ESTA NÃO É A SUA VIDA - texto final

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     ESTA NÃO É A SUA VIDA
     TEXTO FINAL - EM PORTUGUÊS
     Jorge Furtado, junho de 1991

     produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

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NOELI: Ich bin klein / du bis gross / gibt mein Geschenk / dann
gehe ich loss. Eu sou pequena / tu é grande / me dá o meu
presente / que eu vou embora.

LOCUTOR 1: Eu não sei quem você é. Eu não tenho como saber quem
você é. Eu nunca saberei quem você é. Você está em casa, vendo
tevê. Ou você está numa sala de cinema. O seu anonimato é a sua
segurança. Não se preocupe. Esta não é a sua vida.

LOCUTOR 1: Este homem não come vidro. Na última quarta feira,
esta mulher não deu à luz sêxtuplos. Esta criança jamais
sobrevoou o pólo norte. Este homem não utiliza esteróides
anabolisantes. Esta mulher tem 25 anos e ainda não é avó. Este
homem não é sósia do Dawid Bowie. Esta senhora não matou a mãe e
o pai a golpes de machado.

LOCUTOR 1: Gente comum. Eles não têm nome.

LOCUTOR 2: trinta e quatro vírgual cinco por cento da população
economicamente ativa do terceiro mundo sobrevive com um
rendimento médio mensal...

LOCUTOR 3: Enquanto a organização mundial da saúde estabelece em
quarenta e cinco gramas o consumo diário ideal de proteína para
crianças de zero a seis anos, no Brasil cerca de trinta milhões
de menores...

LOCUTOR 2: Entre os casais consultados, trinta e sete por cento
respondeu que sim; vinte e seis por cento disseram que não;
dezoito por cento responderam "às vezes"; quatorze por cento...

LOCUTOR 3: Nas regiões mais pobres da América Latina, chega a
quatro vírgula três filhos a taxa de fertilidade de mulheres com
idade inferior a...

LOCUTOR 2: A esperança média de vida do brasileiro é de sessenta
vírgula zero oito anos"

LOCUTOR 1: Números não comem. Números não namoram, não trabalham,
não sentem raiva. Números não têm nome. As pessoas têm nome.
Qualquer pessoa.

NOELI: Noeli Joner Cavalheiro.

LOCUTOR 1: Uma pessoa escolhida ao acaso.

NOELI: Essa aqui é a minha madrinha, que me criou.

LOCUTOR 1: Qualquer pessoa.

NOELI: Fazia dois anos que eu não vinha mais aqui. (Mas o que é
que houve ali, Noeli?) A semana passada, era numa quinta-feira,
eu acho, bateram lá na frente, lá na entrada do meu beco, lá.
(Sei.) E a gente sempre cuida as casinhas assim, (Sei) um vizinho
cuida o outro. Daí eu olhei assim, quem tava lá na frente. Vem tu
mesmo, ele me chamou. Tu mesmo, vem cá. Fui. Quando eu saí do
portão, eles começaram a filmar que nem agora.

NOELI: (Tudo bem?) Tudo bem. (A senhora já apareceu na
televisão?) Não. (Nunca?) Não. (A gente tá fazendo uma pesquisa e
a gente queria fazer uma entrevista com a senhora.)

NOELI: Aí, perguntou o meu nome, que eles queriam fazer um filme,
se eu não podia participar.

NOELI: Tá. Sobre o quê?

NOELI: Ontem contei a minha vida pra eles. (Hã?) Que eu tinha
oito anos, nove, quando a senhora me pegou. (Mas, é) Que eu não
quis mais com a minha mãe. (Sim) Que a senhora me costurava
vestidinho bonito.

NOELI: Quando eu era criança assim eu sempre pensava ser uma dona
de casa como eu sou hoje. Me casar bem e ter tudo assim como o
rico tem. Mas não deu certo, não é? Não era por a riqueza que eu
tive o amor, né? É o amor que faz a felicidade com a gente.
Não sei, pra mim tudo serve, entende? Se alguém me manda sei lá
pra onde, eu concordo, vou. Eu sou assim.

NOELI: Não, o meu pai faleceu quando eu tive três anos. Aí a
minha mãe era muito pobre e a minha madrinha viu que a minha mãe
não tinha condições de me criar direito como ela podia. Olha,
então vou pegar ela pra um tempo, ela vai me ajudar a cuidar da
pequena...

NOELI: E até hoje não esqueço, era eu a última pra deixar a mãe.
Aí viemo de lá uma noitezinha, com um carrinho assim de cavalo. O
meu padrinho veio me pegar, era longe. Aí cheguei lá, mas era na
rua ainda, mas sempre pensando, sabe, sentada, quieta, pensando:
ah vou ganhar saudade da mãe. Chorei dias. Não queria almoçar,
minha madrinha dizia: vem, Noeli, vem almoçar. Ia na mesa, comia
um pouco, saía de lá. O quê que tu tem? Nada... Mas olhava assim
pra mãe chegar, olhava pela estrada que a mãe ia chegar, pra, pra
eu ver a mãe. Saudade da mãe.

