A MATADEIRA

Roteiro em modo texto: [ Download ]

                   A MATADEIRA
 
                   roteiro de Jorge Furtado
                   versão de 23/11/1993
 
                   produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
 
*******************************************************************
 
CENA 0 - CARTÃO
 
                   "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda
                   a história, resistiu até o esgotamento
                   completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão
                   exata do termo, caiu no dia cinco de outubro
                   de 1897, ao entardecer, quando caíram os seus
                   últimos defensores, que todos morreram. Eram
                   quatro apenas: um velho, dois homens feitos
                   e uma criança, na frente dos quais rugiam
                   raivosamente cinco mil soldados".
 
                   Euclides da Cunha, "Os Sertões".
 
 
CENA 1 - QUARTEL / ESTÚDIO
 
Um jovem OFICIAL INGLÊS mostra uma pequena peça metálica.
Fora de quadro, um INTÉRPRETE vai traduzindo o que ele diz. O
intérprete fala muito alto, quase gritando, enquanto o oficial
inglês fala em tom bem baixo. O som ambiente sugere um grande
espaço e um grande público, que não é mostrado.
 
                   OFICIAL INGLÊS
                   And this... is the fuse.
 
                   INTÉRPRETE (FQ)
                   Esta é a espoleta.
 
                   OFICIAL INGLÊS
                   The fuse is the main piece of the trigger.
 
                   INTÉRPRETE (FQ)
                   A espoleta é a peça principal do gatilho.
 
                   OFICIAL INGLÊS
                   The trigger is the main piece of the gun.
 
                   INTÉRPRETE (FQ)
                   O gatilho é a parte principal do canhão.
 
                   OFICIAL INGLÊS
                   So, if you have no fuse, you have no gun.
 
                   INTÉRPRETE (FQ)
                   Logo, se vocês não tiverem espoleta, vocês não
                   tem canhão.
 
                   OFICIAL INGLÊS
                   (olhando para os dois lados) Do you have some
                   question?
 
O oficial inglês, o intérprete e vários OFICIAIS BRASILEIROS
estão sobre um palanque.
 
                   INTÉRPRETE (FQ)
                   Alguma pergunta?
 
Os oficiais brasileiros se entreolham. Sem perguntas.
 
                   OFICIAL INGLÊS
                   (pausa) So, here it is. (volta-se para o
                   fundo) The Withworth 32.
 
O fundo do palanque, uma imensa porta metálica, se abre revelando
o canhão "Withworth 32", a "Matadeira".
 
 
CENA 2 - PÁTIO DO QUARTEL / ESTÚDIO
 
Detalhes do canhão em movimento, puxado por várias juntas de de
bois. Os planos iniciais são bastante fechados. No final da
sequência revela-se o conjunto: o imenso canhão sobre rodas,
puxado por vinte juntas de bois e acompanhado por cerca de cem
soldados da infantaria e da cavalaria.
 
                   LOCUÇÃO
                   "Vi a grande máquina avançando,
                   escurecendo o sol.
                   Todos se deitavam em seu caminho,
                   ninguém fugia.
                   Meu amor e eu olhamos, sem compreender,
                   este mistério sangrento.
                   "Deitem-se, deitem-se!" gritavam todos.
                   "A grande máquina é a história!"
 
 
CENA 3 - ESCRITÓRIO / ESTÚDIO
 
Um PROFESSOR sentado num escritório. O fundo é uma grande estante
coberta de livros. Ele fala diretamente para a câmera.
 
                   PROFESSOR
                   O massacre de Canudos tem uma causa bastante
                   simples.
 
 
CENA 4 - TABLE-TOP
 
Animação. O texto iniciado na CENA 3 é didaticamente ilustrado
numa animação.
 
                   LOCUÇÃO DO PROFESSOR
                   Com o fim do ciclo da mineração no Brasil, a
                   economia do nordeste, que era baseada
                   especialmente no gado e seus derivados, entra
                   em colapso. O sertão se transforma num imenso
                   sistema de economia de subsistência.  Neste
                   momento estoura, nos Estados Unidos, a guerra
                   da Secessão. Acontece que a Europa,
                   principalmente a Inglaterra, dependia do
                   algodão americano para sua indústria. E o
                   nordeste brasileiro poderia suprir esta
                   necessidade. Estradas de ferro são construídas
                   e linhas de vapor ligam o nordeste a
                   Liverpool. Os sertanejos passam a ser
                   aliciados numa ampla rede de favores onde os
                   coronéis doam pequenos bens materiais e o
                   direito temporário sobre o uso da terra. Um
                   dia, a guerra acabou. A Inglaterra normaliza
                   sua relações com os Estados Unidos e a
                   economia do nordeste entra em colapso.
 
