Roteiro em modo texto: [ Download ]
JOGOS DO AMOR E DO ACASO
episódio da série
CONTOS DE INVERNO
roteiro de Jorge Furtado,
Carlos Gerbase
e Giba Assis Brasil
colaboração de Luis Fernando Verissimo
versão 3 - 10/03/2001
livremente inspirado na peça
de Pierre Marivaux
"Le jeu de l'amour et du hasard"
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
para RBS TV
*******************************************************************
CENA 1 - ESCRITÓRIO DA EMPRESA - INTERIOR/FIM DE TARDE
Uma paisagem invernal européia: casas estilo bávaro-gramadense,
neve na calçada, flocos de neve caindo de uma forma um tanto
artificial. Vozes ao fundo.
DANILO (OFF)
Então, vamos embora?
BERNARDO (OFF)
É... eu acho que eu não vou.
DANILO (OFF)
Como é que é?
BERNARDO (OFF)
É, eu não vou. Tá... tá muito frio.
Aos poucos, vamos percebendo que a paisagem na verdade é um
protetor de tela, num computador sobre uma mesa de trabalho.
DANILO (OFF)
Deixa de bobagem, Bernardo. Te dou carona, vamos
lá. O pessoal já deve estar chegando na quadra.
BERNARDO (OFF)
Não, sabe o que é, seu Danilo? É que eu tenho...
O computador sobre a mesa de trabalho está entre outras mesas e
outros computadores, mas é o único que permanece ligado. A sala
está com poucas luzes. A última claridade do dia entra pelas
janelas com persianas. Os dois homens estão de pé, ao lado da
porta.
DANILO
Bernardo, por favor, não me chame de senhor. Não
faça essa crueldade comigo.
BERNARDO
É... desculpe... Danilo.
DANILO, 43 anos, de óculos, está tentando colocar o seu casaco
por cima do pulôver. BERNARDO, 28 anos, ar atlético, está com o
seu casaco na mão, um pouco atrapalhado.
DANILO
E quer dizer que você vai deixar o time dos
solteiros desfalcado?
BERNARDO
(sem jeito) É... A idéia é mais ou menos essa.
De repente, Danilo interrompe o que está fazendo.
DANILO
Ah, entendi... Marcou um encontro?
BERNARDO
É...
DANILO
(conformado) Time dos solteiros é assim mesmo. Tá
sempre perdendo os seus melhores atletas pro
adversário. Ainda mais no inverno. (terminando de
vestir o casaco) Bom, boa sorte. Quer uma carona,
posso te deixar em algum lugar?
BERNARDO
Não. É que o encontro é... (apontando pros
computadores) na Internet.
Danilo vira-se para Bernardo, interessado.
CENA 2 - ESCRITÓRIO DA EMPRESA þ INTERIOR / NOITE
A paisagem invernal de repente se dissolve. Por trás dela,
aparece uma tela de computador, com vários ícones. O ponteiro do
mouse clica no ícone "Bate-papo". Bernardo está sentado à frente
do computador, Danilo está de pé, inclinado, ao seu lado.
DANILO
Bernardo, você fica usando o computador das
empresa para falar na Internet?
BERNARDO
Só depois do expediente.
DANILO
(lendo algo na tela, escandalizado) "Gostaria
muito que você..." Mas o que é isso?
BERNARDO
Não te falei? Elas escrevem cada coisa que você
não acredita. Isso é pinto.
DANILO
É, eu imaginei. Ela disse que tem dezesseis anos?
Deve ser mentira. Não tem foto?
Na tela, a frase: SOLTINHA 28 ENTRA NA SALA.
BERNARDO
Nessa sala aqui não, só texto. (alegrando-se) Olha
ela aí!
DANILO
Onde? Quem?
BERNARDO
Essa. Soltinha, vinte e oito. Eu falei com ela
ontem. Marcamos de nos encontrar hoje e ela veio.
O que é que eu digo?
CENA 3 - QUARTO DE ALÍCIA þ INTERIOR / NOITE
Um quarto de mulher, espaçoso e rico, com cama de casal,
penteadeira e mesa de trabalho. ALÍCIA, 30 anos, de roupão de
banho, está sentada em frente ao computador, as mãos erguidas e
os dedos abertos de quem espera que lhe seque o esmalte nas
unhas. Aos seus pés, escarafunchando-lhe um minguinho, CÍNTIA,
quase 30, a manicure.
ALÍCIA
(alegrando-se) Cíntia, olha! Ele entrou!
CÍNTIA
Uuui!
Cíntia ergue-se e fica ao lado de Alícia.
CÍNTIA
Poeta? Iiiiihh...
ALÍCIA
(lendo) "Boa noite. Que bom que você veio". Não é
muito original.
CÍNTIA
Pelo menos é educado. Responde, Alícia!
ALÍCIA
O que é que eu digo?
CENAS 2/3 - ESCRITÓRIO DA EMPRESA / QUARTO DE ALÍCIA
(INTERCALADOS) - INTERIOR / NOITE
(2) Danilo já puxou uma cadeira, está sentado ao lado de
Bernardo.
BERNARDO
(lendo) "Eu não costumo faltar aos meus
compromissos". Deve ser uma chata.
DANILO
Pergunta como ela é.
BERNARDO
Fisicamente?
DANILO
Bom, não precisa ser tão direto.
(3) Cíntia está sentada ao lado de Alícia.
ALÍCIA
(lendo) "Fale-me de você, quero te conhecer
melhor".
CÍNTIA
Diga que você é solteira, muito rica, tem um corpo
perfeito e os seios fartos.