NOELI: Passei a minha infância na minha madrinha, trabalhei
muito.

NOELI: Cuidar da criança, depois já ir pro colégio. Quando
voltava do colégio já ia fazer os meus temas, depois já ia pra
lavoura, capinar. Aí voltava em casa, cuidava dos bichos, já
desde nove, dez anos já começava isso.

NOELI: Todo dia a gente passava onde que tinha umas árvores com
frutas, a gente ia, subia nas árvores, pegava. Comia bergamota, e
as bergamotas deixam o cheiro na boca. Pra não chegar em casa,
pros pais não descobrirem que a gente tava roubando bergamota, a
gente chegava no poço, antes de chegar em casa, lavava bem a boca
e um fazia o ar pro outro, assim, abria a boca se não tinha ar,
pra chegar em casa, pro pai e a mãe não notar que a gente tava
roubando bergamota. Nunca falava a verdade.

NOELI: Uma vez a gente tava brincando no potreiro, fazendo
casinha, brincando com as bonecas. Tá. Antigamente a gente não
sabia como é que vinha os nenês, agora as crianças são muito
espertas. A gente se fazia barriga com pano e depois ganhava
nenê. Tá. Aí chega o pai, lá, passou lá no potreiro, não sei se
ele queria olhar os gado, e viu nós com isso. Mas na hora: vem
pra casa. E foi lá na vizinha e contou pra vizinha também: olha,
as gurias tavam brincando desse jeito, com boneca, se fizeram
barriga com pano. Aí parece que a minha amiga apanhou da mãe dela
e eu... era a primeira e última vez que eu apanhei deles.

NOELI: O meu primeiro baile era assim: a, a minha tia me levou.
Olha, Noeli, hoje tu vai junto comigo no baile. Aí me pintei, ela
me ajudou a arrumar e tudo. Cheguei lá. Ai, vergonha no baile. Aí
os rapaz vinham me pegar pra dançar, eu não sabia se era pra
negar, eu não sabia dançar. Mas com jeito a gente ia. Mas já
quando terminava a dança a gente já agradecia e já ia pro canto
de novo. Cheia de vergonha, no cantinho.

NOELI: Assim a gente ia: dançava nos bailes, namorava. Se a gente
não se agradava, largava. Pegava outro. Tinha outro baile sábado
que vem, ah, vou arrumar outro, não quero mais esse. Deixava o
outro no canto. Eu fazia isso muito.

NOELI: Assim eu tive duas vez noiva. E ia casar num sábado e
sexta-feira eu ouvi umas coisas que o cara não prestava, isso e
aquilo, o pai ficou brabo. Aí... sexta-feira já desmanchei o
noivado. Já tava tudo marcado na igreja, no civil, os papel tudo,
os móveis comprados (o pai comprou), nós tinha uma casinha já que
ele comprou (o meu noivo).

NOELI: Aí veio um cara dançando comigo. Aí se gostemo, até o fim
do baile. Fui na mesa com ele, e tudo. Aí eu olhei as mão dele já
na dança e vi que ele tinha umas mão muito grossa, feia. Aí eu
disse: não, esse aqui não vai dar.

NOELI: E no que ele saiu, ele tava na porta ainda, e eu já tava
com um outro de novo na mesa, que eu já tinha de antes, que tava
esperando pro outro sair.

NOELI: Mas bem de antes eu tinha um outro. Ele casou porque ele
tava obrigado a casar com uma guria. Ela ficou grávida com ele.
Aí lá fora era as pessoas assim: ah tu vai casar com ela, ela tá
grávida, tu é obrigado a casar. Tá, tá bem.

NOELI: Tinha um baile, não é, que o outro tava, que eu namorava
de antes, tava o Luis. Cheguei lá, tava sentada na mesa, com o
meu noivo. Mas não era esse noivo que eu tava falando antes, que
já tava pronta pra casar, era um outro.

NOELI: Aí o Luis viu que ele saiu pra fora e veio lá na minha
mesa: ai, Noeli, não te esqueço, larga o outro, tira essa aliança
do dedo e larga ele, tu é minha. Eu disse: Luis, esquece, eu sei
que eu gosto de ti, tu gosta de mim, mas não adianta, o pai não
quer.

NOELI: Quando o outro entrou, o meu noivo, eu dançando no meio do
salão com ele. Garrada, garradinha.

