INVERNO - texto final

Roteiro em modo texto: [ Download ]

          INVERNO

          TEXTO FINAL
          julho/1982

          distribuição: Casa de Cinema de Porto Alegre

*******************************************************

LETREIRO: Werner Schünemann em

LETREIRO: Um filme de Carlos Gerbase / para Luli

LETREIRO: INVERNO

HERÓI (V.O.): As cores da vitrine da Falks me feriam os olhos. Eu
nunca seria capaz de gostar de alguém que usasse calça cor de
rosa e casaco lilás. Os livros da Kosmos também me pareceram
novos demais e com capas muito coloridas. Talvez porque eu
estivesse pensando no "Ulisses" de capa marrom que eu tinha
encomendado e que ainda não chegou. Entrei na galeria Chaves com
a certeza de não comprar nada. A não ser que algum disco novo do
Pink Floyd aparecesse na King's. Como sempre não tava lá.

HERÓI: (V.O.): Recomeçou a chover e o centro se encheu de
guarda-chuvas e pessoas que caminhavam ao abrigo dos nomes das
lojas. O marrom persistiu como um cobertor de lã estendido sobre
os edifícios. Escuro no boné do vendedor de revistas, discreto no
granito molhado e castanho nos olhos e nos cabelos da guria
descendo a Rua da Praia.

LETREIRO: QUARTA-FEIRA

VIZINHA:  Será que dá pra o senhor baixar um pouquinho o som? É
que eu tenho criança pequena.

HERÓI: Tudo bem.

EMPREGADA: Alô.

HERÓI: Alô. A Mariana tá aí?

EMPREGADA: Tá. Vou chamar.

MARIANA: Alô.

HERÓI: Alô. Mariana?

HERÓI: Oi, tudo bom?

MARIANA: Tudo bem.

HERÓI: Né, é que pintou um tempo livre aí e eu tô a fim de dar
uma passada na tua casa.

MARIANA: Legal. Vê se traz uns discos.

HERÓI: Tá. Que tipo de música?

MARIANA: Vê se traz música calma.

HERÓI: Calma?

MARIANA: É... Tu tens James Taylor?

HERÓI: James Taylor. Não.

MARIANA: E... Carole King.

HERÓI: Também não.

MARIANA: Então quem sabe alguma coisa do Fagner...

HERÓI: Tá. Pode deixar. Eu vou trazer uma coisa bem calma, tá.
Pode deixar.

MARIANA: Tudo bem. Então tchau.

HERÓI: Mariana...

MARIANA: Entra.

HERÓI: Oi.

HERÓI: Eu trouxe os discos.

MARIANA: Mas isso aqui é música de Igreja. Dá um sono... Essa
aqui depois que morreu todo mundo gosta. É, a voz dela é bonita.
Sei lá, falta alguma coisa. É muito técnica.

MARIANA: Esta aqui é lésbica, né? Oh! Legal. Só é meio velho, né?
E depois que o John morreu é meio baixo astral ouvir isso aqui.
Quem sabe a gente houve FM?

HERÓI: E aí Leo, tudo bem?

LEOPOLDO: Tudo bem. Sobe aí.

HERÓI: E aí? Tava indo ali no Bristol. Lembra quando a gente
matava as aulas de editoração para ver os filmes velhos?

LEOPOLDO: É... A revisão crítica!

HERÓI: E tu, tá trabalhando?

LEOPOLDO: Pois é... Tava quase pegando uma boca ali num
jornalzinho da empresa. Mas depois não deu. Depois o Zeca, lembra
do Zeca? Me convidou pra ir diagramar um jornal que ele trabalha
em Santa Maria.

HERÓI: O Zeca tá em Santa Maria? Pô!

LEOPOLDO: Mas eu não tô a fim.

HERÓI: E o Celso, o Duarte?

LEOPOLDO: Não sei. Não vi mais.

LEOPOLDO: Tem visto o Gordo?

HERÓI: Não... Ah! Depois que saí da faculdade não vi mais
ninguém.

LEOPOLDO: E tu, tá com algum negócio aí?

HERÓI: É. Eu consegui um emprego numa imobiliária.

LEOPOLDO: Imobiliária?

HERÓI: Pois é... Bacharel em Jornalismo, tratando com síndico,
imposto e aluguel.

LEOPOLDO: Mas tu ainda tá morando com os velhos?

HERÓI: Não, não. Logo que eu consegui essa boca aí eu caí, né. Eu
tô morando sozinho num apê na São Carlos.

LEOPOLDO: Vem cá, tu não ia no cinema, heim?

HERÓI: Vou, sim. Que hora são?

LEOPOLDO: Quase dez.

