O BOCHECHA

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               O BOCHECHA
               episódio da série
               CONTOS DE INVERNO 2002

               argumento e roteiro de
               Beto Philomena
               Versão 27/03/2002

               coordenação de texto da série
               Jorge Furtado
               e Giba Assis Brasil

               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
               para RBS TV

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CENA 1 - INT/DIA - ESTUFA

Uma grande estufa, plantas muito bonitas, de todos os tipos:
orquídeas, bromélias, rosas, gérberas... tudo isso ao som de
Mozart. CARMEM, 40 anos, está tocando violino dentro da estufa.
EDGAR, 45, com um vaso de orquídeas, passa pela mulher. Ela pára
de tocar.

               CARMEM
               Posso te ajudar, Edgar?

               EDGAR
               Não, obrigado. Continue tocando.

Carmem recomeça a tocar. Edgar trabalha no vaso com a orquídea.

               NARRADOR (VS)
               No bairro, todos concordam: Carmem e Edgar formam
               um casal admirável. Foram feitos um para outro.
               Nem amigos se entendem tão bem. Edgar tem uma
               floricultura e Carmem é professora de violino.
               Carmem acredita que a música tem um poder mágico
               sobre as plantas. Edgar não tem por que duvidar.

Carmem pára de tocar e observa Edgar.

               CARMEM
               É presente?

               EDGAR
               É, para o Chiquinho. Ele encomendou uma orquídea
               para dar de aniversário para a Carlota, amanhã.

               CARMEM
               Bom... então eu vou tocar Vivaldi. Mozart é bom
               para as rosas. Orquídeas adoram Vivaldi.

Carmem ajeita o violino entre o queixo e ombro e começa a tocar a
Primavera de Vivaldi. Edgar se aproxima, fica parado olhando para
ela, sorrindo com suas grandes bochechas rosadas.

Carmem se desconcentra, desafina feio. Edgar faz uma cara de
"ui". Ela pára de tocar, ele sorri e volta ao trabalho. Carmem
afina o violino, observa Edgar com o canto do olho.

               CARMEM
               Edgar, você não acha romântico um homem levar um
               bofetão de uma mulher?

Edgar fica surpreso com a pergunta da mulher mas responde sem
tirar os olhos das plantas.

               EDGAR
               Só em filme. Imagina, por exemplo, a Carlota, com
               aqueles 110 quilos enfiando a mão no Chiquinho.
               Coitado... iria parar num hospital.

               CARMEM
               Que sem graça, Edgar. Tanta situação mais
               glamourosa para imaginar e tu pensando no
               Chiquinho e na Carlota.

               EDGAR
               É que o Chiquinho é meu amigo. Eu me preocupo com
               ele.

               CARMEM
               Um tapinha não dói, Edgar.

               EDGAR
               Ah... um tapinha da Carlota deve doer. Mas por que
               tu estás me perguntando isso?

               CARMEM
               Esquece, Edgar. Esquece.

Carmem volta a tocar.

               NARRADOR (VS)
               Carmem só não errou nenhum movimento por estar
               muito familiarizada com a obra de Vivaldi. Edgar
               jamais poderia imaginar o que estava se passando
               com a esposa. Naquela tarde, Carmem marcou hora no
               salão de beleza de sua melhor amiga. Carmem
               precisava contar o seu segredo para alguém.

CENA 2 - INT/DIA - INSTITUTO DE BELEZA

Carmem e Jurema, a cabeleireira, conversam. Carmem, com a cabeça
embaixo do secador de cabelos, não percebe que está falando alto.

               CARMEM
               Tu já "destes" um tapa no teu marido?

A pergunta de Carmem ecoa pelo salão, chamando a atenção de todas
as clientes e cabeleireiros. Imediatamente, todas as mulheres
balançam a cabeça positivamente, inclusive uma bichinha.

               JUREMA
               Hum, hum.

