A COISA CERTA | Casa de Cinema de Porto Alegre

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               A COISA CERTA
               episódio da série
               CONTOS DE INVERNO 2002

               roteiro de
               Júlio Conte
               a partir de sua
               peça teatral homônima
               Versão 27/03/2002

               coordenação de texto da série
               Jorge Furtado
               e Giba Assis Brasil

produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
para RBS TV

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CENA 1 - INT/FIM DE TARDE - APTO DE TERESA: COZINHA

Pão com manteiga sendo passada. Queijo, presunto, outro pão
fechando o sanduíche. Copo com suco de laranja sendo despejado.

TERESA, 18 anos, faz um lanche na cozinha, apressada. Sentado à
mesa em volta da qual ela se movimenta está ANTERO, 50 anos,
estático, desanimado. Teresa coloca um sanduíche na frente de
Antero, que olha para a comida sem fazer nada.

               TERESA
               Come, pai. Precisa te alimentar melhor. A coisa
               certa é voltar a viver.

               ANTERO
               A coisa certa é economizar. Este sanduíche pode
               fazer falta amanhã.

TERESA
Você tinha um plano de saúde, não tinha?

               ANTERO
               Pelo plano, sua mãe teria que se curar de câncer
               em sete dias sem almoço, só com o café da manhã
               incluído. Eu estou quebrado.

TERESA
Você pode continuar morando aqui comigo.

Teresa afaga a cabeça de Antero. Ele lança um olhar enviesado
para ela.

               ANTERO
               Obrigado, minha filha. O que importa é estarmos
               juntos, nossa família. Agora somos nós, só nós e
               mais ninguém.

Teresa se afasta um pouco, constrangida.

TERESA
Papai, eu tenho uma coisa para lhe falar.

Pai ainda choramingando.

ANTERO
O que foi?

TERESA
É que eu...

ANTERO
Sim?

TERESA
Eu tenho que ir.

ANTERO
Pode falar, Teresa.

               TERESA
               É que... você sempre me disse que a gente tinha
               que continuar a nossa vida, sem a mamãe.

ANTERO
Claro, minha filha.

TERESA
É que... caso eu conheça alguém...

ANTERO
"Caso você conheça"?

TERESA
Isso. Se eu me interessar por uma pessoa...

ANTERO
Sei. Já dormiram juntos?

TERESA
Ah, seu Antero! Eu tenho que ir.

Teresa, muito desenvolta, dá um beijo na testa de Antero, pega a
bolsa e sai. e vai até o quarto. Antero, desconfiado, a observa.

CENA 2 - INT/NOITE - COBERTURA DE JM: SALA

Móveis de luxo e cheios de estilo. Grandes janelas pelas quais se
vê Porto Alegre à noite. JM, 50 anos, sai do quarto. GISELA, 45
anos, está no fundo da sala, sentada no sofá branco, com um
frasco na mão.

GISELA
(um pouco bêbada) Não vai jantar, Jotaeme?

JM
Não estou com fome. E estou atrasado pra aula.

GISELA
Vai comer fora.

JM
O que você quer dizer com "comer fora"?

               GISELA
               (mais bêbada) Recebi um telefonema. Não, estou te
               mentindo pra ti. Foram três, todos com voz de
               mulher.

Gisela bebe do frasco que tem na mão.

JM
Gisela, você está bebendo perfume!

               GISELA
               (cheia de razão) Não muda de assunto! Você anda
               saindo com outra!

JM
Olha o jeito que você está. Isso é uma doença.

Ela tenta beijá-lo. JM cede em parte, ainda pouco à vontade. Em
seguida, JM se esquiva e sai. Gisela fica sozinha na sala.

GISELA
Está bem, guerra é guerra.

CENA 3 - INT/NOITE - BAR DA FACULDADE

Balcão onde alunos estão bebendo, outros sentados à mesa e outros
ainda chegando. JM e Teresa conversam, sentados a uma mesa no
meio da balbúrdia. De outra mesa, mais afastada, Antero observa,
disfarçado.