LEOPOLDO: E quais são as perspectivas?

HERÓI: Não sei. Não tem emprego aqui, né. Mas pra o interior eu
não vou. Tudo muito verde, saúde demais. Eu prefiro a fumaça.

HERÓI: É uma inteira pra ti?

LEOPOLDO: É.

HERÓI: Uma inteira e uma meia.

LEOPOLDO: E os velhos, não se importaram com a tua saída?

HERÓI: É... Daquele jeito, né. Alguma coisa mudou. Não sei
direito o quê.

LEOPOLDO: Mas tu continua vendo eles seguido?

HERÓI: Claro, claro. Inclusive eu marquei de ir jantar com eles
amanhã. Eu gosto da comida da mãe, sabe. Mas eu acho que não
compensa.

LEGENDA: QUINTA-FEIRA

MÃE: Fiz a lasanha que tu gosta.

HERÓI:  Que bom.

PAI: Já pagou o aluguel deste mês?

HERÓI: Só recebo dia dez.

PAI: Mas o aluguel vence dia cinco.

HERÓI: É, eu sei. Mas eu sempre paguei pelo dia dez. Não tem
galho.

PAI: Tá errado. Se vence dia cinco tem que pagar dia cinco.

HERÓI: Pai, não te preocupa.

PAI: Mas como que eu não vou me preocupar? Eu sou teu fiador.
Depois vem tudo pra cima de mim e tu sabe que eu não tenho tempo
pra essas coisas.

MÃE: Calma, Francisco. Se o menino disse que não tem mal nenhum.

PAI: Claro, ele não se preocupa com nada.

MÃE: Tá, vamos comer. Tá boa a comida, filho?

HERÓI: Tri boa, mãe.

PAI: Como é que tá o emprego na imobiliária?

HERÓI: Tudo bem.

PAI: Tá procurando coisa melhor?

MÃE: Ah, não começa, Francisco. Tá boa a comida, filho?

PAI: Eu sei que é difícil conseguir emprego num jornal. Mas eu já
te falei, se tu quiser eu posso te arrumar alguma coisa.

MÃE: Ele não quer.

PAI: Quanto é que tu ganha na imobiliária?

HERÓI: Pai, mais do que se eu trabalhasse como repórter.

PAI: Então por que fez jornalismo?

MÃE: Porque ele quis.

PAI: Sei lá. Podia fazer um outro curso.

HERÓI: Pai, não te preocupa. Eu tô bem.

MÃE: Claro, Francisco. Ele tá fazendo o que gosta.

PAI: Mas trabalhar numa imobiliária?

MÃE: Quer mais arroz?

MÃE: Sabe o Antônio?

HERÓI: Ãh-hã.

MÃE: Chegou carta da tia Lice. Diz que ele anda amasiado com uma
dona do Rio de Janeiro.

HERÓI: O Antônio, é? Que bom.

MÃE: É... Diz que ela tem uns quarenta. A tia Lice também não
anda muito bem.

HERÓI: Ah é?

MÃE: É. A catarata dela piorou. Agora vai pros Estados Unidos,
tentar uma operação complicada. Só que tem um problema: os filhos
não querem dar o dinheiro pra ela ir.

PAI: Ué. Mas o tio não deixou nada pra ela?

MÃE: Filho, filho. Tá boa a comida, filho?

HERÓI: Tá. Tri boa mãe. Tá ótima.

PAI: E tu fica comendo mal fora daqui.

HERÓI: Pois é.

PAI: Passa mal porque quer.

HERÓI: Pois é.

LEGENDA: SEXTA-FEIRA.

MARIANA: Que bom que tu veio.

HERÓI: Eu disse que vinha, né.

MARIANA: Mas não é uma mão vir de lá do centro até aqui? E depois
ter que voltar pra imobiliária...

MARIANA: Que legal! Vamos ler o horóscopo? Primero o meu. Tá aqui
ó. Capricórnio. Sorte nos negócios... Bobagem. Deixa eu ver o que
interessa. Amor, boas perspectivas, dia propício a namoro. Poderá
conhecer pessoa muito interessante. Humm... Cor, azul. Olha, que
legal. Vamos ver o teu. É... Deixa eu lembrar...

HERÓI: Aquário.

MARIANA: Isso. Aquário. Deixa eu ver aqui. Amor. Uma pequena
discussão acabará bem. Seu relacionamento começa a amadurecer.
Bom dia para passeios a dois. Que bom, amor.

HERÓI: Maravilha. Vamos poder ficar juntos então?

MARIANA: Sei que tu acha bobagem esse negócio de horóscopo, mas
às vezes dá certo.

