BARBOSA

Roteiro em modo texto: [ Download ]

        BARBOSA

        Roteiro de Jorge Furtado,
        Ana Luiza Azevedo
        e Giba Assis Brasil,
        janeiro de 1988

        baseado no livro
        "Anatomia de uma derrota"
        de Paulo Perdigão

        produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

*******************************************************************

CENA 0 - CARTÃO

Letras brancas sobre fundo preto. Aos 5 segundos, entra trilha.

        "O homem é um ator que gagueja
        na sua única fala,
        desaparece e nunca mais é ouvido."
        William Shakespeare

CENA 1 - (MATERIAL DE ARQUIVO)

Imagens das vitórias brasileiras na Copa de 50. Gols, jogadores
se abraçando, torcida vibrando, foguetes. A última imagem é a de
Barbosa, comemorando um gol. A trilha é a "Marcha do scretch
brasileiro", de Lamartine Babo.

        Salve, salve o nosso estádio municipal
        no campeonato mundial.
        Salve a nossa bandeira
        verde, ouro e anil,
        Brasil, Brasil, Brasil.
        Eu sou brasileiro, tu és brasileiro,
        muita gente boa brasileira é.
        Vamos torcer com fé
        em nosso coração,
        vamos torcer para o Brasil ser campeão.
        Um, dois, três, quatro, cinco, seis,
        sete, oito, nove, para doze faltam três,
        Brasil!

CENA 2 - (CRÉDITOS INICIAIS)

Durante os créditos, ouve-se uma narração de rádio, os momentos
que antecedem o jogo. Três locutores.

        LOCUTOR
        Boa tarde, amigos do esporte! Chegou o grande momento. Desde
        o meio-dia não há um único lugar disponível no estádio
        municipal do Maracanã. O empate é suficiente para o Brasil
        sagrar-se campeão mundial. Mas todos nós, brasileiros,
        duzentos mil aqui no estádio e mais de cinquenta milhões do
        Oiapoque ao Chuí, esperamos coroar este título com uma
        grande vitória frente ao Uruguai, repetindo, quem sabe, as
        goleadas contra a Espanha e a Suécia.
        
        REPÓRTER
        Atenção, atenção! Vamos ouvir as palavras do senhor prefeito
        do Distrito Federal.
        
        PREFEITO
        Brasileiros! Vós que daqui a alguns minutos sereis sagrados
        campeões do mundo. Vós que não tendes rivais em todo o
        planeta. Vós a quem eu já saúdo como vencedores. Cumpri
        minha palavra construindo esse estádio. Cumpram agora o seu
        dever, derrotando o Uruguai!

CENA 3 - (MATERIAL DE ARQUIVO)

Ghiggia se aproxima lentamente do gol brasileiro. Esta cena será
intercalada com a cena 4. Trilha dramática. Cenas da torcida
brasileira chorando. Clima de tragédia total. A cena termina com
a imagem de  Barbosa se erguendo depois do gol.

CENA 4 - INT/NOITE - LABORATóRIO

Paulo assiste na TV ao documentário sobre a Copa de 50. O lugar
onde ele está é uma mistura de casa, laboratório e depósito. Sua
obsessão pela Copa de 50 deve estar presente no cenário.

        PAULO (OFF)
        Eu estava lá. Tinha onze anos e a certeza de que todos os
        meus sonhos eram possíveis. O jogo final com o Uruguai
        parecia uma formalidade a ser cumprida antes da festa. Não
        houve festa. Aos trinta e quatro minutos do segundo tempo,
        uma bola que partiu dos pés do ponteiro Ghiggia passou no
        pequeno espaço entre a trave e a mão de Moacyr Barbosa. E o
        mundo, que parecia fiel e submisso aos meus desígnios,
        revelou-se contingente e absurdo. Guardo na memória, em
        agressivo preto-e-branco, a imagem de Barbosa.

CENA 5 - INT/NOITE - MESA DE BAR
Depoimento de Barbosa (documentário): em um ambiente de bar
(estúdio), ele relata lembranças do jogo e sua vida após a
derrota. Intercalado com a Cena 6.

CENA 6 - INT/NOITE - LABORATÓRIO

Paulo acerta os últimos detalhes para a viagem. Confere dinheiro,
câmara, ingressos. Veste uma roupa anos 50. Age mecanicamente.

        PAULO (OFF)
        Não sei ao certo se foi para mudar o destino desse homem ou
        se para salvar a minha própria vida que programei a máquina
        para o dia 16 de julho de 1950. Minha fé e minha infância
        foram soterradas pelo gol de Ghiggia. Eu agora iniciava uma
        viagem para o centro do meu pesadelo.

Ao final da locução, Paulo ativa a máquina e desaparece.