               CARMEM
               Assim na cara?

               JUREMA
               Arrã... Uma vez eu encontrei no bolso do paletó
               dele um papel com o nome Vanessa escrito e ele
               teve a coragem de dizer que era o nome de uma égua
               que um amigo do jockey tinha sugerido para uma
               aposta.

               CARMEM
               Tu "destes" um tapa no Fonseca só por causa de uma
               suspeita?

               JUREMA
               Não... O tapa eu dei um dia depois, quando a égua
               ligou lá pra casa. Mas por que essa pergunta? O
               Edgar aprontou alguma?

               CARMEM
               Quem me dera! Se o Edgar me desse um motivo eu
               acabava logo com esta obsessão.

               JUREMA
               Que obsessão é essa?

INSERT: Cena de filme, mocinha esbofeteia galã. Eles se beijam.
Cena repete, mais em close.

               CARMEM (VS)
               Eu vi um filme em que a mocinha esbofeteou o galã
               e depois ele puxou ela contra o corpo e lascou um
               beijo de tirar o folêgo. Desde então eu não
               consigo tirar isso da cabeça.

Carmem e Jurema no instituto de beleza.

               CARMEM
               Eu preciso ter esta experiência com o Edgar. Nosso
               casamento vai super bem. A gente se ama muito. Em
               20 anos, nunca tivemos uma briguinha sequer. Mas
               eu sinto que está faltando alguma coisa mais forte
               entre a gente.

               JUREMA
               É... dizem que o melhor do casamento são as
               brigas. O resto é tudo mais ou menos. Uma
               briguinha de vez em quando até que esquenta a
               relação.

               CARMEM
               Tu não tá me entendendo. Eu não quero brigar com
               Edgar. Eu só quero dar um tapa na cara dele e
               receber um beijo depois, como no filme.

               JUREMA
               Se é só isso por que tu não propõe para o Edgar um
               jogo erótico? Sabe como é... no rala e rola. Um
               sexozinho selvagem tem o seu valor.

Um cabelereiro suspira.

               CARMEM
               O Edgar jamais aceitaria uma proposta dessas.

               JUREMA
               Mas isso é tão comum entre casais!

               CARMEM
               Não para o Edgar.

               JUREMA
               Bom...se é assim porque tu não dá um tapa...
               acidental?

               CARMEM
               Eu já pensei nisso. Às vezes eu gosto de dançar
               enquanto os meus alunos tocam....

CENA 3 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA

Carmem dança ao som do violino de um dos seus alunos. Edgar entra
na sala. Carmem percebe e vai dançando em direção a ele, braços
soltos. Ao chegar próximo a Edgar, levanta um braço, como que
dançando, e dá-lhe um bofetão tão forte que ele cai desmaiado.

Carmem fica olhando para o marido no chão preocupada com o
resultado do tapa.

CENA 4 - INT/DIA - INSTITUTO DE BELEZA

Carmem e Jurema terminam a conversa.

               CARMEM
               Mas assim eu posso machucar o Edgar.

               JUREMA
               É... pode não ser uma boa idéia.

               CARMEM
               O ideal seria se o Edgar me desse um motivo.

Jurema concorda em silêncio e volta a trabalhar no cabelo de
Carmem, que fica pensando, absorta.

               NARRADOR (VS)
               Carmem bem que tentara entender os mecanismos
               psíquicos e processos inconscientes que a impeliam
               a dar uma sonora bofetada no marido. Tentou, mas
               não muito. Às vezes é mais cômodo pensar que
               algumas coisas são do jeito que são. E pronto.

CENA 5 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: QUARTO

Carmem no seu quarto assistindo televisão.

INSERT: Cena de uma mocinha esbofeteando o galã em um filme.

Carmem, nervosa, desliga a tevê bem no instante que Edgar sai do
banheiro passando loção no rosto recém barbeado.

               EDGAR
               O que tem pra jantar?

