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MEU TIO MATOU UM CARA
TEXTO FINAL
novembro de 2004
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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LETREIRO: MEU TIO MATOU UM CARA
CLÉA: E ela tem nota? Hm, se ela tem nota... Mas ela tem ou diz
que tem? Mentir não, mãe. Mas ela pode achar que tem e não tem...
Se ela tem, eles vão ter que trocar... Hum-hum. Aquele azul? Não,
eles vão ter que trocar, com nota eles vão ter que trocar. Hum?
Não mãe, não dá pra comparar preço de roupa com preço de
dentista. Hum-hum. Duca? Duca! Não, doendo não. Ah, tem uma
bolinha aqui...
DUCA: Alô?
CLÉA: Ã-hã. Incomoda.
DUCA: Tá bomm.
CLÉA: Hum-hum.
DUCA: O tio Éder está subindo.
CLÉA: É o Éder. Não, não avisou. Ai, mãe, quê que tem? Tá bom...
Tá. O azul. Tá, mãe. Tá bom... Eu vou. Beijo. Tá, mãe. Tá bom,
mãe. Tá, um beijo.
LAERTE: Ele avisou que vinha?
CLÉA: Não.
ÉDER: Matei um cara.
CLÉA: O quê?
LAERTE: Como assim?
ÉDER: Pô, matei o cara.
CLÉA: De carro?
ÉDER: Não. Com um tiro.
LAERTE: Puta que o pariu, onde?
ÉDER: No, na minha casa. Na sala.
CLÉA: Que cara?
LAERTE: O corpo tá lá? Tem certeza que o cara morreu?
CLÉA: Você chamou a polícia?
LAERTE: Por quê, Éder?
CLÉA: Calma.
LAERTE: Como foi? Puta que o pariu.
CLÉA: Calma. Quem é o cara?
ÉDER: É, o... ex-marido de uma namorada. O, o cara foi lá atrás
dela. Ela não tava. O cara não acreditou, aí pegou uma arma, me
apontou e começou a me ofender, cara. Pô... Me chamou de preto
safado. Aí eu tirei a arma dele, a gente começou a brigar... Aí
ele caiu no chão. Aí eu peguei a arma e atirei.
CLÉA: Foi um acidente.
LAERTE: É melhor ligar pra polícia. Puta que o pariu...
CLÉA: Calma. Foi um acidente. Legítima defesa.
LAERTE: Claro, foi um acidente. Puta que o pariu...
CLÉA: A família dele tem dinheiro?
CLÉA: Duca... É melhor você ir pro quarto, filho, depois a gente
conversa.
LAERTE: Melhor chamar um advogado. Eu vou chamar o Rogério.
ÉDER: Não, não sei.
CLÉA: Calma...
DUCA (V.S.): A minha mãe sempre defende o tio Éder. Ela diz que
ele é meio atrapalhado e por isso ele se mete em confusão. O meu
pai, que é irmão dele, diz que o tio Éder se mete em confusão
porque é um idiota. Ele sempre pede dinheiro emprestado pro meu
pai, que empresta mas fica furioso. Teve uns anos que ele ganhou
muito dinheiro, vendendo um aspirador de fundo de piscina. O
negócio se chamava Robotclear. Ele andava sozinho, limpando o
fundo da piscina.
ÉDER (V.S.): Chegou Robotclear...
DUCA (V.S.): Depois começaram a aparecer outros aspiradores de
fundo de piscina, mais baratos que o Robotclear...
LETREIRO: Insetos! Bactérias! Fungos! Micróbios!
DUCA (V.S.): Aí o meu tio se deu mal.
LETREIRO: Apenas 4 x R$ 299,99. Ligue agora!
DUCA (V.S.): Ele tentou baixar o preço do Robotclear... Fez uma
propaganda na TV com uma criança que falava "olha, mamãe, ele
anda sozinho!" Era horrível e ele ficou devendo uma grana no
banco.
DUCA (V.S.): Se eu conheço a minha mãe, agora ela vai entrar, vai
me olhar com uma cara de preocupada misturada com uma cara de
"fique calmo, seu tio é da família mas é só seu tio, e no final
vai dar tudo certo". Bom, não é uma cara muito fácil de fazer ou
de imaginar, mas ela faz direitinho.
DUCA: O que foi?
CLÉA: Foi um acidente.
DUCA: Eu ouvi. Chamaram a polícia?
CLÉA: Ainda não. Mas eeu pai chamou o Rogério, advogado, ele é
amigo.
DUCA: Pergunta se ele atirou deitado ou de pé.
CLÉA: Como é?
DUCA: Ele disse que eles brigaram e caíram no chão.
CLÉA: É...
DUCA: Se ele atirou deitado e de perto, dá para ver que foi uma
briga. Se ele atirou de longe e de pé, é melhor inventar outra
história.
CLÉA: Tá, eu pergunto.
DUCA: Ele sabe onde tá a mulher do cara?
CLÉA: Eu já perguntei, ele não sabe. Eu vou voltar pra lá.
DUCA: E pergunta se é ex-marido mesmo.
CLÉA: Tá bom, eyu pergunto. Fica calmo, eu já volto.
DUCA (V.S.): Outra vez, meu tio tentou abrir um bar chamado
"Jardim do Éder" e me pediu pra fazer um site pra ele.
LETREIRO: Jardim do Éder é um espaço mágico que pode estar em
qualquer parte do mundo...
DUCA (V.S.): Era um sushi-bar com uns computadores nas mesas,
custou uma grana.
LETREIRO: Erro 209 - Javascript. Acesso não permitido ou endereço
não encontrado.
DUCA (V.S.): O bar fechou e meu pai acabou comprando três
computadores, um aqui para casa e dois pro escritório. Mais para
ajudar o tio Éder, mesmo, porque os computadores não eram muito
bons. Todas estas confusões que o meu tio se metia eram muito
chatas, levavam meses. Nunca tinha imaginado que ele podia matar
alguém. Acho que foi mesmo um acidente.
DUCA: Entra.
CLÉA: O Rogério tá aí. Fiz um sanduíche, quer a metade?
DUCA: Quero. Perguntou?
CLÉA: Perguntei. Ele acha que foi de pé, o cara tava se
levantando, foi um acidente.
DUCA: Hum. A bala entrou onde? Na barriga?
CLÉA: Ele não sabe. Foi um acidente, eles estavam brigando, a
arma era do cara.
DUCA: Do ex-marido?
CLÉA: Hum-hum... Eles não eram separados legalmente, mas não
viviam mais juntos.
DUCA: Tem que ver se a mulher é herdeira.
CLÉA: Como assim?
1DUCA: Se a mulher, namorada do tio, é herdeira, eles tinham
motivo para matar o cara.
CLÉA: Pois é. Bom, o Rogério é advogado. Deixa eles conversarem.
Você vai sair?
DUCA: Vou na casa da Isa.
LAERTE: Eles já vão.
CLÉA: Ah...
LAERTE: Rogério, lembra do Duca?
ROGÉRIO: E aí, menino?
DUCA: Tudo bem.
ÉDER: E aí, Duca?
DUCA: Tudo bem?
ÉDER: Viu essa?
DUCA: Vi, né?
ROGÉRIO: Eu acho melhor a gente ir logo.
LAERTE: Eu vou com vocês.
CLÉA: Pra quê?
ROGÉRIO: É melhor você ficar aqui. Eu vou primeiro, ligo pra
polícia e aí ligo pra você. Daí, se você quiser, você vai.
ÉDER: Cacete, que confusão. Situação... periclitante!
DUCA: A mulher dele já sabe, né?
CLÉA: Sabe o quê?
DUCA: Já sabe que o cara morreu. Alguém avisou para ela?
ÉDER: Não. Ninguém sabe. Fechei a porta e saí, vim direto pra cá.
LAERTE: Você não telefonou para ninguém, né?
ÉDER: Não.
DUCA: E a arma?
ÉDER: Ah... Tá aqui no meu bolso.
LAERTE: Rogério, obrigado por essa.
ÉDER: Cacete!
LAERTE: Calma, calma. Foi um acidente, não foi?
ÉDER: Vergonha, rapaz...
DUCA: Melhor deixar a polícia avisar a mulher.
ROGÉRIO: É? Por quê?
DUCA: É melhor que eles vejam a cara dela quando ficar sabendo
que o marido morreu.
ROGÉRIO: Pode ser.
ROGÉRIO: Vamos no meu carro.
DUCA: E como é que vocês vão explicar que o carro dele tá aqui?
ÉDER: É, então é melhor eu ir no meu, né?
ROGÉRIO: É. Você vai devagar, que eu vou seguir você.
DUCA: Tchau, tio.
ÉDER: Tchau, Duca. Olha: não se preocupa, não, vai dar tudo
certo, cara. Foi um acidente.
DUCA (V.S.): A minha mãe diz que o tio Eder nunca se apaixonou de
verdade. Meu pai diz que ele se apaixona de verdade uma vez por
semana. Minha mãe acha que ele escolhe sempre as mulheres erradas
pra se apaixonar. Meu pai acha que as mulheres erradas é que
escolhem se apaixonar pelo tio Eder. Eu acho que minha mãe e meu
pai estão enganados. A gente não escolhe por quem se apaixonar. A
gente se apaixona e pronto. Sem escolha. Se não fosse assim, numa
cidade desse tamanho, eu nunca ia escolher me apaixonar
exatamente pela minha melhor amiga. Fazer o quê? Foi um acidente.