CENA 7 - EXT/DIA - COSME VELHO, RIO DE JANEIRO, 1950

Paulo surge numa calçada vazia. Aos poucos vai percebendo que sua
viagem no tempo deu certo. Caminha pelas ruas e começa a cruzar
com pessoas e carros. Ouve o som de um rádio que fala direto do
Maracanã. Vai para uma avenida maior e pega um táxi.

CENA 8 - EXT/DIA - RUAS DO RIO DE JANEIRO, 1950

Paulo entra no táxi e pede para ir ao Maracanã. O movimento da
rua é cada vez maior. Toda a cidade vive o clima do jogo. Paulo
lembra-se da câmara de vídeo. Tira da bolsa e começa a gravar
tudo o que vê pela janela do carro.

        PAULO (OFF)
        Nos últimos 38 anos se falou tanto sobre este jogo que eu
        não sabia mais o que vinha de minha própria memória. O que
        eu via agora eram 200 mil pessoas caminhando para a
        tragédia, confiando numa coisa tão absurda como a justiça da
        História. Nos próximos 38 anos aquela derrota ficaria como o
        símbolo do destino de um país onde nada dá certo.
        
        PAULO (OFF)
        Aquelas 200 mil pessoas não sabiam que deus viajava no banco
        traseiro de um Buick 42. Naquele momento, eu era maior que a
        História. Só me interessava resolver dois pequenos
        problemas: o meu e o de Barbosa.

CENA 9 - EXT/DIA - PROXIMIDADES DO MARACANÃ

Paulo desce do táxi em frente ao Maracanã. Grande movimento de
público. Vendedores, cambistas, jornaleiros. Ele começa a gravar
tudo o que vê. Pede a um popular (Pedro) que registre sua
presença no estádio. Pedro alega que não tem dinheiro. Paulo lhe
oferece o ingresso. Passam pelos portões de acesso ao estádio.
Pedro, fascinado com o equipamento, grava tudo.

CENA 10 - EXT/DIA - ARQUIBANCADA DO MARACANÃ

Paulo e Pedro caminham pelas arquibancadas. Gravam cenas do
público. Pela locução no rádio, percebemos que é o começo do
segundo tempo.

        PAULO (OFF)
        Faltava mais de uma hora para o gol de Ghiggia. Tempo
        suficiente para ir até a cadeira 76 da fila B, que, eu
        sabia, já estava ocupada.

Paulo conduz Pedro até uma cadeira vazia. Paulo se vê, menino, ao
lado do pai.

        PAULO (OFF)
        Eu me lembrava perfeitamente do cheiro daquele momento. Um
        cheiro de terno de linho e loção de barba. Aqueles foram os
        únicos abraços que eu lembro ter recebido de meu pai.

Gol do Brasil. Pai e menino se abraçam. Paulo fica paralisado
pela emoção. Pedro tira-o do transe e o conduz até as escadas.

CENA 11 - INT/DIA - ESCADAS

Paulo conduz Pedro pelas escadas até a entrada do túnel que leva
ao campo. O ruído da multidão agora é menor, e ouvimos um locutor
de rádio narrando o jogo.

        LOCUTOR (OFF)
        ... direto sobre a área. Salta Chico, não alcança a bola.
        Mas ficou ainda no campo contrário. Miguez devolveu a Julio
        Peres, que está lutando contra Jair.

CENA 12 - INT/DIA - PORTÃO DO TÚNEL

Paulo e Pedro entram no túnel que dá acesso ao estádio. Descem as
escadas lado a lado, em silêncio, Pedro ainda com a câmara de
vídeo no ombro. A voz do locutor narrando o jogo ecoa pelas
paredes.

        LOCUTOR (OFF)
        ... continua progredindo, atraiu Danilo, perdeu para o
        centro-médio.

Paulo e Pedro avançam pelo túnel. À frente deles, um novo lance
de escadas, e no meio dos degraus, de costas para eles, um guarda
uniformizado, olhando o jogo.

        LOCUTOR (OFF)
        Recuperou Julio Peres, bateu Jair, entregou a Obdúlio.

Ainda no túnel, uns dez metros antes de chegar à escada, Paulo
pára e faz sinal para que Pedro também espere. Pedro não entende,
mas obedece. Paulo olha o seu relógio e aguarda.

        LOCUTOR (OFF)
        Obdúlio abriu na ponta-direita para Ghiggia. A pelota chegou
        ao seu destino. Bigode tenta o carrinho, falhou, bola para
        Ghiggia.

O guarda continua de costas, imóvel. Pedro, impaciente, olha pra
Paulo. Paulo aguarda.

        LOCUTOR (OFF)
        ... tentou a boca do gol, emendou Schiaffino. Gooool do
        Uruguai! Gol do Uruguai, Schiaffino.