Carmem se levanta e dá um tapa na cara do marido.

Carmem, que continuava sentada na cama em frente a tevê, acorda
do seu breve sonho e responde.

               CARMEM
               Bife enrolado.

               EDGAR
               Que cara é esta, Carmem?

               CARMEM
               Eu acabei de ver uma cena emocionante na tevê. A
               mulher dá um tapa no marido, ele beija ela e acaba
               o filme. Não é lindo?

               EDGAR
               Sinceramente? Eu não consigo imaginar um final
               feliz para um bofetão.

Edgar, enquanto veste o pijama, conta uma história triste para
Carmem.

               EDGAR
               Quando eu tinha 10 anos eu era um dos melhores
               alunos da classe. Só tirava boas notas, era o
               presidente da turma e capitão do time do colégio.
               Os meus colegas me respeitavam e as gurias todas
               queriam me namorar. Mas eu só tinha olhos para uma
               delas, a Hortência. Uma menina que sentava na
               primeira fila.

CENA 6 - EXT/DIA - PÁTIO DO COLÉGIO

Crianças no pátio de uma escola. O menino Edgar, 10 anos, e um
amigo da mesma idade procuram HORTÊNCIA entre as meninas.
Encontram. Edgar prende o espelhinho no sapato. Se aproxima por
trás de Hortência.

               EDGAR (VS)
               A brincadeira preferida dos guris era colocar um
               espelhinho amarrado no sapato para olhar as
               calcinhas das gurias. O meu melhor amigo apostou
               que eu não teria coragem de ver qual a cor das
               calcinhas da Hortência. Para manter a minha fama,
               eu aceitei a aposta. Só que deu tudo errado.

Hortência deixa cair o lápis, vê o espelhinho, encara Edgar e dá-
lhe um tabefe na cara. Todos ficam rindo. Hortência encara Edgar.

               EDGAR (OFF)
               Eu não tive nenhuma reação. Fiquei lá imóvel,
               pensando na grande bobagem que tinha feito. Eu
               nunca consegui esquecer o som das gargalhadas dos
               meus colegas e, principalmente, o olhar da
               Hortência.

Edgar termina de vestir o pijama, senta na cama ao lado de
Carmem.

               EDGAR
               Eu nunca mais fui o mesmo. Comecei a tirar notas
               baixas, perdi a reeleição para presidente da turma
               e a faixa de capitão do time. Como eu poderia
               peitar um juiz se apanhava de menina na cara? Mas
               o pior foi o apelido que tive que carregar até
               trocar de colégio: bochecha.

               CARMEM
               Bochecha, Edgar! Que apelido engraçado!

               EDGAR
               Eu não acho nada engraçado.

               CARMEM
               Mas já faz tanto tempo!

               EDGAR
               Pra mim parece que foi ontem.

CENA 7 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA

Carmem e DAIANI, a empregada, 25 anos, arrumam a mesa de jantar.
Carmem observa o corpo de Daiani: ela é muito bonita, corpo
perfeito.

               NARRADOR (VS)
               O trauma de Edgar certamente atrapalharia os
               planos de Carmem. Mas, mesmo assim, ela não
               desistiria. O desejo de esbofetear o seu marido
               era mais forte que a razão. Naquela noite, durante
               o jantar, Carmem teve uma idéia.

               CARMEM
               Daiani, vai servindo o jantar que eu preciso ligar
               para a Jurema.

CENA 8 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: QUARTO

Carmem, ao telefone.

               CARMEM
               Jurema, tive uma idéia para dar um tapa no Edgar.
               Sabe a Daiani, a minha cozinheira?

CENA 9 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: COZINHA

Daiani experimenta um uniforme novo.

               DAIANI
               Dona Carmem, a senhora não acha que este uniforme
               novo é muito curto?

               CARMEM
               Está ótimo, Daiani. É a última moda.