ALÍCIA
Tá louca, Cíntia!
CÍNTIA
Homem adora isso, Alícia! Vai por mim!
ALÍCIA
Calma!! Tenho vinte e oito anos, sou morena...
(2) BERNARDO
(lendo) ... um metro e setenta. E você?" Ela vai
me achar muito jovem. (para Danilo) Que idade você
tem?
DANILO
Quarenta e três. Por quê?
(3) ALÍCIA
"Tenho um metro e oitenta e três..."
CÍNTIA
Uii!
ALÍCIA
Cabelos castanhos claros. Quarenta e três anos."
Quarenta e três? Ele é muito velho!
CÍNTIA
É perfeito! Mas deve ser casado. Divorciado.
Poeta, duro, ex-mulher, quatro filhos, sua vida
vai ser um inferno. Desligue esse computador, já!
(2) DANILO
(lendo) "Você é casado?" Não, responde que não.
BERNARDO
Ela vai achar que eu tenho algum problema. Quantos
homens de 43 anos você conhece que não são
casados?
DANILO
Eu, por exemplo.
Bernardo examina Danilo, desconfiado.
DANILO
Tá bom. Diz que é viúvo.
(3) CÍNTIA
Viúvo? Iih... Acho melhor eu terminar a tua unha.
Cíntia volta a fazer os pés de Alícia.
ALÍCIA
E agora?
CÍNTIA
Não sei por que você não entra na sala com
imagens. Eu vi um negócio na casa da Guidinha...
Sem brincadeira...
Cíntia retira da bolsa um tubo de spray, em seguida outro maior,
e um terceiro maior ainda, sem se decidir.
CÍNTIA
Era um negócio... Deixa eu ver...
ALÍCIA
Tamanho não é documento, Cíntia!
CÍNTIA
Quem gosta de documento é brigadiano. (com o spray
maior na mão) Eu fico com o tamanho.
ALÍCIA
O que é que eu digo?
CÍNTIA
Pergunta do que foi que a mulher dele morreu.
ALÍCIA
Ai, Cíntia!
CÍNTIA
O cara pode ter alguma doença contagiosa, sei lá.
ALÍCIA
Que horror!
CÍNTIA
Pergunta então há quanto tempo ele é viúvo.
(2) DANILO
Cinco anos.
BERNARDO
E se ela perguntar de quê a minha mulher morreu?
DANILO
Ela não vai perguntar isso.
BERNARDO
E se ela perguntar?
DANILO
Aí você desliga o computador. Pronto. Ou inventa
alguma coisa.
BERNARDO
Alguma coisa o quê?
(3) CÍNTIA
(lendo na tela) Morte natural?
(2) DANILO
Morte natural? Você já mandou isso?
BERNARDO
Mandei. Qual o problema?
(3) ALÍCIA
A mulher dele morreu de morte natural há cinco
anos e ele tem quarenta e três...
CÍNTIA
Chutando por baixo ele deve ter uns oitenta anos,
vai por mim. (pra tela) Velho tarado!
(2) DANILO
(ditando) Toda morte é natural. Como a vida. "A
morte é uma curva da estrada. Morrer é só não ser
visto"
(3) ALÍCIA
Que lindo...
(2) DANILO
Não falei? Essa é mortal! Tem um cigarro aí?
BERNARDO
No bolso do meu casaco.
Danilo sai para buscar o cigarro.
(3) ALÍCIA
Ele escreve muito bem.
(2) BERNARDO
(escrevendo) Obrigado.
DANILO
(voltando com o cigarro) E aí?
BERNARDO
Ela disse que eu escrevo muito bem.
DANILO
Ela tem bom gosto. É do Fernando Pessoa.
BERNARDO
Eu disse que era meu.
DANILO
Você é louco! E se ela descobre?
BERNARDO
Não tem erro. Vou perguntar a profissão dela.
(3) CÍNTIA
Herdeira. Põe aí!
ALÍCIA
Não.
CÍNTIA
Mas é verdade, Alícia! Põe! Ah, se fosse eu...
ALÍCIA
Ele pode querer se aproveitar.
CÍNTIA
A idéia é essa.
ALÍCIA
Vou dizer que eu sou telefonista.
(2) DANILO
Espero que o seu sinal não esteja ocupado para
mim.
BERNARDO
Não, isso é horrível. Vou dizer que eu sou
executivo de uma multinacional.
(3) ALÍCIA
Vou perguntar se ele fuma.
(2) BERNARDO
(apagando o cigarro) Não. Vou perguntar se ela se
acha bonita. Só para tirar a temperatura.
(3) CÍNTIA
Põe aí: tenho um corpo perfeito e os seios fartos.
ALÍCIA
Cíntia...
CÍNTIA
Alícia, vai por mim. Você não entende nada de
homem. Você é praticamente virgem.
ALÍCIA
Cíntia, eu fui casada dois anos.
CÍNTIA
Marido não vale. Escreve isso que eu aposto que
ele vai querer marcar um encontro com você na
hora. Ele vai adorar.
ALÍCIA
Tem certeza?
CÍNTIA
Quer apostar?
(2) DANILO
(animado) Marque um encontro com ela!
BERNARDO
Um encontro real? Já?
DANILO
Claro, ela é perfeita!
(3) CÍNTIA
Eu não disse? Homem e cabelo tingido eu conheço de
longe.
ALÍCIA
Ele quer marcar um encontro... O que é que eu
faço?
CÍNTIA
O que você quiser. Este já está na sua mão.