Os coronéis, sem recursos, não conseguem manter os laços de
dependência com a antiga clientela. Este quadro caótico favorece
o surgimento de bandos de cangaceiros e de ajuntamentos em torno
de líderes religiosos, como foi o caso de Canudos.
 
 
CENA 5 - CAMINHO PARA CANUDOS / ESTÚDIO
 
A Matadeira, puxada por várias juntas de bois e empurrada por
cerca de dez soldados, não consegue vencer um obstáculo do
terreno. A cena é mostrada em planos bastante fechados, de modo a
se perceber o esforço físico dos soldados e o peso do canhão. Os
soldados gritam muito. Quando finalmente as rodas do canhão
conseguem vencer o obstáculo do terreno, sob a comemoração dos
soldados, vemos, em grande plano geral, a matadeira como uma
pequena peça no horizonte, perdida na vastidão do sertão e com
dezenas de obstáculos pela frente, alguns maiores que o que
acabou de ser vencido.
 
 
CENA 6 - PALÁCIO DO CATETE / ESTÚDIO
 
Brasão da república.
 
                   LOCUÇÃO
                   Passamos agora a transmitir, diretamente do
                   palácio do Catete, a palavra do excelentíssimo
                   Sr. Prudente de Moraes, Presidente da
                   República do Brasil.
 
Num púlpito presidencial, Prudente de Moraes fala, olhando
diretamente para a câmera. Imagem em vídeo.
 
                   PRUDENTE DE MORAES
                   A república não pode admitir que uma pequena
                   comunidade do sertão baiano sirva de exemplo
                   de sublevação aos ideais da modernidade. Esta
                   afronta à república, promovida pela
                   caudilhagem monárquica, deve ser reprimida a
                   qualquer custo. (aplausos) Sabemos que, por
                   trás dos fanáticos de Canudos trabalha a
                   política. Mas nós estaremos preparados, tendo
                   todos os meios para vencer, seja como fôr,
                   contra quem fôr. (aplausos)
 
O presidente termina o pronunciamento. Algumas pessoas se
aproximam e o cumprimentam. Sobre esta imagem entra a locução.
 
                   LOCUÇÃO
                   Acabamos de transmitir a palavra do
                   excelentíssimo presidente da república. Como
                   todos puderam ver, a causa do massacre de
                   Canudos é muito simples.
 
 
CENA 7 - SERTÃO / ESTÚDIO
 
Um sertanejo, a mulher e seis filhos estão na frente de um
casebre. A mulher tem uma criança pequena no colo e está grávida.
O homem fala direto para a câmera.
 
                   SERTANEJO
                   Eu não entendo essa coisa de república e
                   monarquia, não senhor. Eu entendo é de cabra e
                   bode. A gente morava num lugar que era longe
                   de prá lá dos Moura, sim senhor. Aí agarraram
                   de botar cerca de arame que os bode e as cabra
                   não podia se acercar do pasto. Se os bode e as
                   cabra não come eles morre, é que nem gente. Aí
                   a gente agarrou e veio pra Canudos que o seu
                   Antônio deixou a gente ficar por aqui, que
                   aqui não tem cerca, a terra é de todos, sim
                   senhor. Agora querem tirar a gente daqui. Se a
                   república não deixa os bode e as cabra se
                   acercar do pasto então gente é pela monarquia,
                   sim senhor. A gente agora vai brigar.
 
 
CENA 8 - ACAMPAMENTO DO EXÉRCITO / ESTÚDIO
 
Ao lado da matadeira, alguns soldados fazem um churrasco. Os
arreios presos ao canhão estão vazios. Vários grupos de soldados
fazem churrascos. Um grupo de soldados carneia um boi.
 
 
CENA 9 - IGREJA / ESTÚDIO
 
Dramalhão mexicano. Preto e branco. Os personagens atuam de forma
muito exagerada. A locução e a trilha têm um tom melodramático.
Casamento de Conselheiro. Os noivos Antônio e BRASILINA na
igreja, o cumprimento dos parentes, o beijo dos noivos. A MÃE de
Antônio demonstra clara desaprovação pela nora.
 
                   LOCUÇÃO
                   O sol parecia brilhar na vida de Antônio
                   Vicente naquela tarde de verão. Na matriz de
                   Quireramobim, no primeiro dia de 1857, Antônio
                   Vicente unia-se em laços matrimoniais com
                   Brasilina. Mal sabia nosso humilde comerciante
                   que aquele casamento seria o início de sua
                   ruína.
 