HERÓI: Ah, tudo bem, tudo bem. Eu acho que deve ter alguma coisa
de real nesta transa de Astrologia. Os astros, por exemplo. Pô,
mas horóscopo da Folha da Tarde, Mariana! Puta que pariu!

MARIANA: Quê que tem? Tá pensando que eu acredito em tudo? Tá
pensando que eu sou burra? Às vezes tu me trata como uma débil
mental.

HERÓI: Desculpa, tá? Tá?

MARIANA: Aqui não. Tem muita gente.

HERÓI: Então vamos almoçar.

HERÓI: Tu já começou a ler o Germinal?

MARIANA: Aquele livro que tu me deu ontem?

HERÓI: Ãh...

MARIANA: Acho que eu não vou gostar muito. O cara fica caminhando
não sei quantos quilômentros de campo de beterraba.

HERÓI: Como é que é?

MARIANA: É... Eu não gosto desses negócios do século dezenove.

HERÓI: Por quê?

MARIANA: É muito velho.

HERÓI: Humm. Então eu vou te dar uma coisa bem moderna pra tu ler
tá, bem século vinte.

HERÓI: Vamo pra praia amanhã?

MARIANA: Que praia?

HERÓI: Pode ser Mariluz. Meus velhos têm uma casa lá.

MARIANA: Mas com esse frio?

HERÓI: Ué. Quê que tem?

MARIANA: Ninguém vai pra praia no inverno.

HERÓI: Eu vou.

MARIANA: E qual é a graça?

HERÓI: Pô! É muito melhor do que no verão.

MARIANA: Mas é tri frio. Não dá pra tomar banho nem pra pegar
sol.

HERÓI: Mas dá pra tirar foto, caminhar bastante, ficar em casa,
lendo. Vamos?

MARIANA: É, até que pode ser. Mas o quê que eu vou dizer pra
minha mãe?

HERÓI: Ah, diz que tu foi pro sítio da Magda.

MARIANA: Te amo.

MARIANA: Depois, na praia.

HERÓI: Ah. Tem outra coisa, ó. Será que dá pra gente ir no teu
carro?

MARIANA: Sempre no meu carro. Por que que tu não pede o carro do
teu pai emprestado?

HERÓI: Eu posso pedir. Eu posso pedir.

MARIANA:  Eu sei, tu não gosta.

HERÓI: Não, não tem nenhuma. Eu peço pra ele.

MARIANA: Não precisa. Vamos no meu.

HERÓI: Ou então por quê que nós não vamos de ônibus. Pô, é muito
melhor, a gente vai sentado...

MARIANA: De ônibus? Tá maluco. Vamos no meu.

HERÓI: Se tu faz questão.

LEGENDA: SÁBADO

HERÓI: O cheiro de mofo só sai em fevereiro.

HERÓI: Eu... trouxe uma coisa pra ti. A gente tinha combinado,
né.

MARIANA: Rubem Fonseca? Eu não conheço.

HERÓI: Mas é bem moderno, como tu pediu.

MARIANA: Legal. Vou começar a ler hoje de noite.

HERÓI: Que bom.

MARIANA: E agora?

HERÓI: Quê?

MARIANA: Quê que a gente faz?

HERÓI: Tá vendo? Não é bonito?

MARIANA: Vendo o quê?

HERÓI: Tudo. É tão bonito.

HERÓI: Sabe que eu achei que ia ficar um troço meio gozado? Nós
dois, dormir na mesma cama. Sei lá, achei que pudesse pintar
algum clima. Ou que tu quisesse...

MARIANA: Tá pensando outra vez que eu sou uma débil mental?

HERÓI: Não. É só porque podia pintar, né?

MARIANA: Não tem grilo nenhum. Te amo.

HERÓI: Que bom.

MARIANA: Agora não. Eu tô lendo.

MARIANA: Quanta besteira.

HERÓI: Hum?

MARIANA: Aqui no livro.

HERÓI: Não pode ser. Eu li duas vezes, achei tri bom.

MARIANA: Ah, mas eu detesto ler esse tipo de coisa.

HERÓI: Que tipo?

MARIANA: Esse negócio aqui. Sexo pelo sexo. Pornografia. O cara
tá escrevendo só sobre sexo. Não tá explicando nada.

HERÓI: Como, "nada"?

MARIANA: Assim, ó: o cara tá escrevendo só pelo sexo em si.

HERÓI: Hum. Tem que ter mais alguma coisa?

MARIANA: É, é isso aí. Eu não gosto. Acho que eu vou dormir.

HERÓI: Mariana. Eu queria falar uma coisa contigo.

MARIANA: Quê?

HERÓI: Não tem nada pra conversar. Mas então eu vou querer um
beijo de boa noite.

