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ILHA DAS FLORES
TEXTO FINAL - EM PORTUGUÊS
Jorge Furtado, maio/1989
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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(01) Estamos em Belém Novo, município de Porto Alegre, estado do
Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, mais precisamente na
latitude trinta graus, doze minutos e trinta segundos Sul e
longitude cinquenta e um graus, onze minutos e vinte e três
segundos Oeste.
(02) Caminhamos neste momento numa plantação de tomates e podemos
ver à frente, em pé, um ser humano, no caso, um japonês.
(03) Os japoneses se distinguem dos demais seres humanos pelo
formato dos olhos, por seus cabelos pretos e por seus nomes
característicos.
(04) O japonês em questão chama-se / Suzuki.
(05) Os seres humanos são animais mamíferos, bípedes, que se
distinguem dos outros mamíferos, como a baleia, ou bípedes, como
a galinha, principalmente por duas características: o telencéfalo
altamente desenvolvido e o polegar opositor.
(06) O telencéfalo altamente desenvolvido permite aos seres
humanos armazenar informações, relacioná-las, processá-las e
entendê-las.
(07) O polegar opositor permite aos seres humanos o movimento de
pinça dos dedos o que, por sua vez, permite a manipulação de
precisão.
(08) O telencéfalo altamente desenvolvido, combinado com a
capacidade de fazer o movimento de pinça com os dedos, deu ao ser
humano a possibilidade de realizar um sem número de melhoramentos
em seu planeta, entre eles, cultivar tomates.
(09) O tomate, ao contrário da baleia, da galinha e dos
japoneses, é um vegetal.
(10) Fruto do tomateiro, o tomate passou a ser cultivado pelas
suas qualidades alimentícias a partir de mil e oitocentos.
(11) O planeta Terra produz cerca de sessenta e um milhões de
toneladas de tomates por ano.
(12) O senhor Suzuki, apesar de trabalhar cerca de doze horas por
dia, é responsável por uma parte muito pequena desta produção.
(13) A utilidade principal do tomate é a alimentação dos seres
humanos.
(14) O senhor Suzuki é um japonês e, portanto, um ser humano. No
entanto, o senhor Suzuki não planta os tomates com a intenção de
comê-los. Quase todos os tomates produzidos pelo senhor Suzuki
são entregues a um supermercado em troca de dinheiro.
(15) O dinheiro foi criado provavelmente por iniciativa de Giges,
rei da Lídia, grande reino da Asia Menor, no século sete Antes de
Cristo.
(16) Cristo era um judeu.
(17) Os judeus possuem o telencéfalo altamente desenvolvido e o
polegar opositor. São, portanto, seres humanos.
(18) Até a criação do dinheiro, a economia se baseava na troca
direta.
(19) A dificuldade de se avaliar a quantidade de tomates
equivalentes a uma galinha e os problemas de uma troca direta de
galinhas por baleias foram os motivadores principais da criação
do dinheiro.
(20) A partir do século três Antes de Cristo, qualquer ação ou
objeto produzido pelos seres humanos, fruto da conjugação de
esforços do telencéfalo altamente desenvolvido com o polegar
opositor, assim como todas as coisas vivas ou não vivas sobre e
sob a terra, tomates, galinhas e baleias, podem ser trocadas por
dinheiro.
(21) Para facilitar a troca de tomates por dinheiro, os seres
humanos criaram os supermercados.
(22) Dona Anete é um bípede, mamífero, católico, apostólico,
romano. Possui o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar
opositor. é, portanto, um ser humano.
(23) Ela veio a este supermercado para, entre outras coisas,
trocar seu dinheiro por tomates.
(24) Dona Anete obteve seu dinheiro em troca do trabalho que
realiza.
(25) Ela utiliza seu telencéfalo altamente desenvolvido e seu
polegar opositor para trocar perfumes por dinheiro.
(26) Perfumes são líquidos normalmente extraídos das flores que
dão aos seres humanos um cheiro mais agradável que o natural.
(27) Dona Anete não extrai o perfume das flores. Ela troca, com
uma fábrica, uma quantidade determinada de dinheiro por perfumes.
(28) Feito isso, dona Anete caminha de casa em casa trocando os
perfumes por uma quantidade um pouco maior de dinheiro.
(29) A diferença entre estas duas quantidades chama-se lucro.
(30) O lucro, que já foi proibido aos católicos, hoje é LIVRE /
para todos os seres humanos.
(31) O lucro de Dona Anete é pequeno se comparado ao lucro da
fábrica, mas é o suficiente para ser trocado por um quilo de
tomate e dois quilos de carne, no caso, de porco.
(32) O porco é um mamífero, como os seres humanos e as baleias,
porém quadrúpede.
(33) Serve de alimento aos japoneses, aos católicos e aos demais
seres humanos, com exceção dos judeus.
(34) Os alimentos que Dona Anete trocou pelo dinheiro que trocou
por perfumes extraídos das flores serão totalmente consumidos por
sua família num período de um dia.
(35) Um dia é o intervalo de tempo que o planeta terra leva para
girar completamente sobre o seu próprio eixo.
(36) Meio dia / é a hora do almoço.
(37) A família é a comunidade formada por um homem e uma mulher,
unidos por laço matrimonial, e pelos filhos nascidos deste
casamento.
(38) Alguns tomates que o senhor Suzuki trocou por dinheiro com o
supermercado e que foram novamente trocados pelo dinheiro que
dona Anete obteve como lucro na troca dos perfumes extraídos das
flores foram transformados em molho para a carne de porco.