CENA 10 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA E COZINHA

Daiani serve o almoço. Carmem se retira da mesa e vai até a
cozinha, de onde fica ouvindo a conversa de Edgar e Daiani.

               EDGAR (FQ)
               Hum... que maravilha! De quem foi a idéia?

               DAIANI (FQ)
               Da dona Carmem.

               EDGAR (FQ)
               A aparência tá ótima.

               DAIANI (FQ)
               Tira a mão, seu Edgar. A dona Carmem não vai
               gostar.

               EDGAR (FQ)
               É só tu não contar pra ela.

               DAIANI (FQ)
               Espera, seu Edgar!

               EDGAR (FQ)
               E sempre achei as suas bem mais gostosas que as da
               Carmem.

               DAIANI (FQ)
               É que as da dona Carmem têm muita gordura.

               EDGAR (FQ)
               Ah, deixa, a Carmem vai demorar lá dentro. Só vou
               tirar uma lasquinha.

               DAIANI (FQ)
               E senhor promete?

Carmem invade a sala, furiosa.

               CARMEM
               O que é isso, Edgar!

               EDGAR
               (de boca cheia) Coxinha de galinha frita. Tá uma
               delícia! Experimenta.

Edgar está sentado comendo uma coxinha de galinha frita.

               DAIANI
               Eu falei que era pra esperar a senhora.

               EDGAR
               (falando de boca cheia) Não deu pra esperar,
               Carmem. Tá bom demais.

Carmem fica desconcertada com a cena. Senta à mesa e se desarma.

CENA 11 - INT/DIA - ESTUFA

Edgar e Carmem conversam. Ele está mexendo num vasos de flores do
campo. Ela está lendo algumas partituras.

               EDGAR
               Carmem, será que as flores também gostam de música
               popular?

               CARMEM
               Claro, as plantas gostam de música. Clássica,
               popular... tanto faz. Por quê?

               EDGAR
               É que eu estive pensando que flores do campo devem
               gostar de música sertaneja. Tu sabes tocar alguma?

Carmem olha para Edgar e começa a tocar "Entre tapas e beijos" no
violino. Neste momento, Jurema entra na estufa. Carmem pára de
tocar e vai até a amiga, arrastando-a pelo braço para um canto
longe do marido.

               JUREMA
               E aí?

               CARMEM
               Não funcionou. O Edgar é muito distraído. Mas eu
               não vou desistir assim tão fácil. Vou embebedar o
               Edgar. Um marido bêbado certamente vai se tornar
               inconveniente ao ponto de merecer uma bofetada.

               JUREMA
               Só tem um problema: o Edgar não bebe.

               CARMEM
               Hoje ele vai beber...

CENA 12 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: COZINHA

Carmem, na cozinha, consulta um livro de receitas e prepara um
jantar, cheio de ingredientes.

               CARMEM (FQ)
               ... Vou preparar um jantar especial para ele.

Edgar entra na cozinha.

               EDGAR
               E a Daiani?

               CARMEM
               Dei folga.

               EDGAR
               O que nós vamos jantar?

               CARMEM
               Pato ao rum, batatas assadas na cerveja, arroz
               selvagem ao conhaque e pêras ao vinho de
               sobremesa. E, excepcionalmente, esta noite tu vais
               me acompanhar na champagne.

               EDGAR
               Champagne?

               CARMEM
               Uma tacinha não vai te fazer mal.

CENA 12A - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA

Mesa de jantar com flores e velas, os pratos. Carmem está bêbada,
Edgar não.

               EDGAR
               Que champagne bem forte esta. A última vez que eu
               fiquei tão tonto assim foi no casamento da tua
               prima que eu misturei champagne, cerveja e vinho.

Edgar enfia mais uma pêra na boca e fica com a bochecha saliente.

               CARMEM
               (bêbada) Sabe que tu tens uma bochechinha muito
               gostosinha, Edgar. Dá vontade de apertar.