MARIANA: Tira a mão. Tira a mão daí. Eu não quero.

HERÓI: É só um carinho.

MARIANA: Mas eu não tô a fim, pomba!

HERÓI: Tá legal.

MARIANA: Eu tô com sono.

HERÓI: Tudo bem.

MARIANA: Não fica assim. Sei lá. Eu não sei explicar direito. Eu
não quero ainda, sabe? Dá pra entender?

HERÓI: Não, Mariana. Não dá pra entender. Não dá! Tu tem dezoito
anos. Eu tenho vinte e quatro. Faz seis meses que nós tamos
namorando. A gente sente tesão um pelo outro. Tu fica molhada
ali, eu também fico. Por quê que a gente não pode trepar, porra?

HERÓI: Isso me funde a cuca, Mariana.

MARIANA: Eu te amo. Amanhã, amor.

LETREIRO: DOMINGO

MARIANA: Tá frio.

HERÓI: É.

MARIANA: Quem sabe a gente volta pra casa?

HERÓI: Ah, mas eu queria caminhar mais um pouco.

MARIANA: Tá bom.

HERÓI: Sabe de uma coisa? Sempre que eu venho pra praia eu lembro
do "Interiores".

MARIANA: Que interiores?

HERÓI: Aquele filme do Woody Allen. Lembra?

MARIANA: Não. Acho que eu nem vi.

HERÓI: Mas a gente viu junto. Tem uma família que se reúne numa
casa de praia no inverno.

MARIANA: Não lembro.

HERÓI: Pena.

HERÓI: Sabe, o que eu mais gosto de vir pra praia no inverno é
que a gente pode caminhar quilômetros pela beira da praia, de
olhos fechados, sem precisar ter medo de nada. Não tem ninguém na
frente. Ninguém mesmo. Experimenta.

HERÓI: Experimentou?

MARIANA: Não. Eu prefiro andar com os olhos abertos.

LETREIRO: SEGUNDA-FEIRA

JÚLIO: Oi. Tudo bom?

HERÓI: Tudo bom.

JÚLIO: Chegou o caminhante solitário?

MILTON: E daí, lobo da estepe? Como é que anda o astral?

HERÓI: Tudo bem.

CLÁUDIA: O que que tu fez no fim de semana?

HERÓI: Eu fui pra praia.

CLÁUDIA: Sozinho?

HERÓI: Não. Com a Mariana.

MILTON: Com a Mariana, é?

MARIA: A Mariana é a aquela guria que tu me falou?

HERÓI: É.

MARIA: Vocês ainda tão transando?

HERÓI: Mais ou menos.

MILTON: História! Ele não larga o pé da guria. Tô sabendo. Eu
tenho meus informantes lá pela PUC.

JÚLIO: Por que que tu não traz ela pra gente conhecer?

MILTON: É, traz. Aliás, pelo que eu sei, ela é uma tesãozinha,
uma mina toda gostosinha.

HERÓI: E daí, Alexandre, tudo bem?

ALEXANDRE: Tudo bem. Na mesma.

MILTON: Fugiu da raia, é?

HERÓI: Daí, Maria? Como é que tá o emprego?

MARIA: Uma bosta.

HERÓI: Como sempre.

MARIA: Como sempre.

CLÁUDIA: Sabe que eu tava lendo o Relatório Hite, aquele... Sabe
que só dois por cento das mulheres têm orgasmo quando trepam?

LÚCIA: Ah! Não acredito!

CLÁUDIA: Tá lá. Depois te mostro.

LÚCIA: Ah, mas isso deve ser lá nos Estados Unidos, né. Aqui é
diferente.

CLÁUDIA: Ah, tá, mas eu acho que tem muita mulher que finge.

MARIA: Isso.

LÚCIA: Ah, não sei não.

MILTON: Garanto que comigo não tem fingimento.

HERÓI: Tava bom? Tava, né?

CLÁUDIA: Tava tri bom.

HERÓI: Sabe que eu nunca tinha visto uma guria acabar assim. Um
troço de fissura... Sei lá, quase violento.

CLÁUDIA: É que eu acho que pouca gente tem orgasmo legal mesmo,
né?

HERÓI: Como assim?

CLÁUDIA: Ah, não sei explicar direito, mas, esse foi por dentro e
por fora, tu entende?

HERÓI: Acho que não.

CLÁUDIA: É que é difícil encontrar uma pessoa assim que encaixe
direitinho, sem faltar nada.

HERÓI: E eu encaixo?

CLÁUDIA: Só!

HERÓI: Sempre achei que fosse pequeno.

CLÁUDIA: História! Isso aí não tem nada a ver. É bobagem.