ISA: Oi.
DUCA: Oi. O Kid tá aí?
ISA: Não, talvez ele passe aqui mais tarde.
DUCA: Vocês vão sair?
ISA: Acho que não. Você vai sair?
DUCA: Não. E sua mãe tá aí?
ISA: Não, tá viajando, por quê?
DUCA: Meu tio matou um cara.
ISA: Como assim?
DUCA: Meu tio. Matou um cara.
ISA: Quando?
DUCA: Hoje.
ISA: Como? De carro?
DUCA: Não, com um tiro.
ISA: Tá brincando? Como? Que tio?
DUCA: Aquele do Robotclear.
ISA: O cara era velho?
DUCA: Não sei, por quê?
ISA: Sei lá. Acho que quanto mais velho, melhor. Quer dizer, se o
cara já era bem velho, ia morrer daqui a pouco mesmo. Como foi?
DUCA: Ah, ele diz que foi um acidente. Tava namorando a mulher do
cara, eles brigaram, o cara tinha uma arma.
ISA: E a polícia?
DUCA: Ainda não sabe, vai saber daqui a pouco.
ISA: Onde tá o cara?
DUCA: Quem, o morto?
ISA: É.
DUCA: Sei lá. Na casa dele?
ISA: Onde? Na sala?
DUCA: Não sei, acho que sim.
ISA: E aí?
DUCA: Não sei.
ISA: Caramba!
DUCA: Pois é.
ISA: Lembra desse coelho que você fez?
DUCA: Isso não é um coelho, isso é uma vaca.
ISA: Ah, é? Sempre achei que fosse um coelho.
ISA: Teu tio vai ser preso?
DUCA: Não sei, acho que sim. Ele já quase foi uma vez, por causa
de uns cheques.
ISA: E o teu pai?
DUCA: Meu pai diz que ele é um idiota. Mas eu acho que ele não
matou o cara. Acho que foi mesmo um acidente.
ISA: Por quê?
DUCA: Ah, porque ele é um idiota mesmo.
CLÉA: Como foi?
LAERTE: Horrível, meu amor, horrível. Eu nunca tinha visto um
homem morto antes, só de longe, sabe? Era um gordo. Ele tava
deitado de barriga para baixo e a barriga fazia um bico assim de
lado. O cinto tava muito apertado. Eu acho que o sujeito vivia
encolhendo a barriga e só soltou depois de morto. Eu tou com
fome, você já jantou?
CLÉA: Comi um sanduíche. E o Éder?
LAERTE: Ficou lá, dando depoimento. O Rogério tá lá com ele.
LAERTE: Hum. Você não vai comer mesmo?
CLÉA: Não.
LAERTE: E o Duca?
CLÉA: Não voltou ainda da Isa.
LAERTE: Será que ele ficou muito assustado?
CLÉA: Acho que não. Por quê?
LAERTE: Ah, não sei... Um tio assassino, né, os colegas podem
implicar.
CLÉA: Ninguém precisa ficar sabendo.
LAERTE: É. Claro.
KID: Oi.
ISA: O tio do Duca matou um cara.
KID: Quem?
ISA: O tio do Duca, irmão do pai dele.
KID: Ah, aquele do Robotclear?
ISA: É.
KID: Nossa! Matou quem?
ISA: Um sujeito, marido da amante dele.
KID: Marido da amante?
ISA: Ele era amante da mulher do cara.
KID: Ela era mulher do cara?
DUCA: Ex-mulher.
KID: Caramba!
ISA: Pois é.
KID: E aí?
DUCA: Não sei mais nada.
KID: Vocês já comeram?
DUCA: Já comi em casa.
KID: Nossa, eu tou morrendo de fome, cara. Vamos pedir uma pizza?
DUCA: Vou embora.
ISA: Já? É cedo.
DUCA: Quero saber o quê que aconteceu.
ISA: Me liga depois?
DUCA: Depende da hora.
ISA: Liga hoje, vai.
DUCA: Amanhã eu te conto. Tchau.
KID: Tchau.
DUCA: E o tio?
CLÉA: Ligou há pouco, ele já tá em casa.
DUCA: Ele vai ser preso?
LAERTE: Acho que não, vão só interrogar. Ele ligou pra polícia,
explicou tudo...
CLÉA: Melhor não esconder nada.
DUCA: E o corpo, ainda tá lá?
LAERTE: Não sei. Acho que sim.
DUCA: E a mulher? Já sabe?
LAERTE: Já, a polícia avisou.
DUCA: E ela?
LAERTE: Sei lá.
DUCA: Eles tinham filhos?
CLÉA: Parece que não.
DUCA: Por que o advogado quer esconder que o tio Éder teve aqui?
LAERTE: Acho que é pra não levantar suspeita.
CLÉA: Suspeita de quê? Ele já não confessou? Vamos dormir?
DUCA: O problema dessas histórias que não aconteceram não é o que
a gente inventa. As partes que a gente esqueceu de inventar é que
atrapalham. Alguém pode ter visto o tio Éder saindo de casa
sozinho. Ou voltando com o advogado. Daí a polícia vai saber que
ele tá mentindo. Que ele veio aqui antes de ligar pra eles. E vai
suspeitar de alguma coisa.
CLÉA: Suspeitar de quê? Ele já não confessou? Vamos dormir.
DUCA: Hum, suspeitar de alguma outra coisa. Se aconteceu tudo
como ele disse, não precisava mentir. Eu li uma história onde um
cara disse que chegou em casa de carro e a mulher dele tava
morta. Mas só que naquela noite tava nevando. E a polícia viu que
não tinha neve debaixo do carro dele. Quer dizer que ele não saiu
de carro. E que ele tava mentindo. E era o assassino.
LAERTE: Isso é coisa de livro. Hum... Não estava nevando e nem
sempre as pessoas que mentem são assassinas. As pessoas mentem
por vários motivos, quase que o tempo todo.
DUCA: É, acho que aqui a polícia não presta atenção nessas
coisas.
LAERTE (V.S.): Ou tem que prestar atenção em tanta coisa que vai
terminar prendendo alguém que não tem nada a ver.
DUCA: É, isto é. Acho que ninguém vai suspeitar de nada.
LAERTE: Ahn, suspeitar de quê, filho, não é? Ele já confessou,
vamos dormir. Quer carona amanhã?
DUCA: Quero.
DUCA (V.S.): Na minha escola tem dois negros: eu o Genésio.
DUCA: Oi, Genésio.
GENÉSIO: Oi, Duca.
DUCA (V.S.): No primário teve um outro aluno, mas ele só ficou um
ano. Todo mundo na escola trata os outros quase sempre mal,
brigando, chamando de idiota, essas coisas. Mas, se você é negro
e alguém te chama de idiota, a professora te defende mais do que
precisava. E briga com o cara, como se ele tivesse te chamado de
idiota só porque você é negro. Então aqui ninguém me chama de
idiota, só os meus amigos mesmo: a Isa, que é minha amiga desde a
creche, e o Kid, que eu conheço há pouco tempo mas já é meu
melhor amigo.
DUCA (V.S.): O problema é que eu sou completamente apaixonado
pela Isa. E é claro que ela é completamente apaixonada pelo Kid.
E é claro que eu não posso contar nada disso para ninguém.
ISA: Você podia ter ligado. Fui dormir tarde. A gente ficou vendo
um filme no sessenta e um.
DUCA: Que filme era?
ISA: Não sei o nome, a gente não viu o começo. Era com o Andy
Garcia e aquele outro cara que fez Tootsie.
DUCA: O Dustin Hoffman?
ISA: Isso.
DUCA: É um que cai o avião, ele salva todo mundo e depois perde o
sapato?
ISA: Esse. Bem legal, né?
DUCA (V.S.): "Herói por acidente". Eu já vi esse filme. É a
história de um cara que se acha muito esperto, mas faz tudo
errado. No fim acaba tudo bem.
LETREIRO: Herói por acicdente.
DUCA (V.S.): Ele não era tão esperto, mas tinha muita sorte.
Começou meia-noite e meia. E terminou depois das duas. Estranho a
Isa lembrar logo da cena do sapato, que é bem no início. Ela
disse que eles perderam o início... E eles sempre põem o nome do
filme de vez em quando, no meio. Se eles viram o filme, deviam
saber o nome.
KID: Duca, segura aqui, cara. Segura aqui, cara.
KID: Aquele duplo ali eu vi por vinte e dois no centro, cara.
Aqui tá trinta e cinco.
DUCA: Quanto tu ganha para passear com os cachorros?
KID: Vinte reais, cara.
DUCA: Que merreca, hein?
KID: Ah, mas é melhor que limpar piscina, né?
DUCA: Que horas você saiu da Isa ontem?
KID: Cara, saí tarde, era... depois das duas, eu acho. A gente
ficou ouvindo um CD que eu gravei lá.
DUCA (V.S.): Ó lá... Este é outro problema das histórias que não
aconteceram: todo mundo que faz parte da história tem que
combinar direito o que não aconteceu.
CLÉA: Duca, saiu a notícia. O empresário Paulo Roberto Wolker,
cinqüenta e três anos...
DUCA: Qual é a manchete?
CLÉA: Briga termina em morte de empresário.
DUCA: Tem foto?