ALÍCIA
E se ele for um assassino, um maníaco homicida?
CÍNTIA
(concordando) Ou, pior, um baixinho careca? Melhor
falar por telefone. Pede o número dele. Se ele der
é porque não é casado.
(2) BERNARDO
Dou o número daqui?
DANILO
Melhor não. Dá o meu celular.
(3) CÍNTIA
Celular. Deve ser casado. Liga que eu descubro.
ALÍCIA
Como tu vai saber se ele é casado por telefone?
CÍNTIA
Quer apostar? Descubro até se ele é careca. Liga.
ALÍCIA
Não tenho coragem.
(2) Toca o celular de Danilo.
DANILO
É ela. Atende.
BERNARDO
E a minha voz? Ela vai ver que eu não sou... que
eu não tenho quarenta e três.
DANILO
Faz voz de velho.
Bernardo atende.
BERNARDO
(voz de velho muito velho) Alôoo..
(3) CÍNTIA
(ao telefone) Alô? Poeta? (para Alícia) É um velho
caquético. (ao telefone) Bom ouvir sua voz.
(2) Bernardo tapa o celular e entrega para Danilo.
BERNARDO
Não vou conseguir, fala você!
Danilo pega o telefone. Fica alguns segundos sem saber o que
fazer. Fala ao telefone.
DANILO
Alô?
(3) CÍNTIA
Oi? Pensei que tinha caído.
(2) DANILO
Desculpe. Eu estava um pouco gripado, tapei o
telefone para tossir. Não queria tossir no nosso
primeiro encontro.
(3) CÍNTIA
Não é nosso primeiro encontro. Eu sei tudo de
você. Lembra?
(2) DANILO
Claro. É que a gente exagera um pouco na internet.
Não sou exatamente o que eu disse que era.
(3) CÍNTIA
Tudo bem, eu não me importo que você seja casado.
Até acho um pouco excitante, sabia?
(2) DANILO
Casado? Não, eu não sou casado.
(3) CÍNTIA
Não? Que pena... (para Alícia) Não é casado. (ao
telefone) Então o que foi que você mentiu?
(2) DANILO
Aquele verso, "A morte é uma curva da estrada...".
Bem, aquilo é do Fernando Pessoa. Eu não sou
poeta, não de verdade.
(3) CÍNTIA
Para mim, é. Eu também não contei toda a verdade.
(2) DANILO
Já sei. Você é casada.
(3) CÍNTIA
Deus me livre. Não. Eu sou completamente
desimpedida, tenho um corpo perfeito e os seios
(olha para os de Alícia) mais ou menos fartos... e
sou herdeira de uma grande empresa.
ALÍCIA
(desesperada) Cíntia!
(2) Danilo tapa o telefone e fala com Bernardo.
DANILO
Ela é rica! Que sorte! (ao telefone) Para mim isso
não interessa. Melhor você saber que eu não quero
seu dinheiro. Gostei de você.
(3) CÍNTIA
Eu também gostei de você, não me importa se você é
pobre ou careca.
(2) DANILO
Eu não sou careca. (olha para Bernardo) Também não
sou tão velho como disse que era. Só tenho esta
voz de velho. Tenho vinte e seis.
BERNARDO
Vinte e oito!
DANILO
Vinte e oito! Estes dois últimos anos passaram tão
rápido... (olha para Bernardo) Sou atleta, jogo
futebol de salão. Mal.
BERNARDO
Marca um encontro!
(3) ALÍCIA
Quando? Onde?
(2) DANILO
Quando e onde?
BERNARDO
Tem um barzinho em Petrópolis, aconchegante...
(3) CÍNTIA
Eu conheço esse bar. É o máximo! Quando?
ALÍCIA
(soprando) Amanhã.
CÍNTIA
Hoje.
ALÍCIA
Hoje?
CÍNTIA
(para Alícia) Amanhã tem futebol na tv, seleção,
aposto que amanhã ele ia dizer que não pode.
(2) BERNARDO
Hoje! Melhor, amanhã tem futebol.
(3) CÍNTIA
(para Alícia) Não falei?! (ao telefone) Que horas?
CENA 4 - FRENTE DO PRÉDIO DE ALÍCIA - EXTERIOR / NOITE
Alícia e Cíntia, já vestidas para a noite, roupas pesadas por
causa do frio, descem apressadas a escadaria na frente de um
prédio luxuoso, em direção a um táxi parado em frente.
ALÍCIA
Você chamou táxi, Cíntia? Mas eu tenho dois carros
na garagem!
CÍNTIA
Nunca vá de carro no primeiro encontro! Se não,
como é que ele vai te levar em casa depois? Ai,
você não vê novela, Alícia?
Entram no táxi.
ALÍCIA
Não, desde "Saramandaia". Por isso que eu preciso
que você vá junto. Eu vou te apresentar como uma
amiga.
CÍNTIA
Prima. Assim eu também viro herdeira. (pro
motorista) Sempre em frente, moço.
O táxi parte.
CENA 5 - FRENTE DO BAR / PRAÇA þ EXTERIOR / NOITE
Um carro estaciona na frente de um bar, junto a uma praça.
Danilo, na direção, desliga o carro, tira a chave e entrega para
Bernardo, nervoso, no banco ao lado.
DANILO
É aqui.
BERNARDO
E você? Como vai voltar pra casa?
DANILO
Eu pego um táxi. Não esqueça do Vinícius, daquela
poesia da falena e da forma de chamar o garçom.
BERNARDO
(fazendo o gesto, compenetrado) ...sem estalar o
dedo...
