O HOMEM QUE COPIAVA - texto final

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O HOMEM QUE COPIAVA
TEXTO FINAL
dezembro/2002

produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

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ANDRÉ: Quanto deu até agora?

MOÇA: Oito e vinte e cinco.

ANDRÉ: Ah, tudo bem.

ANDRÉ: Quanto?

MOÇA: Onze e trinta.

ANDRÉ: Quanto é que é a carne?

MOÇA: Três e cinco.

ANDRÉ: Não vai dar. Eu só tenho onze e cinquenta.

MOÇA: Não, deu onze e trinta.

ANDRÉ: É, mas é que eu preciso levar os fósforos. Quanto é que é
os fósforos?

MOÇA: Um e vinte.

ANDRÉ: Pois é, não vai dar. Desculpa, mas é que eu preciso levar
os fósforos.

MOÇA: Mas eu já registrei a carne.

ANDRÉ: Não dá para tirar o detergente? Quanto é o detergente?

MOÇA: Eu já registrei o detergente também.

ANDRÉ: Desculpe, mas é que eu preciso levar os fósforos.

MOÇA: Quê que eu faço?

ANDRÉ: E... Eu preciso...

SUBGERENTE: Quê que foi?

MOÇA: Vou ter que abrir.

SUBGERENTE: Qual é o problema?

ANDRÉ: É que eu preciso levar os fósforos, eu não sabia que a
carne era tão cara.

SUBGERENTE: Quanto tu tem aí?

ANDRÉ: Eu tenho onze e cinquenta.

SUBGERENTE: Mas a conta deu onze e trinta.

ANDRÉ: É, mas é que eu preciso levar os fósforos que ainda não
tão na conta.

SUBGERENTE: Quanto é o fósforo?

MOÇA: Um e vinte.

MOÇA: Cê vai tirar o quê?

ANDRÉ: Quanto é o detergente?

MOÇA: Um e quinze.

ANDRÉ: E a esponja?

MOÇA: É quarenta.

MOÇA: E aí?

ANDRÉ: Tá, pode deixar a carne.

MOÇA: Nove e quarenta e cinco.

ANDRÉ: Caiu a minha moeda aí.

MOÇA: Só um pouquinho. Ó...

ANDRÉ: Obrigado.

LETREIRO: O HOMEM QUE COPIAVA

ANDRÉ (VS): Meu nome é André. Era o nome do meu pai. Foi ele quem
escolheu o meu. Minha mãe me chamava de Zinho. Ele não gostava,
só me chamava de André. Depois ele desistiu e começou a me chamar
de Zinho também.

ANDRÉ (VS): Eu moro em Porto Alegre, uma cidade no sul do
Brasil. Moro na Presidente Roosevelt, que é essa rua. Fica no
Quarto Distrito.

ANDRÉ (VS): Roosevelt foi presidente dos Estados Unidos, ele era
casado com uma gordinha que era prima dele. Ele ficou muito
conhecido por causa da Doutrina Roosevelt, que não deu tempo de
eu ler o que era.

ANDRÉ (VS): Nem sei direito o que é doutrina, acho que é um monte
de regras. Parece o nome de uma velha. Vó Doutrina.

ANDRÉ (VS): Da janela do meu quarto eu vejo um clube, o
Gondoleiros. No teto do prédio tem uma gôndola. Eu não sei se em
Porto Alegre já teve alguma gôndola.

ANDRÉ (VS): Eu trabalho nesta papelaria, sou operador de
fotocopiadora. De vez em quando a máquina tranca, aí tem que
abrir e tirar o papel, e a cópia tem que jogar fora.

ANDRÉ (VS): Quase sempre tu só tem de apertar estes dois botões,
start, stop, start, stop, start, stop. É melhor parar, o Bolha
acaba me vendo pelo espelho bolha dele. Ele diz que o espelho é
para a segurança da loja. O Bolha pensa que eu sou otário.
Considerando o que ele me paga, ele não deixa de ter uma certa
razão. O nome do bolha é seu Gomide.

ANDRÉ (VS): A dona bolha se chama Maria. Só aparece aqui na loja
para ver revista e pegar dinheiro. O nome do bolhinha é Rodrigo.
Ou Diogo. Eles chamam o bolhinha de Guigo, acho que é Rodrigo.
Ele fica abrindo o armário do papel, por causa da luz.

ANDRÉ: Não pode...

ANDRÉ (VS): Isso é outra coisa que tu tem que saber.

MARIA: Deixa ele, André.

ANDRÉ (VS): O papel da máquina deve ser bem seco.

ANDRÉ: É que depois o papel gruda e o seu Gomide reclama de mim,
Dona Maria.

GOMIDE: Tira esse guri daqui, Maria.

MARIA: Vem Guigo, não mexe aí! Vem!

ANDRÉ (VS): Isso, dona Bolha, vai em frente.

MARIA: Eu já vou.

ANDRÉ (VS): Adeus, bolhinha.

MARIA: Vamos? Tchau.

ANDRÉ (VS): Quando o papel acaba, tu abre aqui, baixa esse
negócio, abre a gaveta e põe o papel. Primeiro tu solta bem o
papel, para não grudar. É só segurar, dobrar, soltar. Segurar,
dobrar, soltar. Mais uma. Aí tu bota o papel aqui, fecha a gaveta
e pronto. Aqui tu controla a cópia, mais clara ou mais escura.

GOMIDE: O melhor é deixar sempre no meio. Certo?

ANDRÉ (VS): Certo bolha. Sempre no meio.

ANDRÉ (VS): Aqui tu diz para ela quantas cópias tu quer. Aí tu
põe o original aqui. Se for um livro, tem que ficar segurando.
Apertando este botão aqui tu tá dizendo: vai em frente, minha
filha, tá tudo certo. E ela vai.

ANDRÉ (VS): Essa luz é a melhor parte. Pronto. Vocês já sabem
tudo que é preciso saber para fazer o que eu faço. Operador de
fotocopiadora. Grande merda. É o que eu digo pras gurias se elas
me perguntam. Só se elas me perguntam.

GURIA: E o quê que tu faz?

ANDRÉ: Eu? Eu sou operador de fotocopiadora.

GURIA: E o que que é isso?

ANDRÉ: Eu opero uma máquina de fotocópias.

GURIA: Tipo... xerox?

ANDRÉ: É, mas só que de outra marca.

GURIA: Ah... Tu trabalha no xerox de uma firma?

ANDRÉ: Não, não. Numa loja.

GURIA: Legal.

ANDRÉ (VS): Muito legal. Start, stop, o papel com a luz, a
gaveta, o botão sempre no meio, quantas cópias e vai minha filha.
Quantos neurônios um sujeito precisa para fazer essa merda?

ANDRÉ: É uma merda.

GURIA: Bom...

ANDRÉ: É só pra ganhar uma grana. Eu na verdade trabalho com
ilustrações, mandei até um material pra uma revista.

ANDRÉ (VS): "Material". Acho que ela não caiu nessa. Gurias são
espertas.

ANDRÉ (VS): Quando eu não tou trabalhando, eu fico em casa,
desenhando. É divertido porque não serve para nada, só para dizer
pras gurias. Mas não tem dado muito certo.

ANDRÉ (VS): Gurias são muito espertas. Gurias reconhecem um
operador de fotocopiadora em poucos segundos. Gurias não sonham
em passar a vida ao lado de um operador de fotocopiadora, viajar
pelo mundo com um operador de fotocopiadora, ter filhos de um
operador de fotocopiadora. Pelo menos eu, até agora, não
encontrei nenhuma guria que sonhasse isso.

ANDRÉ (VS): Ela ainda não chegou. Ela mora com o pai. Acho que é
o pai, só pode ser. Pelos móveis, eles não devem ter muita grana,
são tão duros quanto eu. Só que o pai dela trabalha, tem um
uniforme, uma camisa que tem aquelas coisinhas no ombro, presas
por um botão. Parece um policial civil, ou agente sanitário,
destes que matam mosquito. Talvez ele seja agente sanitário.

ANDRÉ (VS): Ela chegou. Linda. Ela vai direto para o quarto, acho
que janta na rua. Às vezes ela pega algumas coisas na cozinha. Só
às vezes, quase nunca. Ela chega sempre depois das onze e vai
direto para o quarto. Acho que ela estuda de noite, chega sempre
com uns livros.

ANDRÉ (VS): A janela do quarto é quase toda coberta com um papel,
fica só uma fresta. No vidro têm três adesivos, uma carinha
rindo, um desenho e umas bonecas. Tem também um papel colado, com
quatro pontos de cola. Pode ser um cartão postal, pelo tamanho.
As vezes ela pára e fica olhando para o papel. Deve ser uma foto.

ANDRÉ (VS): Ela tinha uma veneziana, mas apodreceu e eles
tiraram, nunca mais colocaram. Deve ser caro, uma veneziana. No
armário quase só dá para ver roupas. Ela tem dois pijamas, hoje
ela escolheu o branco.

ANDRÉ (VS): Pela fresta dá para ver só um pedaço do armário, mas
às vezes ela deixa a porta do armário aberta e na porta tem um
espelho. Dependendo do jeito que a porta fica aberta dá para ver
um pedaço diferente do quarto, pelo espelho.

ANDRÉ (VS): A cama tem um edredon floreado. Um bordado com uma
menina na parede. Uma televisão no quarto, mas só dá para ver a
luz, ela fica vendo filme até tarde. Uma escova, cabo de madeira
redondo. Tem um ursinho de pelúcia. Uma joaninha vermelha. Tem um
abajur do lado da cama. Uma mesinha, um vaso branco. Pronto.
Acabou.

ANDRÉ (VS): Eu ganho dois salários mínimos, são trezentos e dois
reais por mês. Com os descontos, duzentos e noventa. O preço dum
tênis. Não gasto em transporte, vou a pé para a loja e não saio
nunca. Minha mãe paga o super com a pensão dela, eu pago metade
do aluguel.

ANDRÉ (VS): Dois quartos com dependência de empregada, isso se a
gente tivesse empregada e ela conseguisse dormir de pé.

ANDRÉ (VS): Sala, banheiro, cozinha, vista pro prédio em frente,
tudo isso por apenas... trezentos e oitenta reais, incluído o
condomínio. Sobram cem.

ANDRÉ (VS): Pago metade da prestação da TV, catorze polegadas,
controle remoto, sessenta e quatro reais, trinta e dois a minha
parte, sobram sessenta e oito. Gasto com bobagens: uma revista,
uma cerveja, uma caneta, roupas... Para comprar o meu binóculo eu
precisei economizar um ano. Daqui dá pra ver a ponte. O melhor é
quando ela sobe para passar algum navio. O mais divertido é ficar
bem longe e ver uma pessoa bem de perto.

ANDRÉ (VS): Às vezes dá para ler alguma revista na loja, mas a
maior parte do tempo eu fico lendo as coisas que as pessoas
trazem para copiar. Enquanto eu tou tirando as cópias, só consigo
ler algumas linhas de cada folha. Já é alguma coisa.

ANDRÉ (VS): Shakespeare e Cervantes morreram no mesmo dia: vinte
e três de abril de mil seiscentos e dezesseis. Eles nem se
conheceram. Cervantes foi enterrado numa vala comum... eu não sei
bem o que significa vala comum. Que diferença faz?

ANDRÉ (VS): Um dia desses tinha uma poesia do Shakespeare.

ANDRÉ (VS): "Quando a hora dobra em triste e tardo toque, e em
noite horrenda vejo escoar-se o dia. Quando vejo esvair-se a
violeta, ou que a prata a preta têmpora assedia. Quando vejo sem
folha o tronco antigo que ao rebanho estendia a sombra franca, e
em feixe atado agora o verde trigo, seguir no carro, a barba
hirsuta e branca. Sobre tua beleza então questiono, que há de
sentir do tempo a dura prova. Pois a graça, no mundo em abandono,
morre ao ver nascendo a graça nova. Contra a foice do tempo é vão
combate..."