NOELI: Mas tu foi dançar com o Luís? É, ele veio, convidou pra eu
dançar, o que é que tem demais? Não, mas tu é minha noiva, como é
que tu vai dançar com os outros? Não, era só umas três peças, tu
saiu, ele veio me convidar pra dançar. E já tinha comprado umas
balas que lá, antigamente era umas balas em cima da mesa. De quem
são essas balas? O Luis comprou. Mas tou com vontade de atirar lá
no meio do salão. Eu disse: não, me dá, elas são docinhos demais,
são meus.

NOELI: Os bailes, não é? Os bailes é que estragam as pessoas.

NOELI: Eu vim pra Porto Alegre em 1980, e foi aí que eu conheci o
Robson.

NOELI: Eu morava na Vicente da Fontoura, e eu trabalhava, e ele
ficava na padaria na frente. Aí todo dia a gente ia lá comprar o
pão e o leite. E assim, e ele já, sempre olhava pra mim. Aí sabe
de uma coisa, ele mandou dizer, o patrão dela, que o Robson
gostava de ti. Eu disse: de mim? É. Aí eu fui lá. Mas eu pensei:
não, vou dar uma boa nele. Fui lá comprar, ele olhava pra mim,
tava olhando, disse: ah. Alcançou o pão que eu comprei, aí na
hora eu segurei a mão dele. Ele só olhou pra mim. Mas pensei:
não, esse aqui eu vou deixar bem louquinho, largar ele.

NOELI: Aí a primeira vez que, que a gente se conversou ele me
levou lá pra padaria, me passou a mão nos meus cabelos, eu tinha
os cabelos compridos, passou a mão no cabelo. E tudo a gente vê
que... era uma coisa assim que ele... se interessa, sabe?

NOELI: Foi, foi indo até o dia em que nós fomos pra fora pegar as
coisas que podia pegar lá fora, porque o pai não me deu os
móveis, porque ele era preto, eu não podia pegar os móveis.
Branco não se casa com preto.

NOELI: Aí o Robson chorou muito. Chorou, ia pra casa e o serviço.
A irmã dele perguntava: quê que há, Robson? Ai, a minha namorada
quer ir embora e eu não quero que ela vai. Eu deixava ele bem
louquinho assim. Não sabia. Eu disse: olha, eu já tou arrumando
as malas pra ir embora amanhã. Ai, não faz isso, se deitava nos
meus ombros e chorava. Aí eu senti que ele, não, pensei: não. Ah,
pensei: não vou fazer isso, já fiz tanta coisa na minha vida, que
hoje tou arrependida do que eu fiz, não sei se eu podia ter feito
tudo isso com os caras, sabe? Aí pensei: não, vou parar por aí. E
casei com ele.

NOELI: Um dia, se ele me deixar, que ele talvez, se arrumar outra
mulher, aí pelo menos ele não pode dizer: olha, essa que eu
tinha, ela me mandava isso, e me mandava sei lá aonde, e eu quero
isso, quero aquilo. Aí eu fico na minha pra eu nunca ouvir isso.
Aí pelo menos isso que eu tenho certeza: que um dia, se ele, se
arrumar outra, não sei se vai, mas o mundo tá muito virado, aí eu
sei: de mim, ele não vai falar mal.

NOELI: Às vezes eu penso: se eu tivesse estudo eu não tava
naquilo. Eu gosto muito de viajar, talvez eu fosse uma outra
pessoa que tinha estudo e tava trabalhando num outro serviço. Não
só ser uma dona de casa, de casa pro armazém, do armazém pra
casa, aí de vez em quando só fazer umas comprinhas...

NOELI: Mas aí eu penso assim: Deus queria isso. Um marido bom,
meus filhos. Mas não é só isso que a gente quer, não é? A gente
quer, se a gente podia crescer mais.

NOELI: Com esses poucos dias que eu tou conversando com vocês,
umas pessoas estranhas e tudo, que me procuraram a minha casa,
parece assim que, que eu saí assim de um mundo pro outro.

NOELI: Eu só penso em que, eu fico às vezes preocupada que eu não
faço as coisas direito como, como é preciso. Porque pra mim falar
em português, direito, é difícil até hoje, não, não me vai bem.
Mas, assim, eu não, eu fiquei assim, parecia que eu, que eu nasci
de novo, que eu tenho que começar a minha vida de novo, que eu
vou começar a minha vida assim como eu quero um dia. Se Deus
quiser.

LOCUTOR 1: Noeli tem 1 metro e 58 e pesa 54 quilos. Noeli é dona
de casa e tem dois filhos. Desde criança, ela foi educada pra ser
dona de casa e ter filhos. Noeli tem 38 anos. Eu não sei quem
você é. Eu não tenho como saber quem você é. Eu nunca saberei
quem você é. Não se preocupe. Esta não é a sua vida.

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(c) Jorge Furtado, 1990-1991
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
01/06/1991

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