HERÓI: E aí, Milton? Firme nas leituras de Hermann Hesse?

MILTON: Agora tô lendo "Sidarta".

HERÓI: Te aprofundando?

MARIA: É aquele dos hindu?

MILTON: Alguém mais já leu?

ALEXANDRE: Eu li "Demian".

HERÓI: A gente leu no tempo do colégio, né? Até que era bem
bonzinho. Só que agora acho que eu ia detestar, sabe?

MILTON: Claro, né? Ele já leu até "Ulisses" de James Joyce.

HERÓI: Não tem nada a ver.

MARIA: Ô Cláudia, tu já foi ver o "Reds"?

CLÁUDIA: Ah, eu tô cagando pro Joyce, pro Hermann Hesse. Eu tô
mais a fim do Warren Beatty na minha cama.

CLÁUDIA: Que horas são?

HERÓI: Sete e meia.

CLÁUDIA: Ah, é muito cedo.

HERÓI: Oi.

MENINA: Oi.

BILHETE: TIVE QUE IR PRO TRABALHO./ NÃO QUIS TE ACORDAR./ LIGA
PRA MIM (247481)./ JÁ VIU CIDADÃO KANE?

FUNCIONÁRIA: Alô?... Isso mesmo.

HERÓI: É comigo?

FUNCIONÁRIA: Olha, ela trabalha à tarde aqui. Não, a senhora pode
ligar pra casa dela. Ah, o telefone? É 247586. Não, ela sempre tá
em casa essa hora.

HERÓI: Alô? Não, não. Ele já saiu. Olha, eu não sei isso aí. Quem
sabe o senhor liga amanhã de manhã, bem cedo? Isso. Certo, certo.
Tá, tá. O senhor liga amanhã, né? Tá. Até logo.

CHEFE: Ué! Ainda tá por aí?

HERÓI: É, eu vou ficar mais um pouco, depois já vou.

CHEFE: Não. Vamos duma vez que nós já vamos fechar.

LETREIRO: TERÇA-FEIRA

HERÓI: Bonito isso aqui, né?

MARIANA: Eu acho triste. Eu não quero ficar aqui.

CLÁUDIA: Oi. Que tu tá fazendo aí, hein?

MILTON: Como tu é burra, Cláudia! Tu não tá vendo que ele tá
pensando? Que ele tá curtindo o astral da Siqueira Campos? Daqui
a pouco, quando escurecer, ele já sacou todos os problemas do
mundo, aí ele se levanta e vai pra casa.

LÚCIA: Não enche o saco, Milton.

MILTON: Mas é isso. É bem isso. Né, ô "lobo da estepe"?

HERÓI: Olha que troço estranho!

MILTON: Mas o que é isso? Meu Deus, que aparição!

LÚCIA: Tu vê, cara: eles tão bem. Tão numa boa.

HERÓI: Incrível. Eles tão felizes. Puta merda!

MILTON: Ô sua vaca enfeitada, fecha essa boca que a tua baba tá
respingando aqui. E tu, seu manco. Ô perneta paralítico! Ainda
por cima deve ser poeta.

CLÁUDIA: Que belo par. Lindo!

LETREIRO: QUARTA-FEIRA

MARIANA: Quer um pouquinho?

HERÓI: Não. Ontem me lembrei daquele filme que a gente viu esses
dias na tv, o "Cidade das Ilusões". Te lembra?

MARIANA: Não.

HERÓI: Aquele que tem um cara que é boxeador. Tinha uma mulher
bêbada que transava com um negro. O amigo do cara era um guri.

MARIANA: Lembro.

HERÓI: Lembra da cena final?

MARIANA: Acho que não.

HERÓI: Os dois tão sentados num bar, cheio de velhos. De repente
ele se dá conta que um dia vai ficar do mesmo jeito. Que não tem
saída. Nem pra ele nem pra ninguém. Nem pro guri.

MARIANA: Ih... Baixo astral isso aí.

HERÓI: É... Ontem eu tava na imobiliária. Aí eu lembrei.

MARIANA: Tu não quer um pouquinho mesmo?

HERÓI: Não, Mariana, tu sabe que eu não gosto de pêsego.

MARIANA: Tá. Tá legal.

MARIANA: Vamos no cinema hoje de noite?

HERÓI: Eu combinei de ir na casa da Lúcia.

MARIANA: Fazer o quê?

HERÓI: Ué, conversar. O pessoal vai tá lá.

MARIANA: Mas tu cansa de dizer que os papos são um saco.

HERÓI: É... Quer dizer. Tem umas pessoas chatas e outras legais.

