) Eu só queria
	               conversar com o Andrew, fora do comitê... (pausa)
	               O filho de vocês deve estar grande...
	               SÍLVIA
	               Filha. Clarissa. Agora ela está melhor.
	               CHICO
	               Ela esteve doente?
	               SÍLVIA
	               Teve meningite, quase morreu. O Andrew não te
	               falou?
	               CHICO
	               Na verdade eu não vejo o Andrew há algum tempo...
	               SÍLVIA
	               Mas ela ficou boa, graças a deus. Depois teve
	               rubéola, mas rubéola tudo bem.
	               CHICO
	               Claro. O José, filho da Cristina, também teve
	               rubéola. Tudo bem.
CENA 67 - ESTÚDIO PRODUTORA - INTERIOR/DIA
	O céu aerografado, no estúdio. Davi está sentado em frente ao
	cenário, olhando diretamente para a câmara.
	               CHICO (OFF)
	               Você já usou drogas?
	               DAVI
	               (rindo) Não. Mas eu conheço...
	Chico está sentado num banquinho, ao lado da câmara. Um grande
	número de assessores observa a cena.
	               CHICO
	               Por favor, Davi, não ria quando responder
	               perguntas. Você fica parecendo pedante.
	Davi fica sério, um pouco seguindo instruções, um pouco porque
	não gostou da objetividade agressiva de Chico.
	               CHICO (OFF)
	               Você já usou drogas?
	               DAVI
	               Não. Mas eu conheço pessoas que usam.
	               CHICO (OFF)
	               Você é amigo de drogados?
	               DAVI
	               Não é isso, é que eu acho que..
	               CHICO
	               Diga que você não usa, nunca usou, ponto. Se ele
	               perguntar mais, diga que você não é juiz de
	               ninguém, que os viciados devem ser tratados, que
	               os traficantes devem ser presos, enfim, o óbvio.
Davi acha graça.
	               CHICO
	               E não diga "eu acho". Achar, qualquer um acha,
	               parece chute, palpite. Você quer ser o prefeito.
	               Diga "eu penso" ou "eu acredito". Se você se
	               comportar no debate e subir dez pontos nas
	               pesquisas eu deixo você usar "eu creio".
Os assessores riem.
	               DAVI
	               (achando graça) Tudo bem.
	               CHICO (OFF)
	               Você já usou drogas?
	               DAVI
	               Não.
	               CHICO (OFF)
	               Acredita em Deus?
	               DAVI
	               Eu sou católico.
	               CHICO
	               Diga que acredita, mas acha que religião é uma
	               opção pessoal, íntima. Diga exatamente aquilo que
	               todos já disseram, que é exatamente aquilo que
	               todos querem ouvir. Não tente ser original. Isso
	               assusta as pessoas.
	               DAVI
	               Certo.
	               CHICO (OFF)
	               Qual sua opinião sobre o aborto?
	               DAVI
	               Eu acho que... Eu acredito que... o aborto é crime
	               e portanto... (pausa) O que eu devo dizer?
Chico desce do banquinho e aproxima-se de Davi.
	               CHICO
	               (para o cinegrafista, fora de cena) Chega, pode
	               parar. (para Davi) Não sei. Qual a sua opinião
	               sobre o aborto?
	A luz do estúdio é desligada. Chico e Davi ficam silhuetados
	contra o céu do estúdio.
	               DAVI
	               Não sei, nunca pensei nisso. O que a prefeitura
	               tem a ver com isso? Por que interessa a minha
	               opinião sobre deus, drogas ou aborto?
	               CHICO
	               Não sei, Davi. Não tenho a menor idéia. (olha o
	               relógio) Nós temos que ir. E por favor, não fala
	               mais naquele negócio das trezentas mil casas
	               populares.
	               DAVI
	               Por que não? É uma estimativa muito simples. Se
	               cada habitante da cidade tiver acesso a um
	               financiamento...