CENA 10 - CASA DE CONSELHERIRO / ESTÚDIO
 
Sobe a música. Passagem de tempo. Noite no sertão. Numa humilde
choupana, Brasilina está costurando junto ao fogo. Antônio, que
conferia alguns cadernos, é chamado por sua mãe a um canto da
sala. A mãe sussurra algo no ouvido do filho. Ele olha para a
mulher. A mãe volta a sussurrar. Antônio parece muito perturbado.
Pega uma mala e se despede de Brasilina e da mãe. Brasilina vem
até a janela e abana para Antônio, que se afasta à cavalo. A mãe
diz que está com sono e deixa Brasilina sozinha.
 
                   LOCUÇÃO
                   Em sua humilde choupana em Itapicurú, Antônio
                   não conseguia viver uma vida tranquila com
                   Brasilina. Maria Chana, mãe de Antônio
                   Vicente, dizia que Brasilina tinha um amante.
                   Instigado por Maria Chana, Antônio resolve
                   então armar uma cilada para Brasilina.
 
 
CENA 11 - SERTÃO / ESTÚDIO/NOITE
 
Antônio faz meia volta com o cavalo. Cavalga em direção a sua
casa. Desmonta, amarra o cavalo e se esgueira em direção à casa.
Fica de tocaia, vigiando a janela. De repente, um vulto caminha
ao lado da casa. Um homem tenta entrar pela janela. Antônio,
transtornado, pega sua espingarda e mata o sujeito. Assustada com
o tiro, Brasilina sai da casa e, junto com Antônio, chegam para
ver a identidade do morto. é sua mãe, Maria Chana, vestida de
homem.
 
                   LOCUÇÃO
                   Antônio, de tocaia, viu se concretizarem suas
                   piores suspeitas. O amante de Brasilina se
                   esgueirava pelo jardim. Tomado de fúria,
                   Antônio abate o traidor com um tiro certeiro.
                   E querendo descobrir quem usurpava o leito de
                   sua bem amada, Antônio Vicente tem uma cruel
                   revalação: matou sua própria mãe.
 
 
CENA 12 - CASA DE CONSELHEIRO / ESTÚDIO/NOITE
 
Antônio tem uma crise de choro. Se abraça a Brasilina, que lhe dá
amparo. Os dois entram em casa, abraçados. Brasilina tenta
consolar Antônio. Ele finalmente se acalma e começa a tirar a
roupa. Sob o casaco de couro e as calças, Antônio veste apenas um
camisolão. Abre o armário para guardar a roupa. Dentro do
armário, nú, um soldado da brigada. Brasilina faz uma cara de
quem foi pega em flagrante. Antônio, entendendo que matara a mãe
e fôra traído pela esposa, se desespera. Arranca os cabelos, rola
no chão. Levanta-se, pega uma bíblia e um crucifixo e sai para a
rua, vestindo apenas o camisolão. Brasilina tenta detê-lo.
 
                   LOCUÇÃO
                   Freud afirmava que "as religiões são neuroses
                   coletivas e as neuroses são religiões
                   individuais". Podemos, tentar explicar
                   Canudos, como nos ensinaram na escola, através
                   da "religião individual" de seu líder, Antônio
                   Conselheiro. Ele já foi classificado como
                   líder camponês marxista, homem santo,
                   estrategista militar e como um completo
                   lunático. Provavelmente todas as definições
                   são justificadas e nenhuma delas, sozinha,
                   explica Canudos. Euclides da Cunha define
                   Conselheiro como um "infeliz, destinado aos
                   cuidados médicos, que veio, impelido por uma
                   potência superior, bater de encontro à
                   civilização, indo para a história como poderia
                   ter ido para o hospício".
 
 
CENA 13 - SERTÃO / ESTÚDIO/NOITE
 
Antônio, enlouquecido, parte em direção ao deserto.
 
 
CENA 14 - ACAMPAMENTO DO EXÉRCITO / ESTÚDIO
 
Acampamento dos soldados junto a matadeira. Sob o sol do meio
dia, todos dormem em barracas improvisadas. Um grupo de crianças
maltrapilhas se aproxima, cruzando o acampamento. Trazem um bode
velho, com um sino no pescoço. Ouve-se apenas o vento, as moscas
e o som do sino do bode. Quando estão bem próximas à Matadeira,
as crianças começam a gritar e, com paus e pedras, investem sobre
o canhão tentando destruí-lo. Os soldados se acordam e cercam as
crianças. Atiram para matar. Uma delas, baleada e gritando,
consegue romper o cerco dos soldados e rolar uma ribanceira.
Todas as outras estão mortas, algumas sobre o canhão.
 