Os dois vão saindo do carro. Danilo bate a porta.
DANILO
E, principalmente, Bernardo, seja você mesmo.
BERNARDO
(apavorado) Não, isso não vai dar certo.
DANILO
(sorrindo) Tchau, Bernardo.
Danilo vira as costas e sai caminhando pela praça. Bernardo vai
atrás dele.
BERNARDO
Você fica, depois eu te levo em casa.
DANILO
Bernardo, deixa de ser criança.
BERNARDO
Ela vai me pedir para dizer uma poesia. E eu não
consigo decorar nem letra de axé. Você vem comigo.
Só para... me apresentar. Você diz que é meu
amigo. Meu colega de trabalho.
Danilo olha pra ele e suspira.
BERNARDO
(Pensa.) Não! Me dá um cigarro.
DANILO
(acendendo o cigarro) Mas você disse pra ela que
não fuma.
BERNARDO
É verdade. Toma.
Bernardo entrega o cigarro aceso para Danilo que não sabe o que
fazer com ele.
Na frente do bar, Alícia está chegando, sozinha.
BERNARDO
É ela!
DANILO
Onde?
BERNARDO
A Soltinha vinte e oito. Ali! Meu deus, ela é
linda!
DANILO
Onde?
Alícia entra no bar.
BERNARDO
Entrou no bar. Me dá o cigarro.
DANILO
Como sabe que é ela?
BERNARDO
(fumando, nervoso) Sozinha, cara de rica, cabelo
de rica... Ela vai achar que eu sou um garoto. Ela
vai perceber que eu sou um duro. (atrapalhado)
Danilo, você precisa me fazer um favor...
DANILO
O quê?
BERNARDO
Você entra no meu lugar... Você diz que é o
Poeta... E depois, depois... Depois você me
apresenta.
Os dois vão chegando na entrada do bar.
CENA 6 - BAR - INTERIOR / NOITE
Bernardo e Danilo vêm entrando pelo bar.
DANILO
(sacudindo a cabeça) Eu disse que você era atleta,
vinte e oito anos.
BERNARDO
Não, você disse que VOCÊ era atleta, vinte e oito
anos.
Bernardo pega uma bandeja de garçom que estava sobre uma das
mesas e vai embora com ela.
DANILO
Bernardo, vem cá!
Enquanto ele está tentando chamar Bernardo de volta, ouve uma voz
às suas costas.
CÍNTIA (OFF)
Desculpe.
Danilo se vira e vê Cíntia.
CÍNTIA
Você é o Poeta? (estende a mão) Claro que é. Tá na
cara.
DANILO
Soltinha, vinte e oito?
CÍNTIA
... mas pode me chamar de Cíntia. Prazer.
Danilo olha para Cíntia, maravilhado.
DANILO
Prazer, Danilo. Muito prazer.
FIM DO PRIMEIRO BLOCO
CENA 7 - BAR þ INTERIOR / NOITE
Danilo e Cíntia sentados à mesa do bar, de frente um pro outro,
se olhando, meio sem graça. Danilo procura algo pra dizer.
DANILO
Eu... sei o que você tá pensando.
CÍNTIA
Ah, sabe?
DANILO
Você deve estar achando... que eu não tenho vinte
e oito anos.
CÍNTIA
Ainda bem. Gosto de homens mais assim... que nem
você, não de franguinhos. E você corre oito
quilômetros por dia mesmo ou...?
DANILO
Sete, sete e meio. Você não parece ser uma
herdeira de uma grande empresa.
CÍNTIA
(ofendida) Por que não?
DANILO
Não, é que... a gente imagina sempre que uma
herdeira seja sempre feia e chata, para compensar.
Mas você... é muito bonita.
CÍNTIA
Obrigado.
DANILO
Como você disse que era. Até mais.
CÍNTIA
Você também é uma gracinha. E aquelas poesias,
hein?
DANILO
Não são minhas. Eu leio muito, gosto de ler...
CÍNTIA
Diz uma para mim.
DANILO
Uma poesia?
CÍNTIA
É.
DANILO
Bom... Deixa ver... (recitando) Cabelos da cor
morena, teus olhos, luz do luar; quero ser uma
falena, para em teus lábios pousar...
CÍNTIA
Que bonito. Falena é o quê?
DANILO
Uma borboleta.
Neste momento, Alícia chega, ficando de pé ao lado de Danilo.
CÍNTIA
Alícia! Você por aqui... (para Danilo) Esta é a
Alícia, minha manicure. Ela mora... aqui perto, eu
acho.
ALÍCIA
É, pertinho.
CÍNTIA
É. Este é o Poeta, quer dizer, o Danilo.
Danilo levanta-se para cumprimentá-la.
DANILO
Prazer. (atrapalhado) Quer sentar?
Mas, antes que eles sentem, agora é Bernardo quem chega, ficando
entre Cíntia e Alícia, e cumprimentando Danilo como se não o
visse há algum tempo.
BERNARDO
Danilo!
DANILO
Oi! Chegou bem na hora! (para as moças) Esse é o
meu grande amigo... o ...
BERNARDO
Bernardo.
DANILO
Bernardo, claro. (apresentando) Cíntia, Alícia.
BERNARDO
(sentando) Prazer.
DANILO
O Bernardo é...
BERNARDO
Dono da empresa onde ele trabalha.
DANILO
Dono da empresa onde ele trabalha. (corrigindo)
Onde eu trabalho.
BERNARDO
O Danilo é um dos melhores funcionários de uma das
minhas muitas empresas.