O guarda rapidamente sobe os últimos degraus para conferir o gol.
Pedro, surpreso, vacila. Paulo faz sinal que ele entre. Pedro
volta a empunhar a câmara de vídeo e sobe rapidamente a escadaria
do túnel, passando pelo guarda.

        LOCUTOR (OFF)
        Gol do Uruguai, Schiaffino. Vinte minutos e meio de luta
        pelo meu Omega.

Paulo, ao ver que Pedro conseguiu entrar no campo, segue atrás
dele e também começa a subir os degraus. Mas, neste momento, o
guarda vem descendo e impede a entrada de Paulo.

        LOCUTOR (OFF)
        Empatada a peleja, falhou Bigode na luta contra Ghiggia, que
        conseguiu centrar rasteiro à boca da meta.

CENA 13 - EXT/DIA - GRAMADO DO MARACANÃ

Pedro, já na beira do gramado, olha para trás e percebe que Paulo
foi barrado. Na entrada do túnel, Paulo é empurrado de volta pelo
guarda. Pedro decide prosseguir: enfia o olho no visor da câmara
e caminha ao lado do campo, afastando-se.

        LOCUTOR (OFF)
        Vão sair novamente os atacantes brasileiros. Prepara-se
        Bauer, demora-se.

Dentro do campo, o jogo prossegue.

No interior do túnel, o guarda termina de empurrar Paulo de volta
até o início da escada. Paulo, preocupado, dá as costas ao guarda
e volta a olhar para o seu relógio. A música volta, dramática.

Dentro do campo, um jogador uruguaio (Julio Perez) passa a bola

        LOCUTOR (OFF)
        Ainda dentro do campo uruguaio, deu para Ghiggia.

Na arquibancada, o menino (Paulo aos 11 anos) olha o jogo,
apreensivo.

No campo, outro jogador uruguaio (Ghiggia) receba a bola,
devolve-a e corre, marcado por um jogador brasileiro (Bigode)
 
        LOCUTOR (OFF)
        Ghiggia devolveu a Julio Perez.

O olhar de Barbosa acompanha a jogada.

No campo, Ghiggia passa por Bigode.

Na saída do túnel, Paulo passa pelo guarda.

        LOCUTOR
        Levou vantagem Ghiggia! Bateu Bigode!

Ghiggia recebe a bola, se aproxima do gol.

Paulo chega por trás do gol de Barbosa, correndo, em meio aos
jornalistas.

Ghiggia correndo, a bola nos pés. Prepara o chute.

Paulo, atrás do gol, desiste de correr. Olha para o campo, sem
saber o que fazer.

O menino, na arquibancada, olha, apavorado.

Paulo grita

        PAULO
        Barbosa!!!

Barbosa se vira pra trás. Ghiggia chuta. Barbosa volta a olhar
para o campo, salta. A bola entra no canto. Gol de Ghiggia.

Pedro, atrás do gol, filma a cena com a câmara de vídeo.

Paulo parado atrás do gol, olha em volta, como que entendendo
tudo.

Os jogadores uruguaios comemoram. Ademir busca a bola no fundo do
gol. Barbosa, desolado, levanta-se.

CENA 14 - INT/NOITE - MESA DE BAR

Barbosa, no mesmo ambiente do depoimento da cena 5

        BARBOSA
        Eu já pensei naquela bola um milhão de vezes.

CENA 15 - EXT/DIA - MARACANÃ / MATERIAL DE ARQUIVO

O jogo termina. Jogadores uruguaios comemoram. Jogadores
brasileiros desolados. Barbosa, cabeça baixa, ao lado do gol.
Paulo está no meio do campo, entre os jogadores brasileiros.

        PAULO (OFF)
        Eu estava lá. Tinha 11 e 49 anos. O soco que eu daria em
        Ghiggia, e que ficaria na história, não aconteceu. E o meu
        grito de desespero mal foi ouvido em meio aquele silêncio
        ensurdecedor. O que ficou, para a historia e para mim, foi o
        silêncio. E a culpa.

Na arquibancada, torcedores brasileiros choram. Paulo aparece
sentado, sem saber o que fazer, na arquibancada quase vazia.

CENA 16 - INT/NOITE - LABORATóRIO

A imagem de Paulo sentado na arquibancada vazia aparece numa
televisão. Esta televisão está no centro do laboratório de Paulo.
No laboratório, as mesmas máquinas, geringonças e lembranças da
Copa de 1950 que apareceram antes.

Ninguém no laboratório. Paulo está sozinho, na arquibancada,
dentro da televisão.

FIM

*******************************************************************

(c) Jorge Furtado, Ana Luiza Azevedo e Giba Assis Brasil, 1988.
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

01/01/1988

AnexoTamanho
barbosa.txt11.54 KB