	               CHICO
	               (cortando) Cada habitante da cidade? Pelo amor de
	               Deus, Davi...
	               DAVI
	               Tudo bem, tudo bem.
CENA 68 - COMITÊ DA VILA/MONITOR - EXTERIOR/DIA
	Davi, pilchado, discursa na frente do "Comitê da Vila Caixa
	D'Água pela vitória de Davi", que é um casebre caindo aos
	pedaços. Umas TRINTA PESSOAS à sua frente. Algumas bandeiras de
	Andrew ao fundo. A equipe de TV registra, sob o comando do Chico.
	               DAVI
	               (empolgado, no final do discurso) ... Podem dizer
	               que eu sonho, que é demagogia, mas quando eu falo
	               em trezentas mil casas populares eu não sonho com
	               casas prontas que caem do céu. Eu sonho com o
	               material de construção, com os terrenos, com o
	               dinheiro a juros baixos, com a capacidade de cada
	               um erguer, a partir de seus sonhos, uma morada
	               mais digna, mais saudável...
CENA 69 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/DIA
	Na ilha de edição, estão sentados Chico, Cristina e um editor. No
	monitor, seguem as imagens da Vila, com o jingle de Davi ao
	fundo. O telefone da ilha toca, Cristina atende.
	               CRISTINA
	               É para você.
	               CHICO
	               Agora eu não posso atender.
	               CRISTINA
	               Ele não pode atender. (...) Tudo bem.
Cristina desliga o telefone. Ela aparece no monitor.
CENA 69A - ESTÚDIO PRODUTORA (MONITOR) - INTERIOR/DIA
	               CRISTINA
	               Davi esteve hoje na Vila Cai-Cai ouvindo as
	               necessidades dos moradores. (FAST até o final da
	               frase.) (68)
	               DAVI
	               ...morada mais digna, mais saudável e mais humana.
	               Muito obrigado.
	Uma grande vaia responde ao final do discurso. Há alguns aplausos
	e "muito bens", mas a reação da maioria é nitidamente negativa.
	Davi reage bem: ergue as mãos, aponta os que o aplaudem e
	agradece. (69) Logo que as vaias começam, Chico interrompe:
	               CHICO
	               Dá pause aí. Tira esse muito obrigado.
Chico alcança uma fita ao editor. Confere a ficha da fita.
	               CHICO
	               Dez minutos e trinta segundos. Edita esse aplauso
	               no final do discurso.
CENA 70 - OUTRA VILA (MONITOR) - EXTERIOR/DIA
	O editor coloca a fita: é uma pequena multidão começando a
	aplaudir um discurso de Davi. Muitas bandeiras. Clima festivo.
VOLTA PRA CENA 69 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/DIA
Toca o telefone outra vez. Cristina atende.
	No monitor, Davi termina o discurso e a reação das pessoas,
	agora, é positiva.
	               CRISTINA
	               Chico...
	               CHICO
	               Publicidade é isso aí.
Chico pára e percebe que Cristina não está com a cara boa.
	               CHICO
	               Que foi, Cristina? Morreu alguém?
Cristina fica parada olhando para Chico.
CENA 71 - PONTE DO GUAÍBA - EXTERIOR/DIA
	Ponte sobre o Rio Guaíba. Chico aproxima-se de dois policiais que
	estão na beira da ponte. Eles apontam para o chão, lá embaixo.
	Chico olha para baixo.
CENA 72 - ESCADAS DA PONTE - EXTERIOR/DIA
	Chico desce as escadas da ponte. Aproxima-se de um pequeno grupo
	que está junto a um terreno cheio de lixo e montes de areia. Há
	um plástico cobrindo um corpo, no chão. Chico se aproxima e ergue
	o plástico.
CENA 73 - CEMITÉRIO - INTERIOR/NOITE
	Chico examina (73A) o rosto do Velho no caixão. Velório. Algumas
	PESSOAS ocupam uma capela do cemitério. Os rostos são tristes e
	encaram Chico, que passa por eles em direção à capela, com aquele
	respeito excessivo dos velórios. Madame Mirna aproxima-se de
	Chico.