GURIA: Oi.

ANDRÉ (VS): A guria chegou para buscar o trabalho.

GURIA: Obrigada.

ANDRÉ (VS): Não entendi nada nem consegui ler a última linha. E
não sei o que é hirsuta.

ANDRÉ (VS): Eu não falei da Marinês. Ela tinha ido ao centro,
pagar uma conta. A Marinês também trabalha na loja, nas revistas,
nas coisas do balcão, lápis, borrachas, cola... Gostosa. O pior é
que ela sabe que é gostosa, fica usando aquela calça bem justa.

MARINÊS: Eu tenho que vestir a calça deitada, se não ela não
entra.

ANDRÉ (VS): Fiquei imaginando aquela cena, ela deitada, de pernas
para cima, tentando entrar naquela calça justa. É melhor nem
imaginar muito, não é para a minha bolinha. Ela namorou um alemão
e o cara escreveu para ela duas vezes. O cara é alemão mas mora
em Den Haagen, na Holanda.

MARINÊS:

ANDRÉ: A-aia?

MARINÊS: Haia. O nome da cidade, capital da Holanda, onde ele
mora. É como se fosse "a Brasilia". Entendeu? A Haia. Den Hageen.

ANDRÉ: Ah.

ANDRÉ (VS): Eu disse "ah" para não estender aquela conversa.

MARINÊS: Pai pobre é destino, agora marido pobre é burrice.

ANDRÉ (VS): Além de gostosa, filósofa.

MARINÊS: Pobreza é isso: ou destino ou burrice.

ANDRÉ: Pois é.

ANDRÉ (VS): Destino ou burrice. No meu caso, um pouco dos dois. O
meu pai foi embora quando eu tinha quatro anos. Essa é a parte do
destino. Eu estava vendo um desenho na televisão. O cenário era
uma casa cortada ao meio, sem as paredes para a gente poder ver
dentro. Vi a capa de um livro que era assim.

PAI: Guarda a correspondência pra mim?

ANDRÉ CRIANÇA: Ahn-han.

ANDRÉ (VS): Ele não recebia muita carta, era mais cobrança e
anúncio de um monte de coisas. Eu guardava tudo numa caixa de
camisa. Depois a caixa ficou pequena e eu passei tudo para uma
caixa de sapato. Depois para três caixas, dividindo as cobranças,
os anúncios e as cartas.

ANDRÉ (VS): No outro dia, na escola, eu disse para o Mairoldi, um
gordinho que tinha uma mancha vermelha na cara, que eu achava que
o meu pai não ia mais voltar.

ANDRÉ CRIANÇA: Eu acho que o meu pai não vai mais voltar.

MAIROLDI: Ele viajou?

ANDRÉ CRIANÇA: É.

MAIROLDI: Quando?

ANDRÉ CRIANÇA: Faz sete anos.

ANDRÉ (VS): Ele começou a rir, a rir muito. Ele ficou cego de um
olho. Essa foi a parte da burrice. Foi o meu último dia no
colégio. Eles me expulsaram. É, eu também não queria mais ir.

ANDRÉ (VS): Enquanto minha mãe vê novela eu fico no quarto, lendo
ou desenhando.

ANDRÉ (VS): Zeca Olho mora com Vó Doutrina.

VÓ DOUTRINA :Você tem que prestar atenção na aula. Preste atenção
no que os professores ensinam. Se você não entender, pergunte,
pergunte!

PROFESSORA: Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil no dia vinte
e dois de abril de mil e quinhentos.

ZECA OLHO: Por quê?

COLEGAS: Dãããã...

ANDRÉ (VS): Minha mãe arrasta o chinelo do banheiro para a
cozinha. Schlac, schlac, schlac, schlac. Abre o armário, pega um
copo, fecha o armário, abre a geladeira, pega a garrafa d'água,
fecha a geladeira, enche o copo, não todo, a metade, abre a
geladeira, guarda a garrafa, pega o copo, abre o filtro, enche o
copo, fecha o filtro, arrasta o chinelo da cozinha pro quarto e
diz: "Boa noite, meu filho, eu vou deitar. Televisão me dá um
sono."

MÃE: Boa noite, meu filho, vou me deitar. Televisão me dá um
sono...

ANDRÉ: Boa noite, mãe.

ANDRÉ (VS): Aí eu vou na cozinha, pego alguma coisa na geladeira
e vou pra sala. Ligo a tevê e fico vendo bem pouco de tudo.

ANDRÉ (VS): Eu prefiro ver sem som. É como se fosse uma lareira,
ou um aquário iluminado. Só aquela luz em movimento.

ANDRÉ (VS): Onze horas eu pego o binóculo. Essa hora ainda tem
muita gente acordada.

ANDRÉ (VS): Uma coisa que eu descobri, olhando os vizinhos, é que
gordos dormem tarde. Eu não sei por quê, é só uma estatística.
Entre os últimos caras a dormir sempre tem pelo menos um gordo.
Queria saber que música ele ouve.

ANDRÉ (VS): Outra coisa importante que eu descobri, além do fato
de os gordos dormirem tarde, é que, se você quer ver alguma coisa
de binóculo, não adianta ficar pulando de uma janela para a
outra, atrás da ação. Tu tem que se fixar numa janela e esperar.
É como pescar.

ANDRÉ (VS): O máximo que eu já vi foi ela passando, de calcinha e
sutiã. Ela só passou. Eu tava esperando há quase uma hora e ela
passou. Acho que durou uns... dois segundos. Valeu a pena.

ANDRÉ (VS): Quando a gente faz alguma coisa que não precisa
pensar muito, acaba usando o tempo para pensar em outras coisas.

ANDRÉ (VS): Teve uma época, isso foi antes da loja, quando eu
trabalhava de empacotador de supermercado, que eu só pensava em
ser famoso.

ANDRÉ (VS): Normalmente eu pensava em ser famoso jogando futebol.
Ficava imaginando mil gols maravilhosos que eu fazia, um mais
decisivo que o outro. Um gol em que eu driblava o zagueiro e
chutava bem no cantinho era um dos meus preferidos. Outro era um
gol de cabeça, bem no finzinho do jogo. Também gostava muito de
um que eu matava no peito, entrava na área e chutava, sem chances
para o goleiro.

ANDRÉ (VS): Aí eu corria, de braços abertos, quarenta e quatro do
segundo tempo, a torcida delirando. Acho legal correr de braço
aberto, dá um desequilíbrio, a gente quase cai. Ao mesmo tempo
que parece que você quer abraçar todo mundo.

ANDRÉ (VS): Ah, aquele pulinho com um soco no ar do Pelé eu nunca
imaginei. Só dava certo com o Pelé, se outro cara vai fazer
parece uma bichice.

MULHER: Tu podia tirar o azeite de cima das frutas ?

ANDRÉ: Como?

MULHER: A lata de azeite é muito pesada, vai amassar as frutas.
Tu põe na caixa.

ANDRÉ: Ah, desculpa.

MULHER: Depois as frutas chegam todas amassadas na minha casa,
né?

ANDRÉ: Eu já pedi desculpas.

MULHER: Mas não precisa se irritar. Eu só pedi pra tirar a lata
de azeite de cima das frutas e botar na caixa.

ANDRÉ: Tá, eu já pedi desculpas, já botei a lata aqui, o que mais
a senhora quer que eu faça?

GERENTE: Qual é o problema?

MULHER: Este rapaz, eu pedi pra ele tirar a lata de azeite de
cima das minhas frutas e ele ficou muito irritado.

ANDRÉ: Eu já pedi desculpas.

GERENTE: A senhora desculpe, ele é assim meio irritadinho. Não se
preocupe, não vai acontecer outra vez.

ANDRÉ: Aqui eu ganho o mesmo que lá e não preciso ficar o dia
inteiro de pé, não preciso fazer força.

ANDRÉ (VS): Eu não penso mais em ser jogador de futebol. Agora eu
penso muito mais em ganhar dinheiro, muito dinheiro.

MARINÊS: Ah! Que maravilha! Olha essa cama aqui, cheia de
almofadas! Ai, adoro esse negocinho aqui que fica em cima da
cama.

ANDRÉ: Dossel.

MARINÊS: Do céu?

ANDRÉ: Não, Dossel. O nome dessa coisa em cima, dossel.

ANDRÉ (VS): Sempre que eu vejo estes ricos de revista eu penso
que os ricos mesmo não iam se mostrar em revista nenhuma.

ANDRÉ (VS): A primeira vez que eu vi Sílvia ela tava tomando café
de pijama de flanela. Comia a bolacha Maria e tomava o café com
leite. Molhava a bolacha Maria no café e comia. Me apaixonei.

ANDRÉ (VS): Eu passei a olhar pra casa da Sílvia todos os dias.
Sabia a hora em que ela acordava e chegava. Um dia eu resolvi
descobrir onde ela trabalhava.

ANDRÉ (VS): Existem pessoas que não saem na rua nunca. Chama
síndrome do pânico. Acho que era um trabalho de faculdade. Elas
ficam em casa porque não conseguem sair na rua. O problema é que
tu acaba ficando velho. Melhor enfrentar a rua.

ANDRÉ (VS): Eu esperei na frente do prédio dela. O nome do
edifício é Santa Cecília.

ANDRÉ (VS): Os romanos cozinharam Santa Cecília numa sala com
vapor mas ela não morreu, aí eles não conseguiram pensar em nada
mais divertido e cortaram a cabeça dela.

ANDRÉ (VS): Ela saiu, carregando os livros. Estava com o casaco
vermelho, só que as meias eram azuis, combinando com a saia. Acho
que ela estava atrasada, tive que correr também pra conseguir
pegar o mesmo ônibus.

ANDRÉ (VS): Ela passou a roleta. Eu sentei atrás pra não dar
muita bandeira. Ela não me viu, ficou lendo um livro.

ANDRÉ (VS): A pessoa nunca vai achar que tá sendo seguida se você
estiver na frente dela, eu vi isso num filme.

ANDRÉ (VS): Ela entrou numa loja que ainda não tava aberta ao
público, acho que ela trabalha lá. Loja Sílvia. Eu ainda não
sabia que era uma coincidência.

ANDRÉ (VS): Fiquei fazendo tempo na frente da loja. O café custa
uma passagem de ônibus, mas eu posso voltar a pé.

ANDRÉ (VS): Uma vez eu li que um cara que desenhava uns bonecos
na parede ficou muito rico. Só que ele morreu logo. O cara se
rala trabalhando a vida inteira para deixar a grana para sei lá
quem, que nem filho o sujeito teve tempo para ter. Não. O negócio
é ficar rico logo, o mais rápido possível, e se mandar. O
problema é: como?

ANDRÉ (VS): Mandei uma história do Zeca Olho e da Vó Doutrina
para uma revista.

VÓ DOUTRINA :Você não pode ficar fazendo só o que quer. Você tem
que fazer uma coisa que lhe dê dinheiro!

ZECA OLHO: Por quê?

VÓ DOUTRINA :Porque sem dinheiro não dá para fazer nada do que
você quer!

ANDRÉ (VS): Eles nunca responderam. Mandei mais uma, com uma
carta dizendo para eles me responderem ou então me devolverem
logo, que tinha outras revistas interessadas.

ANDRÉ (VS): Depois que eu acabar de pagar a televisão vão me
sobrar cinqüenta e cinco reais por mês. Se eu não gastar nada, em
dez anos dá para comprar um carro usado. Mais fácil é comprar uma
arma.

FEITOSA: André, comprando cinqüenta reais de maconha tu pode
revender a cem, cento e cinqüenta... Claro que dependendo do
estado do otário.