               JM
               Estive vendo os seus trabalhos, Teresa, e fiquei
               um pouco preocupado.

Teresa toma um gole e passa língua nos lábios.

               JM
               Não que estejam ruins, pelo contrário! Muito
               melhor do que os meus quando tinha a sua idade.

Antero olha para a mesa dos dois, bastante impressionado.

CENA 4 - INT/NOITE - BAR DA FACULDADE

Na mesa dos dois, agora os personagens estão alterados, mas na
mesma posição: JM foi substituído por um lobisomem, e Teresa
agora é uma menina de oito anos, chupando um pirulito.

CONT. CENA 3 - INT/NOITE - BAR DA FACULDADE

De volta à situação anterior, JM e Teresa na mesa do bar.

               JM
               Bibliografia, talvez você precise de mais
               embasamento.

               TERESA
               (falsamente submissa) Vou me esforçar mais,
               Professor.

Ele ri forçado, tentando descontrair. O pessoal atrás observa os
dois como se fossem parte de uma torcida.

De sua mesa, Antero continua observando, cada vez mais apavorado.

CENA 5 - INT/NOITE - BAR DA FACULDADE

Ainda na mesa dos dois, agora os personagens são os mesmos mas a
situação é diferente: Teresa está amarada na cadeira e JM está
torturando-a, com chicotes e aparelhos elétricos.

CONT. CENA 3 - INT/NOITE - BAR DA FACULDADE

De volta à situação normal: JM e Teresa na mesa do bar.

               JM
               Gostaria de ajudar mais. De uma forma mais...
               pessoal.

Teresa, que até ali estava próxima dele, se afasta um pouco.

TERESA
Jotaeme, você tem a idade do meu pai...

JM
(sedutor)Mais um motivo para confiar em mim!

Teresa, delicada, dá um suave beijo nos lábios de JM, um selinho
"quase inocente". Ao fundo da cena, a "torcida" faz um "ah!"

De sua mesa, Antero continua observando.

CENA 6 - INT/NOITE BAR DA FACULDADE

Agora é JM quem está amarrado à cadeira, e Teresa anda em volta
dele, vestida como uma mulher fatal, provocando-o. Quando ela
passa por ele, quem está na cadeira é Antero.

CONT. CENA 3 - INT/NOITE - BAR DA FACULDADE

Antero, na sua mesa, transtornado, balança a cabeça
negativamente. Tapa o rosto com as mãos.

ANTERO
Não, não, não.

O GARÇOM está na frente dele, com um café. Ao ouvir o "não", dá
de ombros e vai embora com o café. Antero destapa os olhos e
volta a olhar para a mesa de JM e Teresa.

A mesa dos dois agora está vazia, já com outras pessoas chegando
para ocupá-la.

Antero olha em volta, procurando com o olhar, mas nem sinal de
Teresa e JM.

CENA 7 - INT/DIA - APTO DE TERESA: COZINHA

Antero, de pijama, com cara de sono, entra na cozinha vazia. Olha
em volta, não vê ninguém. Olha para a mesa desarrumada. Encontra
um bilhete. Pega e lê:

PAI: VOLTO À NOITE. NÃO ESQUECE DE COMER. BEIJO, TERESA.

CENA 8 - INT/DIA - APTO DE TERESA: BANHEIRO

Antero entra no banheiro, olha-se rapidamente no espelho, dirige-
se, sonolento, ao vaso, prepara-se para mijar. Ouve um barulho
atrás de si, olha.

Também com ar de quem está acordando, JM vem entrando no
banheiro. Os dois se encaram.

ANTERO
Espera aí, o senhor não é...

               JM
               João Marques, mas pode me chamar de Jotaeme. Você,
               pela descrição, cabelos curtos, rosto redondo,
               forte, barrigudinho, deve ser o pai de Teresa.
               (efusivo) Vem cá dá um abraço, sogrão!

Abraçam-se. Constrangimento de Antero.

               JM
               (apontando o vaso) Com licença, o senhor não
               vai... ?