MARIANA: E como é que é mesmo o nome daquele que tu não gosta? O
Milton, né?

HERÓI: É... O Milton é dose. Ele agora tá querendo ir pra
Moçambique.

MARIANA: Fazer o quê?

HERÓI: Pois é, não sei. Eu tenho um outro cara amigo meu que foi
pra Israel. Deve tá colhendo laranja em algum kibutz.

MARIANA: Laranja?

HERÓI: É... Laranja. Que será que se colhe em Moçambique?

MARIANA: Sei lá. Pêssegos?

HERÓI (V.O.): Sentou na minha frente do propósito. Quer brincar
comigo. Mas eu faço que não tô interessado. Olho pros posters na
parede. Bá, horríveis. Quem sabe se eu virar um pouquinho? Ela
continua me olhando. Puta merda. Parece a fim de conversar. Quem
sabe não tá brincando? Lúcia, eu nunca sei se é sério. Eu gosto
de ti, sabe? Agora ela desviou os olhos. Vai voltar daqui a
pouco. Pra conferir se ainda tô olhando pra ela. Será que ela
sabe que eu tenho vontade de conhecer ela? Tá voltando. Voltou.
Ela tá rindo pra mim. Eu acho que ela me acha chato. O Júlio
disse. A Maria acha que não. Agora é minha vez de desviar.
Pequeno passeio à esquerda... Lúcia, tu vai tá quando eu voltar?
Agora. Lúcia...

LETREIRO: QUINTA-FEIRA

MARIANA: Amanhã é aniversário da Cristina. Vamos juntos?

HERÓI: De quem?

MARIANA: Da Cris. É a minha prima mais chegada. Ela vai fazer
dezesseis anos.

HERÓI: Pô, Mariana, tu sabe que eu não gosto dessas festas. Não
me sinto bem lá. Não gosto daquelas pessoas.

MARIANA: Por quê?

HERÓI: Porque as músicas são chatas. Não gosto da tua prima e ela
não gosta de mim.

MARIANA: Isso não é verdade.

HERÓI: Vai dizer que não notou que ela não vai com a minha cara?

HERÓI: Mariana, eu não tenha nada a ver com aquilo. Me dá uma boa
razão pra eu ir.

MARIANA: Me acompanhar.

HERÓI: Vamos no cinema?

MARIANA: Eu vou na festa.

HERÓI: Tá. E eu vou ter que ir junto arrastado e passar a noite
toda sentado sozinho num canto me embebedando com ponche. Pô,
Mariana, duvido que tu goste dessas festas. Duvido mesmo. Tu vai
por obrigação. Pra agradar a família. Por vaidade.

MARIANA: Vaidosa? Vaidosa, eu? Que coragem a tua! Eu não uso
exatamente três calças e quatro camisetas porque o senhor não
gosta. Eu não ponho mais salto alto porque o senhor acha
bagaceiro. Eu não me pinto mais porque o senhor não gosta. Eu não
prendo mais meu cabelo, eu não corro mais no Parcão. Eu não posso
mais nem andar de barco porque o senhor não sabe nadar.
Vaidosa...

MARIANA: Eu nem pinto mais as unhas. Então vamos na festa juntos?

HERÓI: Vamos, vamos.

LETREIRO: SEXTA-FEIRA

MARIANA: Meia ou inteira?

HERÓI: Ãh? Como é que tá a festa?

MARIANA: Meia boca. Mas tem uns caras legais.

HERÓI: O quê?

MARIANA: Um amigo da minha prima. Ele faz Medicina. Legal ele.

HERÓI: Meia.

HERÓI (V.O.): Isabel, aqui tá frio. Sempre quando eu sinto muito
frio, eu lembro de ti e de Montevidéu. Tô com vontade de pegar um
ônibus e ir pra aí. Acho que só em agosto. Será que ainda vai tá
frio? Isabel... Eu quero te encontrar outra vez na praça, com a
tua sainha xadrez de lã. E depois caminhar até a tua casa,
abraçado em ti. A cidade em volta cheia de táxis velhos e árvores
sem folhas. Montevidéu é parecida contigo. Tem uma luz suave que
rebate nos edifícios e deixa as ruas... sei lá. Ela sabe isso bem
melhor que eu. Eu tô fugindo.