FEITOSA: Uma vez eu vendi dez reais de maconha, misturado com um
monte de tempero verde seco prum cara por cem reais. O cara que
comprou achou ótimo, me pediu mais. Eu experimentei para ver
tinha gosto de pizza. Cara, com quinhentos paus tu compra uma
roupa mais legal, pode vender cocaína, André. Pó tá dando a maior
grana, ainda mais se tu tem esquema com a polícia. Tu tá marcando
touca naquela loja.

ANDRÉ (VS): Pode ser. Só que eu não to nem um pouco a fim de ser
preso, como ele já foi, várias vezes. O Feitosa é louco, anda
armado. Ele diz que eu sou um cagalhão.

FEITOSA: Otário e cagalhão.

ANDRÉ: Daqui tá bom.

FEITOSA: Vamos subir mais uma.

ANDRÉ: Não. Daqui tá bom.

FEITOSA: Eu vou subir.

FEITOSA: Tu é muito cagalhão, André.

HOMEM DAS DRAGAS: Ô, rapaz! Desce daí, rapaz!

FEITOSA: Cagalhão!

HOMEM DAS DRAGAS: Ô! Paraí! Paraí, rapaz!

FEITOSA: Dá para pular lá da ponte, André.

HOMEM DAS DRAGAS: Volta aqui, rapaz! Volta aqui!

FEITOSA: Te consigo uma arma por trezentos reais! Quinhentos, se
tu quiser uma pistola!

ANDRÉ (VS): Com uma arma eu podia assaltar alguém e conseguir uma
grana. Só que isso não resolve o problema... a não ser que eu
assaltasse alguém com muita grana, para poder assaltar uma vez
só. Quando tu começa a assaltar todo dia, é óbvio que uma hora
dessas tu dança. O bom mesmo é roubar um banco.

ANDRÉ (VS): Da minha janela, eu vejo um banco. Antes de trabalhar
na loja, eu passava um tempão em casa. Sabia todos os horários do
banco, a hora e os dias em que o carro forte chegava. Quanto será
que tem de grana num saco daqueles?

MULHER: Bom dia. O senhor deseja alguma coisa?

ANDRÉ: Não, eu tô só dando uma olhada.

MULHER: Ah, tá. Pode ficar a vontade. Se precisar de alguma
coisa, viu...

ANDRÉ: Obrigado.

ANDRÉ (VS): Talvez ela trabalhe no estoque, escritório, estas
coisas. Só se o dono da loja for muito idiota para deixar ela no
estoque e essa outra atendendo. Essa outra usa muito perfume. Ou
talvez essa outra seja a dona da loja. Será que ela usa perfume?

SÍLVIA: Tu já foi atendido?

ANDRÉ: Não, eu não.

SÍLVIA: Posso te ajudar?

ANDRÉ: É, pode ser.

SÍLVIA: É um presente para a namorada?

ANDRÉ: Não, é para mim. Pra minha mãe.

SÍLVIA: É... uma camisola, um chambre? É presente de aniversário?

ANDRÉ: É. Pode ser.

SÍLVIA: Olha, esse chambre aqui tá com um preço ótimo, trinta e
oito reais. Não, e olha que bonito.

ANDRÉ: É, bonito. Como é teu nome?

SÍLVIA: Silvia.

ANDRÉ: Ah, Silvia?

SÍLVIA: Não, mas eu não sou a dona da loja. Quando eu vim
trabalhar aqui já se chamava Silvia.

ANDRÉ: Ah, foi coincidência.

SÍLVIA: É.

ANDRÉ: Tá, eu vou dar mais umas voltas, dependendo eu volto aqui.
Mas é bonito esse chambre.

SÍLVIA: Tu não quer ver as camisolas?

ANDRÉ: Não, eu vou ver se eu compro uma coisa pra casa.

SÍLVIA: Ó, tu pode me dar dois pré-datados pelo chambre.

ANDRÉ: É?

SÍLVIA: Hum, hum.

ANDRÉ: Hmm, de repente eu volto. Obrigado, hein?

SÍLVIA: Obrigado a você.

ANDRÉ (VS): "Obrigado a você". Ela já disse aquilo dobrando o
chambre, foi assim uma coisa automática. Obrigado a você. Trinta
e oito reais, ela deve ganhar dez por cento, três e oitenta.
Digamos que ela venda dez coisas por dia, mais ou menos no mesmo
preço. Trinta e oito reais. Por mês, trinta e oito vezes
trinta...

ANDRÉ (VS): Se bem que não é vezes trinta porque ela não trabalha
domingo, vamos deixar por quinhentos. Também, talvez ela não
venda dez coisas por dia e talvez as coisas que ela venda não
sejam tão caras como esse chambre. Calcinha, camiseta, essas
coisas devem ser bem mais baratas.

ANDRÉ: Marinês?

MARINÊS: Hã...

ANDRÉ: Quanto custa uma calcinha?

MARINÊS: Não sei, não uso.

MARINÊS: Por quê, hein?

ANDRÉ: Não, só pra saber.

MARINÊS: Humm, sei...

ANDRÉ (VS): Digamos que ela ganhe quatrocentos. Fora o salário,
deve ser no mínimo igual ao meu, duzentos e pouco... seiscentos e
pouco, por mês... Razoável.

ANDRÉ: Marinês?

MARINÊS: Hã?

ANDRÉ: Eu tenho uns convites pra inauguração de um bar. Tu quer?

MARINÊS: Que bar é esse?

ANDRÉ: Ah, é o bar de um amigo meu. Chama Mama Grave. Tem direito
a duas cervejas.

MARINÊS: Eu posso levar um amigo?

ANDRÉ: Tá, eu te arrumo dois convites.

MARINÊS: E tu vai com quem?

ANDRÉ: Eu não sei ainda não.

ANDRÉ (VS): Não deu certo com a Marinês. Eu não queria ir com ela
mesmo.

ANDRÉ: Sílvia?

SÍLVIA: Oi.

ANDRÉ: Tá lembrada de mim? Eu tive aqui outro dia procurando um
presente pra minha mãe.

SÍLVIA: Ah... E tu achou?

ANDRÉ: Encontrei. Mas me arrependi, devia ter comprado aquele
chambre que tu me falou. Já vendeu?

SÍLVIA: Não. Quer dar uma olhada?

ANDRÉ: Não, é-é... eu só queria saber se tinha mesmo.

SÍLVIA: Tem.

ANDRÉ: Tá, então caso resolva comprar, eu volto aqui.

SÍLVIA: (risadinha) Tá.

ANDRÉ: Sílvia? Tu gosta de cerveja?

SÍLVIA: Cerveja?

ANDRÉ: É.

SÍLVIA: Não muito. Por quê?

ANDRÉ: Não. Por nada não, era só pra saber.

ANDRÉ: Então já vou indo, tá? Meu horário de almoço acabou.

ANDRÉ: Tu gosta de cerveja?

ANDRÉ: Sílvia, tu gosta de cerveja?

SÍLVIA: Cerveja? Sou louca por cerveja.

MARINÊS: Querido! Tudo bem? Cardoso, o André, conseguiu os
convites pra nós.

CARDOSO: André, prazer, Cardoso, seu escravo.

ANDRÉ: E aí?

MARINÊS: Olha só, vou gastar a minha primeira ceva, tá? Licença.

CARDOSO: Interessante aqui.

ANDRÉ: É.

CARDOSO: Eu não gosto é destas mesas de lata. Uma vez eu pousei
um copo de uísque numa mesa dessas de lata, e o copo começou a
andar sozinho, que a mesa tava molhada - sabe quando entra uma
agüinha assim entre o tampo da mesa e o copo - aí o copo
começou... ? às vezes acontece na casa da gente assim, no inox da
pia, é um fenômeno físico, tem a ver com, com atrito...

ANDRÉ: Hã, sei.

CARDOSO: Né? Então. O copo começou a andar, eu tava pensando
assim, pô eu tô bêbado, né, o copo andando, eu tava mesmo...

ANDRÉ: O quê?

CARDOSO: Bêbado. Mas não tanto. O copo tava andando mesmo,
sozinho. Foi assim, escorregou, plá, caiu no chão. Pô, coisa
triste ver um copo de uísque né, assim, derramado no chão.

CARDOSO: É. Ó, vagou uma mesa ali.

CARDOSO: Não gosto destas mesas, rapaz. E esse nome também, Mama
Grave...

ANDRÉ: É.

CARDOSO: Os caras tem mania de botar nome em inglês em bar, né?

ANDRÉ: É.

CARDOSO: Você faz o quê?

ANDRÉ: Eu?

CARDOSO: É.

ANDRÉ: Eu sou operador de fotocopiadora.

CARDOSO: Ah, lá na loja, né, com a Marinês.

ANDRÉ: É, na loja. E tu?

CARDOSO: Eu trabalho com antiguidades, sabe. Mobiliário, louças,
esse tipo de coisa.

ANDRÉ: E, desculpe perguntar, mas tu tem que trabalhar de
gravata?

CARDOSO: Não.

ANDRÉ: Hum.

CARDOSO: Escuta, você e a Marinês...

ANDRÉ: Gostosa, né?

CARDOSO: Nossa senhora, nossa senhora! Vocês...

ANDRÉ: Ah não, a gente só trabalha junto na loja. Só isso mesmo.
E tu?

CARDOSO: Vou dar uma conferida... vou dar uma conferida. Uma
mulher gostosa, cara, não pode dar muita bola não, tá entendendo?
Acho que mulher quando é gostosa assim tem muito marmanjo atrás
babando, tu tem que tratar meio mal, sabe, dar um certo gelo, tu
vai ver quando ela chegar aí.

MARINÊS: Óóó! Eu trouxe três copos, essa é a minha, a próxima é
de vocês. Me ajuda aqui?

ANDRÉ: Ah, eu só tenho mais uma, já tomei uma antes de vocês
chegarem.

CARDOSO: Gente, eu queria fazer um brinde a esse nosso encontro
e... sei lá, não sou bom com palavras.

MARINÊS: Tudo bem.

ANDRÉ: Tudo de bom.

MARINÊS: Saúde.

CARDOSO: Saúde.

ANDRÉ: Saúde.

CARDOSO: Hum. A bateria do meu celular arriou. Eu vou ali que eu
tenho que ligar pra uma amiga...

ANDRÉ: Legal o Cardoso.

MARINÊS: Ah, mas tá com um perfume horroroso, tu sentiu? E é bem
mais baixo que eu. E fora a gravata, tu viu a gravata?

ANDRÉ: É, sem falar nisso...

MARINÊS: Vamos dançar. Vem.

MARINÊS: Faz um favor, bota ali na mesa para mim?

MARINÊS: Ele se acha o máximo.

ANDRÉ: Hã? Quem?

MARINÊS: O Cardoso. Tu reparou no sapato dele? Foi reformado. A
sola tá toda diferente do resto do sapato.

ANDRÉ: Não, não reparei.

MARINÊS: Tsc, ai, vamos sentar.

CARDOSO: A cerveja agora tá completamente choca.

MARINÊS: Ah, deve tá mesmo, né?

ANDRÉ: Tá, eu vou buscar uma cerveja.

MARINÊS: Ah, e a tua amiga?

CARDOSO: Que amiga?

MARINÊS: Cardoso, tu não foi ligar pra uma amiga?

CARDOSO: Não, não, é, pois é, tá doente.

MARINÊS: Ah.

CARDOSO: Meio mais ou menos, né, isso aqui.

MARINÊS: Ai, por quê? Eu achei legal.

CARDOSO: É... Hoje também não tô assim muito numa de dançar,
sabe? Assim...

MARINÊS: Ah, pois eu hoje vou dançar até me acabar!

CARDOSO: Não, normalmente também, vou até tarde, gosto muito, mas
não sei, hoje não... Comprei uma coleção de CDs. The Rock
Greistest Richards...

MARINÊS: Hã?!

CARDOSO: The Rock Grei... The Rock Greist... Rich... É
superbacana, tem... Coisas superlegais, tem Elton John, tem... BB
King, tem Chuck Berry...