ANTERO
Com o senhor aqui do lado, eu fico inibido.

Antero desiste de mijar, vira-se para a pia, lava as mãos. JM
agora se prepara para mijar. Antero o observa.

ANTERO
A Teresa se referiu a mim como "barrigudinho"?

JM
Foi carinhoso, ela disse "barrigudãozinho".

ANTERO
Isso não é barriga. É o modelo do abdômen.

Antero continua observando JM, que também não consegue mijar.

ANTERO
O senhor não vai mais...?

JM
Como? Com este olhar...

CENA 9 - INT/DIA - APTO DE TERESA: COZINHA

Antero e JM agora estão à mesa, conversando enquanto tomam café
da manhã. JM apressado, preparando-se para sair. Antero comedido,
sem pressa.

ANTERO
Qual o seu time de futebol?

JM
Grêmio.

ANTERO
Inter.

JM
Filme preferido?

ANTERO
Os Goonies.

JM
Primeira noite de um homem. Mulher?

ANTERO
Zuleica. A falecida.

JM
Teresa.

ANTERO
Sei. Sexo antes do casamento?

JM
Por que esta pergunta?

ANTERO
Só tive sexo depois de casado.

               JM
               Sorte tua, eu só não tive sexo durante o
               casamento.

ANTERO
Idade?

JM
Você responde primeiro.

ANTERO
Vamos responder juntos. Um, dois e já.

OS DOIS
Cinqüenta.

               ANTERO
               Já suspeitava, minha filha está namorando um cara
               da mesma idade que eu.

JM
Empatamos.

               ANTERO
               Empatamos? Você tem cinqüenta, minha filha tem
               dezoito, são... (conta) trinta e dois anos de
               diferença!

JM, que já está terminando seu café, se levanta e coloca o
casaco.

               JM
               É verdade, Antero. Como é que só agora eu fui
               conhecer esta coisa maravilhosa que é a tua filha?
               Onde que ela andava?

               JM sai.

               ANTERO
               Brincando de boneca, vendo filme do Disney,
               chupando bico. Era tão bom...

CENA 10 - INT/NOITE - COBERTURA DE JM: QUARTO

O rosto de Teresa surge sobre o lençol branco, girando suavemente
para dentro do quadro. Sua expressão é de prazer recém atingido.
Ela fala para si mesma.

               TERESA
               Foi tão bom. Os homens sempre chegam antes. Ficam
               tão preocupados em provar não sei o quê e acabam
               deixando a mulher na mão. (olhando para o lado,
               sorrindo) Mas você não.

Ao lado de Teresa está JM, sentado sobre a cama, ainda exausto,
ofegante. Ele está mexendo na gaveta da mesinha de cabeceira, de
onde retira alguns remédios.

TERESA
O que é isso?

               JM
               Isso? Vitaminas americanas. Stresstab, selênio,
               completo antioxidante, este aqui é Ultramen, etc.

TERESA
Interessante. E esse comprimidinho azul?

GISELA (OFF)
Esse foi meu presente de aniversário.

JM, assustado, olha para a porta do quarto. Gisela está parada na
porta, observando a cena. Teresa se cobre com o lençol.

JM
Gisela, como é que você entrou?

               GISELA
               Com a minha chave! Você acha que eu ia confiar em
               você te devolvendo tudo?

JM
Você não nota que está sendo inconveniente?

               GISELA
               Inconveniente? Que delicadeza. Mais uma moça que
               você está ajudando. Minha filha, sempre que ele
               falar de "embasamento" mais um inseto está caindo
               na teia.

JM
Mas o que é isso?

Gisela vai entrando, até a mesinha de cabeceira do lado de
Teresa, que já está se vestindo.

               GISELA
               Desculpe-me interromper este colóquio de amor, mas
               acontece que eu preciso dar um jeito na vida.

Gisela abre a gaveta da mesinha, retira algo.

GISELA
Aqui está. Meu passaporte...

Mostra a carteira de trabalho.

GISELA
... para a liberdade!