	               MADAME MIRNA
	               Ninguém pode saber ao certo se ele pulou ou foi
	               empurrado. Gente pra fazer uma maldade é que não
	               falta. Ele saiu do restaurante naquele estado,
	               você sabe...
	Chico se distrai e começa a olhar em volta, mas Madame Mirna
	continua falando, compulsivamente.
	 
	               MADAME MIRNA (OFF)
	               Coitado, um homem de tanto talento. Ele já tinha o
	               físico muito enfraquecido. Capricórnio e álcool
	               não se dão bem. Coitado, descansou.
	Andrew entra na sala. Sua chegada causa alguma agitação. Andrew
	cumprimenta as PESSOAS. Chico sai da sala, tentando evitar um
	encontro.
CENA 74 - CORREDORES DO CEMITÉRIO - INTERIOR/NOITE
	Chico sai do banheiro dos homens. Caminha pelo corredor do
	cemitério, meio perdido. As paredes estão cobertas por túmulos,
	com as fotos dos mortos e algumas flores de plástico. Chico dobra
	uma esquina e se vê a poucos passos de Andrew, que se aproxima.
	               ANDREW
	               Chico.
	               CHICO
	               Tudo bem?
	               ANDREW
	               Tudo bem. E você?
	               CHICO
	               Tudo bem.
Andrew passa por Chico, vai se afastando, pára.
	               ANDREW
	               Eu queria te avisar de uma coisa, como é que se
	               diz... em nome dos velhos tempos. Esse Davi é uma
	               fria. Eu nem comecei a usar o que eu tenho contra
	               ele. Você já fez um grande trabalho trazendo ele
	               até aqui. Caia fora antes do último debate, se
	               puder.
	               CHICO
	               (rindo) Andrew, você me conhece o suficiente pra
	               saber que eu só jogo pra ganhar.
	               ANDREW
	               Principalmente se o jogo for a dinheiro.
	               CHICO
	               Engano seu, o dinheiro é só uma desculpa. Eu não
	               gosto é de perder. Me ensinaram que os mocinhos
	               sempre ganham.
	               ANDREW
	               E você acreditou? (rindo) Na vida real os mocinhos
	               perdem quase todas. Quase. Esta eleição os
	               mocinhos vão ganhar. E os anchietanos vão perder.
Vai saindo. Chico sai atrás dele, irritado.
	               CHICO
	               Você não entende nada de vida real, Andrew. A vida
	               real tem pessoas e você não gosta muito das
	               pessoas. Elas às vezes não se encaixam na sua
	               lógica perfeita. Aí você pega as pessoas,
	               classifica e se livra delas. O Velho era um
	               "nazista", lembra? O Abraão "um desbundado", a
	               Cristina e o Luciano eram uns "porra-loucas". E eu
	               sou "anchietano" E você, Andrew? O que você é?
Andrew não pára de caminhar e fala sem olhar para Chico.
	               ANDREW
	               Mantenha a discussão no plano político,
	               companheiro. Você está sem argumentos.
	               CHICO
	               Plano político! Plano político é muito bom. Eu
	               procurei você, muitas vezes, telefonei, deixei
	               recado. Mas os anchietanos não faziam mais parte
	               da sua estratégia. (pausa) Eu falei com a Sílvia,
	               lembra dela?
	               ANDREW
	               O que é, Chico? O que você quer? Aliviar sua culpa
	               cristã em cima de mim?
	               CHICO
	               Ela me disse que há um ano você não vê a sua
	               filha. Pediu pra avisar que a Clarissa teve
	               rubéola.
	               ANDREW
	               Você escolheu o seu lado, Chico, e está sendo
	               muito bem pago pra isso. Vá em frente.
	               CHICO
	               Você só consegue raciocinar dividindo o mundo em
	               dois, Andrew, e isso não tem nada a ver com a vida
	               real.