(39) Um destes tomates, que segundo o julgamento de dona Anete,
não tinha condições de virar molho, foi colocado no lixo.
(40) Lixo é tudo aquilo que é produzido pelos seres humanos, numa
conjugação de esforços do telencéfalo altamente desenvolvido com
o polegar opositor, e que, segundo o julgamento de um determinado
ser humano, não tem condições de virar molho.
(41) Uma cidade como Porto Alegre, habitada por mais de um milhão
de seres humanos, produz cerca de quinhentas toneladas de lixo
por dia.
(42) O lixo atrai todos os tipos de germes e bactérias que, por
sua vez, causam doenças. As doenças prejudicam seriamente o bom
funcionamento dos seres humanos.
(43) Mesmo quando não provoca doenças, o aspecto e o aroma do
lixo são extremamente desagradáveis.
(44) Por isso, o lixo é levado para determinados lugares, bem
longe, onde possa, livremente, sujar, cheirar mal e atrair
doenças.
(45) Em Porto Alegre, um dos lugares escolhidos para que o lixo
cheire mal e atraia doenças chama-se Ilha das Flores.
(46) Ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os
lados. A água é uma substância inodora, insípida e incolor
formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio.
(47) Flores são os órgãos de reprodução das plantas, geralmente
odoríferas e de cores vivas.
(48) De flores odoríferas são extraídos perfumes, como os que do
Anete trocou pelo dinheiro que trocou por tomates.
(49) Há poucas flores na Ilha das Flores. Há, no entanto, muito
lixo e, no meio dele, o tomate que dona Anete julgou inadequado
para o molho da carne de porco.
(50) Há também muitos porcos na ilha.
(51) O tomate que dona Anete julgou inadequado para o porco que
iria servir de alimento para sua família pode vir a ser um
excelente alimento para o porco e sua família, no julgamento do
porco.
(52) Cabe lembrar que dona Anete tem o telencéfalo altamente
desenvolvido enquanto o porco não tem nem mesmo um polegar, que
dirá opositor.
(53) O porco tem, no entanto, um dono. O dono do porco é um ser
humano, com telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor
e dinheiro.
(54) O dono do porco trocou uma pequena parte do seu dinheiro por
um terreno na Ilha das Flores, tornando-se assim, dono do
terreno.
(55) Terreno é uma porção de terra que tem um dono e uma cerca.
(56) Este terreno, onde o lixo é depositado, foi cercado para que
os porcos não pudessem sair e para que outros seres humanos não
pudessem entrar.
(57) Os empregados do dono do porco separam no lixo os materiais
de origem orgânica que julgam adequados para a alimentação do
porco.
(58) De origem orgânica é tudo aquilo que um dia esteve vivo, na
forma animal ou vegetal. Tomates, galinhas, porcos, flores e
papel são de origem orgânica.
(59) Este papel, por exemplo, foi utilizado para elaboração de
uma prova de História da Escola de Segundo Grau Nossa Senhora das
Dores e aplicado à aluna Ana Luiza Nunes, um ser humano.
(60) Uma prova de História é um teste da capacidade do
telencéfalo de um ser humano de recordar dados referentes ao
estudo da História, por exemplo: quem foi Mem de Sá? Quais eram
as capitanias hereditárias?
(61) Recordar é viver.
(62) Alguns materiais de origem orgânica, como tomates e provas
de história, são dados aos porcos como alimento.
(63) Aquilo que foi considerado impróprio para a alimentação dos
porcos será utilizado na alimentação de mulheres e crianças.
(64) Mulheres e crianças são seres humanos, com telencéfalo
altamente desenvolvido, polegar opositor e nenhum dinheiro.
(65) Elas não têm dono e, o que é pior, são muitas.
(66) Por serem muitas, elas são organizadas pelos empregados do
dono do porco em grupos de dez e têm a permissão de passar para o
lado de dentro da cerca.
(67) Do lado de dentro da cerca elas podem pegar para si todos os
alimentos que os empregados do dono do porco julgaram inadequados
para o porco.
(68) Os empregados do dono do porco estipularam que cada grupo de
dez seres humanos tem cinco minutos para permanecer do lado de
dentro da cerca recolhendo materiais de origem orgânica, como
tomates e provas de história.
(69) Cinco minutos são trezentos segundos.
(70) Desde mil novecentos e cinquenta e oito, o segundo foi
definido como sendo o equivalente a nove bilhões, cento e noventa
e dois milhões, seiscentos e trinta e um mil, setecentos e
setenta ciclos de radiação de um átomo de césio.
(71) O césio é um material não orgânico encontrado no lixo em
Goiânia.
(72) O tomate / plantado pelo senhor Suzuki, / trocado por
dinheiro com o supermercado, / trocado pelo dinheiro que dona
Anete trocou por perfumes extraídos das flores, / recusado para o
molho do porco, / jogado no lixo / e recusado pelos porcos como
alimento / está agora disponível para os seres humanos da Ilha
das Flores.
(73) O que coloca os seres humanos da Ilha das Flores depois dos
porcos na prioridade de escolha de alimentos é o fato de não
terem dinheiro nem dono.
(74) O ser humano se diferencia dos outros animais pelo
telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por
ser livre.
(75) Livre é o estado daquele que tem liberdade.
(76) Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não
há ninguém que explique e ninguém que não entenda.
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(c) Jorge Furtado, 1989
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
01/05/1989
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