Olha para Teresa com mais atenção. Ela está terminando de se
vestir.

               GISELA
               Deixa-me... O corpo pode durar mais um cinco anos
               se não tomar refrigerante nem tiver filhos. Nessa
               idade elas odeiam crianças, mas em compensação
               adoram coca-cola. JM, tenho que admitir, ela é
               linda!

JM
Você acha mesmo?

               GISELA
               Você não conseguia uma garota dessas desde que eu
               tinha dezenove anos!

JM
Pára com isso, você nunca foi assim!

Os dois admiram Teresa, que se levanta, constrangida.

               TERESA
               Escuta, vocês dois querem que eu dê uma
               voltinha... faça um pequeno desfile? Olha,
               Jotaeme, acho que estou demais. Estou caindo fora.

JM
Espera, Teresa!

Teresa sai do quarto batendo a porta.

GISELA
Essa foi. Mas volta. Tenho certeza!

               JM
               (entusiasmado) Você acha que ela está apaixonada
               por mim?

GISELA
Não, (apontando) ela esqueceu a bolsa.

CENA 11 - INT/NOITE - APTO DE TERESA: CORREDOR DE ENTRADA

Antero abre a porta do apartamento. Gisela está parada à frente
dele, um pouco atrapalhada.

GISELA
Desculpe, acho que me enganei.

ANTERO
Espera, posso ajudar?

GISELA
Não, obrigada.

Gisela começa a sair. Antero adianta-se.

               ANTERO
               Por favor, faço questão. Só precisa que me diga
               quem é que a senhora está procurando?

Gisela estanca ao escutar a palavra "Senhora".

GISELA
Você se importaria de me chamar de "você"?

ANTERO
(muito constrangido) Desculpe.

               GISELA
               Estou procurando uma colega de faculdade. O nome
               dela é Teresa.

ANTERO
(aliviado) Mas é aqui mesmo. Só que ela não está.

GISELA
Que pena...

               ANTERO
               Aceita um cafezinho? Especialidade da casa. (ela
               falsamente indecisa) Vamos lá, é só um café!

GISELA
"Por qua pa"?

ANTERO
Ah?

GISELA
"Por que não" em francês.

CENA 12 - INT/NOITE - APTO DE TERESA: SALA

Antero e Gisela sentam-se no sofá.

ANTERO
Você é colega da Teresa...

GISELA
E você deve ser o namorado dela.

               ANTERO
               Namorado? Imagina! Vou tomar isso como um elogio.
               Sou o pai dela!

               GISELA
               Nem parece, tão moço! Bom, eu também não devo
               parecer colega da Teresa. Podia ser a mãe dela.

               ANTERO
               Não vejo razão para pensar assim. Hoje em dia as
               pessoas estudam até bem tarde na vida. (se
               assustando com a gafe) Não é o seu caso... Até que
               a senhora... quer dizer, você está bem
               conservada...

INSERT: uma bomba explodindo.

ANTERO
Desculpe, eu estou sendo muito grosso.

               GISELA
               Que nada. Perto do meu ex-marido você é um
               perfeito cavalheiro.

ANTERO
Ah, você é separada? Há muito tempo?

               GISELA
               Por que será que esta pergunta vem sempre depois
               da informação de que sou separada?

               ANTERO
               Sei lá. Talvez porque todo homem é no fundo um
               conquistador e quer saber se o defunto já
               esfriou...

GISELA
E você é casado?

ANTERO
Não, sou viúvo.

GISELA
Sinto muito.

ANTERO
Já está passando.

GISELA
Veja só. Nós dois em situações digamos parecidas.

               ANTERO
               É. A vida é muito ingrata. Estava tudo bem e o
               acaso bate na minha porta...

               GISELA
               (aproximando-se) Você ainda tem a sua filha, além
               disso, você está vivo!

Antero, um pouco assustado com a intimidade, levanta-se.

ANTERO
O café!

               GISELA
               (puxando Antero de volta) Esquece este café. Não
               tá a fim de sair pra tomar uma cervejinha?