               EDGAR
               Ihh... eu acho que tu já bebeu muito desta
               champagne. É melhor parar. Tu é muito fraca pra
               bebida.

               CARMEM
               Agora deu pra me controlar, bochecha!

               EDGAR
               Pô, Carmem! Tu sabe que eu não gosto deste
               apelido!

               CARMEM
               Ah, não fica assim, bochecha. Vem cá que eu vou te
               dar uma beijoca nesta bochecha gostosa.

Edgar, meio contrariado, aproxima o rosto na direção da esposa e
fecha os olhos para ganhar o beijo.

Carmem, vendo aquela bochecha vermelha bem ali na sua frente, não
se controla e prepara-se para desferir o tabefe dos seus sonhos.
Mas a bebedeira é tanta que o movimento do braço para trás faz
com que ela caia da cadeira, capotando de vez.

Edgar abre os olhos, procura Carmem.

               EDGAR
               Carmem?

Carmem está estirada no chão, inconsciente. Edgar, inclinado ao
seu lado, dá-lhe delicados tapinhas no rosto para reanimá-la. Aos
poucos, Carmem vai acordando.

               EDGAR
               Carmem... Carmem...

               CARMEM
               (ainda bêbada) O que é isso, Edgar? Pára de dar
               tapa na minha cara e me levanta daqui. O que
               aconteceu?

               EDGAR
               Tu apagou. Vamos dormir, vamos...

CENA 13 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA

Carmem (de ressaca) entra na sala. Edgar está lendo jornal e
tomando o café da manhã.

               EDGAR
               Bom dia.

               CARMEM
               Tô com uma bruta dor de cabeça.

Carmem senta e observa a contra-capa do jornal que Edgar tem na
mão. Na contra-capa, a manchete:

COMEÇAM OS PREPARATIVOS
PARA O PORTO ALEGRE EM CENA

               CARMEM
               Edgar, a Jurema me convidou para fazer um curso de
               teatro amador. Quem sabe eu não dou para ser
               atriz.

               EDGAR
               Arrã...! Me dá uma bolacha!

Carmem imagina a cena: se vira e tasca uma bolacha em Edgar.

Edgar continua lendo o jornal.

               EDGAR
               Não... essa não. A recheada.

Carmem larga o vidro de bolachas cream cracker e pega as bolachas
recheadas. Entrega para Edgar.

CENA 14 - INT/DIA - INSTITUTO DE BELEZA

Carmem e Jurema, no instituto.

               CARMEM
               Um desastre. Quem levou tapa fui eu. Mas eu tive
               outra idéia.

               JUREMA
               O tu vai fazer?

               CARMEM
               Teatro.

CENA 15 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA

Carmem entrega a Edgar um texto encadernado. Ele lê.

               EDGAR
               O teste é amanhã? Já?

               CARMEM
               Teatro amador é assim. Nós vamos encenar "A Megera
               Domada", de Shakespeare. Me ajuda?

               EDGAR
               O que eu tenho que fazer?

               CARMEM
               Tu vais fazer o papel do Petrúquio e vou ser a
               Catarina.

               EDGAR
               Arrã... Aqui, no fim da folha, está escrito:
               "Catarina esbofeteia Petrúquio".

               CARMEM
               Sim, é uma cena em que eles discutem. No final, a
               Megera Domada dá um tapa no Petrúquio. Petrúquio
               puxa ela pelo braço e beija-a com muito ardor.

               EDGAR
               Muito ardor é? Como é que tu pretendes fazer esta
               cena?

               CARMEM
               O mais real possível, Edgar. Eu preciso incorporar
               a fúria shakespeariana.

               EDGAR
               Fúria, é?! Que tal se a gente trocasse o tapa por
               um beliscão no braço?

               CARMEM
               Um beliscão, Edgar? Isso aqui é Shakespeare!