DANILO
É, o Bernardo... é um ótimo patrão.
BERNARDO
Patrão, empregado... Isso a gente não escolhe. Faz
parte da herança.
ALÍCIA
É, eu sei.
BERNARDO
(interessado) Você também é herdeira?
ALÍCIA
Não. Sou manicure. (apontando Cíntia) Ela é que é
herdeira.
CÍNTIA
Sou. Herdeiríssima.
BERNARDO
(para Cíntia) Dinheiro é só ilusão. (para Alícia)
A verdade está na poesia.
DANILO
Não exagera, Bernardo.
Bernardo vai dizer alguma coisa para Alícia, mas muda de idéia e
recita para Cíntia.
BERNARDO
Cabelos da cor morena, teus olhos, luz do luar;
quero ser uma... uma...
CÍNTIA
Falena.
ALÍCIA
Falena?
CÍNTIA
É uma borboleta. Alícia, você não tá com fome?
ALÍCIA
Eu não. (para Bernardo) Você é poeta mesmo?
BERNARDO
Nem tanto. Eu estou com fome. Hã... (para Cíntia)
Quer jantar?
DANILO
Grande idéia! Vocês... empresários... vão jantar e
nós... trabalhadores manuais... vamos nos
divertir. (para Alícia) O que você gosta de fazer?
ALÍCIA
Como assim?
DANILO
Para se divertir.
ALÍCIA
Ah. Gosto de novela. De ler revista. De pagode,
essas coisas.
DANILO
Pagode, é? (sorrindo amarelo) Que interessante...
CENA 10 - RESTAURANTE LUXUOSO þ INTERIOR / NOITE
Bernardo e Cíntia entram num restaurante elegante. Chegam até uma
mesa vazia.
Um garçom puxa a cadeira para Cíntia sentar. Bernardo se confunde
e puxa a cadeira para outro garçom sentar. Depois se dá conta e
senta. O garçom empurra a cadeira e Bernardo pula, assustado,
como se tivesse sido atacado por trás. Se dá conta do que foi e
senta.
GARÇOM
Madame deseja um kir?
BERNARDO
(para Cíntia) Você quer um kir?
CÍNTIA
(disfarçando) O que é um kir?
BERNARDO
Kir é um espécie de.. de... (para o garçom) Ela
não quer o kir.
GARÇOM
E o cavalheiro? Alguma coisa do bar?
BERNARDO
Tem kir?
GARÇOM
Kir?
BERNARDO
Quero.
O garçom deixa os cardápios e se afasta.
BERNARDO
(para as costas do garçom) Obrigado, Jarbas!
CÍNTIA
Você vem sempre aqui?
BERNARDO
Tá brincando? Eles até têm um prato com meu nome.
CÍNTIA
(examinando o cardápio) Qual?
BERNARDO
(examinando o seu) Este. Peixe a Belle Meunière.
CÍNTIA
"Belmenier" é você?
BERNARDO
Um apelido.
CENA 11 - BOTECO þ INTERIOR / NOITE
Alícia e Danilo entram em um boteco popular. Alguns casais dançam
um pagode animado entre as mesas. Danilo olha em volta,
contrariado. Alícia, assustada, olha em direção ao balcão. O
balcão está apinhado de gente mal-encarada, de pé, bebendo.
Alícia hesita por um instante. Mas em seguida toma uma decisão,
respira fundo e vai em frente, conduzindo Danilo.
ALÍCIA
(como se conhecesse todo mundo) Oi, galera!
Faz-se um silêncio enquanto todos examinam os recém-chegados.
Depois recomeça a zoeira típica de boteco cheio. Alícia e Danilo
não conseguem chegar até o balcão. Têm que fazer o pedido de
longe.
ALÍCIA
(para o dono do boteco atrás do balcão) Ó,
amizade!
Todos ficam em silêncio de novo e se viram para eles. Alícia
precisa fazer seu pedido para uma platéia atenta.
ALÍCIA
Ceva uma salta! (corrige-se) Salta uma ceva! E
dois copos!
Como o vexame já é total e todas as atenções continuam nela, ela
não pára. Vai numa espécie de crescendo suicida:
ALÍCIA
E um peixinho frito! E dois ovos duros! E um
pastel! Sem barata dentro! (tomada de pânico) E
uma cachacinha pra rebatê!
Há um instante de silêncio absoluto. Ninguém se mexe. Depois
recomeça a zoeira e Alícia pode relaxar.
ALÍCIA
(para Danilo) Isto aqui é o meu chão.
A expressão na cara de Danilo é de repulsa disfarçada.
CENA 12 - RESTAURANTE - INTERIOR / NOITE
No restaurante chique, a comida já foi servida. Bernardo e Cíntia
olham para os pratos à sua frente.
CÍNTIA
Eu nunca sei. O certo é cortar com a faca na mão
direita, depois passar a faca para a outra mão e
usar o garfo com a direita, ou continuar com a
faca na direita e usar o garfo com a esquerda?
BERNARDO
Depende.
CÍNTIA
Depende de quê?
BERNARDO
Varia de país para país. Nos países que não têm
"r" no nome, tem que trocar de mão. Mas, aqui no
Brasil...
CÍNTIA
(fingindo entender) Ah.
CENA 13 - BOTECO - INTERIOR / NOITE
Alícia e Danilo conseguiram chegar até o balcão. Alícia está
acabando de comer o peixe frito, sob o olhar incrédulo de Danilo.
ALÍCIA (para o dono do boteco)
Ó amizade, tem um palito aí?