ANTERO
(surpreso) Você gosta de cerveja?

GISELA
(íntima) Cerveja? Adoro.

ANTERO
A falecida odiava cerveja. E futebol?

GISELA
Futebol? Futebol é bola na rede!

Antero, bem à vontade, já vai vestindo o casaco, preparando-se
para sair.

ANTERO
O que você faz além de estudar?

GISELA
Estou abrindo uma micro.

Os dois vão indo, juntos, em direção à porta de saída.

               ANTERO
               Loja? Comércio? Tenho umas idéias ótimas para
               capitalizar pequenas empresas. O importante, em
               qualquer caso, é não perder de vista que o
               rendimento...

CENA 13 - EXT/DIA - RUA

JM e Teresa caminham numa praça. Cruzam com um casal, o homem bem
mais velho que a mulher.

               JM
               Viu só?

               Teresa
               Vi. Coisa mais comum é um cinquentão babando por
               uma garotinha. Já o contrário, é bem mais raro.

               JM
               Tem coisa que é ainda mais rara.

               Teresa
               O quê?

Param. JM encara Teresa.

               JM
               Um cinquentão apaixonado por uma garotinha.

               Teresa
               Apaixonado? Bom isso realmente não acontece com
               muita frequência.

               JM
               Mas quando acontece é ótimo.

Começa a nevar. Eles olham para cima, maravilhados com a neve.
Olham-se outra vez, sorriem. Beijam-se. Perto deles (na mesma
praça, do outro lado), a câmara descobre Antero e Gisela, também
se beijando. A neve continua caindo.

CENA 14 - INT/NOITE - RESTAURANTE: MESA

No restaurante Vacaþs, Antero e Gisela são recebidos por Raquel.

               Raquel
               Mesa para dois? Se vocês puderem esperar um
               pouco...

Antero vê uma mesa para quatro, vazia.

               Antero
               Nós estamos esperando casal de amigos.

               Raquel
               Então podem me acompanhar.

Raquel leva o casal até a mesa de quatro lugares. Raquel entrega
os cardápios e sai.

               GISELA
               Que ótimo! O ghefilte fish aqui é uma delícia!

               ANTERO
               Ghelfite fish? O que é isso?

CENA 15 - INT/NOITE - RESTAURANTE: ENTRADA

JM e Teresa entram no Vacaþs. Teresa tira o casaco e olha em
volta, decepcionada. Eles seguem Raquel.

               TERESA
               Ai, Jotaeme, mas que caretice esse restaurante! O
               que ela falou?

JM
Que já estavam nos esperando.

TERESA
Quem?

JM
Não tenho a mínima idéia.

E saem, seguindo o garçom 1, que os conduz por entre as mesas.

CENA 16 - INT/NOITE - RESTAURANTE: MESA

Antero está examinando o cardápio, quando Raquel se aproxima por
trás dele.

RAQUEL
Os seus amigos chegaram.

ANTERO
Meus a...?

JM
Vocês!

GISELA
Vocês!

Constrangimento, sorrisos amarelos.

JM
Vocês... Estavam nos esperando?

               GISELA
               Não!

               RAQUEL
               Não?

               ANTERO
               (tentando ser simpático) Na verdade, o Tavares
               acabou de ligar dizendo que não vem mais. Se
               quiserem sentar... Faço questão.

TERESA
Vamos para outro lugar.

               JM
               (desafiador) Vamos aceitar o convite. A noite está
               prometendo!

JM e Teresa sentam.

ANTERO
Vocês vêm sempre aqui?

               TERESA
               Não, é a primeira vez. A idéia de vir aqui foi do
               Jotaeme.

ANTERO
A idéia foi da... Gisela.

GISELA
Na verdade eu...

JM
Eu li a indicação no suplemento de Gastronomia.

Gisela faz um gesto para JM, apontando para baixo da mesa. Os
dois se abaixam. Sob a mesa, os dois se enfrentam.

               GISELA
               Eu que te falei deste lugar! Que idéia de jerico
               foi essa de trazer a franguinha aqui?