CLÉA: Não. ...foi assassinado na noite de domingo, com um tiro no
peito. O dono do apartamento e autor do disparo, o administrador
de empresas Éder Fragoso, trinta e um...
DUCA: Trinta e um? O tio Éder tem vinte e nove.
LAERTE: Seu tio tem trinta e um.
DUCA: Quantos anos tem o tio Éder?
LAERTE: Tem trinta, filho. Ele tem cinco menos que eu.
DUCA: Você tem trinta e seis.
LAERTE: É? É mesmo, rapaz! Então ele tem trinta e um. Continua,
filhão, continua.
DUCA: Paulo Roberto era proprietário de hotéis e de uma
distribuidora de alimentos. O casal não tinha filhos.
ISA: Ela era namorada do teu tio ou não?
DUCA: Parece que foi, não era mais. Não sei.
ISA: Ele tá preso?
DUCA: Não.
ISA: Vai ser julgado?
DUCA: Acho que sim.
KID: Aí. Viu o tio dele no jornal?
ISA: Vi.
ISA: Ah, esse é outro. Deixa eu ver.
ISA: Marido ciumento leva chumbo. O inconformado tinha fama de
brigão. No final do ano passado quebrou o Le Balcon ao encontrar
a mulheruda com bigode de chope alheio. Agora a coisa foi mais
longe. O ex-corno, de arma em punho, foi tirar satisfação do novo
amiguinho da moça. Tomou porrada e acabou chumbado.
DUCA: Diz a mesma coisa que a outra.
KID: Nossa, cara! Olha a namorada do seu tio, cara. Bem
bonitinha, hein?
ANA PAULA: O que foi?
ISA: O tio do Duca.
KID: Matou um cara.
ANA PAULA: Como? De carro?
KID: Não, com um tiro.
ANA PAULA: Sério? E ele foi preso?
DUCA: Não, foi legítima defesa.
PROFESSORA: Bom dia, pessoal.
ISA: Quer estudar junto pra prova de biologia?
DUCA (V.S.): Será que ela vai convidar o Kid também? Se for, é
melhor eu não ir.
DUCA: Pode ser, não sei.
ISA: E quando é que você vai saber?
DUCA (V.S.): Eles vão ficar sozinhos, no quarto dela, estudando
biologia... É melhor eu ir.
DUCA: Tá bom, eu topo.
DUCA (V.S.): O Kid vai sentar do lado dela. É melhor mudar de
assunto, falar do meu tênis novo... É melhor não deixar lugar pra
ele.
KID: Qual é que é o assunto da prova de biologia, cara?
ISA: Ah, eu tava...
DUCA: A polícia descobriu que o meu tio atirou de longe.
KID: Quê?
DUCA: É, a polícia descobriu que o meu tio atirou de longe, o
cara tava de frente para ele na hora do tiro.
ISA: Isso é importante?
DUCA: É, ele disse que eles brigaram e a arma disparou, mas não
foi. O tiro foi de longe.
KID: Como é que eles sabem isso?
ISA: Ah, isso é mole: tiro de perto deixa marca de pólvora.
KID: Ahn... Ó lá, é novo, cara?
DUCA: É.
KID: Pô, bacana, hein? Parece tênis de negão. Desculpa.
DUCA e ISA: Dããã!
ISA: Quer estudar junto pra prova de biologia?
KID: Vamos.
DUCA: O que foi?
CLÉA: O que foi o quê?
DUCA: Por que a televisão tá desligada?
CLÉA: Não tem ninguém assistindo.
DUCA: Aconteceu alguma coisa?
CLÉA: Nada.
LAERTE: Duca... Seu tio foi preso.
DUCA: Por quê?
LAERTE: Eles examinaram a arma e não encontraram impressões
digitais
DUCA: Não encontraram?
LAERTE: Não, nenhuma. Nem as dele. O imbecil limpou a arma antes
de entregar pra polícia.
DUCA: Por que ele limpou a arma?
LAERTE: Foi o que eles perguntaram. O idiota disse que limpou a
arma porque ele pensou em fugir. Você acredita num negócio
desses, Duca? Ele disse pra polícia, no depoimento, que pensou em
fugir. E pior: a mulher ainda deu dinheiro para ele.
CLÉA: Era pagamento de um trabalho, ele explicou.
LAERTE: Sei, mas não é difícil de imaginar que parte do trabalho
dele era matar o cara. Ela virou uma viúva bem rica.
CLÉA: Ele não vai ficar preso muito tempo, filho.
LAERTE: Não sei, não.
CLÉA: Ele te mandou um abraço. Não te preocupa, vai dar tudo
certo.
DUCA: Eu posso visitar ele na prisão?
LAERTE: Acho que sim.
CLÉA: Pode ser perigoso.
LAERTE: Perigoso por quê?
ISA: Ahn, pela circulação do sangue, os órgãos do corpo recebem
oxigênio, aminoácidos, hidratos de carbono, água, sais minerais e
hormônios. Vocês sabem o que é, né, hormônios e tal...?
DUCA (V.S.): Coisa irritante é ver a Isa se exibindo pro Kid.
Botando o cabelo pra trás da orelha pra mostrar mais o rosto...
Mudando de lugar na cadeira toda hora... dando uns risinhos que
normalmente ela não dá... e se fazendo de muito esperta.
KID: Antígeno aglutinogênio?
ISA: Isso não vai cair na prova, é só saber que tem dois tipos, o
A e o B.
DUCA (V.S.): E o que me deixa mais irritado é que ele não percebe
nada disso.
ISA: E existem quatro tipos de sangue: o tipo A, o tipo B, o tipo
AB e o tipo O.
KID: Que tipo ó é esse?
ISA: Calma. Tem dois tipos: o tipo A...
DUCA (V.S.): Ó lá... Agora ela aproveitou a pergunta pra chegar
mais perto dele.
DUCA: Vocês tão com fome?
KID: Nossa, eu tou, cara.
ISA: O tipo AB tem os dois antígenos e nenhum anticorpo. E o tipo
O não tem nenhum antígeno e os dois anticorpos.
DUCA: Tou com muita fome.
KID: Eu também, cara.
ISA: Tem pizza congelada e sorvete.
DUCA: Eu vou visitar o meu tio na prisão. Vocês querem ir junto?
ISA: Eu quero.
KID: Tá louca, cara?
ISA: Por quê?
KID: Uma mulher na prisão?
DUCA: Qual o problema? A maior parte de visita é de mulheres.
KID: Tá, mas é perigoso, cara, pô.
DUCA: Não, esse lugar em que ele tá não é tanto. É de presos
menos perigosos.
KID: Hã-hã, e se tiver um motim?
ISA: Já pensou? Eu vou. Quando?
DUCA: Pra visitar, tem que ter autorização. A tia Dulce vai ter
que assinar uns papéis. Será que ela deixa?
ISA: Minha mãe? Periga até ela querer ir junto. Claro que deixa.
KID: Vocês tão loucos, cara. Vai lá. Ó lá, a... a pizza tá
pronta.
LAERTE: Quanto? Isso é o total, não é? É caro, Rogério, mas fazer
o quê? Eu mando o cheque pra você amanhã. Escuta... O documento
pro Luis Eduardo e pra amiga entrarem é só esse? Tá reconhecida.
Isso... Ah, tá bom. Obrigado, hein Rogério? Até logo.
LAERTE: Ó, é só isso mesmo. É só você levar esse papel e
apresentar os documentos de vocês, tá?
ISA: Tá bom. Obrigada, tio.
CLÉA: Que mais que ele disse?
LAERTE: Que o seu tio não vai poder responder o inquérito em
liberdade.
CLÉA: Por que não?
LAERTE: Ele não é réu primário.
DUCA: Ué, por que não?
LAERTE: Seu tio foi preso uma vez, por uma bobagem.
DUCA: Que bobagem?
LAERTE: Uma briga. Eu também briguei, mas ele disse que foi só
ele, para livrar a minha cara. Ficou preso uns dias.
CLÉA: E agora?
LAERTE: O Rogério vai tentar o habeas corpus. Mas pode demorar.
LAERTE: Ó... Vão de táxi, hein?
DUCA: A gente pode ir de ônibus.
CLÉA: Não! Não quero vocês andando por aquelas ruas. Tá?
ISA: Tchau, tia.
CLÉA: Juízo, tá, Isa? Um beijo.
DUCA: Tchau.
ISA: A casa da Francis é lá perto. Eu sempre vou lá de ônibus.
Vai sobrar pra gente comprar uns CDs.
DUCA: Tá bom.
ISA: Um original ou quatro piratas?
GUARDA: O que é isso?
ISA: Uma caneta do Pokemom.
GUARDA: Vai ter que ficar.
ISA: Por quê?
GUARDA: Porque alguém pode ser morto com isso.
ISA: Ah, não acredito.
DUCA: Vamos, vamos.
DUCA: Nunca pensei que desse pra matar alguém com uma caneta do
Pokemom.
ISA: Acha que dá pra matar alguém com um CD?
DUCA: Não sei. Só se o CD for muito ruim.
ISA: Eu achava que ia ter um vidro ou uma grade separando a gente
dos presos.
DUCA: Hum, por isso que eles revistam na entrada.
ÉDER: Ô, Duca. Saudade, rapaz!
DUCA: Essa é a Isa, minha amiga. Eu convidei ela para vir junto.
ÉDER: Tudo bem?
ISA: Tudo.
ÉDER: Danado...