O dono tira o palito de trás da orelha e entrega a Alícia.
ALÍCIA (para Danilo)
Você não comeu o peixe.
DANILO
Não, é que, muita fritura, eu realmente...
ALÍCIA
Então come um ovo.
Danilo examina o garrafão com os ovos boiando na água. Pega um
ovo.
DANILO
Será que eles trocam essa água?
ALÍCIA
Claro. Todo ano.
Cara de nojo de Danilo comendo o ovo.
CENA 14 - RESTAURANTE - INTERIOR / NOITE
Bernardo recebe a conta do garçom, que se afasta.
BERNARDO
Obrigado, Jarbas.
CÍNTIA
Jarbas não era o outro?
BERNARDO
Os dois são Jarbas. São irmãos.
Bernardo examina a conta e tenta disfarçar seu pavor.
BERNARDO
Hmmm. Certo, certo. (chamando o "jarbas") Por
favor... (mostrando) Isto aqui é o...
GARÇOM
O vinho, senhor.
BERNARDO
Ah, o vinho. Pensei que mil novecentos e oitenta e
dois fosse o ano... Tudo bem. Está razoável. Que
cartões de crédito vocês aceitam?
GARÇOM
Todos, senhor.
BERNARDO
Todos. Justamente o que eu não tenho. (tirando do
bolso o talão de cheques) Vou fazer um cheque.
GARÇOM
Aceitamos seu cheque com prazer, senhor.
BERNARDO
Não sei se o banco vai dizer o mesmo. Rá, rá.
Brincadeira...
Bernardo começa a preencher o cheque.
CENA 15 - BOTECO - INTERIOR / NOITE
Danilo está suando frio, seca a testa com a toalha da mesa.
ALÍCIA
Toma um licor de ovo.
DANILO
Nem pensar.
ALÍCIA
Ajuda a digestão.
DANILO
Prefiro a indigestão.
ALÍCIA
(para o dono) Ó, amizade. Vê aí a horrorosa.
Silêncio.
ALÍCIA
A pavorosa? A vergonhosa?
DANILO
A dolorosa?
ALÍCIA
(batendo com a palma da mão no balcão) Acertou na
mosca. (depois, examinando a palma) E eu também.
CENA 16 - ESCRITÓRIO DA EMPRESA - INTERIOR / FIM DE TARDE
De novo a paisagem invernal européia, os flocos de neve, etc.
Vozes ao fundo.
DANILO (OFF)
Então, vamos embora?
BERNARDO (OFF)
É... eu acho que eu não vou.
DANILO (OFF)
Como é que é?
BERNARDO (OFF)
É, eu não vou. Tá... tá muito frio.
A paisagem, como já sabemos, é um protetor de tela, num
computador sobre uma mesa de trabalho.
DANILO (OFF)
Deixa de bobagem, Bernardo. Nós marcamos com as
duas, às oito horas, na minha casa. Quer dizer, na
"tua casa". Tá certo que a noite de ontem não foi
lá muito animadora...
O computador com o protetor de tela da neve é o único ligado no
escritório, que está com poucas luzes. A última claridade do dia
entra pelas janelas com persianas. Danilo e Bernardo estão de pé,
ao lado da porta.
BERNARDO
Foi um fracasso.
DANILO
É... Eu estou sentindo o gosto daquele ovo até
agora.
BERNARDO
O restaurante onde eu fui era tão caro que o
cardápio tinha índice e bibliografia.
DANILO
Bom, mas... tudo pode melhorar. Ontem você
desistiu do time dos solteiros. Agora vai desistir
de casar pela Internet?
BERNARDO (OFF)
Não, sabe o que é, Danilo? É que...
DANILO
Bernardo, eu não acredito. Você marcou outro
encontro? Com quem?
BERNARDO
(sorrindo) Enfermeira do Funk. Dezenove anos.
CENA 17 - FRENTE DO PRÉDIO DE DANILO - EXTERIOR / NOITE
Um táxi pára na frente de um prédio de classe média. Dentro do
carro, além do motorista, estão Cíntia e Alícia.
ALÍCIA
Eu vou seguir, moço. Ela desce e eu volto pra
casa.
CÍNTIA
Na-na-ni-na-não! Você que inventou essa coisa de
namorar pela Internet. Não vai dar pra trás agora.
ALÍCIA
Mas deu tudo errado...
CÍNTIA
Mas pode melhorar. (pro motorista) Só um
pouquinho, moço, que a gente já vai resolver isso
aqui. (pra Alícia) O Danilo não deve ter dinheiro,
mas você não precisa disso. E, vou te dizer: ele é
um gato!
ALÍCIA
Mas que gato, Cíntia? Ele comeu aquele ovo cozido!
Só de lembrar, me dá enxaqueca. Já o teu Bernardo
pelo menos é um sujeito educado.
CÍNTIA
Ih! Metido a besta! Todo cheio de nove-horas...
Tem razão. (pro motorista) Moço, ela fica e eu
volto pra casa.
CENA 18 - SALA DE DANILO þ INTERIOR / NOITE
Na sala de classe média, decorada com bom gosto, Danilo está
terminando de arrumar alguma coisa sobre a mesa quando ouve-se a
campainha.
DANILO
São elas. O jantar fica pronto em quinze minutos.
Bernardo levanta do sofá, fecha o livro que tem na mão. Os dois
vão se dirigindo à porta.
BERNARDO
Não vai dar certo, Danilo. A Cíntia não vai
acreditar que um empresário como eu mora nessa
casa.