JM
Eu? E você? Está fazendo o quê com o velho?

Voltam a sentar-se, sorriso forçado.

               JM
               Olha, o ghelfite fish deste restaurante está em
               nível de primeiro mundo.

               ANTERO
               Foi o que a gente pediu. (para JM) Você já tinha
               me dito. (para Gisela) Ou foi você que falou?

GISELA
Estava no suplemento de Gastronomia.

TERESA
(sardônica) Mas quem leu foi o Jota.

               ANTERO
               (tentando mudar de assunto) Ahn... A microempresa
               da Gisela está indo muito bem, sabia?

JM
É mesmo?

               ANTERO
               É... O empréstimo com a carta de crédito, faturada
               em noventa dias, contra o investimento na matéria
               prima à vista lhe dá um superávit na balança de
               ponto oito por dia.

JM faz um sinal, e ele e Gisela vão de novo para baixo da mesa.

JM
Então ele é o teu consultor financeiro, é?

               GISELA
               Ele me escuta! E me diz coisas! Você nem ao menos
               imaginava que eu existia!

JM e Gisela voltam para a parte de cima da mesa. Em seguida,
Antero e Teresa descem.

               ANTERO
               O que é que está caindo para eles se abaixarem
               toda hora?

               TERESA
               Sei não, papai, mas eles estão falando alguma
               coisa e achando que a gente é idiota.

Sobem os dois, risos falsos, simulação. O garçom 1 está de volta.

ANTERO
Garçom, vinho branco! Vinho branco, "Jotaerre"?

               JM
               (constrangido) É... Jotaeme! (para Teresa) Vinho
               branco, não é Teresa?

GISELA
Eu vou de cerveja.

JM
(maldoso) Cerveja e massa não combinam.

               GISELA
               (irônica) Não combina é franguinha com molho de
               silicone! (irritada) Você leu isso no suplemento
               de Gastronomia?

Antero arrasta Gisela para baixo da mesa.

ANTERO
O que é isso? Você está nervosa!

GISELA
Esse cara me tira do sério.

ANTERO
Querida, o casamento de vocês acabou, não acabou?

GISELA
Acabou.

ANTERO
Não têm nada mais a ver um com o outro, não é?

GISELA
Não.

ANTERO
Está mais calma?

GISELA
Agora estou.

Os quatro de volta à mesa, clima de euforia maldosa. Magicamente,
os pratos já estão todos servidos, e eles comem.

               TERESA
               Paizinho, Tia Gisela, nós estamos aqui comemorando
               o meu primeiro comercial.

ANTERO
Primeiro comercial?

TERESA
Jotaeme ajudou bastante.

JM
Coisa simples. Uma questão de bibliografia...

GISELA
(maldosa) Com certeza fizeram o teste...

               JM
               (gritando) Que teste? O que você está querendo
               dizer com isso?

Teresa puxa JM para baixo da mesa.

               TERESA
               Calma, ela está querendo te desestabilizar. Ela
               não pode nada contra nós. Nós nos amamos, lembra?

JM
Ela me tira do sério.

TERESA
Então conta uma piada!

Voltam a subir, novos sorrisos falsos.

JM
Piada.

GISELA
Piada?

TERESA
Piada!

ANTERO
Piada, adoro...

Todos riem, como se alguém tivesse contado uma piada.

               JM
               (ainda tentando se controlar) Vocês conhecem
               aquela do... (perdendo o controle, para Gisela)
               Que teste está te referindo?

TERESA
(segurando-o pelo braço) Jotaeme!

ANTERO
(servindo JM) Esse vinho está maravilhoso.

JM prova o vinho de um gole só.

JM
É... Muito bom, seu "Antares".

ANTERO
Antero.

Antero bate no copo, chamando atenção.

               ANTERO
               Bem, toda a família reunida... Eu tenho um anúncio
               absolutamente solene a fazer. Eu decidi contrair
               segundas núpcias.

Instante de silêncio. JM ergue o copo, brindando.