               EDGAR
               Pois é, um beliscão shakespeariano.

               CARMEM
               Não complica, Edgar!

               EDGAR
               Não é tu que vais levar um bofetão.

               CARMEM
               Edgar, tu não tá entendendo qual é o verdadeiro
               significado de um tapa. Um tapa não é apenas um
               tapa. É o mais transcendente, o mais importante de
               todos os atos humanos.

               EDGAR
               Eu pensava que o mais importante dos atos humanos
               era estender a mão ao próximo.

               CARMEM
               Tá bem, Edgar. Eu só vou estender a mão próximo da
               tua cara! Não esquece: na hora em tu disseres
               "Não, volte aqui, boa Catarina, e veja que sou um
               cavalheiro", tu me pegas pelo braço, eu te dou um
               tapa, de mentirinha, e depois tu me beija.
               Combinado?

               EDGAR
               Deixa comigo. Eu sou um ótimo ator.

Edgar faz um gesto dramático de quem levou um tapa na cara.

               CARMEM
               Vamos começar! A primeira fala é tua. Vai...

               EDGAR
               (lendo o texto) Catarina, não maltrate aquele que
               a corteja.

               CARMEM
               Corteja ou corveja?

               EDGAR
               (perdendo o personagem) O que quer dizer corveja?

               CARMEM
               Corvejar é fazer mau agouro, Edgar, como um corvo.
               Apenas lê o texto e não faz mais perguntas.

               EDGAR
               É que eu preciso entender bem a trama. Eu preciso
               entrar no personagem.

               CARMEM
               Edgar, sou eu quem vai fazer o teste.

               EDGAR
               Ah, é!

               CARMEM
               Começa de novo!

Edgar retoma sua posição, lê o texto. Através da janela da sala,
ao fundo e sem que eles percebam, lentamente começa a nevar.

               EDGAR
               Catarina, não maltrate aquele que a corteja.

               CARMEM
               Corteja ou corveja?

               EDGAR
               Oh, pombinha delicada, um corvo te agradaria?

               CARMEM
               Um corvo é melhor que um abutre!

               EDGAR
               Vejo-a agora irritada demais; a pombinha virou
               vespa.

               CARMEM
               Se virei, cuidado com o meu ferrão.

               EDGAR
               Só me resta um remédio: arrancá-lo.

               CARMEM
               Sim, se o imbecil soubesse onde fica o ferrão.

               EDGAR
               Mas quem não sabe onde é o ferrão da vespa? No
               rabo.

               CARMEM
               Na língua, seu estúpido.

               EDGAR
               De quem?

               CARMEM
               Na sua, que fala de maneira tão grosseira! E
               agora, adeus!

Carmem se afasta, passando próximo da janela.

               EDGAR
               Não, volta aqui, Catarina, e veja... (apontando)
               está nevando!

               CARMEM
               Como assim: está nevando?

               EDGAR
               Está nevando em Porto Alegre, Carmem. Olha pra
               janela!

Os dois observam, pela janela, a neve caindo lá fora.

               CARMEM
               Não acredito que está nevando justamente agora. Na
               minha vez.

               EDGAR
               Pode acreditar, Carmem. É neve mesmo!

Edgar larga o texto no chão, veste o casaco e sai, apressado.
Carmem senta no sofá, inconformada, ao fundo a janela e a neve
caindo.

CENA 16 - INT/DIA - INSTITUTO DE BELEZA

Carmem e Jurema no instituto.

               CARMEM
               Há vinte anos que não nevava em Porto Alegre. Eu
               ouvi dizer que, quando a gente quer muito uma
               coisa, o universo conspira a nosso favor. Pois eu
               acho que o universo não vai com a minha cara...

               VASCO (FQ)
               Bom dia!

Neste momento, Jurema liga um secador de cabelos que faz um
barulho infernal. Carmem e Jurema viram-se para a porta, onde
aparece VASCO (de "O Último desejo do Dr. Genarinho"), com meio
corpo para dentro do Instituto.