 
CENA 15 - ESTÚDIO DE TV / ESTÚDIO
 
Um pregador do tele-evangelismo (tipo Rex Humbard ou Pastor
Fanini) está em um púlpito. (é o mesmo ator que fez o Antônio
Conselheiro na cena 8. Agora ele está de terno e gravata, cabelo
muito penteado, sem barba). Ao fundo, monitores de tv com a sua
imagem. Ele começa a pregar. No início está calmo e controlado. A
medida que os aplausos aumentam, vai se emocionando, se
alterando. Termina a pregação aos gritos.
 
                   PASTOR
                   Muitos deram suas vidas pela construção de uma
                   sociedade mais justa. Que a sua morte não seja
                   em vão. (aplausos) A terra não tem dono. A
                   terra é de quem nela trabalha. (aplausos) De
                   cada um segundo as suas possibilidades e a
                   cada um segundo suas necesidades. (aplausos)
                   Aleluia! O sertão vai virar mar e o mar vai
                   virar sertão! Aleluia! (aplausos) E haverá um
                   só pastor e um só rebanho! Há de chover uma
                   chuva de estrelas aí será o fim do mundo!
                   (aplausos) Aleluia! E em 1900 se apagarão as
                   luzes! Aleluia! (aplausos)
 
 
CENA 16 - ARREDORES DE CANUDOS / ESTÚDIO
 
Ao lado da Matadeira, a tropa observa em silêncio, ao longe, o
que restou da cidade. (cais do porto)
 
Canudos parece uma vila fantasma. (maquete)
 
Um tenente dá a ordem de disparar o canhão. O canhão dispara num
estrondo, que ecoa pelo sertão. (cais do porto)
 
O projétil corta o céu. (Bahia)
 
O projétil acerta o sino na torre da igreja "fazendo-o saltar
pelos ares, revoluteando, estridulamente badalando, como se ainda
vibrasse um alarme". (maquete)
 
 
CENA 17 - PRAÇA DE CANUDOS / ESTÚDIO
 
O sino cai no chão da praça.
 
Os últimos quatro defesores de Canudos, um velho, dois homens e
um menino, estão no meio da praça. À sua frente, no chão, o sino
da igreja. Prontos para morrer, eles carregam lentamente as suas
precárias armas. O velho começa a rezar. A criança e os dois
homens logo o acompanham na ladainha.
 
                   LADAINHA
                   "Uma incelência, minha virgem do rosário / Que
                   do vosso ventre abriu-se o sacrário / Sacrário
                   aberto saiu o senhor fora / Receber um'alma
                   que vai para a glória. / Duas incelência minha
                   virgem do Rosário ... "
 
 
CENA 18 - CAMPO DE BATALHA / ESTÚDIO
 
A tropa, "rugindo raivosamente", investe sobre a cidade. Os
soldados cantam o hino da república. Uma câmera na mão (imagens
jornalísticas em preto e branco) entra na cidade com a tropa.
Imagens de destruição e morte. Os sons da ladainha se misturam
aos gritos dos soldados e aos tiros. O som da cena desaparece em
fade e sobe, com a trilha, a locução do poema de Vonnegut:
 
                   LOCUÇÃO
                   "Vi a grande máquina avançando,
                   escurecendo o sol.
                   Todos se deitavam em seu caminho,
                   ninguém fugia.
                   Meu amor e eu olhamos, sem compreender,
                   este mistério sangrento.
                   "Deitem-se, deitem-se!" gritavam todos.
                   "A grande máquina é a história!"
 
                   Meu amor e eu fugimos, a máquina não nos
                   alcançou.
                   Fugimos para o alto da montanha,
                   deixando a história muito longe.
                   Talvez devêssemos ter ficado e morrido,
                   mas não pensamos assim.
                   Fomos ver onde a história tinha estado e,
                   meu deus,
                   como os mortos cheiravam mal".
 
 
CENA 19 - RUÍNAS DE CANUDOS / ESTÚDIO + ARQUIVO
 
Casas destruídas, cadáveres pelo chão. Imagens de arquivo de
várias guerras, fotos de destruição.  
 
Cenas atuais de miséria (Bahia).
 
 
CENA 20 - FUNDO DO RIO / ESTÚDIO
 
Imagens sacras afundando.
 
 
CENA 21 - FUNDO DO RIO / ESTÚDIO
 
Sob as águas da barragem, a cruz da igreja é iluminada pela luz
trêmula do sol. O último anjo afunda lentamente.
 
 
FIM
 
*******************************************************************
 
(c) Jorge Furtado, 1993-94
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
  23/11/1993

AnexoTamanho
matadeir.txt17.87 KB