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DONA CRISTINA PERDEU A MEMÓRIA
	               roteiro de Jorge Furtado
	               e Ana Luiza Azevedo,
	               março de 2002
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1 - EXT/DIA - PÁTIO DA CASA DE ANTÔNIO
	Mão de criança organiza minuciosamente bichos de brinquedo (boi,
	cavalo, camelo, porco, dinossauro) dentro de uma caixa velha de
	madeira.
	       
	CARTÃO: CRÉDITO DE APRESENTAÇÃO
	Mãos de criança amarram cuidadosamente a caixa com os bichos na
	parte de trás de um velho triciclo.
	CARTÃO: CRÉDITOS DOS ATORES
	       
	Mão de criança larga um patinho de madeira sobre uma mini pista.
	O patinho começa a descer em ritmo de relógio.
CARTÃO: DONA CRISTINA PERDEU A MEMÓRIA
	No pátio dos fundos de uma casa de madeira, mãos de criança pegam
	uma tábua num monte de material velho e coloca-a num buraco entre
	duas outras tábuas equilibradas com latas. ANTÔNIO, 8 anos,
	termina de equilibrar a tábua completando a grande pista de
	rampas cuidadosamente construída com material de sucata.
	Antônio pega um triciclo velho caído já preparado no início da
	pista. A caixa com animais de brinquedo está amarrada atrás.
	Antônio pedala muito compenetrado por todas as rampas e pontes. A
	madeira que foi colocada no início cai, derrubando Antônio que
	fica irritado e olha imediatamente para os brinquedos que estavam
	na caixa. Todos os bichos estão espalhados no chão.
	Antônio começa a juntar os bichos. Batidas de martelo chamam sua
	atenção.
	DONA CRISTINA, 80 anos, está consertando a cerca de madeira que
	divide o pátio da casa de Antônio com o pátio ao lado. Dona
	Cristina arruma uma tábua, um martelo, pregos e outros materiais
	de marcenaria. Um relógio está pendurado numa madeira da cerca.
	Antônio se aproxima e fica olhando D. Cristina trabalhar, sem
	falar nada. Dona Cristina olha para Antônio, continua consertando
	a cerca. E olha novamente para Antônio um pouco impaciente
	        DONA CRISTINA
	        Bom dia! Não te ensinaram a cumprimentar as
	        pessoas quando tu te aproximas delas?
Antônio não diz nada. Apenas olha.
	        DONA CRISTINA
	        (um pouco mais doce) Como é o teu nome?
	        ANTÔNIO
	        Antônio.
	        DONA CRISTINA
	        Antônio! Sabia que hoje é dia de Santo Antônio?
	        Na minha família todo mundo era devoto de Santo
	        Antônio acho que por isso tem muitos Antônios. Meu
	        irmão é Antônio e a gente chamava ele de Toninho.
	        Meu pai era Antônio e chamavam ele de Nico, meu
	        avô era Antônio e chamavam ele de Seu Tonico e meu
	        bisavô era Antônio e chamavam ele de Coronel. Na
	        verdade eu acho que é o único que o codinome
	        parecia mais importante do que o nome. Porque os
	        outros parecia que ficavam muito pequeninhos, não
	        acha? Toninho, Nico, Tonico... Eu acho que
	        Antônio tem que ser chamado de Antônio.
	        ANTÔNIO
	        O que que é codinome?
	        DONA CRISTINA
	        Codinome é um nome que a gente inventa quando a
	        gente não quer que saibam o nome da gente. Por
	        exemplo, meu nome é Maria Teresa Sipriana Schmidt
	        Muller. Mas eu acho um nome muito grande que
	        parece de uma velha bruxa, então digo pra todo
	        mundo que meu nome é Cristina.
	Dona Cristina termina de fazer o conserto, recolhe o material,
	coloca o relógio no pulso.
	        DONA CRISTINA
	        Já terminei o meu conserto, vou entrar porque tá
	        na hora deles me darem banho. Sabe que depois que
	        você fica velho todo mundo começa a te tratar
	        como um abobado, igualzinho como fazem quando a
	        gente é criança sabe: (falando em falsete) oi
	        vozinha, como é que tá hoje? Olha, mas a cara tá
	        bem rosada. Conseguiu fazer cocô?
Antônio acha graça.
	        DONA CRISTINA
	        (já saindo) Tchau, Antônio. E não deixa ninguém te
	        chamar por um apelido. Antônio é um nome muito
	        bonito. É um nome de homem de verdade.