               JUREMA
               (falando alto) Sim?

               VASCO
               Sabe se eu posso deixar a perua ali na esquina?

Jurema e Carmem se olham, como que confirmando o que ouviram. Em
seguida Jurema responde.

               JUREMA
               Não, mas tem uma garagem aqui na frente.

               VASCO
               (sem entender direito) Ah, obrigado.

Vasco sai, batendo a porta. Jurema desliga a máquina.

               CARMEM
               Olha, Jurema, eu vou esquecer esta maluquice de
               tapa e voltar pra minha vidinha tranqüila.

               JUREMA
               Carmem, escuta o que eu te digo: se tu não fizer
               isso tu vais ser, para o resto da vida, uma mulher
               frustrada.

               CARMEM
               Pior: uma velha frustrada. Fazer o quê? Já tentei
               de tudo... Não há nada nesse mundo que faça eu dar
               um tapa na cara do Edgar.

               JUREMA
               E no outro?

               CARMEM
               Outro o quê?

               JUREMA
               No outro mundo.

CENA 17 - INT/NOITE - TERREIRO DE UMBANDA

Terreiro de umbanda, tambores, cantos. Máscaras africanas,
estátuas de santos e orixás. Edgar leva uma baforada de um
charuto e esfrega o nariz.

Carmem e Jurema procuram um lugar para sentar, Edgar as segue,
fala baixo com Carmem.

               EDGAR
               Não sei onde eu estava com a cabeça. Eu não gosto
               de mexer com estas coisas, Carmem. Espiritismo,
               magia negra... sei não...

               JUREMA
               É magia branca, Edgar.

               EDGAR
               Não é a cor que me incomoda, Jurema.

               JUREMA
               Tu vais gostar, Edgar. Estas cerimônias são bem
               exóticas. Me disseram que pessoas muito sensíveis,
               mesmo não acreditando nestas coisas, às vezes
               incorporam espíritos de gente que já morreu,
               entram em transe, chegam a falar outras línguas.

               EDGAR
               Ih!!! Quem sabe a gente vai numa pizzaria?

               JUREMA
               Vamos alimentar o espiríto, Edgar. Ampliar os
               nossos horizontes, conhecer as ciências ocultas,
               as forças sobrenaturais, os gênios e os demônios
               que nos habitam.

               EDGAR
               Eu ainda prefiro uma pizza! (para Carmem) Vamos
               embora daqui, Carmem. A gente deixa a Jurema e vai
               para casa assistir um vídeo e comer uma pizza.

               CARMEM
               Relaxa, Edgar. Faz alguma coisa para te distrair.
               Olha só quantas flores. Por que tu não conversa
               com o pessoal do terreiro e te oferece para
               fornecer as flores para as cerimônias?

Edgar senta em uma das cadeiras reservadas para os fiéis e fica
examinando as plantas.

               EDGAR
               Clerodendron thomsonae, Rhododendron indicum,
               anthirrhinum majus, helianthus annus, saintpaulia
               ionantha, portulaca grandiflora, celosia argentea
               cristata, altroemerias pelegrina... Antigonon
               leptopus.

Próximo a ele, um outro casal de CURIOSOS, vestidos com roupas
estranhas ao ambiente, observam Edgar. A mulher fala ao ouvido do
homem.

               MULHER
               Aquele ali já incorporou.

Os atabaques começam a tocar e Edgar gela. Jurema e Carmem trocam
sinais. Jurema dá a entender que ainda não está na hora. O pai de
santo e as mulheres começam a dançar.

O clima começa a ficar tenso quando um homem se prepara para
degolar um galo. Uma mulher entra em transe. Edgar quer se
levantar e Jurema segura-o pelo braço.

               EDGAR
               Eu vou lá no carro ouvir o jogo do Grêmio e depois
               eu volto.