Andrew pára e encara Chico.
	               ANDREW
	               Quem dividiu o mundo em dois não fui eu. Quando eu
	               nasci ele já era assim. E eu nasci no lado errado,
	               no lado sujo, sem água, sem esgoto, sem ar
	               condicionado. Sem futuro. Mas o futuro a gente
	               inventa, Chico. Fique com o Davi. De qualquer
	               jeito, os anchietanos acabam jogando sempre no
	               mesmo time.
Andrew se afasta. Chico fica parado, olhando.
[BLOCO 4]
CENA 75 - CAMPO DE FUTEBOL - EXTERIOR/DIA
	DOIS TIMES DE FUTEBOL de adolescentes e um JUIZ esperam a
	cobrança de um pênalti. O batedor é Chico. O goleiro é ANDREW.
	Chico ajeita a bola. Andrew chuta a trave para limpar a chuteira.
	Chico toma distância. Andrew coloca-se no centro do gol. Chico
	olha para um canto da goleira. Andrew olha para a bola. Chico
	olha para o outro canto da goleira. Andrew olha para os pés de
	Chico. Chico e Andrew se olham. Chico corre para a bola.
	               CHICO (OFF)
	               Interescolar Pérola, mil novecentos e setenta e
	               dois. Para chegar à final o nosso time precisava
	               ganhar da escola do Andrew. Ele jogava no gol. O
	               time deles tinha melhor saldo e jogava pelo
	               empate. A gente teve um pênalti a nosso favor bem
	               no fim do jogo. Eu bati o pênalti.
	Chico aproxima-se da bola. Andrew flexiona os joelhos. Chico
	chuta a bola. Andrew salta. A bola dirige-se para o canto
	esquerdo do gol. Andrew pulou para a direita. A bola continua seu
	caminho para as redes. Andrew tenta inverter a direção do seu
	salto. É muito tarde. Andrew estica a perna para a esquerda,
	inutilmente. A bola aproxima-se das redes. Andrew cai junto ao
	poste direito. A bola bate no poste esquerdo. O time de Andrew
	comemora. Chico fica parado, mãos na cintura. Andrew levanta e é
	abraçado. Luciano dá um tapinha de consolo nas costas de Chico. O
	juiz apita o final da partida.
CENA 76 - ESTÚDIO DE TV/MONITOR - INTERIOR/NOITE
	Andrew e Davi preparam-se para o debate final na TV. Cada um está
	de pé em um púlpito. O cenário tem um logotipo "DEBATE FINAL".
	Chico está próximo de Davi e lhe dá algumas instruções. O
	ASSISTENTE DE ESTÚDIO faz sinal de que o programa vai recomeçar.
	Chico e os ASSESSORES saem. O APRESENTADOR fala.
	               APRESENTADOR
	               Conforme as regras estabelecidas para o debate,
	               neste bloco os candidatos fazem perguntas um para
	               o outro. A primeira pergunta, por ordem de
	               sorteio. É do candidato da Frente Democrática,
	               jornalista Andrew Ribeiro.
	               ANDREW
	               Eu gostaria de perguntar ao candidato da Aliança
	               Liberal qual a opinião dele sobre as drogas.
	               DAVI
	               Não uso e nunca usei drogas de nenhum tipo, mas eu
	               não sou juiz de ninguém. Acho que os viciados
	               devem ser tratados e que o tráfico deve ser
	               combatido. O tráfico resiste porque é acobertado
	               pelos políticos tradicionais. Se o estado se
	               preocupasse mais com a segurança, a saúde, a
	               educação, e menos em manter empresas deficitárias,
	               poderia combater mais diretamente o narcotráfico.