MARINÊS: Chuck Berry?

CARDOSO: Chuck Berry.

MARINÊS: Tem My Ding A Ling?

CARDOSO: My Ding A Ling...

MARINÊS: My ding a ling, my ding a ling, I want to play with my
ding a ling...

CARDOSO: Deve ter...

MARINÊS: Eu adoro esta música.

CARDOSO: Tem que ter. São quatro CDs assim, vem numa caixa, super
bacana. Cê querendo a gente pode passar lá em casa mais tarde, te
mostro.

MARINÊS: Ué, eu vou depois contigo.

CARDOSO: Isso aí, vai ser bom, vai ser ótimo, vai ser show, show!

MARINÊS: Agora deixa eu te dizer uma coisa.

CARDOSO: Hmmm.

MARINÊS: Eu não vou dar pra ti não, hein?

CARDOSO: O quê?

MARINÊS: A gente não vai transar, Cardoso.

CARDOSO: Isso nunca se sabe, né?

MARINÊS: Você não entendeu, é isso que eu estou dizendo, EU sei.
Em primeiro lugar, tu fuma. E não é pela fumaça, nem pelo câncer
não, mas é que eu detesto gosto de cigarro em beijo.

CARDOSO: Bom... Eu tava até pensando em parar.

MARINÊS: E tu é duro, assim, que nem eu. Não é nada pessoal, mas
é que eu não vou conseguir sentir tesão entendeu, não o
suficiente pra transar.

CARDOSO: Entendi. Você só transa com cara rico, né?

MARINÊS: Não, não é isso, mas é que até hoje eu não achei o cara
ainda. Eu sou virgem.

CARDOSO: Ah, ah, ah... que é isso?

MARINÊS: É, virgem. Mas também não precisa acreditar, que ninguém
acredita mesmo. Vamos dançar?

CARDOSO: Quer dizer que você nunca...

MARINÊS: Não.

CARDOSO: Nada, nunca?

MARINÊS: Não, não.

CARDOSO: Ué?

MARINÊS: O resto todo eu já fiz.

CARDOSO: Ah...

MARINÊS: Assim: nunca transei... Mas já fiz tudo, né?

CARDOSO: Tudo.

MARINÊS: Mas transar, mesmo, não.

CARDOSO: Hum.

MARINÊS: Eu só vou dar pro cara que mudar a minha vida. Ou então
prum... lindão maravilhoso desses de cinema... Bem romântico,
divertido... gostoso...

MARINÊS: Um que me faça esquecer da vida e me transforme numa
idiota apaixonada. Desculpe a franqueza, Cardoso, mas não é o teu
caso.

CARDOSO: Vem cá, mas cê não tem vontade?

MARINÊS: Ah, claro que eu tenho!

CARDOSO: E aí, como é que...?

CARDOSO: Ué...

MARINÊS: Faço que nem tu.

CARDOSO: O quê?

MARINÊS: Eu me masturbo!

ANDRÉ (VS): Tomei a minha cerveja e eles continuavam dançando.
Eram dez pras onze. Entrei no ônibus, ela tava lá. O ônibus tava
quase vazio, não dava para eu sentar do lado dela. Se eu sentasse
atrás, ela não ia me ver.

ANDRÉ (VS): Dei uma olhadinha rápida e voltei a olhar, como se
tivesse levado alguns segundos para me dar conta de que ela era
ela.

ANDRÉ: Oi. Tá lembrada de mim?

SÍLVIA: Não... Ah, acho que sim.

ANDRÉ: É, eu tive lá na tua loja.

SÍLVIA: Ah...

ANDRÉ: Olha, eu vou passar lá amanhã para comprar a camisola.

SÍLVIA: Amanhã é domingo.

ANDRÉ: Ah, então passo na segunda.

SÍLVIA: Não era o chambre que tu queria?

ANDRÉ: É, o chambre. Se não der na Segunda eu passo até o final
da semana pra comprar o chambre.

ANDRÉ (VS): Não sei pra que eu fui dizer uma merda daquela. Acho
que foi porque ela disse "não era o chambre que tu queria?" com
um jeito de quem não tava acreditando muito que eu fosse aparecer
lá e pagar trinta e oito reais pelo chambre. Agora eu ia ter que
conseguir trinta e oito reais e comprar o chambre, ou então
esquecer para sempre que a Sílvia existe. Só que eu não tinha
trinta e oito reais sobrando assim. Nem tinha onde conseguir, não
até o final da semana.

ANDRÉ (VS): O primeiro dinheiro de papel foi feito na China, no
século onze. O imperador convenceu todo mundo que um pedaço de
papel valia um quilo de arroz. Quem não acreditasse ele mandava
matar.

ANDRÉ (VS): Pensei em pedir ao Bolha, mas ia ter que dizer pra
que eu precisava do dinheiro. Se eu dissesse que era para comprar
um chambre para a minha mãe, que tava de aniversário, ele talvez
emprestasse. Anh, e se ele encontrasse a minha mãe por aí e
cumprimentasse pelo aniversário?

MÃE: Boa noite meu filho, vou me deitar. Televisão me dá um
sono...

ANDRÉ: Boa noite, mãe.

ANDRÉ (VS): Minha mãe ia achar que eu tava louco, dando um
chambre assim pra ela, sem mais nem menos. Melhor esconder o
chambre até o aniversário dela mesmo.

ANDRÉ (VS): Eu pensei em pedir dinheiro para a Marinês, mas era
muito humilhante. Nunca mais eu ia poder ficar pensando nela
colocando aquela calça justa, de pernas para cima, sem calcinha,
sabendo que eu devia trinta e oito reais para ela. E ela também
não devia ter trinta e oito reais sobrando assim, no meio do mês.

ANDRÉ (VS): Pensei em pedir para o Feitosa. Ele não ia me
emprestar, mas talvez pudesse me dar alguma maconha para eu
vender.

FEITOSA: Cagalhãããooooo...

ANDRÉ (VS): É. Era só eu misturar com um pouco de tempero verde e
tentar vender pra algum otário pelo dobro do preço. Só que eu não
conheço nenhum otário interessado em comprar maconha por tempero
verde.

ANDRÉ (VS): Foi ai que eu lembrei do Cardoso.

CARDOSO: Eu trabalho com antigüidades.

ANDRÉ (VS): Ele tinha grana, podia tá interessado em maconha ou
então podia me emprestar trinta e oito reais até o final do mês.

ANDRÉ: Marinês? Antigüidade dá dinheiro?

MARINÊS: Um vestido que a Marylin usou foi vendido por um milhão,
duzentos e sessenta e sete mil dólares. Um novo, igualzinho, deve
custar uns quinhentos.

ANDRÉ (VS): O Cardoso usa gravata, tem celular, toma uísque. Deve
ter trinta e oito reais pra me emprestar. Foi o melhor plano de
conseguir trinta e oito reais que eu pude inventar numa tarde.

ANDRÉ: Por favor, aqui tem algum Cardoso?

SENHOR: Lá no fundo.

ANDRÉ: Cardoso?

CARDOSO: Só um momentinho, por favor.

CARDOSO: Pois não?

ANDRÉ: Tá lembrado de mim?

CARDOSO: Ô...

ANDRÉ: Tudo bom?

CARDOSO: Pô, não tou, cê desculpa, eu... Rapaz, não tou, parei de
fumar, não tou lembrando nada.

ANDRÉ: Não, a gente se conheceu lá no Mama Grave, eu sou amigo da
Marinês.

CARDOSO: Tudo bom, trabalha com ela, não é isso? Na...

ANDRÉ: É, eu trabalho...

CARDOSO: Como vai, tudo bom?

ANDRÉ: Tu me falou que trabalhav...

CARDOSO: Quê? O quê?

ANDRÉ: Tu me disse que trabalhava com antigüidades...

CARDOSO: Ué, então, quê que é? Tá vendo alguma coisa nova aqui?

ANDRÉ: Não, mas é que eu achei que tu tinha grana.

CARDOSO: Ué, mas por que achou que eu tinha grana?

ANDRÉ: Não, é que tu chegou lá todo te fazendo de apertadinho.

CARDOSO: Ué, tu queria que eu falasse o que pra uma mulher
maravilhosa daquela, uma mulher do... Pô, entendeu? Dizer pra ela
o quê? Trabalho num lugar que só vende coisa velha?

CARDOSO: Tu também, tu ficou botando aquela banca que era...
operador de...

ANDRÉ: É, de fotocopiadora.

CARDOSO: É, fotocopiadora, tu opera xerox que eu sei cara, vem
botando essa banca "fotocopiadora"... Ah, que é isso?

ANDRÉ: Ah, tá, mas é melhor do que ficar dando uma de terno e
gravata.

CARDOSO: Tô sabendo qual é a tua, cara. Tô sabendo, tu tá a fim
dela, né, que é isso? Aí veio aqui tirar uma satisfação?

ANDRÉ: Eu? Da Mari... Eu não! Da Marinês, eu não!

CARDOSO: Ué, então tá botando areia por causa de que?

ANDRÉ: Eu não tô botando areia nenhuma. Tu é que quis dar uma.

CARDOSO: Ué, mas isso aí é normal, cara... atenção com a mulher,
né? Tu também nunca chegou pra menina e mandou esse papo aí de
operador de fotocopiadora pra pegar...

ANDRÉ: É... já tentei.

CARDOSO: Então? Isso aí é... Vamo lá, o quê que tu quer?

ANDRÉ: Não, eu queria... eu, eu... será que dava pra gente sair
pra tomar um cafezinho?

ANDRÉ: Não, isso aí... Mas tu paga?

ANDRÉ: Ah não, tou sem grana.

CARDOSO: Pô, então... vamos fazer assim... Deixa pra outra hora,
porque também parei de fumar, né? Esse negócio de fumar é brabo!
Cafezinho... Parei, ontem... Ih, hoje? Quando que eu falei?

ANDRÉ: Hoje.

CARDOSO: Hoje? Não, foi ontem. Desde ontem, nenhum. Cigarro? Tsc,
tsc, tsc. Não tem, não quero mais. Agora é brabo, cafezinho
lembra o cigarro, cigarro é brabo... uffff... bom, né? Não vou
tomar cafezinho...

CARDOSO: Agora também não posso parar de fazer tudo que eu gosto
porque parei de fumar. Por exemplo assim, gosto muito de fumar
depois de... depois de... né? Adoro! Agora não posso, agora...
Quê? Não como mais ninguém porque parei de fumar. A menina: "Ah,
quero te dar." "Não, desculpe, se eu te comer eu vou ter vontade
de fumar."

CARDOSO: Qual é teu problema? O senhor vê dois cafezinhos, faz um
favor?

ANDRÉ: Tou precisando de trinta e oito reais.

CARDOSO: Pô, foi pra isso que tu me procurou, cara, pra me pedir
dinheiro emprestado?

ANDRÉ: Pô, achei que tu tinha.

CARDOSO: Trinta e oito reais? Porra... Obrigado... Não sai de
jeito nenhum.

ANDRÉ: Tá... tudo bem, eu dou um jeito.

CARDOSO: Tu quer esse dinheiro pra quê?

ANDRÉ: Pra comprar um chambre.

CARDOSO: Chambre?

ANDRÉ: É, de chenile.

CARDOSO: Pô, mas, leva a mal não, pra quem que é esse chambre,
cara?

ANDRÉ: Pra minha mãe.

CARDOSO: Aniversário dela?

ANDRÉ: É mais ou menos.

CARDOSO: Pá, parei de fumar... sinto vontade mais, não.

ANDRÉ: Pô, eu preciso de trinta e oito reais.

CARDOSO: Paga o café aí que eu dou um jeito de resolver teu
problema.

CARDOSO: Dez reais.

ANDRÉ: Não, não dá. Tem que ser o chambre.

CARDOSO: Que é isso cara?! Mãe adora anjo! Gosta muito mais de
anjo do que de chambre. Chambre é presente mais assim pra vó...