Carmem segura Edgar.

               JUREMA
               Senta, Edgar. Agora é que vai começar a ficar bom.

               EDGAR
               Pra quem? Para os espíritos!

Jurema dá o sinal de OK para a amiga. Carmem começa a encenação.
Inicia com uns calafrios. Depois o corpo todo treme como se
estivesse levando um choque, culminado com um revirar de olhos
assustador.

Edgar vê a cena em pânico. Quer tirar sua mulher do transe e lhe
dirige a palavra.

               EDGAR
               O que está acontecendo? Tá te sentindo bem,
               Carmem?

As mulheres do terreiro se aproximam de Carmem para recepcionar o
espiríto que está baixando. Edgar tenta chegar perto da esposa
mas é impedido pelo pai-de-santo que faz um sinal para ele sentar
e ficar quieto. Edgar olha para Jurema, pedindo ajuda. Jurema
pede para ele se acalmar.

Carmem levanta da cadeira e começa a dançar no ritmo dos
tambores. Vai dançando até ficar em frente ao marido, que se
levanta e pega-a pelo braço.

               CARMEM
               (com voz grossa) Me solta, Clóvis!

               EDGAR
               Clóvis?!!!

               CARMEM
               Eu estou me divertindo, com os meus amigos.

               EDGAR
               Amigos?!!! Que amigos? Vamos embora daqui, Carmem.

O pai-de-santo interfere e fala com Edgar.

               PAI-DE-SANTO
               É melhor o misifio não contrariar o espírito,
               senão ele não desencarna da sua muié!

               EDGAR
               A muié é minha e eu faço o que bem entender.

Edgar pega novamente a mulher pelo braço e tenta arrastá-la para
fora do terreiro.

               EDGAR
               Tá bem, eu sou o Clóvis. Mas agora vamos embora
               desta festa que já está tarde.

               CARMEM
               Não mesmo! Eu vou dançar até o sol raiar.

               EDGAR
               Ah, não vai mesmo. Nem que eu tenha que te levar a
               força.

Edgar dá um puxão na mulher. Carmem se desvencilha do marido e,
finalmente, dá o tão desejado tapa na cara de Edgar.

Edgar fica atônito por um instante.

CENA 18 - EXT/DIA - PÁTIO DO COLÉGIO

De novo a cena dos meninos no pátio. Hortência dá um tabefe no
menino Edgar. Mas, desta vez, o menino Edgar puxa Hortência pelo
braço e beija-a.

CONT. CENA 17 - INT/NOITE - TERREIRO DE UMBANDA

De volta ao terreiro, Edgar adulto faz a mesma coisa com a sua
esposa: dá um grande beijo em Carmem, que desmaia de emoção.

CENA 19 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: QUARTO

Carmem em casa, na cama.

               CARMEM
               Jura?

               EDGAR
               Pergunta para a Jurema.

               CARMEM
               Não acredito que isso aconteceu comigo. Eu não me
               lembro de absolutamente nada.

               EDGAR
               Pois eu nunca mais vou esquecer desta noite. Minha
               bochecha está doendo até agora.

               CARMEM
               Não exagera, Edgar! Eu nem bati tão forte assim.
               Quer dizer... a Jurema disse que foi só um tapinha
               de amor. Por sinal, ela disse que foi uma cena
               linda, como nos filmes. Um tapa e depois um beijo.
               Vem aqui, Edgar. Me dá outro beijo igual aquele.

Os dois começam a transar. Edgar apaga a luz de cabeceira.

               CARMEM
               Ai, Edgar, vai devagar! Ai, Edgar, tô toda
               arrepiada. Ai, Edgar!

               EDGAR
               Me chama de bochecha.

               CARMEM
               Ai, bochecha, que loucura!

Entra música "Entre Tapas e Beijos" (versão com letra).

FIM

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(c) Beto Philomena, 2002
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

03/08/2002

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