	               ANDREW
	               Muito bem. E como o senhor explica a apreensão
	               pela polícia federal, em sua propriedade
	               (mostrando um documento), a fazenda Santa Fé, na
	               fronteira com a Argentina, de oitenta quilos de
	               cocaína num avião bimotor de propriedade de
	               Domingo Alvarez Ibarri, (mostrando foto do Ibarri
	               junto com Luciano) sócio na empresa "Lucky Vídeo
	               Limitada", de um dos patrocinadores de sua
	               campanha e seu amigo, o empresário Luciano de
	               Almeida. Eu tenho aqui todos os documentos que
	               comprovam a apreensão. Os jornais, talvez
	               atendendo a pedidos de um grande anunciante como o
	               senhor, não noticiaram. Isso foi em maio do ano
	               passado. O senhor poderia esclarecer o fato aos
	               seus eleitores.
	               DAVI
	               (um pouco tenso) É muito simples. Um avião de um
	               sujeito que eu não conheço, com o qual eu não
	               tenho ou tive qualquer relação, pessoal ou
	               comercial, este avião, transportando drogas,
	               invadiu o espaço aéreo brasileiro e pousou na
	               pista de pouso de um sítio, uma fazenda que eu
	               tenho. A polícia federal apreendeu a droga e o
	               avião e os traficantes estão presos. Eu não tenho
	               nada a ver com isso, não fui acusado de nada. O
	               senhor está me acusando de alguma coisa? (pausa)
	               Porque se o senhor está me acusando eu vou lhe
	               exigir que prove suas acusações.
CENA 77 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
	Cristina chega. Chico está vendo o debate, agora reproduzido num
	telejornal.
	               DAVI
	               (gritando) ...ou então eu vou processá-lo por
	               calúnia, injúria e difamação!
CENA 78 - ESTÚDIO DE TV (MONITOR) - INTERIOR/NOITE
	Entra o apresentador do jornal, que faz uma cara de desconfiado e
	depois sorri.
	               APRESENTADOR
	               Amanhã é o último dia da campanha na televisão e a
	               vantagem de Davi caiu de...
VOLTA PRA CENA 77 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
Chico tira o som da TV.
	               CRISTINA
	               O que você achou?
	               CHICO
	               Bem ruinzinho.
	               CRISTINA
	               Você encontrou o Luciano?
	               CHICO
	               Não. Ele sumiu.
	               CRISTINA
	               Sumiu como?
	               CHICO
	               Sumiu. Não está em casa, ninguém sabe. Tem um
	               monte de gente atrás dele.
	               CRISTINA
	               Você acha que ele sabia do cara? Eu não acredito.
Chico ri.
	               CHICO
	               Não sei.
	               CRISTINA
	               Saiu a pesquisa?
Chico faz que sim.
	               CRISTINA
	               E aí?
	               CHICO
	               O Andrew ficou na mesma. O Davi caiu um pouco.
	               CRISTINA
	               Um ponto?
	               CHICO
	               Um POUCO. Quatro pontos.
	               CRISTINA
	               Quatro! A diferença ficou...
	               CHICO
	               Três pontos.
	               CRISTINA
	               Isso foi antes do debate?
	               CHICO
	               Antes do debate.
	               CRISTINA
	               Então já era. O Davi acabou.
	               CHICO
	               Ainda não. Falta um programa, amanhã.
Cristina ri. Levanta.
	               CRISTINA
	               Você não pode mudar o caráter do Davi com dez
	               minutos de vídeo-tape.
	               CHICO
	               Mas talvez eu possa mostrar o do Andrew.
	               CRISTINA
	               Chico. Vamos embora.
	               CHICO
	               Quer ver o que eu já editei?
Não espera resposta. Aciona a máquina que começa a rodar o VT.
CENA 79 - COMÍCIO DE ANDREW (MONITOR) - EXTERIOR/DIA
	No monitor, imagens de Andrew discursando. Sua fúria é ressaltada
	pelo slow da fita e pela música dramática. As imagens são
	intercaladas com um amanhecer na cidade, destacando o prédio da
	prefeitura. O gabinete do prefeito, a decoração clássica do
	prédio e a tranqüilidade da manhã formam um grande contraste com
	a fúria do candidato no comício.