DUCA: O pai e a mãe mandaram um abraço. Como é que você está?
ÉDER: Não, tou... tudo bem. A comida é horrível, mas tá tudo bem.
E você?
DUCA: Tudo bem, também.
ÉDER: Rapaz, e o colégio, Duca, como tá?
DUCA: Tá tudo bem. Tou indo bem. Tá precisando de alguma coisa?
ÉDER: Você podia me fazer um favor?
DUCA: Posso, o quê?
ÉDER: Manda um recado pra Soraia?
DUCA: Quem é Soraia?
ISA: É a mulher do cara.
ÉDER: Mas você não conta nada pro teu pai, tá?
DUCA: Tá bom.
ÉDER: Você fala para ela ficar tranqüila. Tá? Diz pra ela não vir
me visitar de jeito nenhum. Tá, se ela perguntar como é que eu
tou diz que eu tou bem. Eu tou bem... E que eu tenho a convicção
de que tudo vai dar tudo certo. Você diz?
DUCA: Digo, mas eu não tenho o endereço.
ÉDER: É... rua Brigadeiro Afrânio...
DUCA: Eu não tenho como anotar.
ISA: A gente decora.
ÉDER: Isso, Ciça, vem cá.
ISA: Isa.
ÉDER: Rua Brigadeiro Afrânio de Mello Souza, número setecentos e
trinta e um, bloco um, cobertura dois.
DUCA: Rua Brigadeiro Afrânio de Mello Souza, setecentos e trinta
e um...
ISA: ... bloco um, cobertura dois.
ÉDER: Isso.
DUCA: Rua Brigadeiro Afrânio de Mello Souza, setecentos e trinta
e um, bloco um, cobertura dois.
ÉDER: Sobrinho... Ó: aí você fala pro teu pai...
DUCA (V.S.): Brigadeiro Afrânio de Mello Souza, setecentos e
trinta e um, bloco um, cobertura dois. Brigadeiro Afrânio de
Mello Souza, setecentos e trinta e um, bloco um, cobertura dois.
Setecentos e trinta e um, bloco um, cobertura dois.
DUCA: Você lembra o endereço?
ISA: Sete três um, bloco um, cobertura dois, rua Brigadeiro
Afrânio de Mello Souza.
DUCA: Eu decorei ao contrário, com o nome da rua na frente.
ISA: A gente tem que pegar o quinhentos e quatorze para ir direto
pro centro.
DUCA (V.S.): Rua Brigadeiro Afrânio de Mello Souza, setecentos e
trinta e um, bloco um...
ISA: O quinhentos e quatorze!
ISA: Minha caneta!
DUCA (V.S.): A gente não devia ter descido aqui. É um lugar
péssimo pra caminhar.
DUCA: Podia ter pego a caneta semana que vem.
ISA: Tá louco? Imagina se eles iam guardar a minha caneta...
GUARDA: Tu tinha que ter pegado antes, não essa hora de sair, pô.
ISA: A gente não sabia.
GUARDA: Não, já disse que não, guria.
ISA: É uma caneta muito legal.
DUCA (V.S.): É ruim desse cara deixar a gente entrar. Se ele
achou que uma caneta do Pokemon podia matar alguém, agora ele
deve tá achando que a gente voltou pra organizar uma fuga em
massa.
ISA: Vai, aposto que você vai roubar pra você, né?
DUCA (V.S.): E só podia ser a Isa pra cumprir essa missão. Essa
carinha que ela faz de irritada, mas ao mesmo tempo achando tudo
um pouco engraçado...
GUARDA; Tá, guria, vai...
DUCA (V.S.): ... é mais perigosa do que cem canetas do Pokemon
juntas.
DUCA: Esse eu quero ficar.
ISA: Tá bom, depois você grava pra mim.
DUCA: Tá. Também quero.
ISA: Tá, mas você grava pra mim também.
DUCA: Gravo, gravo. Esse pode ficar contigo.
ISA: Tá bom. Então esse fica comigo.
DUCA: Tá.
ISA; E o outro também.
HOMEM 1: E aí, mina? Qual é que é a desses CDs gringos aí? Pô,
deixa eu ver a parada aí. Quantos CDs... Consegue unzinho para
mim?
ISA: Não enche!
HOMEM 1: Qual é que é, meu? A mina viajou...
DUCA: Isa!
ISA: O ônibus, pára, pára, pára!
ISA: Abre a porta!
HOMENS: Êeeee...
ISA: Pára o ônibus, abre a porta, abre a porta!
HOMENS: Êeeeee...
ISA: Cacete! O quinhentos e quatorze...
DUCA: Você lembra o endereço da mulher?
ISA: Que mulher?
ISA: Daí os caras correram atrás da gente, não foi, Duca? Eu acho
que eles tinham uma faca. Uma faca assim, desse tamanho. E, se
tinham uma faca, também deviam ter uma arma, né? Daí os caras
invadiram o ônibus atrás da gente, e a gente teve que fugir pela
porta da frente. Não foi Duca?
DUCA: Hum-hum.
KID: Ô, Duca! Você não fez nada, cara?
DUCA: Uns caras grandões... três contra um?
KID: Três ou quatro?
ISA: Quatro! Eram quatro caras.
DUCA: Eu vi três.
ISA: Ai, você é cego? Tinha um outro cara na parada que não fez
nada para impedir o assalto, devia tá com eles.
DUCA: O cara só tava esperando o ônibus. Ele nem viu que era um
assalto, por isso não fez nada. Eu mesmo não vi que era um
assalto.
ISA: Ah, foi por isso que você também não fez nada?
DUCA: Claro! Você saiu correndo feito uma louca, só porque um
cara pediu para ver um CD.
ISA: Bom saber que você não acredita em mim.
DUCA (V.S.): Eu sou um idiota. Vou brigar com a Isa logo na hora
que ela estava toda empolgada com a história da gente. Será que
adianta eu dizer que ela tinha razão, que eram quatro caras? Não,
é melhor fingir que não aconteceu nada.
DUCA: Lembrei o nome da rua. É... Brigadeiro Afrânio de Mello
Souza, bloco um, cobertura dois. Só não lembro do número do
prédio.
ISA: Nem eu.
DUCA: É, mas eu vou procurar todos os prédios que têm dois
blocos.
ISA: Boa sorte.
KID: Vou contigo.
DUCA (V.S.): Bom, agora é o Kid que vai ter uma história para
contar sem ela. E ela tá morrendo de inveja. Só que ela não pode
voltar atrás tão rápido e dizer que também quer ir.
DUCA: Tu vai pelo lado par que eu vou pelo lado ímpar.
KID: Tá bom.
DUCA: É só tu perguntar nos prédios que podem ter dois blocos. Te
prepara que a rua tem uns três quilômetros.
KID: Como é que você sabe?
DUCA: A gente está no número três mil quatrocentos e cinqüenta.
Os números são a distância em metros pro início da rua.
KID: Pô, então essa rua tem um duzentos prédios, cara.
DUCA (V.S.): Três mil quatrocentos e cinqüenta metros...
DUCA: Oi. Tem alguma Soraia na cobertura?
DUCA (V.S.): Se cada prédio tiver em média um terreno de vinte
metros, são...
DUCA: Oi. Tem alguma...
DUCA (V.S.): Cento e setenta e dois prédios e meio de cada lado,
quer dizer... trezentos e quarenta e cinco dos dois lados. Essa
rua tem muito prédio grande, que pode ter dois blocos, acho que
uns trinta por cento... Trinta por cento de trezentos e quarenta
e cinco dá...
PORTEIRO: Por que você quer saber se ela mora aqui?
DUCA: Eu sou sobrinho do Éder, amigo dela. Preciso falar com ela.
PORTEIRO: Só um momento, como é seu nome?
DUCA: É... Luis Eduardo. Duca. Kid!
PORTEIRO: Ele tá contigo?
DUCA: Tá, tá, ele é meu amigo.
PORTEIRO: Qual o nome dele?
DUCA: Como é o teu nome?
KID: Leonardo.
DUCA: É Leonardo.
PORTEIRO: Dona Soraia? O Luis Eduardo, sobrinho do seu Éder, quer
falar com a senhora. Pode subir?
PORTEIRO: Éder de quê?
DUCA: Éder Fragoso.
PORTEIRO: Fragoso. Éder Fragoso.
PORTEIRO: Tudo bem, pode subir.
KID: Ih! Cadê a luz, cara?
DUCA: Não sei.
KID: Puta que pariu!
KID: Cacete!
FÁTIMA: Vocês tão procurando alguma coisa?
KID: Não, é que a gente caiu aqui.
FÁTIMA: Eu detestava esae vaso.
DUCA: Ahn, desculpe, a gente... É que a gente ficou no escuro.
FÁTIMA: Não é sério. Sério, eu detestava. Ele também é sobrinho
do Éder?
DUCA: Não, ele é meu colega, o nome dele é Leonardo.
FÁTIMA: Entra.
DUCA: Licença...
KID: Licença...
FÁTIMA: Fiquem à vontade. Vocês podem sentar ali. Vocês... querem
tomar alguma coisa?
DUCA: Não, obrigado.
FÁTIMA: Senta. Você não é muito pequeno para ser colega dele,
não?
DUCA: Ele é que é muito grande... Repetiu duas vezes.
FÁTIMA: Ah... O quê que vocês vieram fazer aqui?