ANDRÉ: Eu preciso de trinta e oito reais.

CARDOSO: Pô, mas que mania que tu tá com esse negócio... Para com
isso, leva esse anjo aí, dez reais, rapaz, paga no fim do... Não
é isso...

ANDRÉ: Que anjo é esse?

CARDOSO: Não sei, vê aí, não tem uma espada? Não tem? Então, é
anjo da guarda...

ANDRÉ (VS): Simpatizei com o anjo. Fiz um pedido. Trinta e oito
reais. Eu preciso de trinta e oito reais.

ANDRÉ: Quê que é isso?

MARINÊS: Copiadora colorida. Agora cê vai Ter que usar avental.

ANDRÉ (VS): Essa é um pouco mais complicada. Não é só deixar
sempre no meio, é cheia de regulagens.

GOMIDE: Para proteger a tua roupa. Fica mais profissional.

ANDRÉ: Claro.

ANDRÉ (VS): O avental é horrível: quente, pinica no pescoço. Mas
a máquina é ótima. Dá até para fazer dinheiro. Trinta e oito
reais. Eu podia copiar uma nota de cinqüenta. Ah... Se eu tivesse
uma nota de cinqüenta eu não precisaria copiar. Eu posso pedir
emprestado. Não o dinheiro, só a nota. É...

ANDRÉ (VS): Uma vez o Mairoldi me emprestou uma nota de 10 no
colégio. Minha mãe me deu o dinheiro para pagar a dívida, duas
notas de cinco.

ZECA OLHO: Ele me emprestou uma nota de dez, azul! Eu não vou
devolver duas notas velhas e vermelhas!

VÓ DOUTRINA :Cinco mais cinco é dez! O que é que te ensinam em
matemática?

ZECA OLHO: Eu não quero ir a aula!

VÓ DOUTRINA :Eu explico para a Dona Hirsuta.

ZECA OLHO: Não! A Dona Hirsuta não! Não liga! Eu não quero ir a
aula.

ANDRÉ (VS): Minha mãe foi comigo até o colégio. Entregou as duas
notas para o Mairoldi, na minha frente.

VÓ DOUTRINA :O dinheiro que ele estava te devendo.

MAIROLDI: Tudo bem.

VÓ DOUTRINA :Eu não disse?

ANDRÉ (VS): O Mairoldi é um idiota.

GOMIDE: Paga isso aqui pra mim, amanhã, antes de vir para a loja,
tá?

ANDRÉ: Tá, claro.

GOMIDE: E vamos embora que já são seis e cinco.

ANDRÉ: Seu Gomide?

GOMIDE: Sim.

ANDRÉ: Se o senhor não se importar que eu feche a loja, eu podia
ficar até mais tarde para aprender a usar melhor a máquina, pra
ler o manual.

GOMIDE: Chegue amanhã mais cedo e leia.

ANDRÉ: Não, é que eu tenho que passar no banco pra pagar sua
conta.

GOMIDE: Quê que é isso aqui?

ANDRÉ: É um anjo. Comprei para minha mãe.

GOMIDE: Aniversário?

ANDRÉ: Não, não. Achei que ela ia gostar. É um anjo da guarda.

GOMIDE: Esse aqui é o anjo Gabriel. Olha aqui a espada.

ANDRÉ: É? Mas ela vai gostar assim mesmo.

GOMIDE: É claro que vai.

GOMIDE: Pode fechar a loja. Só não fica muito tarde. Semana
passada assaltaram aqui do lado. Cuidado, hein?

ANDRÉ: Claro, pode deixar.

ANDRÉ (VS): Procurei um tipo de papel mais parecido com o do
dinheiro. A maior dificuldade de fazer uma nota de dinheiro aqui
é que tu tem que imprimir os dois lados e é muito difícil ficar
certinho, uma nota em cima da outra. Levei umas cinco horas
fazendo isso. Consegui uma nota bem parecida com a verdadeira.

ANDRÉ (VS): É Claro que se tu olhasse com atenção percebia logo
que era uma cópia.

ANDRÉ (VS): Eu não posso pagar a Sílvia com a nota falsa. Ela
pode se dar mal. Ou eu posso ser descoberto na loja dela, ser
preso, e aí... acabou tudo. Tenho que trocar o dinheiro. O
problema é onde trocar o dinheiro.

CAIXA: Moço? O recibo.

ANDRÉ (VS): Acho que foi o anjo que me fez entregar a nota
verdadeira. O banco é o pior lugar do mundo para tentar trocar
esse dinheiro.

ANDRÉ (VS): Posso tentar neste bar. Hum, não vou sacanear o cara,
um duro como eu. E dinheiro grande eles não gostam. Se ele
resolver examinar?

LETREIRO: CASA LOTÉRICA

ANDRÉ (VS): Aqui o dinheiro vai pra uma caixa única, mistura tudo
rapidinho. Todo mundo com pressa. E nenhuma prova de que fui eu
que entreguei aquela nota.

ANDRÉ (VS): Posso fazer um jogo de nove reais e levar quarenta e
um de troco, dinheiro de verdade.

MULHER: Obrigada.

ANDRÉ (VS): Tenho que perguntar alguma coisa para ela na hora de
entregar o dinheiro. Alguma coisa para distrair a atenção dela.
Já usei com um porteiro e deu certo.

ANDRÉ (VS): Por favor, que dia é hoje? Sabe em quanto é que tá
acumulado o prêmio? Pra jogar seis números, custa quanto? Nove
reais, não era oito? Subiu?

ANDRÉ: Tu entende de anjo?

ATENDENTE 1: Como é que é?

ANDRÉ: É que eu comprei esse anjo pra minha mãe de aniversário, e
o cara da loja falou que é anjo da guarda, só que meu chefe disse
que é São Gabriel, por causa da espada.

ATENDENTE 1: Não entendo muito de anjo não. Eu acho que isso aí é
um arcanjo, né?

ATENDENTE 2: Isso aí é São Miguel.

ANDRÉ: Ah, e qual a diferença?

ATENDENTE 2: Ah, a armadura! São Miguel.

ANDRÉ: Ah, nem reparei.

ATENDENTE 1: Tua mãe vai gostar.

ANDRÉ: Obrigado.

ANDRÉ (VS): Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador, se a ti
me confiou, a piedade divina sempre me rege, me guarda, governa,
ilumina. Amém.

ANDRÉ: Oi.

SÍLVIA: Oi.

ANDRÉ: Vim comprar o chambre. O chambre.

SÍLVIA: Ah, o chambre pra tua mãe!

ANDRÉ: É.

SÍLVIA: Eu tenho duas cores. Vou te mostrar. Chegaram também umas
camisolas bem bonitas, rendadas. É um pouquinho mais caro, tu
quer ver?

ANDRÉ: Não, acho que eu prefiro o chambre mesmo.

SÍLVIA: Olha... eu acho que foi esse aqui que tu viu, né?

SÍLVIA: Mas tem essas duas cores: azul e lilás, quê que tu
prefere?

ANDRÉ: Qual tu acha mais bonita?

SÍLVIA: Ai, eu acho que eu gosto mais do lilás.

ANDRÉ: Tá, então vou levar esse.

SÍLVIA: E tu tem certeza que não quer ver mais alguma coisa?

ANDRÉ: Não, acho que por hoje é só isso mesmo.

SÍLVIA: Tu vai pagar à vista?

ANDRÉ: Quanto é que é mesmo?

SÍLVIA: É trinta e oito reais.

ANDRÉ: Acho que eu vou pagar à vista.

SÍLVIA: Tu pode pagar ali com ela ao lado, eu vou fazer pra
presente.

ANDRÉ: Tá, obrigado.

SÍLVIA: Hum. Ah.

ANDRÉ: Bonito.

SÍLVIA: Se tu quiser trocar, é só trazer a notinha.

ANDRÉ: Tá, Obrigado.

SÍLVIA: Imagina. Obrigado a você.

ANDRÉ: Imagina. "Obrigado a você."

SÍLVIA: Imagina. Obrigado a você.

ANDRÉ (VS): Ah, esse foi totalmente diferente. Ela disse
"obrigado a você" me olhando nos olhos. Ela me olhou e me chamou
de você. Ah, mas o melhor foi aquele imagina.

SÍLVIA: Imagina.

ANDRÉ (VS): Imagina um monte de dinheiro. Imagina um monte de
coisas que dá para comprar com esse dinheiro. Imagina como as
pessoas vão te tratar depois que comprar esse monte de coisas.
É... e agora imagina que tu é um otário imaginando um monte de
coisas.

ANDRÉ: Me passa o sal? Oi!

SÍLVIA: Oi.

ANDRÉ: Obrigado.

ANDRÉ: Tu almoça sempre por aqui?

SÍLVIA: Seguido.

ANDRÉ: É bom aqui. Barato.

SÍLVIA: É limpo.

ANDRÉ: Pô, eu comia num lugar perto daqui que era meio sujo.

SÍLVIA: Não era um por peso?

ANDRÉ: Perto do super?

SÍLVIA: Ai, aquele lugar é um nojo!

ANDRÉ: E mais caro que aqui.

SÍLVIA: Tu acredita que eu fui lá uma vez, me servir de feijão, e
tinha uma bruxa boiando?

ANDRÉ: Uma bruxa?

SÍLVIA: É... É, assim, bruxinha, sabe, tipo mariposa?

SÍLVIA: Eu fui reclamar com o cara e ele me disse: "Caiu, que é
que tu quer que eu faça?". Ficou parado! Eu disse: "Eu quero que
o senhor troque o feijão". Sabe o que que ele fez? Pegou a
concha, tirou a bruxa de dentro do feijão, jogou na pia e botou a
concha de volta no feijão. Nem lavou! Sabe, dava para ver aquele
pozinho que elas soltam assim boiando junto com a lingüiça. Ai,
tu acredita?

ANDRÉ: Acredito.

SÍLVIA: Imagina se eu como um negócio daqueles? Pode até ser
venenoso.

ANDRÉ: Ah não, não, mas acho que essas não são. Essas que vivem
na cidade.

SÍLVIA: É, acho que não, mas... sei lá, no feijão!

ANDRÉ: É, no feijão não dá.

SÍLVIA: E viva! Ai, imagina uma gosma daquela na tua boca?

SÍLVIA: Tu trabalha aqui por perto?

ANDRÉ: Mais ou menos.

SÍLVIA: E o quê que tu faz?

ANDRÉ: Eu... eu faço ilustrações. Desenho.

SÍLVIA: É legal.

SÍLVIA: Bom...

ANDRÉ: É... eu já terminei também.

SÍLVIA: É, eu tenho que voltar.

SÍLVIA: Tu vai pra lá?

ANDRÉ: Não, pra lá. Tu quer um?

SÍLVIA: Não, obrigado. Eu não sou muito de figo.

ANDRÉ: Tchau.

SÍLVIA: Tchau.

ANDRÉ (VS): Ela não usa perfume, não é muito de figo, tem nojo de
bruxa no feijão e um brilho nos olhos, quando ri. Isso tudo não
dá para ver de binóculo.

CARDOSO: Por que você não convida ela para sair com a gente, os
quatro?

ANDRÉ: Tou sem dinheiro.

CARDOSO: Não, um cineminha! Depois a gente arrasta elas lá pra
casa, pede uma pizza...

ANDRÉ: Não, não, não dá. Eu tou sem dinheiro nenhum.

CARDOSO: Ô, cara, um cineminha, uma pizza, isso aí não dá nem
quinze reais.

ANDRÉ: Não dá, Cardoso.

CARDOSO: Mas tu é muito pobre, hein, vou te dizer, cara, Nossa
Senhora.

ANDRÉ: Agora que tu reparou?

ANDRÉ: Quê que é isso na sua orelha?

CARDOSO: Ah, é uma semente. Assim, aperta um ponto do lóbulo,
sabe?