	Dona Cristina se dirige ao alpendre do asilo que Antônio tenta
	enxergar através de um buraquinho na cerca.
CENA 2 - EXT/DIA - PÁTIO DA CASA DE ANTÔNIO
	Mão de criança larga um patinho de madeira sobre uma mini pista,
	o patinho começa a descer em ritmo de relógio.
	No pátio dos fundos, Antônio está reequilibrando a mesma tábua da
	grande pista de rampas, que desequilibrou no dia anterior.
	Antônio pega seu triciclo e vai para o início da pista. Volta a
	pedalar rapidamente pelas rampas e pontes. Cai.
	D. Cristina se aproxima da cerca com o material de marcenaria,
	pendura o relógio no mesmo lugar e começa a trabalhar no mesmo
	buraco do dia anterior. Antônio se aproxima, feliz.
	        ANTÔNIO
	        Oi.
	        DONA CRISTINA
	        Bom dia, mas que menino bem educado. Como é seu
	        nome?
Antônio estranha, mas mesmo assim responde.
	        ANTÔNIO
	        Antônio.
	        DONA CRISTINA
	        Antônio! Ontem foi dia de Santo Antônio, acho que
	        é o primeiro ano que ninguém me trouxe um
	        pedacinho do pão de Santo Antônio. Sabe que aqui
	        no asilo tem muitos Antônios. Aquele que não tira
	        o pijama nunca é Antônio mas a agente chama ele de
	        Toninho.
Antônio, na ponta dos pés, tenta enxergar por cima da cerca.
	        DONA CRISTINA
	        O outro que tá sentado no banco, também é Antônio
	        e o apelido dele é Nico, e aquele que não tira a
	        fatiota e tá sempre dando discurso também é
	        Antônio mas todo mundo chama ele de Coronel. Ele é
	        muito ranzinza e se acha muito importante. Dizem
	        que lutou aí numa guerra. Eu nem sei que guerra é
	        porque eu não gosto de guerra. Antônio é um nome
	        esquisito né? Mas acho que não é nome de soldado,
	        não. Antônio tem que ser um ator ou um escritor:
	        Anthony Quinn, Antônio Maria; ou tem que ser dono
	        de padaria, de armazém: oh menino, vai lá no seu
	        Antônio e compra 10 cacetinhos na conta.
	Antônio não acha muita graça. Dona Cristina pega o relógio,
	recolhe as ferramentas e se despede de Antônio.
	        DONA CRISTINA
	        Bom, acho que hoje não vou poder terminar meu
	        serviço. Tenho que tomar banho porque é dia de
	        visita.
	Dona Cristina se afasta e Antônio pode enxergar melhor o alpendre
	do asilo pelo buraco que ela deixou na cerca.
CENA 3 - EXT/DIA - PÁTIO DA CASA DE ANTÔNIO
	Um patinho de madeira começa a percorrer uma uma mini pista em
	ritmo de relógio.
	Antônio pedala pela rampa novamente consertada, cai no mesmo
	lugar dos dias anteriores. Olha pra cerca. Dona Cristina não está
	lá. Se aproxima e olha pelo buraco da cerca.
	D.Cristina, ao longe, traz seu material de marcenaria e caminha
	em direção à cerca. Chega. Tira o relógio do braço, pendura na
	cerca, começa a tirar a tábua consertada, repetindo o mesmo
	ritual dos outros dias. Antônio a observa.
	        DONA CRISTINA
	        Bom dia. Como é o teu nome?
	        ANTÔNIO
	        Adalberto.
	        DONA CRISTINA
	        Adalberto! Na minha família tem muitos Adalberto.
	        Meu irmão é Adalberto. Meu pai era, meu avô era
	        Adalberto. Meu bisavô era Adalberto. Mas nenhum
	        era chamado pelo nome. Todos tinham um codinome.
	        Neco, Bebeto, Seu Beto. Meu bisavô era chamado de
	        Marechal. Dizem que ele era muito ranzinza e se
	        achava muito importante.
Dona Cristina recolhe as ferramentas e se afasta falando sozinha.
	        DONA CRISTINA
	        Depois ficou velho e tinham que dar banho nele
	        como em todo mundo. Coisa triste é alguém ter que
	        dar banho na gente. Ainda bem que eu sei tomar
	        banho sozinha.
	Dona Cristina se afasta e Antônio fica olhando para o relógio, na
	cerca.