DANILO
Não tem problema. É só "um empresário como você"
levá-la pra conhecer o teu jota-ká no Passo da
Areia.
BERNARDO
Muito engraçado.
DANILO
Vou abrir. Disfarça.
Danilo abre a porta. Alícia e Cíntia, bastante sérias, olham para
Danilo e Bernardo, que começam a rir, disfarçando.
BERNARDO
(rindo, exagerado) Ah, ah, ah! Boa essa, hein?
DANILO
O Bernardo sabe umas piadas ótimas.
Cíntia praticamente empurra Alícia pra cima de Danilo.
CÍNTIA
A Alícia também.
DANILO
Eu não sei contar piada.
CÍNTIA
Nem eu.
DANILO
Não consigo me lembrar do fim, conto tudo errado.
CÍNTIA
A Alícia não esquece uma piada.
DANILO
O Bernardo também não.
Os quatro chegam à sala, Danilo indica os sofás. Cíntia senta ao
lado de Bernardo, emburrado. Alícia senta ao lado de Danilo.
CÍNTIA
Sabe o que é enorme, verde e terrível, vive
embaixo da terra e come pedra?
DANILO
Não.
CÍNTIA
O enorme, verde e terrível monstro subterrâneo
comedor de pedra.
DANILO
(rindo) Muito boa.
CÍNTIA
Foi a Alícia que me contou.
DANILO
O Bernardo sabe todas aquelas piadas de elefante.
CÍNTIA
Tem outra: se a gente fizer um buraco no Brasil
que atravesse toda a terra, jogar um cascalho
dentro, onde é que ele vai cair?
DANILO
Não sei.
BERNARDO
No Japão?
CÍNTIA
Não, na boca do enorme, verde e terrível monstro
subterrâneo comedor de pedra.
DANILO
(rindo muito) Ah, ah, ah! Não posso me esquecer
dessa.
ALÍCIA
Conhece aquela do português que botou um olho
mágico na geladeira para ver se a luz apagava
mesmo?
Ninguém ri.
BERNARDO
Qual?
ALíCIA
É... só isso. O cara botou um olho mágico na
geladeira. Para ver se a luz apagava quando a
porta fecha. Ele era português, entende?
DANILO
(pegando uma garrafa de vinho) Ah, entendi.
CÍNTIA
Muito boa essa.
BERNARDO
(levantando-se) Com licença. Eu preciso ir no
escritório, já volto.
Bernardo, impulsivamente, sai da sala. Cíntia acompanha-o com o
olhar, contrariada. Danilo terminou de abrir a garrafa de vinho e
está com ela na mão.
CÍNTIA
Metido esse teu amigo, hein?
DANILO
Não, imagina! Ele é uma pessoa muito sensível. É
que os empresários... bom, você sabe melhor que
eu.
CÍNTIA
Sei.
DANILO
Cíntia, você não quer... conhecer o escritório do
Bernardo?
CÍNTIA
Não. Quero vinho.
DANILO
Claro. (oferecendo o vinho) Alícia?
ALÍCIA
Eu quero.
Alícia se levanta e sai da sala, pelo mesmo lado por onde saiu
Bernardo.
CENA 19 - ESCRITÓRIO DE DANILO þ INTERIOR / NOITE
Bernardo está sentado em frente a um computador, digitando alguma
coisa, apressado. O escritório não é muito grande, com livros por
todas as paredes, a mesa com o computador, um velho sofá e uma
poltrona grande.
De repente, a porta do escritório se abre. Bernardo leva um susto
e põe-se de pé.
ALÍCIA
(olhando em volta) Você tem muitos livros aqui.
BERNARDO
(atrapalhado) É... Os computadores e a internet
vão acabar com os livros.
ALÍCIA
Será? Não consigo pensar em ir para a cama com um
bom computador.
BERNARDO
(precipitado) E comigo?
ALÍCIA
Como?
BERNARDO
(disfarçando) Comigo... é a mesma coisa. Não tem
nada melhor que um bom livro. Tá frio aqui, não é?
ALÍCIA
É. A Cíntia está esperando por você, lá na sala.
BERNARDO
É, eu já vou. (olhando pra ela) Daqui a pouco.
CENAS 18/19 - SALA / ESCRITÓRIO DE DANILO - INTERIOR / NOITE
(18) Cíntia toma um gole de vinho e termina o seu cálice. Ergue-o
em direção a Danilo, pedindo mais. Danilo aproxima-se para
servir.
DANILO
Achei que vocês iam se dar bem.
CÍNTIA
Quem?
DANILO
Você e o Bernardo. Têm tudo a ver. Gostam de
poesia. São... herdeiros.
CÍNTIA
Pois é. (toma outro gole) Mas também é bom variar
um pouco.
DANILO
Como assim?
CÍNTIA
Namoro, ora! Amigo a gente acaba escolhendo porque
é parecido. Mas namorado... pode ser bem
diferente.
Danilo fica um tempo olhando pra Cíntia, extasiado.
DANILO
Mas amizade também é importante.
CÍNTIA
Claro. Amigo para mim é sagrado.
DANILO
Tem gente que quando se apaixona esquece os
amigos.
CÍNTIA
Acho horrível isso.
DANILO
Eu seria incapaz de trair uma amizade por causa de
uma paixão.
CÍNTIA
Eu também. Completamente incapaz.
De repente, sem que se possa dizer quem tomou a iniciativa,
Cíntia e Danilo se beijam, se agarram.
(19) No escritório, Alícia e Bernardo estão se beijando, se
agarrando. Mas em seguida separam-se.