ANDRÉ: Semente de quê?

CARDOSO: Não interessa de quê, é pra quê. É pra parar de fumar. É
uma espécie de apucuntura.

ANDRÉ: Não, acupuntura!

CARDOSO: É.

ANDRÉ: Não, tu falou aPUcuntura, é aCUpuntura, Cu!

CARDOSO: É... puntura!

ANDRÉ: Cu!

CARDOSO: Então?

ANDRÉ: Me diz uma coisa. Faz quantos dias que tu parou?

CARDOSO: Hein?

ANDRÉ: De fumar?!

CARDOSO: Quatro! Mas já me sinto outra pessoa, rapaz.
Antigamente, subia uma escada, tinha fôlego nenhum, chegava lá
ofegante, impressionante a diferença, quatro dias que eu parei de
fumar. Também... o sabor das coisas... muito mais. Hein?

ANDRÉ: Sei.

CARDOSO: É, então. Agora pra te dizer que não sinto vontade
nenhuma, não sinto. Mas alguma assim, depois de comer alguma
coisa, tomo um cafezinho, aquele cigarrinho, rapaz, depois de um
cafezinho...

ANDRÉ: Sei.

CARDOSO: Sabe nada! Eu que sei, eu que parei de fumar, tu nunca
fumou! A pessoa fala eu sei... Tsc... Porra, por que que eu fui
parar de fumar, tamb... mulher é uma merda, rapaz! Tsc... E ela
nem é tão gostosa assim, ó. Tem muito peito.

ANDRÉ: Ela não disse que o cara precisava ser rico e não fumante?

CARDOSO: É.

ANDRÉ: Então? Por que é que tu não espera ficar rico pra parar de
fumar?

CARDOSO: Seguinte, no dia que ela falou que ela nunca tinha dado
ela falou também que, embora não tivesse dado, ela já tinha feito
tudo! Tudo! E aí, na animação do tudo, de repente, ó: blup! Né?
Por quê que tu não leva a tua amiga lá com a gente, cara, que
elas assim de dupla, ficam animadinhas, querendo se exibir, aí
nós ó...

ANDRÉ: Blupo!

CARDOSO: Blupo!

ANDRÉ: Tu sabe o que é hirsuta?

SÍLVIA: Hirsuta? Com agá?

ANDRÉ: Ãhã, É.

SÍLVIA: Como era a frase?

ANDRÉ: Era: "A barba hirsuta e branca".

SÍLVIA: Hirsuta e branca. Não sei. Tem que olhar no dicionário.

ANDRÉ: Mas tem uns quadrinhos de adulto.

SÍLVIA: Adulto como?

ANDRÉ: Ah, pra adulto. As histórias.

ANDRÉ: Tu conhece esse aqui?

SÍLVIA: Não. Ah, o desenho é legal.

SÍLVIA: Legal... E os teus desenhos?

ANDRÉ: Quê que tem?

SÍLVIA: Tu não vai me mostrar?

ANDRÉ: Ah, não. Eu não tenho nenhum assim, muito bom, pronto.

SÍLVIA: Faz um para mim?

ANDRÉ: Agora?

SÍLVIA: É.

ANDRÉ: Ah, não, aqui não dá.

SÍLVIA: Hum... Por que não?

ANDRÉ: Ah, porque não!

ANDRÉ: Tá bom.

ANDRÉ: Eu faço um desenho para ti.

SÍLVIA: Tu vai fazer mesmo?

ANDRÉ: Claro. Quê que tu quer que eu desenhe?

SÍLVIA: Ah, não sei. Uma coisa que tu goste, que seja boa de
ficar olhando.

ANDRÉ (VS): Ela entrou em casa levando na mão a revista que eu
emprestei. Acho que veio lendo no ônibus. Ela entrou em casa, na
casa dela, com a minha revista. Ela caminhou até a cozinha, e
voltou comendo uma coisa e lendo a minha revista.

ANDRÉ (VS): Uma coisa boa de ficar olhando...

SÍLVIA: Obrigada.

ANDRÉ: Tu gostou?

SÍLVIA: Gostei sim. Muito legal. Mas olha aqui o que eu trouxe
pra ti. "Hirsuto, de pelos longos, duros e espessos; cerdoso."
'Ao sorrir, mostrava através da barba hirsuta de mulato uns
dentes brancos, pontudos'. Ribeiro Couto, Largo da Matriz e
Outras Histórias, página quarenta e sete."

ANDRÉ: Tu quer casar comigo e sair daqui?

SÍLVIA: Claro que sim.

SÍLVIA: Ribeiro Couto, Largo da Matriz e Outras Histórias, página
quarenta e sete.

ANDRÉ: Obrigado.

SÍLVIA: De nada. Barba hirsuta então é uma barba de pelos longos.
E da onde tu tirou aquela frase, André?

ANDRÉ: Ah, foi de um poema do Shakespeare. Um livro de sonetos.

SÍLVIA: Tu gosta?

ANDRÉ: Ah, não, só li este. Era "quando a hora dobra em triste e
tardo toque." Parece o som de um relógio.

SÍLVIA: Mas onde é que entra a barba?

ANDRÉ: Ah, eu não sei, não entendi nada, Nem li até o fim. Eu
tenho um presente para ti também.

SÍLVIA: O meu desenho? Bonito.

SÍLVIA: Sou eu no meu quarto.

ANDRÉ: Ah, parece?

SÍLVIA: É, mais ou menos. Eu tenho uma foto assim grudada no
vidro.

ANDRÉ: Ah, sei como é. Que foto é?

SÍLVIA: É uma foto da minha mãe no corcovado. No meu quarto não
tem televisão.

ANDRÉ: Ah, não?

SÍLVIA: Não.

ANDRÉ: Hã...

SÍLVIA: Eu tenho um aquário. Mas o resto é bem parecido. A cama,
o abajur... Obrigada, André. É o meu presente de aniversário.

ANDRÉ: Ah, tu tá de aniversário?

SÍLVIA: Fiz semana retrasada.

ANDRÉ: Parabéns.

CARDOSO: Deixa eu te falar, eu tenho uma coisa aqui que é
maravilhosa, deixa eu até mostrar. Isso é antigüidade mesmo,
hein.

ANDRÉ: O quê que é?

CARDOSO: Não é igual a essas brincadeira não. Estende aqui que a
peça é muito delicada, ó.

ANDRÉ: Tá bom.

CARDOSO: Rapaz isso aqui eu vou te dizer, é do século passado,
tá? Mil quatrocentos e não sei quanto. É uma peça super bonita,
você vai ver que ela vai adorar, aqui ó.

ANDRÉ: Ahhhh, uma caixinha... bonitinha...

CARDOSO: É, não é bacana? Isso aqui, deixa eu te dizer, é pra ela
guardar as coisinhas dela dentro, tá entendendo? Do século
pasado, muito legal... Cuidado pra não ferir, tá? Isso aqui é o
seguinte, meio pesado, cem reais.

ANDRÉ: Que é isso?

CARDOSO: Cem reais.

ANDRÉ: Tu acha que eu vou dar cem reais por uma caixinha deste
tamanho?

CARDOSO: Você é ignorante, não é o tamanho da caixa que faz o
valor, é a antiguidade dela. Tudo bem, oitenta pra você, oitenta
reais.

ANDRÉ: Não, eu dou trinta.

CARDOSO: Não, que trinta? Tu também tá menosprezando a peça. Que
trinta? Não trinta não tem. Então não tem, então não tem.
Sessenta? Sessenta reais?

ANDRÉ: Não, vou pra casa.

CARDOSO: Então vai pra casa. A peça também não vai levar não.

ANDRÉ (VS): Eu não tinha mais uma nota de cinqüenta, só umas
cópias, de um lado e de outro. A cópia da cópia não fica tão boa.

CARDOSO: E aí?

ANDRÉ: Cinqüenta.

CARDOSO: Quê?

ANDRÉ: Te dou cinqüenta pela caixinha.

CARDOSO: Não, nem pensar. O mínimo é oitenta.

ANDRÉ: Não, mas tu já tinha chegado a sessenta.

CARDOSO: Então, sessenta é o mínimo.

ANDRÉ: Tá, mas eu só tenho cinqüenta.

CARDOSO: Tá bom. Me dá duas cervejas aí...

ANDRÉ: Não, pera aí!

CARDOSO: Tu passa amanhã lá na loja e pega a caixinha.

CLIENTE: Ô, Dirceu! Troca essa de cem aí, por favor.

ANDRÉ: Não... Ô, Dirceu! Peraí... Dirceu... peraí...

CARDOSO: Desses cinqüenta tu pode também tirar os vinte e cinco
aqueles, Dirceu, que eu tava te devendo, tá? Aí fica então pra
mim... isso, são vinte e cinco as duas cervejas...

CARDOSO: Deixa eu te falar, cara, eu não vou te sacanear não, mas
quando tu me deu aqueles cinqüenta reais no bar lá... Ah, ah...
Quase morri de rir, cara, isso aqui... não é antigüidade nada,
cara, isso é uma caixinha aqui ó, como outra qualquer... Tem uma
porção delas ali no depósito, cara. Ó, toma teus quarenta reais,
te vendo por dez, na boa, tá tudo certo, sou teu compadre... Mas
eu ri muito, viu?

ANDRÉ: Só que tem uma coisa...

CARDOSO: Humm?

ANDRÉ: Sabe aquela nota que eu te dei ontem?

CARDOSO: Ã-hã.

ANDRÉ: Era falsa.

CARDOSO: Tá maluco, cara?

ANDRÉ: Pô, eu só queria saber se tu ia cair. Não sabia que tu ia
pagar a cerveja.

CARDOSO: Pô, mas e se o cara descobre? Cê que fez? Tem mais?

ANDRÉ: Não, só tenho aquela.

CARDOSO: É? Pô, é parecido pra caramba.

ANDRÉ: É, não, mais ou menos. Se olhar de perto, percebe.

CARDOSO: Hã... Dá pra fazer mais?

ANDRÉ: Não, é difícil.

CARDOSO: Por quê?

ANDRÉ: Ah, porque gasta muito papel. Que tem que ser à noite, e
eu também não tenho nota de cinquenta reais pra ficar copiando
por aí.

CARDOSO: Ué, mas aí você faz cópia da cópia.

ANDRÉ: Ah não, eu já experimentei, mas não fica muito bom.

CARDOSO: Hummm... Ó... o dinheiro acho que eu arrumo.

ANDRÉ: Como?

CARDOSO: Você pode amanhã à noite?

CARDOSO: Tu é doente, cara? Que coisa...

ANDRÉ: Sou.

CARDOSO: Cadê o dinheiro?

ANDRÉ: Aí.

CARDOSO: Pô, mas ficou perfeito, cara, olha lá!

ANDRÉ: Cardoso?

CARDOSO: Humm?

ANDRÉ: Essas daí são as tuas.

CARDOSO: Tsc. Dá o outro aí. Eu achando que era essa...

ANDRÉ: Aqui. Vê se ficou bom.

CARDOSO: Ficou. Ficou muito bom.

CARDOSO: Aí faz o quê, recorta?

ANDRÉ: É.

CARDOSO: Quê que cê vai fazer com a tua parte da grana?

ANDRÉ: Pô, tou pensando comprar um presente pra Sílvia.

CARDOSO: Mas vai direto na loja?

ANDRÉ: Não, eu vou trocar o dinheiro antes.

CARDOSO: Onde?

CARDOSO: E aí, tudo certo?

ANDRÉ: Tudo certo.

CARDOSO: Que números você jogou?

ANDRÉ: Eu joguei os primeiros.

CARDOSO: Como assim?

ANDRÉ: Um, dois, três, quatro, cinco, seis.

CARDOSO: Que é isso, cara? Tá brincando? Tu não fez um negócio
desses?

ANDRÉ: Por quê?