DUCA: Só trazer o recado do tio Éder.
FÁTIMA: Qual recado?
DUCA: Ele disse pra senhora ficar tranqüila.
FÁTIMA: Hmm... Senhora?
DUCA: É, pra você. Pra você ficar tranqüila. Que ele tá bem.
FÁTIMA: Ele quem?
DUCA: O tio Éder. Seu namorado.
FÁTIMA: Ah, claro.
DUCA: E que não é para você visitar ele de jeito nenhum. Que vai
dar tudo certo.
FÁTIMA: Que bom. E... o que mais?
DUCA: Mais nada.
FÁTIMA: Tá bom.
DUCA: Um Robotclear...
FÁTIMA: Não funciona. Tá quebrado.
DUCA: Deve ter trancado a correia. Tranca muito.
FÁTIMA: Você sabe consertar? É que minha piscina tá ficando
verde.
DUCA: É... Pode ser.
FÁTIMA: Por favor.
FÁBIO: Alô?
DUCA: Tá funcionando.
FÁTIMA: Obrigada!
DUCA: Vamos embora?
DUCA: Desculpe pelo vaso.
FÁTIMA: Imagina...
KID: Tou te falando, se o porteiro tivesse visto como ficou o
tapete do prédio, a gente tava ferrado, cara, a gente tava
ferrado. Um vaso daquele tamanho, se cai na gente, cara, mata.
Mata, tou, tou falando sério, mata, cara. Né não, Duca? Fala aí.
DUCA: Hã-hã.
KID: Julião, muito gostosa, cara, muito gostosa. Praticamente
nua, cara, nuazinha, assim, dando em cima da gente e os caramba,
cara, né não, Duca?
ISA: Quem? Quem?
KID: A... namorada do tio do Duca aí. Muito safada, cara, muito
safada. Eu vi que era chave de cadeia, entendeu?, me afastei,
cara, me afastei. Eu fico indignado.
DUCA: Posso te contar um segredo?
ISA: Pode, claro.
DUCA: Eu não contei pro Kid. Mas, quando a gente teve lá, eu vi
que tinha um cara na casa da namorada do meu tio.
ISA: E aí?
DUCA: Ah, e é óbvio que ele é namorado dela. Não sei se o meu tio
sabe que ela tem outro namorado. Acho que não. Não sei se eu
conto para ele.
ISA: Acho melhor não contar.
DUCA: Por que não?
ISA: Sei lá... É muito humilhante. Se o meu namorado tivesse uma
história com alguém, eu preferia não ficar sabendo por outra
pessoa.
DUCA: É?
ISA: É.
CLÉA: Você sabe se ela já foi visitar ele lá no presídio?
LAERTE: Acho que não, né?
DUCA: Não, não foi.
CLÉA: Como é que você sabe?
DUCA: Ele me disse que não queria que ela fosse.
CLÉA: Mas por quê?
DUCA: Ah, isso ele não me disse. Já vou.
CLÉA: Vê se dessa vez você pega um táxi.
LAERTE: Pega um aí, filhão.
CLÉA: Hum, pera aí, pera aí... Você não acha estranho ela não ter
ido visitar o Éder nenhuma vez?
ÉDER: Ah... Ele pediu para ela não ir lá, né?
CLÉA: Mas por quê?
LAERTE: Ah, meu amor, se eu tivesse uma mulher daquelas, eu não
ia querer ver ela entrando assim no presídio, né?
CLÉA: "Daquelas", como?
LAERTE: Daquelas... daquele tipo.
CLÉA: Que tipo?
LAERTE: Daquelas, amor, né, assim... Com roupa justa, vulgar, né?
CLÉA: Vulgar? Sei... O Éder mata o sujeito por causa da namorada
e ela nem vai visitar ele na cadeia?
LAERTE: Talvez eles tenham alguma coisa para esconder, viu?
CLÉA: Se... eles tivessem alguma coisa a esconder, ele ia dizer
pra ela ir lá, seria o natural. Eles não são namorados? Só se o
Éder for muito idiota pra dizer pra ela não ir lá.
LAERTE: Meu amor, ele é um idiota.
CLÉA: É.
DUCA: O que foi isso?
ÉDER: Hum. Nada, bobagem, uns caras aí tavam... E aí? Deu o
recado?
DUCA: Dei.
ÉDER: E ela?
DUCA: Disse "que bom"!
FÁTIMA: Que bom!
ÉDER: Que bom? Foi isso que ela disse?
DUCA: Foi.
ÉDER: E o que mais?
DUCA: "E o que mais?"
ÉDER: É, o que mais ela disse?
DUCA: Foi isso que ela disse. Perguntou "e o que mais?"
FÁTIMA: E o que mais?
ÉDER: Ah, tá. E você?
DUCA: "Mais nada."
ÉDER: Mais nada, cara? Você não falou mais nada?
DUCA: Não, tio. Ela perguntou: "e o que mais?" e eu respondi
"mais nada".
ÉDER: Ah, tá... Calma. Tou... Tou aqui... Como é que ela tava?
DUCA: Como assim?
ÉDER: Ela tava bem?
DUCA: Tava, tava ótima.
ÉDER: Tava ótima? Como, "tava ótima"?
DUCA: Não, tio. Tava bem. Tava bem.
ÉDER: Ah, cara, pô... Fica assustando a pessoa aí...
ÉDER: Ela é bonita, né
DUCAP: É, muito bonita.
ÉDER: Como é que ela estava vestida?
DUCA: Ela... Não reparei.
ÉDER: Você disse pra ela não vir me visitar de jeito nenhum, não
disse?
DUCA: Disse.
ÉDER: E ela?
DUCA: Ela disse que "tudo bem".
ÉDER: Tenho medo que ela faça alguma bobagem, coitada.
DUCA (V.S.): O meu pai tem razão. O tio Éder é mesmo um idiota.
ÉDER: Você deve tá pensando que eu sou um idiota, não tá?
DUCA: Não, tio, claro que não.
ÉDER: Mas vai dar tudo certo, cara. O marido dela era um imbecil,
violento. O cara já brigou com um monte de gente. O cara não tem
embasamento pra discernir nada. Sabe quando a pessoa não tem
embasamento pra discernir nada? O cara não tem. O cara só andava
armado. Não aceitava a separação, foi na minha casa... Eu não
tenho arma, nunca tive. Pô, cara, eu nunca dei um tiro na vida.
DUCA: Só um, né, tio?
ÉDER: Qual?
DUCA: Esse tiro.
ÉDER: Ah. Pois é, esse fui eu que dei. Esse foi o primeiro
tiro...
DUCA: Por que você limpou a arma?
ÉDER: Pois é, cara... Foi uma besteira, uma bobagem, né?
DUCA: Por que você não ligou pra ela?
ÉDER: Quando?
DUCA: Quando você atirou no cara, marido dela. Por que você não
ligou pra ela?
ÉDER: Sei lá, cara. Não queria dar a notícia assim, por telefone.
DUCA: Não foi ele.
ISA: Como assim?
DUCA: Não foi o meu tio que matou o cara.
ISA: Quem foi?
DUCA: Foi ela.
ISA: A Soraia?
DUCA: É.
ISA: Ele te disse?
DUCA: Não, ele disse que foi ele. Bala ruim...
ISA: E como você sabe que foi ela?
DUCA: Saber eu não sei, mas eu tenho certeza que foi ela.
ISA: Por quê?
DUCA: Ah, ela devia tá lá quando o cara chegou, armado. Eles
brigaram e ela pegou a arma e atirou no cara. Foi por isso que
ele limpou a arma. E foi por isso que ele não ligou avisando que
o cara tava morto.
ISA: Ele vai pra cadeia por causa dela?
DUCA: Não, ele acha que não vai pra cadeia. Ele acha que foi um
acidente... ou legítima defesa, sei lá.
ISA: Ele deve ser louco por ela.
DUCA: É, e ele acha que ela é louca por ele.
ISA: E não é?
DUCA: Ahn, não parece.
ISA: E aí?
DUCA: E aí o quê?
ISA: O quê que você vai fazer?
DUCA: Não sei.
ISA: Não tem como provar que foi ela?
DUCA: Acho que não. Ainda mais ele dizendo que foi ele. Só se ele
contasse.
ISA: E ele não vai contar.
DUCA: É... Se ele soubesse que ela tem outro cara, talvez ele
contasse.
ISA: E como é que ele vai saber? Você vai contar?
DUCA: Eu não. Ele não vai acreditar. Ele é um idiota.
ISA: O melhor é que ela mesma contasse. Ele ia acreditar e ficava
mais honesto.
DUCA: Você não conhece a namorada dele.
ISA: E aí?
DUCA: "Detetive Particular"... Duas mil e novecentas respostas.
ISA: Carácoles.
DUCA: Vou botar "infidelidade"... Duzentas e quarenta e três.
ISA: Mesmo assim...
DUCA: Ai... Essa, ó! "Agência Saturno". O slogan é legal: "Para
que ter dúvidas? Tenha certeza".
ISA: "Provas concretas sobre a infidelidade conjugal através de
filmagens, fotos e gravações em gerais". Nossa, "gravações em
gerais"!
DUCA: Ah, um detetive não precisa ser nenhum gênio em português.
Olha lá: "Preço a combinar." E a primeira consulta é grátis.
ISA: Eu quero ir junto.
DUCA: Não. Pode ser perigoso.
ISA: É, né? Tem razão.