ALÍCIA
Eu preciso te contar uma coisa.
BERNARDO
Eu também.
ALÍCIA
Eu marquei um encontro na internet.
BERNARDO
Eu sei. Eu marquei dois.
ALÍCIA
Para encontrar com outra pessoa.
BERNARDO
Eu também.
ALÍCIA
Essa outra pessoa era o Danilo.
BERNARDO
Eu também!
ALÍCIA
Como?
BERNARDO
Quero dizer, a minha outra pessoa é a Cíntia. Era
a Cíntia.
ALÍCIA
A Cíntia?
BERNARDO
É. Eu marquei com a Soltinha vinte e oito. Naquele
bar.
ALÍCIA
A Soltinha vinte e oito sou eu. Você é o Poeta?
BERNARDO
Sou! Quero dizer, eu não sou poeta. Poeta mesmo é
o Danilo.
ALÍCIA
Nem eu sou soltinha. Por isso pedi para Cíntia ir
no meu lugar.
(18) CÍNTIA
E eu fui.
DANILO
O Bernardo pediu pra eu ir, eu fui. O que a gente
não faz pelos amigos?
CÍNTIA
E pelas amigas...
DANILO
Na verdade, eu não sou atleta.
CÍNTIA
Eu também não sou herdeira. Não que eu saiba.
DANILO
E este apartamento não é do Bernardo.
(19) BERNARDO
É do Danilo. O meu é um jota-ká no Passo da Areia.
E não tá pago.
ALÍCIA
Eu pago. Te compro um novo. Te levo pra morar
comigo.
Bernardo e Alícia voltam a se beijar. Depois se separam de novo.
BERNARDO
Será que a gente conta pra eles?
ALÍCIA
Não! A Cíntia vai ficar chateada.
(18) CÍNTIA
Hoje não! A Alícia vai ficar arrasada.
DANILO
Talvez ela e o Bernardo se entendam. Afinal, foram
eles que se encontraram na internet.
CÍNTIA
Não. Ela não gostou dele, desde o princípio. Essa
eu conheço, é complicada...
DANILO
Mas então por que eles tão há tanto tempo no
escritório?
(19) ALÍCIA
O que você vai dizer?
BERNARDO
A verdade. Que eu acho ela uma pessoa muito
bacana...
ALÍCIA
Não, isso é horrível! Diga que ela é linda.
BERNARDO
Certo. Ela é uma pessoa genial, fantástica, linda
e muito sensível, mas...
ALÍCIA
Ela vai ficar arrasada.
Neste momento, Cíntia e Danilo entram no escritório. Alícia e
Bernardo se afastam, tentando disfarçar.
ALÍCIA
Cíntia, a gente estava falando de você. O Bernardo
estava justamente dizendo que...
BERNARDO
... que você é uma pessoa fantástica, incrível,
extraordinária, hã...
ALÍCIA
(soprando) Linda.
BERNARDO
Linda, claro.
Mas Cíntia está sorrindo, olhando pros rostos de Bernardo e
Alícia e percebendo tudo.
CÍNTIA
Já sei. Então quer dizer que vocês...?
ALÍCIA
(protestando) Nós?
DANILO
(pra Cíntia) Eles? Também?
BERNARDO
Como, "também"? Então vocês...?
CÍNTIA
Também.
DANILO
E vocês já sabem?
ALÍCIA
Sabemos.
BERNARDO
E quando vocês... souberam?
CÍNTIA
Acabamos de saber.
BERNARDO
Tou sabendo.
Alícia beija Bernardo. Cíntia beija Danilo. Os dois casais se
beijam e se agarram, no escritório. Sobe a música e, com ela,
começam a subir os créditos. Até que Cíntia se afasta,
interrompendo.
CÍNTIA
Mas tem uma coisa que eu quero saber. Antes do
jantar.
Os outros olham pra ela, na expectativa.
CÍNTIA
(para Bernardo) Você descobriu o que é kir?
ALÍCIA
Kir? É um coquetel com licor de cassis e vinho
branco.
DANILO
E tem o kir royal. (abre o champanhe) Com
champanhe.
BERNARDO
Desculpe, mas o que é licor de cassis?
DANILO
Licor de origem francesa, feito de uma pequena
fruta silvestre, muito apreciado na região de
Dijon.
CÍNTIA
Este homem é praticamente uma Barsa. Pois eu não
faço questão nenhuma do licor de cassis.
Os dois casais voltam a se beijar, a música a subir, os créditos
também. Até que Alícia interrompe. Pergunta para Bernardo, em voz
baixa.
ALÍCIA
Você não tinha mais alguma coisa pra me contar?
BERNARDO
Eu?
ALÍCIA
Você não disse que tinha marcado dois encontros na
Internet? Qual foi o outro?
BERNARDO
Ah, uma bobagem. Você não precisa levar a sério
tudo o que eu digo.
E, mais uma vez, voltam a se beijar apaixonadamente. Ao fundo,
Cíntia e Bernardo nem chegaram a interromper o seu idílio. Ao
lado deles, o computador permanece ligado, na sala de bate-papo.
Na tela, em letras enormes, a frase: ENFERMEIRA DO FUNK SAIU DA
SALA. PRA SEMPRE.
Em seguida, entra o protetor de tela, com a mesma imagem lá do
início. E, por cima dele, agora sim, os créditos finais.
FIM
*******************************************************************
(c) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 2001
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
07/07/2001
Anexo | Tamanho |
---|---|
jogosaa.txt | 49.29 KB |