HERÓI (V.O.): Isabel, aqui tá frio. E eu pensando naquele
chocolate quente que tu faz tão bem. Que desce pela garganta e
aquece tudo por dentro. Eu tô com saudade de ti e de Montevidéu.
Tô com vontade de caminhar pela Dezoito de Julho com a certeza de
não encontrar ninguém conhecido pela frente. Eu gosto daquelas
ruas, do cheiro bom que sai dos cafés em cada esquina. Gosto de
descobrir onde ficam as coisas simplesmente pra saber onde elas
ficam, e poder voltar lá sempre. Eu queria estar sentado na praça
do Entrevero, com sol e frio, no centro do universo, com tudo
girando ao redor de mim. Hoje me deu uma vontade de pegar um
ônibus e ir pra aí. Agora, em casa, eu tô meio angustiado e com
um monte de dúvidas... Que certamente eu não vou conseguir
explicar aqui... Puta merda! Tô fazendo história pra escrever pra
Isabel...

HERÓI (V.O.): Isabel, tô com frio. Hoje me deu uma saudade de ti,
que eu tô tentando aliviar escrevendo esta carta. Eu queria
viajar, ir pra aí, caminhar pela beira da praia. Fim de semana
passado eu fui pra praia com uma amiga minha. Mas o mar de
Montevidéu é muito mais bonito. Parece que a luz é diferente,
como se ele fizesse parte da cidade. Azul, marrom e cinza. Um
coisa maior, que sabe das minhas fraquezas e me protege. Eu nunca
me sinto sozinho. Lembra quando a gente viu "Manhattan"? Foi tão
legal, bateu tão forte, que a gente nunca mais foi a cinema
junto. Seria estragar uma coisa perfeita, acabada, que nunca mais
vai se repetir. Eu prefiro ir de tarde, quando tu tá trabalhando.
Duas, três sessões seguidas, até sentir os olhos ardendo e a
cabeça confusa das legendas em espanhol. Ah, só que eu já disse
exatamente isso na última carta... Ou era um negócio parecido
sobre o Trocadero e um outro cinema.

HERÓI (V.O.): Isabel, tô com frio e saudade de ti. Parece que as
duas coisas andam sempre juntas. Tô com vontade de ouvir os
Rolling Stones e dançar contigo. O cheiro bom do teu cabelo meio
no escuro, o apartamento rodando e a cidade inteira sem saber de
nada. Só tu sabe de mim. Da nossa conversa devagar, dando tempo
pras frases se formarem inteiras na cabeça antes de saírem pela
boca. Faz mais de um ano que eu não te vejo e cada vez que eu
escrevo me dá um medo. Parece que eu nunca te toquei de verdade,
que Montevidéu tá do outro lado do mundo e talvez nem exista. Que
essa carta nunca vai terminar. Eu só lembro do teu rosto na hora
de ir embora, e que tava frio. É, tava frio.

LETREIRO: SÁBADO.

MARIANA: Mas... eu não sabia que tinha TV aqui.

HERÓI: Ah, não, não. Não liga. Não liga.

MARIANA: Por quê? Se tem é pra ligar.

HERÓI: E ver o quê as duas e meia da tarde?

MARIANA: Ver TV.

HERÓI: Tá a fim de ver aquelas drogas daqueles desenhos animados
japonês?

MARIANA: Ahá! Tu sabe o que tá passando. Então por que tu me
perguntou o que eu queria ver?

HERÓI: Sei lá se tá passando desenho animado japonês. Eu chutei.

MARIANA: Então não tá passando nenhum desenho japonês? Pena, eu
gosto tanto da carinha deles. Sempre tão limpinhos, arrumadinhos.

HERÓI: Tu não acha que nós temos coisa muito melhor pra fazer do
que ficar vendo essas porcarias?

MARIANA: O quê, por exemplo?

HERÓI: Conversar, por exemplo.

MARIANA: Legal. Então por que a TV se eu nunca te vejo
assistindo?

HERÓI: Eu só ligo quando tenho certeza de que vai passar um filme
bom.

MARIANA: E como é que a gente descobre quando tá passando um
filme bom?

MARIANA: Tá. Não me vem com o teu papo de ter que ler mais livro,
comprar mais jornal, ir mais ao cinema...

HERÓI:  Então vamos no cinema.

MARIANA: Agora de tarde?

HERÓI: Que é que tem?

MARIANA: Sei lá. De tarde parece coisa de quem não tem nada o que
fazer.

HERÓI: Que não é nem de longe o nosso caso, né? Vamos?

HERÓI: Tu já viu aquele filme francês que tá passando no Coral?

LÚCIA: "A Filha da Minha Mulher"?

HERÓI: Hum-hum.

LÚCIA: Não. Ainda não vi. E tu?

HERÓI: Fui ver agora, com a Mariana.

LÚCIA: É bom?
 
HERÓI: Gostei.

LÚCIA: E a Mariana?

HERÓI: Não sei. Nunca sei quando ela gosta dos filmes.

LÚCIA: Por quê?

HERÓI: Ela diz que gosta, mas... Eu gostando ela gosta.