JM
(irônico) Parabéns, Gisela!

               TERESA
               (irônica) Legal, Papai, fico tão feliz. Vocês
               merecem toda a alegria do mundo.

Fazem tim-tim e vão todos ao mesmo tempo para baixo da mesa.

               TERESA
               (para Antero) O que é isso papai? A mãe nem
               esfriou direito e você já esquenta a cama com
               outra? (sobe em seguida)

               JM
               (para Gisela) Casar? Essa história está indo longe
               demais! (sobe)

               GISELA
               (para Antero) Por que você fez isso se me
               consultar? Não pode passar por cima de mim. (sobe)

               ANTERO
               A vida inteira fazendo tudo certinho. Antero pra
               cá, Antero pra lá. Eu... tenho direito... de...
               (percebendo que está só.) Bá!

Antero sobe à mesa e encontra os outros, bastante civilizados.

               TERESA
               (maldosa) Bom, aproveitando a reuniãozinha de
               família, eu quero comunicar que eu e o Jotinha
               também vamos nos casar!

JM
(surpreso) Vamos? (concordando com a idéia) Vamos.

               ANTERO
               É mesmo, minha filha? Quando, depois de terminar a
               faculdade?

JM
(entrando no jogo) Não! agora, mês que vem.

Antero faz um sinal e Teresa vai com ele para baixo da mesa.

               ANTERO
               (para Teresa) Você não vai casar sem terminar a
               faculdade! Se tua mãe estivesse viva!

               TERESA
               Se ela estivesse viva você não estaria casando com
               essa mocréia!

Ao subirem, Antero e Teresa provocam uma risada bastante
mecânica. JM e Gisela respondem e, logo a seguir, vão para baixo
da mesa.

GISELA
JM, você já comeu a menina, agora chega.

               JM
               Você não entendeu que eu amo a Teresa? Pela
               primeira vez na minha vida eu amo uma mulher!

GISELA
Quer dizer o quê? Antes você amava um homem?

               JM
               Você só quer casar com o velho pra se vingar da
               Teresa. E de mim.

Antero também vai para baixo da mesa.

ANTERO
(irônico) Perderam alguma coisa aqui embaixo?

GISELA
Pelo menos aqui estamos botando na mesa.

Teresa junta-se aos três, embaixo da mesa.

TERESA
Quem sabe a gente se muda aqui para baixo?

Saem todos de baixo da mesa.

JM
Vamos sentar e falar como civilizados.

GISELA
Somos civilizados.

ANTERO
Civilizados é o que somos.

Antero se levanta e empurra JM. Este também se levanta e começam
a brigar. Teresa explode de raiva.

TERESA
Pára, pai, olha o coração! Jotaeme, pára com isso!

GISELA
Não te exalta, Jotaeme! Cuidado com a úlcera!

TERESA
Vocês estão loucos? Nós estamos loucos...

GISELA
Essa menina precisa de um médico!

               TERESA
               (gritando) Uns cretinos! Nós somos uns cretinos!
               Brincando com uma coisa muito séria. A gente está
               fazendo tudo errado...

A briga pára, em função dos gritos de Teresa e da chegada dos
garçons para apartar.

ANTERO
Vamos conversar. Conversando a gente se entende.

JM
É isso mesmo! Somos civilizados!

ANTERO
Civilizados é o que somos!

Os garçons soltam os dois e imediatamente recomeça a briga.
Antero dá um empurrão e JM cai segurando o estômago.

JM
Ai, meu estômago está pegando fogo!

ANTERO
Ai, meu peito... Ai, estou tendo um infarto!

Antero segura o coração.

TERESA
Papai! Ai a minha cabeça!

JM
Meu estômago!

GISELA
Eu... eu... meu útero!

Antero se agarra na toalha e cai, derrubando os pratos no chão.

ANTERO
Meu coração!

               Raquel chega.

               RAQUEL
               Minha louça!

CENA 17 - EXT/NOITE - FRENTE DO RESTAURANTE

Eliminada.

