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O DIA EM QUE DORIVAL ENCAROU A GUARDA
TEXTO FINAL
Distribuição: Casa de Cinema de Porto Alegre
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DORIVAL: Ô Praça, vem cá. Aqui, ó.
DORIVAL: Ô Praça, seja camarada: me leva até o banheiro e me
deixa tomar um banho. Eu tou derretendo aqui dentro.
PRAÇA: Não pode.
DORIVAL: Não pode por quê? Eu não consigo dormir com esse calor.
PRAÇA: São ordens.
DORIVAL: Ô meu chapa, não custa nada. Faz dez dias que eu não
tomo banho. Eu tô sufocando. Num instante eu tomo uma ducha, não
custa nada.
PRAÇA: Não pode.
DORIVAL: Porra, mas isso é idéia fixa. Por que não pode, caralho?
PRAÇA: Ordens.
DORIVAL: E quem deu a ordem?
PRAÇA: O cabo.
DORIVAL: Então vai chamar o cabo que eu quero falar com ele.
PRAÇA: Chamo nada. Vai pro teu catre e fica quieto.
DORIVAL: Escuta aqui, ô catarina, barriga verde, barata
descascada, polaco comedor de sabão: Tu vai chamar esse cabo
porque senão eu vou começar a gritar, a berrar, e dar porrada
aqui dentro. Vou fazer um escândalo tão grande, mas tão grande,
que vou acordar o cabo, a mãe do cabo, e até o general dessa
bosta aqui. E não pensa que eu tô brincando não, catarina, porque
eu vou começar a fazer isso agora mesmo.
PRAÇA (V.O.): Cabo! Cabo!
CABO: Qualé?
PRAÇA: É o preso da cela quatro.
CABO: Qualé?
PRAÇA: Quer falar com o senhor, meu cabo.
CABO: Qualé, qualé, rapaz?
PRAÇA: Ele diz que vai armar um escândalo, que vai começar a
gritar. Aliás, já começou. E é um negão desse tamanho, parece o
King Kong.
CABO: Um negão desse tamanho... Porra, catarina, tu vem
interromper a minha leitura pra dizer que um negão desse tamanho,
numa cela trancada a chave, começou a gritar, rapaz?
PRAÇA: Mas cabo, eu não sabia se eu-
CABO: Tu não sabe de nada mesmo. Deixa que eu vou lá pra dar um
jeito no negão desse tamanho.
PRAÇA: Qualé, ô?
DORIVAL: Cabo, eu queria pedir licença pra tomar um banho. É
coisa rápida. Faz dez dias que não me deixam tomar banho. Mas
hoje tá insuportável, palavra.
CABO: Tu sabe onde tu tá, ô cara?
DORIVAL: Sei cabo, mas-
CABO: Senhor cabo!
DORIVAL: Senhor cabo. Acontece que eu-
CABO: Acontece que tu tá em cana, crioulo, e malandro que é
malandro chia mas não geme. Agora cala essa matraca e vai dormir.
DORIVAL: Mas cabo-
CABO: Senhor cabo, já disse!
DORIVAL: Cabo e merda pra mim é a mesma coisa.
DORIVAL: Viado. Tu não me engana com essa pinta, não. Teu negócio
é dar o rabo pros recruta. Eu aposto que quem te enraba é esse
catarina aí. Agora abre essa bosta que eu quero tomar banho.
CABO: Macaco não toma banho. E não me faça perder a paciência,
crioulo, senão eu abro essa jaula e te mostro com quantas bananas
se faz um piquenique.
DORIVAL: Então abre. Abre! Abre ô boneca de catarina!
CABO: Tu tá com sorte, negão. Só não abro essa josta aí porque
tenho ordens pra não abrir.
DORIVAL: Ordens? Que ordens?
CABO: Ordens, pomba!
DORIVAL: Ordens de quem?
CABO: Não interessa. Ordens são ordens.
DORIVAL: Tu é tão pé-de-chinelo que não sabe nem de quem recebe
ordens?
CABO: E tu é tão buro que não sabe que cabo recebe ordem de
sargento, ô?
DORIVAL: Então vai chamar o sargento.
CABO: Tu tá doido, crioulo!
DORIVAL: Olha aqui, ô boneca: Tu vai chamar esse sargento, porque
senão eu vou fazer um escândalo tão grande nessa merda que vão te
rebaixar pra recruta outra vez. E aí, babau, viu? Não vai ter
catarina interessado em comer rabo de recruta. Vai chamar o
sargento!
CABO: Tu vai entrar por um cano, crioulo...
ANA NEUSA: Benhê! Eu não tô te ouvindo direito.
SARGENTO: Não vai dar, eu tô de serviço a noite toda.
ANA NEUSA: Não vai dar? Mas tu não falou com o tenente?
SARGENTO: Não adianta, eu peguei serviço, são ordens.
ANA NEUSA: O quê? Mas o Ademar falou que tu já perdeu muito
ensaio. Ele vai ter que botar outro no surdo.
SARGENTO: (Puta merda!) Azar, amanhã eu acerto isso com o Ademar.
ANA NEUSA: O quê? O quê que tem o Ademar?
SARGENTO: Nada! Amanhã eu falo com ele.
ANA NEUSA: Benhê...
CABO: Dá licença, sargento?
SARGENTO: O quê, Ana Neusa?
ANA NEUSA: Nada. Um beijo.
SARGENTO: O quê, negrinha?
SARGENTO: Qual é o problema?
CABO: Sarja, o crioulo da cela quatro tá a fim de bagunçar o
coreto. Digo, desculpe, sarja, o preso da cela quatro.