LÚCIA: Como é que tá a transa de vocês?
 
HERÓI: Tá legal.

LÚCIA: Ela faz psicologia, né?

HERÓI: É.

LÚCIA: Acho que eu encontrei uma vez ela contigo, num show da
Reitoria. Eu não me lembro que show que era. Vocês estavam
sentados bem na frente.

HERÓI: Então deve ter sido. Ela gosta de sentar bem na frente.

LÚCIA: Eu tenho vontade de conhecer ela melhor.

HERÓI: A Mariana?

LÚCIA: É, sei lá, tenho vontade de sacar algumas coisas.

HERÓI: Bom, a gente podia sair um dia desses.

LÚCIA: Tu vai ver ela hoje de noite?

HERÓI: Vou.

LÚCIA: E vocês vão fazer alguma coisa?

HERÓI: Não. Nada planejado.

LÚCIA: A gente podia fazer o seguinte: se encontrar aqui em casa,
depois sair, tomar um vinho...

HERÓI: É, acho legal.

LÚCIA: Podia... convidar o resto do pessoal.

HERÓI: É. Tu, a Mariana, o Júlio, o Alexandre a Maria, a Cláudia.
O Milton, acho melhor não.

LÚCIA: Tudo bem.

MILTON: Eu gosto do teu nome, Mariana. Tu deve valer por duas,
né? Maria mais Ana.

MILTON: Sabe que eu tava há horas a fim de te conhecer?

MARIANA: É?

MILTON: É. O que é que tu estuda?

MARIANA: Psicologia.

MILTON: Psicologia? Que barato. Esses dias eu tava lendo um
livro, é dum cara aí, ele diz que a Psicologia, a Psiquiatria,
essas coisas aí, tão cavando um túnel numa montanha. Do outro
lado tá o marxismo, que também tá cavando um túnel. Só que as
duas equipes nunca se encontram.

MARIANA: Mas que montanha é essa?

MILTON: Ah, a montanha é tudo isso aí...

MARIANA: Ah, tá...

MILTOM: E se fosse na China, hein?

MARIANA:  Quê que tem?

MILTON: Eles podiam botar um monte de chineses cavando de cada
lado. Se eles se encontrassem, fariam um túnel; se eles não se
encontrassem, seriam dois túneis.

MARIANA: Eu achei o Milton muito legal. Não vi todas essas coisas
que tu me falou dele. Sei lá, ele é até bem divertido.

PERSONAGEM 1: A Luana Está? É que... eu qcabo de vir do fórum. O
juiz já deu a sentença, o resultado. Eu preciso falar com ela.

PERSONAGEM 2: Eu estou muito nervosa, muito preocupada. Por favor
me diga: ela foi absolvida ou condenada?

LETREIRO: ESTAMOS APRESENTANDO / SÉTIMO SENTIDO.

LOCUTOR: Lucinha Lins, a coleção francesinha se parece com ela...

MARIANA: Betina? Oi, é a Mariana. Quê que tu vai fazer hoje de
noite? É... é que eu tinha uns troços aí, mas nem me lembro mais
o que era. O Rui? Tá, tá legal, então eu passo aí daqui a pouco.

LÚCIA: Se eu não me engano, tá faltando alguém.

JÚLIO: Vamos tomá um chope lá no Alaska?

LÚCIA: Vamos lá, pessoal?

LÚCIA: Oi, tu que é a Mariana?

MARIANA: ÃhHã.

LÚCIA: Vocês não tinham ficado de ir lá em casa hoje de noite?

MARIANA: Ah, tu é a Lúcia... Pois é, ele ficou de me pegar, mas
não apareceu. Eu não sei o que aconteceu, até tô preocupada.

LÚCIA: Lá em casa ele também não pintou.

MARIANA: Será que ele saiu?

LÚCIA: Vamos ver?

LETREIRO: DOMINGO.

HERÓI (V.O.): Ia ser uma grande besteira morrer atropelado numa
manhã de domingo. Não que exista alguma morte útil. Mas eu ainda
não li o jornal. E tenho que separar o caderno de tevê pra
Mariana. Ela quer saber o final da novela. Eu não. Ia ficar tudo
sem graça. O que eu sei é que o frio vem todos os anos, e que a
cidade ainda vai estar aqui, concreta ou fantástica na cabeça de
cada um. Essa chuva vai durar o dia todo, e eu vou entrar no
apartamento sem nada decidido. Talvez as coisas mudem, eu não
tenho pressa.

CRÉDITOS FINAIS

FIM

************************************************************

Carlos Gerbase, 1982.
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

01/01/1983

AnexoTamanho
inverno2.txt27.86 KB