DUCA (V.S.): Ela concordou mais rápido do que eu esperava. Pode
ser perigoso mesmo.
LETREIRO: Agência Saturno, investigações sigilosas.
SECRETÁRIA: Sim?
DUCA: Eu vim fazer uma consulta.
SECRETÁRIA: Aqui é uma agência de investigações particulares.
DUCA: Eu sei, eu liguei marcando, meu nome é Luis Eduardo.
SECRETÁRIA: Só um momento.
DUCA: Não abre. Não tá abrindo.
SECRETÁRIA: Só um momento. O Cícero já vai te atender.
LETREIRO: Picanha.
DUCA: Obrigado.
SECRETÁRIA: Hã-hã.
SECRETÁRIA: Hum, hum. Tá.
CÍCERO: Luis Eduardo?
DUCA: Eu.
CÍCERO: Pode entrar.
CÍCERO: Foi ele que mandou você me procurar?
DUCA: Não, ele nem sabe.
CÍCERO: E por que você quer saber se a namorada dele tem outro
namorado?
DUCA: Por que eu acho que tem, e ele não sabe.
CÍCERO: É?
DUCA: E eu acho que ele não fez nada.
CÍCERO: Então por quê que ele foi preso?
DUCA: Ele diz que matou o cara. Em legítima defesa.
CÍCERO: Ah, então quer dizer que você acha que foi ela, e que ele
resolveu assumir a culpa.
DUCA: Pode ser.
CÍCERO: E quem é que vai pagar o meu trabalho?
DUCA: Quanto custa?
CÍCERO: Isso depende.
DUCA: Depende de quê?
CÍCERO: Depende de quanto tempo leva. Quase sempre, quando a
pessoa tem um amante, escolhe um dia da semana pro encontro. Por
isso eu preciso de no mínimo uma semana para resolver o caso.
DUCA: E custa quanto uma semana?
CÍCERO: No mínimo quinhentos.
DUCA: Não dá.
CÍCERO: Calma, rapaz. Calma, calma, calma. Senta aí. Quanto você
pode pagar?
DUCA: No máximo duzentos. Duzentos e cinqüenta, vai?
CÍCERO: Por esse preço dá pra começar uma investigação
preliminar.
DUCA: Quê que é uma investigação preliminar?
CÍCERO: Uma investigação preliminar... é uma investigação prévia.
DUCA: Ahn.
CÍCERO: Cento e cinqüenta adiantado.
DUCA: Tá bom.
CÍCERO: Por esse preço é sem recibo.
DUCA: Ah, no seu site tá escrito "fotos e gravações em gerais".
CÍCERO; Sim?
DUCA: O certo é "fotos e gravações em geral".
CÍCERO: Muito obrigado.
DUCA: Tá bom.
CÍCERO: É um sobrinho meu que faz o site. Não me cobra nada. Vou
mandar arrumar. Qualquer novidade, eu ligo.
SECRETÁRIA: Esse preço é sem recibo.
DUCA: Ah... tá. Tchau.
SECRETÁRIA: Tchu.
ISA: O que é uma investigação preliminar?
DUCA: Ah, é uma investigação prévia.
ISA: Como era a sala dele?
DUCA: Ué... Normal. Um escritório.
ISA: E como é que ele tava vestido?
DUCA: Calça, camisa. Normal.
ISA: Normal, como? Que cor?
DUCA: Que cor?
ISA: É, que cor?
DUCA: Ahn... Calça azul marinho, camisa vermelha.
ISA: Azul marinho com vermelho?
DUCA: É, não sei.
ISA: Tinha aquele vidro na porta?
DUCA: Que vidro?
ISA: Aquele vidro que sempre tem em filmes de detetive, com o
nome dele escrito?
DUCA: Não. Não, acho que não. Não reparei.
ISA: E a secretária? Como era o nome dela?
DUCA: Não perguntei.
ISA: E a roupa?
DUCA: A roupa? Um casaco meio de bolinha, meio xadrez...
ISA: Colar?
DUCA: É... Um de bola preto assim.
ISA: E o cabelo?
DUCA: Cabelo? Arrumado, penteado.
ISA: Loira?
DUCA: É, um pouco.
ISA: E o sapato?
DUCA: Sapato... de salto, vermelho.
ISA: Maquiada?
DUCA: Não... não reparei.
ISA: Ai, que saco! Da próxima vez, eu vou junto.
DUCA: Melhor mudar de assunto.
KID: Augustão... Quero ver você lá amanhã, hein, véio? Se cuida,
cara. Quê que foi, gente?
DUCA e ISA: Nada.
KID: Como assim, nada? O quê que vocês tão falando?
ISA: Da prova de biologia.
KID: Porra, Isa! Você falou que não ia cair o que era antígeno
aglutinogêneo na prova e caiu, cara. Acho que fui super mal.
ISA: Só tinha uma pergunta disso, você foi mal porque não estudou
nada.
KID: Tá bom.
DUCA: Quando a gente vai fazer o trabalho de química?
ISA: Pode ser sábado?
KID: Não, sábado não. Sexta-feira tem a festa da duzentos e três.
Vocês não vão?
DUCA: Não, acho que não.
KID: E você? Vai?
ISA: Isso é um convite?
KID: A festa não é minha... Você vai se você quiser.
ISA: Então eu vou pensar no seu caso...
KID: Tá bom.
ISA: O Kid tá um saco...
DUCA: Vocês tão namorando?
ISA: Não. Por quê?
DUCA: Nada.
ISA: Ele te falou alguma coisa?
DUCA: Não. Falar o quê?
ISA: Sei lá.
ISA: Por que você não vai na festa da duzentos e três?
DUCA: Isso é um convite?
ISA: A festa não é minha. Você vai se você quiser.
DUCA: Vou pensar no seu caso.
PROFESSORA: Se esse ângulo tiver sessenta graus, esse aqui também
vai ter sessenta e esse outro também vai ter sessenta. Porque a
soma dos ângulos internos de um triângulo, vocês lembram, dá
sempre cento e oitenta.
DUCA (V.S.): A Isa tá muito a fim do Kid. Se ela for na festa da
duzentos e três, é certo que eles vão ficar. E eu não quero tá lá
pra ver isso.
PROFESSORA: Entenderam a questão? Então eu quero que a Ana Paula
me diga agora que ângulo que vai dar ali, tá?
DUCA (V.S.): A não ser... que ele fique com outra.
ANA PAULA: Então vem fazer, então, se você acha fácil.
PROFESSORA: Então olha só, pessoal, é exatamente isso: esse
ângulo é igual a esse que é igual a esse. Entenderam vocês? OK?
Bom, pessoal, obrigada, até a próxima.
DUCA: Oi.
ANA PAULA: Oi.
DUCA: Você vai na festa da duzentos e três?
ANA PAULA: Por quê?
DUCA: Não, por nada.
ANA PAULA: Como assim?
DUCA: Nada.
ANA PAULA: Por que você quer saber?
DUCA: Não vai falar que eu te falei.
ANA PAULA: Ai, fala...
DUCA: O Kid perguntou se você ia.
ANA PAULA: O Kid?
DUCA: É.
ANA PAULA: Ah, eu não sei, masz eu acho que eu vou.
DUCA: Então tá bom.
KID: Qual que era o papo com a gostosa da Ana Paula, cara?
DUCA: Nada.
KID: Como assim, nada? Eu vi ela me olhando e rindo.
DUCA: Não, ela pediu pra não falar.
KID: Não falar o quê?
DUCA: Não vai falar que eu te falei.
KID: Vai, fala logo.
DUCA: Não, ela perguntou se tu ia pra festa da duzentos e três.
KID: Ela perguntou isso?
DUCA: Perguntou. Cara, a Ana Paula tá muuuuito gostosa...
ISA: Pensei que você não vinha.
DUCA: É, eu vim. O que foi?
ISA: Nada.
DUCA: Como assim, nada? O que foi?
ISA: Sei lá...
DUCA: Fala.
ISA: É que eu não tou muito pra festa hoje.
DUCA: Então por que você veio?
ISA: Não sei. Antes eu queria. Eu nunca sei direito o que eu
quero.
DUCA: Minha mãe me disse que quando a gente era criança ela te
perguntava "você quer uma coisa ou outra?" e você respondia
"quero uma coisa e ou outra".
ISA: Você me acha muito criança?
DUCA: Você é que sempre me achou criança. Desde quando a gente
era criança.
ISA: Não acho mais.
DUCA: Que bom.
ISA: Você acha bom mesmo? Às vezes é ruim não ser mais criança.
DUCA: É, as vezes é ruim. Quer beber alguma coisa?
ISA: Quero.
DUCA: Eu pego.
DUCA: Vamos dançar?
ISA: Vamos.
ANA PAULA: Preso por quê? Foi ele mesmo que matou o cara?
DUCA: É... Isso ele já tinha confessado.
ANA PAULA: E o que mais ele fez para ser preso?
DUCA: Mais nada. Ele matou o cara, só isso.
ANA PAULA: E como é dentro do presídio?
DUCA: É triste.
ANA PAULA: Triste como?
DUCA: É triste. Muito triste. Eu já vou.
CLÉA: Você tá melhor?
DUCA: Tou.
CLÉA: Então você vai na escola, né?
DUCA: Vou.
CLÉA: Toma bastante água?
DUCA: Tomo, sim.
LAERTE: E aí?