CARDOSO: Ô, cara, ela não desconfiou de nada a mulher?

ANDRÉ: Desconfiar por quê?

CARDOSO: Ah, pô, ninguém joga assim, cara, um-dois-três-quatro-
cinco-seis, isso não vai dar nunca, é impossível de dar.

ANDRÉ: Não, vai sim. A chance é a mínima, igual a qualquer outra.

CARDOSO: Não, isso é impossível dar seis números seguidos, ainda
mais começando de um.

ANDRÉ: Ah, é tão impossível quanto dar qualquer outro número.

CARDOSO: Ah, tu vai jogar o quê, agora? Dois quatro, seis, oito,
dez?

ANDRÉ: É, boa idéia...

CARDOSO: Ah,faz atenção, aí. Fica concentrado.

ANDRÉ: Tudo certo.

CARDOSO: Porra, cara, é incrível que as pessoas não notam, cara.

ANDRÉ (VS): Três jogos de nove, vinte e sete. Cento e vinte e
três reais de troco. Imagina tudo que tu pode comprar com 123
reais. Um som, livros, roupas, cedês... brinquedos... melhor.

SÍLVIA: Que é isso?

ANDRÉ: É uma cortina japonesa.

SÍLVIA: Cortina?

ANDRÉ: É, pro teu quarto.

SÍLVIA: Mas deve ter sido caro, André.

ANDRÉ: Não, foi... Troquei por umas ilustrações que eu fiz.

SÍLVIA: Obrigada. Não, muito legal. Quando é teu aniversário?

ANDRÉ: Ah, já foi.

SÍLVIA: Eu vou te dar um presente.

ANDRÉ: Faz tempo, não precisa.

SÍLVIA: Mas eu quero. Obrigada. Tenho que voltar.

ANDRÉ: De nada.

ANDRÉ (VS): Ela levou uma semana para instalar a cortina. Eu
devia ter pagado a instalação também. Mas não deve ser difícil, é
só prender com uns preguinhos. Acho que ela mesma pregou.

CARDOSO: Mas... o quê que cê vai fazer?

ANDRÉ: Não sei.

CARDOSO: Tu não pode dizer pra menina: "Olha, o teu pai é
tarado." Quer dizer, até pode, mas ela vai achar estranho, né?

ANDRÉ: É.

CARDOSO: O que tu podia fazer era sugerir pra ela, assim como
quem não quer nada: "Olha, sabia que tem muito mais pai tarado aí
no mundo do que a gente imagina, isso aí é freqüente..." Aí,
assim como quem, não é, fala pra ela: "Pô, põe uma toalha assim
quando você for tomar banho..." Mas acho que ela vai achar
estranho também isso.

ANDRÉ: É, vai.

CARDOSO: Agora, pode fazer o seguinte também, cara: pega uns
caras, manda dar uma coça no pai dela, e neguinho quando tiver
batendo, mas batendo firme mesmo, fica dizendo: "Ó, tu tá
apanhando porque tu é tarado, cara, e pôu! Tara... Mas aí ele vai
achar estranho, né?

CARDOSO: Agora, você pode também fazer o seguinte: casa com ela.
Mas pra isso, cara, você vai ter que ter um dinheiro, entendeu?
Vai ter que ter pra onde levar ela... E um dinheiro... Um
dinheiro de verdade, né? Não serve esse dinheiro aí que tu
arrumou. Esse dinheiro aí não serve pra nada. E tu tem alguma
idéia de onde arrumar um dinheiro de verdade?

ANDRÉ: Tenho.

MARINÊS: Tu vai me dar a metade do teu salário, é?

ANDRÉ: Desculpe, eu tive que levar minha mãe no médico.

MARINÊS: Hum, tá cheio de trabalho aqui pra ti e ainda tem dois
livros pra copiar. E é tudo pra amanhã.

ANDRÉ: Tá, eu fico até mais tarde. Obrigado.

SÍLVIA: Entra!

SÍLVIA: Quanto tempo?

ANDRÉ: Não sei ainda. Depende do trabalho.

SÍLVIA: Mais que um ano?

ANDRÉ: Não, uns seis meses, no máximo.

SÍLVIA: Eu sempre quis conhecer o Rio.

ANDRÉ: Ah, quem sabe tu vai me visitar nas férias?

SÍLVIA: Ainda falta.

SÍLVIA: Olha, trouxe um presente pra ti. Tu leva na viagem, lê.
Tá marcado na página daquele: "Quando a hora dobra em triste e
tardo toque".

ANDRÉ: Tu entendeu?

SÍLVIA: Entendi. É bonito.

ANDRÉ: "Quando a hora dobra em triste e tardo toque, E em noite
horrenda vejo escoar-se o dia. Quando vejo esvair-se a violeta".

SÍLVIA: É a flor. Esvair-se é evaporar. Murchar. Morrer.

ANDRÉ: "Ou que a prata a preta têmpora assedia".

SÍLVIA: O cabelo ficando grisalho do lado.

ANDRÉ: "Quando vejo sem folha o tronco antigo, que ao rebanho
estendia a sombra franca".

SÍLVIA: A árvore sem folhas, onde os bois e as vacas tomavam
sombra, quando ela tinha folhas.

ANDRÉ: "E em feixe atado, agora o verde trigo, seguir no carro, a
barba hirsuta e branca." É o trigo cortado, indo embora numa
carroça.

SÍLVIA: É, a barba hirsuta e branca. É tudo sobre o tempo, André.
O tempo passando.

ANDRÉ: "Sobre a tua beleza então questiono, que há de sofrer do
tempo a dura prova".

SÍLVIA: Isso é...

ANDRÉ: É, eu entendi. "Pois a graça no mundo em abandono, morre
ao ver nascer a graça nova. Contra a foice do tempo, é vão
combate. Salvo a prole, que o enfrenta se te abate". O que é
isso?

SÍLVIA: Isso é um jeito de ganhar da morte. De enganar o tempo. A
prole. Os filhos.

ANDRÉ: Entendi. É bonito mesmo. Obrigado.

SÍLVIA: Eu tenho que voltar pro trabalho.

ANDRÉ: Não, tá, claro.

ANDRÉ: Sílvia? Tu me espera?

SÍLVIA: Espero.

ANDRÉ: Tu... Tu quer casar comigo e sair daqui?

SÍLVIA: Claro que sim.

ANDRÉ: Pode levar uns seis meses.

SÍLVIA: Eu espero. Eu espero até mais, se precisar. Te cuida.

FEITOSA: Cagalhão. Olha bem o que tu vai fazer com isso.

ANDRÉ: E as balas?

FEITOSA: Aí dentro tem cinco.

ANDRÉ: Só cinco?

FEITOSA: Se tu precisar de cinco tu tá ferrado. Aliás, se tu
precisar de uma tu tá ferrado.

ANDRÉ: Onde é que cê tava, pô?

ANDRÉ: Pô, tu nem me viu chegar.

CARDOSO: Olha lá. O outro cara?

ANDRÉ: Não, não vai ter problema, eu vou ficar com a arma nas
costas de um. O outro não vai atirar.

CARDOSO: E se ele atirar?

ANDRÉ: Aí eu atiro também.

CARDOSO: Tu vai matar o cara, pô?

ANDRÉ: Espero que não.

CARDOSO: Ó, eu vou ficar no carro tá, tenho nada a ver com isso,
vou ficar no carro. Se te pegarem eu vou falar que não te
conheço, tava te dando uma carona, nem sei o que é que tinha
nessa sacola. Tá bom?

ANDRÉ: Tá, tá Certo.

CARDOSO: E se você atirar em alguém eu saio fora.

ANDRÉ: Tá, tá certo.

CARDOSO: Se der certo, metade da grana é minha.

ANDRÉ: Tá certo, agora tu tem que ficar com o carro estacionado
naquela galeria.

CARDOSO: Tá. Quando?

ANDRÉ: Amanhã. Tu consegue o carro.

ANDRÉ (VS): Dinheiro é só um pedaço de papel que todo mundo
acredita que vale alguma coisa. Se ninguém acredita, não serve
pra nada.

TEIXEIRINHA: Lá vou eu!

GORDO: Que é, rapaz?

ANDRÉ: Ah... Bom dia. É-é que eu tou fazendo uma pesquisa.

GORDO: Quê?

ANDRÉ: Eu tou fazendo uma pesquisa... pro colégio, sobre música.

GORDO: Que pesquisa?

ANDRÉ: É-é uma pesquisa sobre o tipo de música que as pessoas
preferem. Será que o senhor podia me responder algumas perguntas?

GORDO: Tu quer saber o tipo de música que eu prefiro?

ANDRÉ: É.

GORDO: Rock.

ANDRÉ: Rock. Tem alguma banda preferida?

GORDO: Credence.

ANDRÉ: Tá, obrigado.

ANDRÉ: Larga a arma! Larga!

ANDRÉ: Larga a sacola!

ANDRÉ: Larga, vai! Entra no carro! Entra!

ANDRÉ: Vai, entra!

CARDOSO: Não tá me vendo, porra?

ANDRÉ: O que foi?

CARDOSO: Porra, o parquímetro, cara. Não tinha uma moeda. Vai,
vai.

CARDOSO: Só um minutinho...

CARDOSO: Por favor.

CARDOSO: Nota menor. Pega uma outra menor.

MARINÊS: Eu tava pensando em cortar o meu cabelo assim, olha, bem
curto. E vender todo o resto. Os caras pagam quinhentos pila por
uma cabelo, sabia? Já ofereceram 300 no meu. Mas eu não cortei.
Só corto se for por seiscentos. Outro dia eu tava fazendo a
conta: o meu cabelo demora três meses pra crescer. Se eu cortar
na lua cheia e comer bastante cenoura e pepino. São seiscentos
pila, duzentos por mês. Duzentos pila pra criar cabelo? É mais do
que eu ganho aqui. Profissão: jardim de cabelo.

ANDRÉ: Peraí, deixa eu dar uma olhada aqui.

MARINÊS: Cabelo curto, aliás, é muito mais prático. Tu não
precisa pentear.

LETREIRO: ASSALTANTE FOGE A PÉ COM R$ 2 MILHÕES

MARINÊS: Tu, por exemplo. Tu não penteia o cabelo que eu sei.

ANDRÉ: Olha aí.

CARDOSO: Não, mas tudo bem. Não parece você.

CARDOSO: Parece o Romário.

ANDRÉ: Não, a notícia de baixo.

CARDOSO: Milionário gaúcho...

ANDRÉ: Não a outra, Cardoso, a outra.

CARDOSO: Hum? Traficante preso com dinheiro falso. Jéferson
Antônio Feitosa, o Feitosa, foi preso ontem ao tentar passar uma
nota falsa de cinqüenta reais na boate Frequence. O traficante
estava da posse de mais cinco notas... Rapaz, seis notas de
cinqüenta... é o cara que tu comprou a arma?

CARDOSO: Caramba! E as digitais na arma...

ANDRÉ: ... são dele.

CARDOSO: Ah, então tá.

CARDOSO: Tu viu que falaram que as falsificações são grosseiras?

ANDRÉ: N-não, não.

CARDOSO: Aqui na legenda, olha lá. Falsificações grosseiras levam
traficante à prisão. Pô...

CARDOSO: Sem a minha ajuda, teu desempenho como falsário cai
muito, rapaz...

CARDOSO: O quê...?

CARDOSO: "Quem foi o novo milionário da Sena de Porto Alegre e
ainda não apareceu pra receber seu prêmio de quatro milhões... Os
números sorteados foram uma incrível seqüência de um, dois, três,
quatro... tsc... que é isso cara? Tsc, um, dois, três, quatro...
Que é isso, rapaz?

ANDRÉ: Psssiu! Pssssiu!

CARDOSO: Puta que pariu, puta que pariu, peraí porra! Um, dois,
três...