CENA 4 - EXT/DIA - PÁTIO DA CASA DE ANTÔNIO
	D. Cristina trabalha na cerca no mesmo lugar dos outros dias. A
	rampa de Antônio com a mesma tábua no chão está vazia. Antônio
	não aparece.
Patinho de madeira caído ao lado da mini pista.
CENA 5 - EXT/DIA - PÁTIO DA CASA DE ANTÔNIO
	D. Cristina trabalha na cerca. Ao contrário dos outros dias, D.
	Cristina está trabalhando em outro lugar da cerca e o buraco é
	cada vez maior. Antônio por trás de um monte de sucata, a
	observa. Ela chama por ele.
	        D.CRISTINA
	        Ei menino, vem cá.
Antônio se aproxima, um pouco temeroso.
	        D.CRISTINA
	        Como é o teu nome?
	        ANTÔNIO
	        Frederico.
	        D.CRISTINA
	        Frederico, acho que não tem nenhum Santo
	        Frederico. Sabe que eu tinha um filho que era
	        muito parecido contigo, mas ele se chamava
	        Francisco. Ele nasceu no dia de São Francisco, dia
	        4 de outubro. Quando ele ficou moço, foi estudar
	        na Alemanha e sempre que voltava me trazia muitos
	        presentes. Uma vez me trouxe um relógio. Um
	        relógio suíço, lindo, todo de ouro. Acho que foi o
	        presente que mais gostei. Um dia eu perdi o
	        relógio. Não lembro quando foi, mas faz muito
	        tempo. Eu gostava tanto do relógio que tirava
	        sempre que eu ia fazer alguma coisa. Pra não
	        sujar. E perdi.
CENA 6 - EXT/DIA - PÁTIO DA CASA DE ANTÔNIO
	D. Cristina trabalha, Antônio aparece. E fica olhando D. Cristina
	meio de longe.
	        DONA CRISTINA
	        Ei gurizinho, vem cá.
Antônio se aproxima.
	        DONA CRISTINA
	        Como é o teu nome.
	        ANTÔNIO
	        Antônio.
	        DONA CRISTINA
	        Eu tenho um presente pra ti, Antônio.
	D.Cristina dá para Antônio um monte de pedaços de madeira tirados
	da cerca. Antônio pega, encantado.
	 
	        ANTÔNIO
	        Eu também tenho um pra senhora.
	Antônio larga a madeira no chão e tira o relógio de D. Cristina
	do bolso. Dá o relógio pra ela.
	        DONA CRISTINA
	        (pegando o relógio) Que lindo! É muito parecido
	        com um que eu tinha, perdi num dia desses. Era um
	        relógio suíço que eu ganhei do meu filho. Quando
	        ele ficou moço ele foi estudar na Alemanha e se
	        tornou aviador. Era comandante de uma grande
	        companhia. Desde pequeninho ele adorava voar. E um
	        dia ele voou tão alto que o avião dele sumiu no
	        céu.
	D.Cristina já não trabalha na cerca e olha para o céu como se
	seguisse o vôo de um avião. Antônio ouvia encantado a história de
	D.Cristina e seguia o seu olhar tentando enxergar o avião que ela
	parecia ver.
	        DONA CRISTINA
	        Claro que a história não é bem assim, mas é esta
	        que eu guardo na memória pra não ficar muito
	        triste. (voltando a olhar para o relógio) Este eu
	        vou guardar junto com as minhas relíquias pra não
	        perder.
	       
	        ANTÔNIO
	        O que que é relíquia?
	       
	        DONA CRISTINA
	        Relíquia é uma coisa muito velha que não tem
	        importância pra ninguém. Só pra ti.
CENA 7 - EXT/DIA - PÁTIO DA CASA DE ANTÔNIO E DO ASILO
	Cerca entre os dois pátios já quase toda desmontada. A pista no
	pátio de Antônio está bem mais incrementada. Dona Cristina,
	ajoelhada no chão, coloca outros suportes para equilibrar a tábua
	que sempre cai. Antônio se aproxima ainda com pijama e cabelos
	desajeitados (cara de quem acabou de acordar).
	        DONA CRISTINA
	        Oi, Antônio, bom dia. Hoje tu dormiste mais que a
	        cama.
Antônio sorri, ainda se espreguiçando.
	        DONA CRISTINA
	        (se levantando com certa dificuldade) Acho que
	        agora não cai mais.
	Antônio rapidamente pega o triciclo e se dirige para o início da
	pista. Dona Cristina o interrompe.