	               CRISTINA (OFF)
	               A cidade vai escolher seu prefeito, o homem que
	               vai ocupar esta casa nos próximos quatro anos.
	               Este homem precisa ter preparo, tranqüilidade,
	               moderação. Este homem precisa ser DAVI. Ou você
	               entregaria a cidade a este homem?
Fusão para o rosto enfurecido de Andrew no discurso.
VOLTA PRA CENA 77 - ILHA DE EDIÇÃO PRDUTORA - INTERIOR/NOITE
Chico desliga o VT.
	               CHICO
	               Mantenha a plebe longe dos cristais de Versalhes.
	               CRISTINA
	               Muito bom. (pausa) Mas não é o suficiente, você
	               sabe disso. Você fez o possível, Chico, vamos
	               embora. São quase duas da manhã.
	               CHICO
	               Eu vou ficar mais um pouco.
Cristina levanta, vai saindo.
	               CRISTINA
	               Me liga amanhã?
	               CHICO
	               Ligo.
	Chico continua sentado na cadeira de comando da ilha de edição. A
	mesma imagem congelada da multidão continua nos monitores.
	Chico arqueia as costas, tentando relaxar. Pega um cigarro,
	levanta-se.
CENA 80 - MORRO DA TELEVISÃO - EXTERIOR/NOITE
	Chico caminha pelo estacionamento. Ouve passos que se aproximam.
	Volta-se. É Luciano.
	               CHICO
	               Lucky Luciano...
	               LUCIANO
	               Fazer o quê? Joguei camelo, deu elefante.
	               CHICO
	               E o teu sócio uruguaio?
	               LUCIANO
	               Descobri, entre outras coisas, que ele é chileno.
CENA 81 - MORRO DA TELEVISÃO - EXTERIOR/NOITE
	Chico e Luciano, sentados sobre o capô do carro de Chico,
	observam a cidade silenciosa.
	               CHICO
	               Lembra dos dez mandamentos?
	               LUCIANO
	               Não serve os sete anões? Dunga, Atchim, Dengoso...
	               CHICO
	               Não, não serve.
	               LUCIANO
	               Tudo bem. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao
	               próximo como a ti mesmo. Não matar, não roubar,
	               não levantar falso testemunho, não cobiçar a
	               mulher do próximo, honrar pai e mãe...
	               CHICO
	               Não usar o nome de Deus em vão. Não tinha um sobre
	               dias santos e feriados?
	               LUCIANO
	               Não lembro. Não fabricar imagens, essa é boa.
	               Falta algum?
	               CHICO
	               Perdi a conta. Acho que falta.
	               LUCIANO
	               Que eu saiba, nunca matei ninguém.
Eles ficam alguns segundos em silêncio.
	               CHICO
	               Para onde você vai?
	               LUCIANO
	               Não sei. Talvez para o Acre. Você explica para a
	               Cristina? Eu não posso ir até lá.
	               CHICO
	               Eu explico.
Luciano levanta.
	               LUCIANO
	               Eu tenho que ir. Obrigado pelo carro. Eu não sei
	               quando eu vou poder devolver.
	               CHICO
	               Tudo bem.
	               LUCIANO
	               Diz para a Cristina que eu mandei um beijo.
	               CHICO
	               Eu digo.
Luciano entra no carro de Chico, liga o motor e parte.
CENA 82 - ILHA DE EDIÇÃO PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
	Chico volta para a ilha de edição. Senta e observa as imagens
	congeladas de Andrew furioso. Aperta um botão e começa a rever o
	final da edição.
	               CRISTINA (OFF)
	               ...ou você entregaria a cidade a este homem?
	Chico congela a imagem no rosto de Andrew. Pega uma fita na
	gaveta. Põe na máquina. Posiciona a fita. Aperta o botão
	"PREVIEW". Entra a imagem final da edição.
	               CRISTINA (OFF)
	               ...ou você entregaria a cidade a este homem?