CENA 18 - INT/DIA - HOSPITAL: QUARTO

Num quarto de hospital, a foto da enfermeira no cartaz pede
silêncio. Logo abaixo, a guarda de uma cama, e Antero deitado,
com roupa de paciente, entubado. Ao lado dele, outra cama, com
JM, também deitado e entubado.

JM
Você está se sentindo melhor?

ANTERO
Está começando a se preocupar comigo?

               JM
               Não, pensei que você tinha morrido e estava
               começando a fazer a festa!

ANTERO
Você não dá a mínima para o sofrimento dos outros!

JM
Que é isso? Eu tive uma úlcera perfurada.

ANTERO
Úlcera é fichinha! Eu tive um infarto!

JM
Olha só o corte.

ANTERO
Deixa eu ver a tua cicatriz!

JM
Olha só. Deve ter uns trinta centímetros!

ANTERO
Ah, não força! Não passa de quinze, e olhe lá!

CENA 19 - INT/DIA - HOSPITAL: CORREDOR

No corredor do hospital, VASCO (de "O Último desejo do Dr
Genarinho") conversa com a enfermeira. Por eles passam Teresa e
Gisela, caminhando lado a lado, conversando.

               TERESA
               Gisela, eu tenho que reconhecer que o Seu Antero
               gosta mesmo de você. Ele nunca foi tão carinhoso.

               GISELA
               É bom escutar isso. Quando eu te vi aquele dia, te
               achei tão menina. Mas de repente você cresceu.
               Virou uma mulher, tudo muito rápido.

               TERESA
               Eu também achava que esta história seria só uma
               transa com um cara mais velho e mais nada. Mas não
               foi assim.

GISELA
Você merece um monumento...

TERESA
Por quê?

GISELA
Dobrar um cético como o Jotaeme...

TERESA
Ele é um amor, não é?

GISELA
É... Principalmente quando estava em coma!

CENA 20 - INT/DIA - HOSPITAL: QUARTO

JM e Antero, de bruços, levam, de uma enfermeira, suas
respectivas injeções.

               Antero
               Ai!

               JM
               Ai!

Não vêem Teresa e Gisela que entram no quarto.

               JM
               Seu Antero, eu tenho que lhe dizer que realmente
               gosto da Teresa.

               ANTERO
               Eu tenho para mim que as pessoas dizem a verdade
               por princípio, então...

JM
Acredita em mim?

ANTERO
No seu caso, o senhor vai ter que provar.

               JM
               Antero, tenho que te confessar: nunca vi a Gisela
               tão feliz.

ANTERO
(fingindo que não ouve) O que é que ele disse?

               JM
               É chato falar, Gisela é como um fracasso meu...
               Vivi tantos anos com ela, enganando ela, odiando
               ela e ainda por cima perdê-la! Ver que outro homem
               pode fazer alguma coisa melhor que eu... que ódio!
               Eu odeio dizer isso... mas você realmente fez bem
               a ela.

ANTERO
(esperançoso) Mas então... Você acha que ela...

JM
Gosta de você?

Jotaeme concorda com a cabeça. Tempo.

JM
Não fica me olhando com essa cara!

               GISELA
               Vocês só esqueceram de perguntar para mim o que eu
               estou sentindo. Levei uma vida para chegar aqui, e
               me sentir uma mulher livre, seja lá o que isso
               signifique. Sei que estou cheia de dúvidas, mas eu
               não vou entregar o que levei todos estes anos para
               conquistar.

Suspense. Gisela olha para Teresa e para Jota, fala com emoção.

               GISELA
               Antero, a gente tem que namorar, se divertir,
               viver a vida.

Antero, com o soro ainda no braço, levanta-se da cama e convida
Gisela para dançar. Ele tem dificuldades de se mover, mas mesmo
assim dança carinhosamente. JM toma Teresa pela mão e também ele,
vitimado, dança.

O quarto do hospital se transforma num ambiente romântico, globo
de espelhos, luzes coloridas, e eles ali, feridos de guerra,
dançam.

FIM

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27/07/2002

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