DUCA: Tou melhor.
LAERTE: Não vai pra escola, não?
DUCA: Vou na swgunsda aula, a primeira é religião.
LAERTE: Ih... Ah, então tudo bem, né? Vamos? Duca, toma bastante
água, viu?
DUCA: Tá bom.
LAERTE: Vamos, vamos.
CLÉA: Tchau, filho.
DUCA: Alô? Sou eu. Posso. Que horas? Tá. O senhor descobriu
alguma coisa?
DUCA: Oi.
ISA: Oi. O quê que foi?
DUCA: Não acordei.
ISA: Nem vi você ir embora da festa.
DUCA: Eu saí cedo. Você saiu a que horas?
ISA: Ah... Tipo umas quatro.
ISA: Eu vi você com a Ana Paula.
DUCA: É?
ISA: Você ficaram?
DUCA: Não. Foi só conversa. E o Kid?
ISA: O quê que tem?
DUCA: Vocês tão namorando?
ISA: Acho que sim.
DUCA: O detetive me ligou.
ISA: É? E aí? Ele falou se descobriu alguma coisa?
DUCA: Fez umas fotos.
ISA: Dela?
DUCA: Deve ser.
ISA: Com o cara?
DUCA: Deve ser.
ISA: Catzo! Quando é que você vai lá?
DUCA: Amanhã, às seis.
ISA: Ai, que saco, tenho dentista às cinco! Tudo bem, eu saio do
dentista e pego um táxi pra lá.
DUCA (V.S.): Maquiada. Sem colar. Sapato... o sapato era vermelho
mesmo. Bonita. Lendo... Ih, não deu pra ler o título.
DUCA: Você gosta de livros policiais?
SECRETÁRIA: Não muito. Já li Agatha Cristie.
DUCA: Ah.
CÍCERO: Isso não é vergonha pra ninguém não, viu? Pode entrar.
DUCA: Tou esperando uma pessoa.
SECRETÁRIA: São seis e quinze.
CÍCERO: São seis e quinze...
DUCA: Tá bom.
CÍCERO: Tem o recibo da revelação, paga pra secretária. Tua tia
com o garoto que limpa a piscina. Ela deu mole, né? Tirou o
biquíni. Ele correu atrás. Certo ele... Tua tia é um foguete.
Coisa de primeiro mundo. Olha que maravilha...
ISA: E aí? Já foi?
DUCA: Já. São seis e meia.
ISA: Que saco, paguei nove reais pelo táxi! Que merda! E aí, como
foi? São as fotos?
DUCA: São.
ISA: Dela? Com um cara? Catzo, deixa eu ver!
DUCA: Não.
ISA: Como assim?
DUCA: É melhor você não ver as fotos.
ISA: Por que não?
DUCA: Eu vou mandar pro meu tio na prisão.
ISA: Como assim, Duca? Não enche, dá essas fotos.
DUCA: Não.
ISA: Como assim, Duca? Deixa eu ver essas fotos, dá aqui!
DUCA: Não!
ISA: Por que não?
DUCA: Ahn... Porque ela tá nua.
ISA: Quê? Deixa eu ver essas fotos, Duca!
DUCA: Não.
ISA: Dá aqui!!
DUCA: Não!
ISA: Por que não? Eu paguei por essas fotos, te emprestei o
dinheiro.
DUCA: Eu te devolvo.
ISA: Não quero, eu quero ver as fotos. Dá isso aqui, Duca.
DUCA: Não, isso aqui é assunto do meu tio, não é fofoca de
revista não.
ISA: Você não vai mesmo me mostrar as fotos?
DUCA: Não. Não vou.
ISA: Tá falando sério?
DUCA: Tou.
ISA: Duca, você é um babaca mesmo.
DUCA: Eu não quero te mostrar as fotos e pronto.
ISA: Ai, Duca, como você é criança...
CLÉA: Duca! Vamos, Duca, vamos...
DUCA: Já vou!
CLÉA: Duca! Duca!
DUCA: Que foi?
CLÉA: Você não entregou o filme da Dulce.
DUCA: Eu não fui mais na Isa.
CLÉA: Luis Eduardo!
DUCA: Que foi?
CLÉA: A Dulce me emprestou esse filme na terça-feira, eu te dai
na quarta-feira, hoje é domingo, eu vou ter que pagar cinco
diárias.
DUCA: Seis se contar hoje.
CLÉA: Seis diárias!
DUCA: Eu não fui mais na Isa.
CLÉA: Você podia ter me avisado, né? Ou ter entregue pra Isa lá
na escola.
DUCA: Tem razão, desculpa.
CLÉA: Voce vai lá hoje?
DUCA: Não.
LAERTE: Quê que foi?
CLÉA: O Duca. Esqueceu de entregar o filme que a Dulce me
emprestou, eu vou ter que pagar seis diárias.
LAERTE: Ah, não devolve não, meu amor. Eu dormi, eu não vi o fim.
CLÉA: Vai dormir de novo, vou pagar mais uma diária!
LAERTE: Hum... Deixa eu ver.
CLÉA: Eles brigaram.
LAERTE: Quem?
CLÉA: O Duca e a Isa.
LAERTE: E aí, meu amor? Eles brigam quase todos os dias há quinze
anos.
CLÉA: É? Mas faz uma semana que eles não brigam. Estranho isso.
LAERTE: É. Será que eles brigaram?
DUCA: Alô.
ISA: Oi. O quê que você tá fazendo?
DUCA: Tou ouvindo música.
ISA: Que música?
DUCA: Um disco de rap.
ISA: Posso ir aí?
DUCA: Agora?
ISA: É.
DUCA: Tá bom.
ISA: Oi.
DUCA: Oi.
ISA: Desculpa ter te chamado de criança aquele dia.
DUCA: Tudo bem.
ISA: A gente vai pra praia, sábado.
DUCA: A gente quem?
ISA: Eu, o Kid, A Ana Paula, a Francis...
LETREIRO: Fotos Soraia - maximizar.
ISA: A gente vai para a casa da Francis. Quer ir?
LETREIRO: Fotos Soraia - fechar.
DUCA: Não, acho que não.
ISA: A Ana Paula perguntou se você ia.
DUCA: É? Então diz pra ela que eu não vou.
ISA: Por que não?
DUCA: Não tou a fim.
ISA: Tá bom.
DUCA: Entra.
CLÉA: Vamos almoçar?
ISA: Eu já vou indo.
CLÉA: Ah, almoça com a gente, Isa.
DUCA: Ela tá indo.
CLÉA: Eu fiz aquela pizza de sardinha que você adora.
ISA: Hummm....
CLÉA: Vamos. Vai esfriar, filho, vem.
LAERTE: Tinha umas escadas, um labirinto assim, né, Duca? Era um
mosteiro enorme, sabe, muito antigo por sinal. Vários monges. e
tinhas umas escadas, assim, umas passagens secretas, e o monge
principal era o zero-zero-sete.
ISA: Ah, o... o antigo?
LAERETE: É, o antigo, aquele velho, né? Ah, e tinha uma cena
incrível também, sabe? Era o monge engolindo o livro e a
biblioteca pegando fogo.
CLÉA: Contou o final do filme.
ISA: Não tem importância, eu esqueço.
LAERTE: Cada dia morre um monge. Umas mortes incríveis: um no
fogo, um na água, um no gelo... ninguém sabia como eles morriam.
CLÉA: Alô?
LAERTE: Acontece que todos tinham lido um livro...
CLÉA: Pode subir.
LAERTE: ... e aí o monge zero-zero-zete descobre que tinha veneno
na ponta das páginas.
CLÉA: É o Éder.
LAERTE: O Éder?
CLÉA: Tá subindo.
CLÉA: Ooooooi...
ÉDER: Oi.
CLÉA: Que bom...
ÉDER: Duca...
LAERTE: O que aconteceu?
ÉDER: Saí. Vou aguardar o julgamento em liberdade.
CLÉA: Que coisa ótima!
LAERTE: Ó! Tem que pagar o Rogério.
CLÉA: Ah, ele é amigo, amor.
LAERTE: Por isso mesmo.
ÉDER: Tudo bem, Ciça?
ISA: Oi, Éder, tudo bom?
ÉDER: Ahhhhhhh... Que maravilha...
CLÉA: Ah, ah... O quê?
ÉDER: Um sofá... Nunca tinha reparado... Ai... Um mês sem sentar
num sofá muda a vida da gente.
CLÉA: Ah, ah, ah...
ÉDER: Olha só: guardanapo, copo de vidro, livros... Olha,
controle remoto! Tudo para mim agora tem outro gosto, outro
sabor... O que é que tem para almoçar?
CLÉA: Ahn, eu fiz pizza de sardinha. Mas tem aquele feijão que
você adora, quer que eu esquente?
ÉDER: Hummm, quero. Se não for dar trabalho.
CLÉA: Ah, Éder...
ÉDER: Ai... Esse mês mudou a minha vida... Eu sou outra pessoa.
LAERTE: Ahn... Que bom, né?
ÉDER: Eu vou recomeçar a minha vida do zero. Olha aqui, as coisas
que eu tinha quando entrei na cadeia: minha correntinha, minha
caneta, meu chaveiro, meu isqueiro... Sabia que eu parei de fumar
na prisão?
LAERTE: Que ótimo! Olha aí...
ÉDER: Cara, quero voltar a estudar. Quero casar, ter filhos.