Surge, numa continuação da edição, a imagem de Andrew no debate.
	               ANDREW
	               Eu gostaria de perguntar ao meu oponente qual a
	               opinião dele sobre o uso de drogas.
	Andrew, alguns anos mais moço, no estúdio da TV, com um baseado
	na mão.
	               ANDREW
	               Trabalhadores do Brasil! Pão, orgasmo e maconha
	               para todos! Hay que endurecerse, pero sin faltar
	               la marijuana jamás!
A edição intercala as duas imagens de Andrew.
	               ANDREW
	               ...sobre o uso de drogas / maconha para todos! /
	               uso de drogas / orgasmo / qual a opinião dele /
	               sin faltar marijuana / sobre o uso de drogas / Hay
	               que endurecerse, pero sin faltar la marijuana
	               jamás!
Congela na expressão de chapado de Andrew.
	               CRISTINA (OFF)
	               Você entregaria a cidade a este homem?
	Chico fica alguns segundos avaliando o efeito devastador da
	edição. As máquinas voltam aos pontos originais, as imagens da
	pancadaria e a pergunta de Andrew no debate. O botão "EDIT" fica
	piscando em vermelho. Ao seu lado, apagado, o botão "CANCEL".
	Chico fica olhando o botão piscar. O botão EDIT continua
	piscando. Chico aperta o botão "EDIT".
CENA 83 - SUPERMERCADO - INTERIOR/NOITE
	Cristina e José no balcão das frutas. Ao fundo, uma parede cheia
	de aparelhos de tv ligados. Entra a imagem do Andrew fumando
	maconha. Cristina pára, estupefata. Algumas PESSOAS param para
	ver.
[BLOCO 5]
CENA 84 - IGREJA DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA
	Um bando de MENINOS e MENINAS estão na fila do confessionário.
	Eles esperam encostados na parede, em silêncio. Quando um
	desocupa o confessionário, o outro vai. Chico, na fila, observa
	os vitrôs da igreja, de onde os santos o espreitam.
	               CHICO (OFF)
	               No colégio, toda primeira sexta-feira do mês a
	               gente tinha que se confessar. Nós inventávamos
	               todos os pecados. O roteiro dos meus pecados era
	               subliteratura infantil: bati na minha irmã, roubei
	               uma fruta do quintal do vizinho e - para dar
	               alguma credibilidade - disse palavrão. Três
	               Avemaria, três Santoanjo, três Painosso! Pagava
	               minha dívida antes mesmo de sair da igreja e podia
	               começar a pecar de novo, do zero. São os milagres
	               da fé. Eu ainda não sabia que inventar pecados é o
	               mesmo que cometê-los. Quase o mesmo.
CENA 85 - COMITÊ DE ANDREW - INTERIOR/NOITE
	Andrew dá entrevista para vários REPÓRTERES. Ele parece estar
	muito tranqüilo.
	               ANDREW
	               Foi uma grande vitória, uma vitória dos
	               trabalhadores, da sociedade organizada. Elegemos
	               um grande número de vereadores, quase que dobrando
	               a nossa bancada. Só não ganhamos a prefeitura
	               porque no último instante nossos adversários
	               apelaram para calúnias e difamações. A Frente
	               Democrática inclusive pretende recorrer até ao
	               Supremo Tribunal Eleitoral...
CENA 86 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
	Festa. Davi é carregado nos ombros da galera. Todos cantam o
	jingle da campanha. As grandes letras D A V I foram arrancadas do
	céu do estúdio e são erguidas pela TURBA como troféus de uma
	batalha. Cristina passa, cumprimentada por todos, carregando José
	pela mão. Olha para Chico e o cumprimenta da mesma maneira que
	cumprimentou todos os outros, com um meio-sorriso. Ela se afasta.
	Chico a segue.
	               CHICO
	               Cristina, você quer me ouvir?
	               CRISTINA
	               Não, Chico, não quero te ouvir.