	        DONA CRISTINA
	        Espera um pouquinho. Antes de tu te perder na
	        pista eu tenho uma coisa muito séria pra te dizer.
Antônio obedece. Dona Cristina senta num banco improvisado.
	        DONA CRISTINA
	        Senta aqui.
Antônio senta ao seu lado.
	        DONA CRISTINA
	        (falando em tom baixo, conspiratório) Os meus
	        colegas dessa aí onde eu moro tão só cochichando,
	        dizendo que eu tou perdendo a memória. Mas não é
	        verdade. Toda minha memória tá bem guardadinha, eu
	        não perdi nadinha. Eu acho que eles tão inventando
	        esta história é pra me roubarem porque eu tenho
	        coisas muito valiosas.
	Dona Cristina começa a tirar pequenos objetos da roupa. Antônio
	fica encantado com cada um que vê.
	        DONA CRISTINA
	        Tá vendo esta concha? Eu achei na primeira vez que
	        fui pra praia. Quando eu era pequena nós íamos pra
	        praia de carroça. Levávamos dois dias. Minha mãe
	        fazia fornadas de bolachas. Botava numas latas
	        grandes. A gente enchia a carroça de cobertas,
	        comida e saíamos atravessando as fazendas até
	        chegar na praia. (pega uma nota de dinheiro antiga
	        do sutiã) Este dinheiro o meu padrinho me deu uma
	        vez que foi nos visitar, ele morava em Caxias e só
	        aparecia uma vez por ano. Eu achei melhor não
	        gastar e guardar como uma lembrança dele. (pega o
	        Santo Antônio) este é o santo Antônio, o santo
	        casamenteiro. (pega a foto) olha eu quando era
	        pequina na confeitaria do meu pai. O meu pai tinha
	        uma confeitaria ali na rua da Praia. (pega o
	        pregador) Este pregador o meu marido me deu numa
	        páscoa. Quando eu chegeui em casa tava um ovo edm
	        cima da minha penteadeira. Eu me desanimei. Não é
	        possível que ele tenha me dado um ovo de chocolate
	        eu pensei, ele sabia que eu ficava até aqui de
	        chocolate por causa da confeitaria Mas aí eu
	        sacodi o ovo e vi que tinha alguma coisa dentro.
	        (pega um monóculo e mostra pra Antônio) Olha
	        (Antônio bota o monóculo contra o céu). Este é o
	        Francisco, meu filho e este era um dos aviõezinhos
	        dele (tirando um aviãozinho do bolso). Eu dei pra
	        ele quando ele fez cinco anos. Acho que foi aqui
	        que ele começou a querer ser aviador.
Antônio vai colocando todos os objetos na camiseta.
	        DONA CRISTINA
	        (tirando outros objetos da roupa) Eu quero que tu
	        guarde tudo isto pra mim. Porque quando alguém
	        vier dizer que eu tou perdendo a memória eu digo
	        que é mentira. Que ela tá bem guardadinha.
	        ANTÔNIO
	        Pode deixar. Eu vou guardar num lugar que ninguém
	        vai mexer. E sempre que a senhora quiser se
	        lembrar de alguma coisa é só a senhora me pedir.
	Antônio se levanta, coloca todos os objetos na caixinha atrás do
	triciclo. Coloca o patinho de madeira a percorrer a mini pista e
	começa a trilhar a grande pista cuidadosamente. Logo à sua frente
	está a tábua que cai.
Dona Cristina o assiste com atenção.
	Antônio vai pedalando devagarinho. Chega na tábua que cai. A
	tábua treme. Antônio tenta se equilibrar. Quase cai para o lado
	de dentro. O patinho segue firme na pista.
Dona Cristina olha Antônio temerosa.
	Os objetos rolam. Antônio tenta reequilibrar o triciclo. O
	triciclo desequilibra para o lado de fora. Os objetos rolam para
	o outro lado. O Patinho segue na sua pista. Antônio consegue
	reequilibrar o triciclo e passa pela tábua crítica.
Dona Cristina respira aliviada.
	Antônio acena para ela e pedala com mais segurança e mais rápido
	em direção ao final da pista. O patinho chega no final de sua
	pista.
	Câmera se afasta. Antônio chega no final da pista. Dona Cristina
	festeja. Antônio volta para o início e agora, mais confiante,
	percorre toda a pista novamente. E faz isto sem parar.
CRÉDITOS SOBRE A IMAGEM
FIM
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	(c) Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo, 2002.
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
01/03/2002
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