SARGENTO: Que que ele quer?
CABO: Quer tomar banho.
SARGENTO: Não pode.
CABO: É, eu disse pra ele.
SARGENTO: Então? Assunto encerrado.
CABO: É, mas ele diz que vai armar um escândalo, começar a
gritar, né?
SARGENTO: A essa hora da noite?
CABO: É, o senhor vê.
SARGENTO: Mas tu disse que ele não pode tomar banho?
CABO: Disse, ele tem ordens pra não tomar banho.
SARGENTO: Ele não tem ordens pra não tomar banho. Existem ordens
para que ele não tome banho.
CABO: Pois é. Ordens são ordens, né?
SARGENTO: Ele ameaçou gritar?
CABO: Ameaçou.
PRAÇA: Ameaçou.
CABO: É um baita dum negão deste tamanho. Desculpe, sarja. Tem um
vozeirão que vou te contar, ô, se começar a gritar se ouve lá na
escola de samba.
SARGENTO: Não pode.
DORIVAL: Não pode por quê?
SARGENTO: Não pode porque são ordens.
DORIVAL: Mas ordens de quem, porra?
SARGENTO: Não interessa.
DORIVAL: Ô, sargento... Será que não dá pra esquecer essas
ordens só por um minutinho? Eu tomo uma ducha num instante. Faz
dez dias que eu-
SARGENTO: Eu já disse que não pode. Chega de papo. Ordens são
ordens. Amanhã a gente fala nisso.
DORIVAL: Mas amanhã tem outro na guarda.
SARGENTO: Então, outro dia.
DORIVAL: Ah, tu tá é com medo!
SARGENTO: Vai dormir que isso passa, rapaz. Não procura sarna pra
se coçar. Meu lema é o seguinte:
DORIVAL: Tu não tem lema. Pau-mandado não tem lema.
SARGENTO: Olha aqui, rapaz. Devagar. Relaxa. Não tenho nada
contra ti, mas eu sou sargento aqui e posso muito bem-
DORIVAL: Sargento e merda pra mim é a mesma coisa.
RICK/SARGENTO: Olha crioulo que eu posso te dar um pau.
SAM/DORIVAL: Então vem!
RICK/SARGENTO: Eu sou um cara de paciência, moreno.
SAM/DORIVAL: Por que não me deixa tomar um banho?
RICK/SARGENTO: Não pode!
SAM/DORIVAL: Mas por quê?
RICK/SARGENTO: Já disse.
SAM/DORIVAL: E quem deu essa ordem?
RICK/SARGENTO: Não é da tua conta.
SAM/DORIVAL: Então eu vou começar a berrar aqui dentro.
RICK/SARGENTO: Berra pra tu ver.
TENENTE: Entra!
SARGENTO: Com licença, tenente?
TENENTE: O que há, sargento?
SARGENTO: Tem um preso fazendo confusão. Quer tomar banho.
TENENTE: A essa hora?
SARGENTO: É que ele não toma durante o dia.
TENENTE: Por quê?
SARGENTO: Ordens.
TENENTE: Ele tem ordens de não tomar banho só durante o dia?
SARGENTO: Não está especificado, tenente.
TENENTE: Acho que, se não pode de dia, também não pode de noite.
SARGENTO: Assim me parece, tenente.
TENENTE: Então está resolvido o caso.
SARGENTO: É que ele tá querendo confusão mesmo, tenente. Tá
ameaçando gritar e acordar todo o mundo e tal e coisa...
TENENTE: Mas quem é esse preso?
SARGENTO: O nome dele é Dorival.
DORIVAL: Me diz uma coisa, tenente, sinceramente: o senhor sabe
quem deu essa ordem?
TENENTE: Vou te dar um conselho pro teu próprio bem, rapaz: vai
dormir. Tu tá nervoso. Amanhã isso passa.
DORIVAL: Se não diz é porque não sabe.
TENENTE: Amanhã eu converso com o capitão sobre o teu banho.
DORIVAL: Se não sabe quem deu a ordem e obedece, é um boneco. Não
é um homem, é um boneco.
TENENTE: Me respeita, negro! Me respeita!
DORIVAL: Tenente e merda pra mim é mesma coisa.
TENENTE: Cafre miserável, eu vou te dar uma lição!
TENENTE: Alto, alto! Sargento...
SARGENTO: Sim, tenente.
TENENTE: Tem a chave dessa cela?
SARGENTO: Sim senhor, tenente.
TENENTE: Abra. Sargento!
SARGENTO: Tenente.
TENENTE: Espere um pouco. Traga reforços.
SARGENTO: Sim senhor, tenente. Quantos homens?
TENENTE: Bom... dois. Dois bastam.
DORIVAL: Tenente, quer saber quem deu a ordem?
DORIVAL: Foi o carcereiro. Porque não vai com a minha cara. Na
verdade, não existe ordem nenhuma. É só conferir pra ver. Vocês
são mesmo uns pau-mandado, heim? Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah...
SARGENTO: Vamos dar uma lição neste insubordinado. Que ninguém
use arma de fogo sem receber voz de comando. É só umas porradas
pra ele aprender a respeitar a autoridade.
TENENTE: Muito bem. Abra.
SARGENTO: Tu tá fodido, negrão.
DORIVAL: Ah... Milico e merda pra mim é a mesma coisa!
TENENTE: Segurem esse cafre! Batam! Com força!
TENENTE: Limpem o sangue.
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Casa de Cinema de Porto Alegre
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11/04/1986
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