Cristina sai do estúdio. Chico a segue.
CENA 87 - ESTACIONAMENTO - EXTERIOR/NOITE
	Cristina faz sinal para um táxi. O táxi passa, ocupado. Cristina
	volta a caminhar.
	               CHICO
	               Você não quer uma carona?
	               CRISTINA
	               Não.
Cristina começa a atravessar a rua. Chico a segue.
	               CHICO
	               Cristina, eu só mostrei que eles são todos iguais.
	               CRISTINA
	               Pode ser. Mas eu achei que você era diferente.
	               CHICO
	               Isso é só um trabalho, um emprego.
	Eles param no canteiro no meio da avenida. Cristina encara Chico.
	José fica assistindo a cena.
	               CRISTINA
	               (rindo) Você tem sempre uma belíssima
	               justificativa pra tua covardia, você tem sempre
	               uma ótima desculpa pra fazer o que é mais fácil,
	               mais cômodo, mais conveniente.
	               CHICO
	               Eu só fiz o que precisava ser feito.
	               CRISTINA
	               Você fez mais do que precisava ser feito. E você
	               gostou de fazer. Você só faz o que gosta, Chico.
Cristina atravessa a rua. Chico a segue.
	               CHICO
	               Quem disse que eu gosto?
	Cristina faz sinal para um táxi. O táxi pára. Ela abre a porta.
	José entra no táxi.
	               CRISTINA
	               Você faz e parece gostar. Pra mim é o suficiente.
	               Tchau, Chico.
	Cristina entra no táxi. José abana para Chico, que fica parado,
	na calçada, vendo o táxi se afastar.
CENA 88 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
	Davi é colocado sobre um palanque improvisado. Pede silêncio.
	Todos ficam quietos. Davi faz uma longa e emocionada pausa.
	               DAVI
	               Meus amigos e minhas amigas. Eu creio...
	Chico, num canto do estúdio, fecha os olhos, suspira. Davi
	continua o seu discurso, mas Chico não escuta mais. A multidão
	aplaude.
	               CHICO (OFF)
	               A história está acabando e quase todas as pessoas
	               que existem têm trinta anos. Ou mais.
CENA 89 - ESTÚDIO DA PRODUTORA - INTERIOR/NOITE
Chico, no estúdio, continua gravando o depoimento para a câmara.
	               CHICO
	               Eu avisei que não era uma comédia. Se você achou
	               que era, o problema é seu.
CENA 90 - SAÍDA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA
	Saída do colégio. Chico espera ao lado do carro. José sai
	caminhando, Chico se aproxima, José o reconhece. Chico entrega
	uma fita para José. Chico aponta para uma bicicleta que está
	presa ao carro. José larga a mochila e vai correndo vê-la. 
	               CHICO (OFF)
	               Tem umas partes que eu acho engraçadas, mais no
	               começo. Se você quiser, mostre esta fita para a
	               sua mãe. Talvez esta história não precise acabar
	               aqui. Eu queria ter a sua idade sabendo o que eu
	               sei hoje e acho que foi por isso eu gravei esta
	               fita, para te dizer o que eu sei hoje.
	Chico põe a fita na mochila e entrega a José que, quase sem se
	despedir, parte com a bicicleta.
CENA 90A - RUA - EXTERIOR/DIA
José pedala sua bicicleta pela cidade.
	               CHICO (OFF)
	               Deixa ver... Novela com "ene". Nino, o
	               italianinho. O que mais? Não aceite balas de
	               estranhos. Nem de conhecidos. No pênalti, o
	               goleiro normalmente escolhe um canto e pula. Dê um
	               chute forte, no meio do gol. Se você for para
	               praia no inverno, leve chocolate. A diferença
	               básica entre krishna e rajneesh é a seguinte...
	               (vai a BG)
Créditos finais. Música.
FIM
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	(C) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1993-1997
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
29/07/1997
| Anexo | Tamanho | 
|---|---|
| anchiet2.txt | 102.28 KB |