LAERTE: Vai com calma, Éder.
ÉDER: Não, é sério, cara. Eu sou o tipo de cara que, de um acerta
forma, eu quero ter filhos. Sabe? Eu tou com quase trinta anos.
LAERTE: Trinta e um, né, Duca?
ÉDER: Pois então? Trinta e um é quase trinta.
ISA: Ah, trinta e um é moço. O Rodrigo Santoro tem trinta.
ÉDER: Pois então? Mas eu vou lhe contar um segredo: sabe o que é
que muda de verdade a vida de um homem? Uma grande paixão. Uma
grande mulher. Isso é que muda de verdade a vida de um homem.
DUCA: Você vai encontrar, tio.
ÉDER: Como assim, vou encontrar? Eu já encontrei. A Soraia é a
mulher da minha vida.
DUCA: E como você foi solto?
ÉDER: Ah... O advogado conseguiu um habeas corpus.
CLÉA: Pronto, quentinho: arroz, feijão e um peito de frango.
ÉDER: Ahn...
LAERTE: Que fotos são estas, Éder?
ÉDER: Puta que me pariu!
CLÉA: Que é isso, Éder?
ÉDER: Vagabunda, miserável!
LAERTE: Calma, Éder.
ÉDER: Desgraçada... Essa vagabunda já tem outro! E eu preso por
causa dela!
LAERTE: Como assim?
ÉDER: Não fui eu quem matou o cara! Foi ela!
LAERTE: Ela quem?
ÉDER: A Soraia. Ela tava lá quando o cara chegou. A gente brigou,
eu tirei a arma dele, dei para ela, ela atirou e matou o cara. E
agora tá aqui...
LAERTE: Puta que o pariu.
CLÉA: Ai, Laerte! Você tem que contar isso pra polícia, Éder!
ÉDER: Claro que não. Primeiro eu vou matar ela.
LAERTE: Calma, calma, calma.
CLÉA: Calma, Éder!
ÉDER: Eu vou matar ela. Ela e esse branquelo desgraçado.
LAERTE: Tá louco!
CLÉA: Éder, Éder, pera aí.
LAERTE: Volta aqui, Éder! Vem aqui. Espera. Idiota!
ISA: Eu já vou.
DUCA: Calma.
ISA: Tenho que pegar minha bolsa.
DUCA: Calma. Vamos ligar pro Kid?
ISA: É melhor, né?
DUCA: Tia Ju? É o Duca. Ah, obrigado, eu vou aí, sim...
LETREIRO: Kd o Kid?
DUCA: O Kid tá aí?
LETREIRO: V6 viram ele hj?
DUCA: Saiu? E a senhora sabe pra onde ele foi? Tá bom. É.
LETREIRO: Oiieee. Vi o Kid ele falo q ia limpar um piscina hj.
DUCA: Tá bom, então. Tá bom, eu digo. Tá bom, eu digo, sim.
LETREIRO: Kid - Piscina.
DUCA: Então tá. Tchau.
ISA: Olha.
DUCA: A gente tem que ir lá.
ISA: Lá onde?
DUCA: Na casa da mulher, para avisar pro Kid. E se ele tiver lá?
ISA: Azar o dele.
DUCA: A gente tem que ir lá, eu vou. Já imaginou se o tio Éder
pega os dois juntos?
ISA: Tou imaginando.
SORAIA: Éder?
PORTEIRO: O que vocês querem?
DUCA: Eu queria falar com a Soraia.
PORTEIRO: Você é parente dela?
ISA: É, ele é sobrinho.
PORTEIRO: Sobrinho?
DUCA: É... Meu tio é namorado dela.
PORTEIRO: Ah, tudo bem, pode subir. Ele já tá aí, foi direto para
a cobertura. Deve tá na piscina.
SORAIA: Larga ele! Larga. Larga ele!
ÉDER: Quem é esse cara?
SORAIA: É o meu irmão, o Fábio!
ÉDER: Seu irmão?
SORAIA: É.
ÉDER: Sim, sim. Mas e esse aqui, quem é?
FÁBIO: Ô meu, você tá ficando louco?
SORAIA: Pára! calma! Quietos! Parem os dois.
FÁBIO: Desgraçado!
ÉDER: Ordinária!
SORAIA: Calma! Quê que é isso, Éder? Você mandou me espionar?
ÉDER: Mandei sim! E daí? Sim, mas... Você não me engana. E esse
aí quem é? É seu irmão também? Quantos irmãos você tem?
FÁBIO: Campainha.
SORAIA: Atende pra mim, por favor?
FÁBIO: Certeza?
SORAIA: Não, tenho, tá tudo bem.
SORAIA: Ô Éder, você é um idiota? Hein? Não, porque essas fotos
aqui, elas não mostram nada! Elas não mostram absolutamente nada!
Aqui, ó: tou eu, tomando sol, como eu sempre faço... Aí aqui
chegou o menino que limpa a piscina. Fui atender a porta... Aí
ele entrou, começou a limpar a piscina. Aí o garoto disse que
tinha terminado, eu entrei pra buscar o dinheiro... Aí ele entrou
também... Aí depois eu voltei pra pegar sol... Continuei tomando
sol, soltei a parte do biquíni pra não deixar marca. Depois eu
cansei de pegar sol e entrei de novo.
SORAIA: Não tou entendendo qual o problema. Você não me ama mais,
você tá duvidando de mim? É isso?
DUCA: Irmão?
FÁBIO: E vocês, quem são?
ISA: Ele é sobrinho... da Soraia... Do namorado dela...
DUCA: É, o meu tio tá aí?
FÁBIO: Esse idiota aqui é seu tio?
DUCA: É. Posso entrar?
ÉDER: Me desculpe, Soinha...
SORAIA: Não, não desculpo, Éder, você duvidou de mim...
ÉDER: Eu... Eu não sei o que deu em mim... Sei lá, essas fotos
tavam fora de ordem, Soraia, desculpe, amor...
SORAIA: Se você me amasse de verdade, você não tinha duvidado.
ÉDER: Não, não pense isso, não pense isso. Eu te amo tanto,
Soraia...
SORAIA: Eu também te amo...
SORAIA: Oi, meninos.
ÉDER: Hum, meninos, o que é que vocês tão fazendo aqui?
DUCA: A gente veio ver se você ia precisar de alguma coisa.
ÉDER: Esse é o Duca, meu sobrinho.
SORAIA: Eu conheci ele.
ISA: Seu pai tem razão. Seu tio é um idiota.
DUCA: Eu sei.
DUCA (V.S.): Só um idiota acreditaria na história da Soraia. Se
as coisas tivessem acontecido como ela disse... naquele dia o sol
andou pra frente e pra trás... e aquele gato aprendeu a andar de
ré. Eu pensei em contar tudo pro tio Éder. Mas ele tava tão
feliz...
LAERTE: Éder...
DUCA: Eu achei que era melhor deixar assim.
LAERTE: Ah, ah... Pega um. Ó, ó, ó, isso gira... Ah, ah, ah...
DUCA (V.S.): O tio Éder não disse pra polícia que foi ela que
atirou. Pode ter sido legítima defesa, não sei. Ele diz que vai
dar tudo certo.
LAERTE: Até que ela é engraçada, né? Simpática, hum?
CLÉA: Aquilo pra mim é silicone.
LAERTE: É? Eu não reparei...
CLÉA: Hmmm... Acredita que ela me disse que quer ter um filho?
LAERTE: O Éder é uma besta quadrada. Até que a idéia é boa...
SORAIA: Por favor...
DUCA (V.S.): A Isa nunca ficou sabendo como o Kid foi parar na
casa da Soraia.
SORAIA: E você?
DUCA (V.S.): Eu que não contei.
KID: Eu me chamo Leonardo.
DUCA (V.S.): O Kid falou que a mulher deu a maior mole para ele.
E que ainda pagava cem reais para ele voltar outro dia... pra
limpar a piscina. Ele voltou, claro. A mulher deu mais mole
ainda.
DUCA (V.S.): Ele tinha certeza que ela tava a fim. Bom, parece
que ele se enganou.
SORAIA: O quê que você tá fazendo no meu quarto?
DUCA (V.S.): Ele trabalhou a tarde inteira...
SORAIA: Sai do meu quarto, por favor!
KID: Por que "sai", tia?
DUCA (V.S.): ... e não ganhou um centavo.
SORAIA: Tia é a sua vó!
DUCA (V.S.): Bom, pelo menos foi essa a história que ele contou.
SORAIA: Eu devia chamar a polícia!
KID: Mulher louca! Puta que pariu, essa luz de novo não!
DUCA (V.S.): A Isa veio estudar matemática. Mas a gente não
estudou quase nada.
ISA: Por quê que você não me mostrou as fotos aquele dia?
DUCA: Não ia te mostrar as fotos do Kid com outra mulher, né? Ia
ser humilhante.
ISA: Sei.
DUCA: O Kid é meu amigo. Ia ser sacanagem também.
ISA: O seu amigo é um idiota. A gente não tá mais namorando.
DUCA: Que pena.
ISA: Você acha mesmo uma pena?
DUCA (V.S.): Ela me olhou e riu. Eu ri também.
DUCA: Não, eu acho ótimo.
DUCA (V.S.): A gente se beijou. E pronto.
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(c) Jorge Furtado e Guel Arraes, 2004-2005.
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
01/11/2004
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