CARDOSO: Iháááááá, ganhamos! Ganhamos! Ahhh! Ganhamo! Ganhô!
Ganhamos!

CARDOSO E ANDRÉ: Babalu, Babalu da Califórnia, Califórnia,
Babalu...

CARDOSO: E se a gente devolvesse o dinheiro do assalto, hein?

ANDRÉ: Como?

CARDOSO: Sei lá! Pelo correio.

ANDRÉ: Que que adianta? Roubei um banco, dei um tiro num cara. Já
imaginou, amanhã a minha foto no jornal: "O novo milionário da
sena"?

CARDOSO: Ó, então só tem um jeito, viu? Cê tem que dar o bilhete
pra alguém. Assim, uma pessoa que saiba lidar com grana, que seja
elegante... Mas tem que ser alguém em quem você confia. Cê tenha
certeza absoluta que não vai te sacanear.

ANDRÉ: É, tem razão.

GERENTE: Mais uma vez, parabéns pelo prêmio. Cê vai querer algum
dinheiro vivo?

MARINÊS: Seis mil. Só para as despesas menores.

CARDOSO: É, acho que tá tudo certo.

MARINÊS: Cês querem saber a senha?

CARDOSO E ANDRÉ: Hum, hum, hum.

MARINÊS: Então. Eu quero saber exatamente TUDO que vocês fizeram.

MARINÊS: A senha é: noventa e cinco, sessenta e cinco, noventa e
cinco. É que são as minhas medidas.

MARINÊS: Cês querem anotar?

CARDOSO: Não precisa.

MARINÊS: E o que que a gente vai fazer com esse dinheiro?

CARDOSO: Ah, com esse aí por enquanto nada. Esse dinheiro aí é
perigoso, numerado né, as vez tem numeração, então nada.

MARINÊS: E com o do prêmio?

CARDOSO: Ué...

CARDOSO E ANDRÉ: Gastar.

VENDEDOR: Motor vê-seis...

CARDOSO: Maravilha.

VENDEDOR: Três válvulas por cilindro...

CARDOSO: Opa, são muitas válvulas.

VENDEDOR: Acabamento lateral em fibra de carbono...

CARDOSO: Ééé... Excelente.

VENDEDOR: Oito airbags!

CARDOSO: Oito?! Puxa!

VENDEDOR: Frontais e laterais.

CARDOSO: Muito bom, muito bom.

VENDEDOR: Acionamento do limpador é automático.

CARDOSO: O quê? Quando chove ele automaticamente...

VENDEDOR: ... liga sozinho.

CARDOSO: Isso é muito bom, porque as vezes cê tá pensando em
outra coisa, cê não tem aquele trabalho de fazer... não, é esse o
carro. Eu acho que... Tem prata?

MARINÊS: Por quê que essa merda é prata e não é preta?

SÍLVIA: Como é o Rio? É bonito?

ANDRÉ: É, eu quero que tu vá pra lá comigo.

SÍLVIA: O Antunes não vai deixar a gente sair assim. Ele vai
atrás.

ANDRÉ: A gente casa.

SÍLVIA: Mesmo assim.

ANDRÉ: Qual o problema? Eu falo com ele.

SÍLVIA: Tu fala?

ANDRÉ: Falo.

CARDOSO: Cê falou prata, hein?

MARINÊS: Eu disse preto.

CARDOSO: Não, foi prata.

MARINÊS: Não, não vamos começar novamente com essa discussão que
cê sabe que isso me irrita!

CARDOSO: Não, mas cê falou prata, eu tenho certeza. Eu ouvi pra-
ta...

MARINÊS: Eu disse preto, eu tou com o meu vestido preeeto!

CARDOSO: Mas e aí, você falou prata.

MARINÊS: Tsc.

CARDOSO: Boa tarde.

RECEPCIONISTA: Boa tarde.

CARDOSO: Prazer, Cardoso. Tudo bem? Isso aqui é Marinês, minha
noiva. Nós queremos desfrutar assim do conforto de uma suíte
presidencial.

RECEPCIONISTA: A nossa suíte presidencial está ocupada no
momento. O senhor fez reserva?

CARDOSO: Como que está ocupada? Como que está ocupada?! Não, não
fiz reserva, faço agora, qual é o problema? Faço agora.

RECEPCIONISTA: Não, não... por fav... Não, não é preciso. Nós
temos três tipos de quartos, todos muito bons.

CARDOSO: É? Quais tipos que tem?

RECEPCIONISTA: Temos o apartamento luxo, o gran luxo e a suíte
gran luxo especial.

CARDOSO: Bom, gran luxo especial, né?

RECEPCIONISTA: Como o senhor quiser.

RECEPCIONISTA: Tem bagagem?

CARDOSO: Tem, tá no Mercedes, é um Mercedes prata... não gosto de
preto, preto... sei lá. Suja muito, né?

RECEPCIONISTA: Perfeitamente.

CARDOSO: Vem cá... A cama é de casal, né, cama...

RECEPCIONISTA: Duplo casal.

CARDOSO: Duplo casal?

RECEPCIONISTA: Duplo casal. É bem grande.

ANDRÉ: Será que ele vai simpatizar comigo?

SÍLVIA: Espero que não.

ANDRÉ: Por que não?

SÍLVIA: O Antunes é um escroto.

ANDRÉ: Teu pai?

SÍLVIA: Eu puxei a minha mãe.

ANDRÉ: Que tipo de escroto?

SÍLVIA: O pior tipo de escroto.

SÍLVIA: André, Antunes, André.

ANTUNES: Que idade tu tem?

ANDRÉ: Dezenove.

ANTUNES: Trabalha em quê?

SÍLVIA: O André desenha. Pra revistas. Desenha super bem.

ANTUNES: Vocês se conheceram como?

SÍLVIA: Na loja. O André foi comprar um presente pra mãe dele.

ANTUNES: Vamos beber o quê?

CARDOSO: Posso tomar uma agüinha?

MARINÊS: Não...

ANTUNES: Como é teu nome mesmo?

ANDRÉ: André.

ANTUNES: Escuta aqui, André. Eu sei foi tu que assaltou aquele
banco. Foi tu que me deu o tiro na perna. Se eu te entregar, tu
vai pegar o quê? Uns quinze anos no presídio central? É? Mas isso
pra mim não interessa. Eu sei que tu tá com o dinheiro. Eu nem
quero todo. Se tu quiser casar com a Sílvia, azar é teu.

ANTUNES: Agora, eu com a tua grana, com a tua idade, eu arrumava
coisa muito melhor, muito melhor.

SÍLVIA: Eu não posso dormir tarde.

FEITOSA: Roupa nova, André?

FEITOSA: Tua namorada?

ANDRÉ: Não, amiga.

FEITOSA: Melhor, assim eu posso dá uma conferida. Bem gostosinha.
Ela mora no Santa Cecília, perto da sua casa, né?

ANDRÉ: Eu li no jornal que tu tava preso.

FEITOSA: Pois é, saí logo. Quem tem amigos, tem tudo.

ANDRÉ: É.

FEITOSA: Tu, por exemplo. Tu era meu amigo. Foi por isso que eu
te vendi aquela arma baratinho. Seis notas de cinquenta, tu
lembra?

ANDRÉ: Eu tava precisando muito da arma.

FEITOSA: Eu sei, eu fiquei sabendo. Dois milhões, uma beleza.
Queriam me segurar por causa das minhas digitais. A sorte que eu
tava acompanhado na hora do assalto.

ANDRÉ: Quê que tu quer, Feitosa?

ANDRÉ: Calma!!!

FEITOSA: Quê que eu quero?!!!

ANDRÉ: Calma! Calma!

FEITOSA: Quê que eu quero! Eu quero a grana do assalto. Por que
que tu acha que tu ainda tá vivo?

ANDRÉ: Tá, eu vou te dar o dinheiro!

FEITOSA: Eu sei que tu vai, nós vamos na tua casa buscar.

ANDRÉ: O dinheiro não tá na minha casa, tu acha que eu sou
otário?

FEITOSA: Acho. Otário e cagalhão.

ANDRÉ: O dinheiro tá na casa de um amigo. Amanhã eu te dou.

FEITOSA: Tu acha que eu sou otário?

ANDRÉ: Quê que tu acha Feitosa? Que eu vou fugir? Tu sabe onde eu
moro, onde minha mãe mora...

FEITOSA: Onde tua amiga mora.

ANDRÉ: Pois é. Eu não vou fugir. Amanhã eu te dou o dinheiro.

FEITOSA: Lá na escada, na ponte.

ANDRÉ: Não, na escada não que passa muita gente. Do outro lado da
ponte, é uma mala de dinheiro, a gente marca do outro lado.

FEITOSA: Que horas?

ANDRÉ: Onze horas. Onze e quinze, no máximo.

FEITOSA: Eu vou te esperar até às onze e trinta. Se tu não
aparecer, eu te busco. Tu, tua mãe e tua amiguinha. Entendeu?

ANDRÉ: Eu vou tá lá.

FEITOSA: Eu sei que tu vai. Tu sempre foi otário. Otário e
cagalhão!

LETREIRO: EU SEI TUDO.

LETREIRO: QUERO TE VER.

LETREIRO: POSSO IR AÍ?

LETREIRO: AGORA.

LETREIRO: SIM - PISQUE SUA LUZ TRÊS VEZES.

LETREIRO: NÃO - PISQUE SUA LUZ QUINZE VEZES.

ANDRÉ: Ele te contou ou tu descobriu?

SÍLVIA: Ele que me contou.

ANDRÉ: Que foi que ele disse?

SÍLVIA: Que era tu o cara do assalto. Que tinha dado o tiro na
perna dele.

ANDRÉ: E tu?

SÍLVIA: Não disse nada, André. Foi aí que eu entendi a tua cara
no restaurante. Ele te contou que sabia, não foi?

ANDRÉ: É, contou.

SÍLVIA: Ele vai ficar atrás da gente André. Não adianta nem
fugir.

ANDRÉ: Eu acho melhor a gente dar o dinheiro pra ele.

SÍLVIA: Não! Ele vai gastar tudo. Vai acabar sendo preso e te
entregando.

ANDRÉ: Não, mas eu não tou falando do dinheiro do assalto. Eu tou
falando do dinheiro do prêmio.

SÍLVIA: Eu prefiro matar ele.

ANDRÉ: Mas ele é teu pai.

SÍLVIA: E daí?

ANDRÉ: E daí que tu não pode matar teu pai.

SÍLVIA: Por que não?

ANDRÉ: Como "por que não?" Porque ele é teu pai, porque foi ele
que te pôs no mundo, porque sem ele tu não existia...

SÍLVIA: Gratidão? É isso? Agora eu vou ter que ser eternamente
grata a um cara que dormiu com a minha mãe a dezoito anos atrás?
Ele nem queria que ela me tivesse. Ela também não queria que eu
fosse dele. Minha mãe era louca por um outro cara. Um lindo, ela
tinha uma foto dele. Ele era artista, se mudou pro Rio. Minha mãe
achava que eu era dele. Eu também acho. Mas ele foi embora... Ela
tava noiva do Antunes... Acabou casando. Minha mãe morreu muito
jovem, André. Quarenta e um anos. Fumava tanto... Tu não imagina
o quanto o Antunes é escroto. Tu acredita que até hoje ele me
espiona quando eu tomo banho?

ANDRÉ: Acredito.

SÍLVIA: Eu posso matar ele sim.

SÍLVIA: Este dinheiro é teu, André. Vamos matar ele e fugir pro
Rio? Vamos? Quê que tu faz além de desenhar? E fazer cópia de
dinheiro e assaltar banco...

ANDRÉ: Sílvia, eu sou operador de fotocopiadora.

SÍLVIA: Eu sempre sonhei em casar com um operador de
fotocopiadora.

ANDRÉ: Eu caso!

SÍLVIA: Quando, amanhã?

ANDRÉ: Não, depois de amanhã.

SÍLVIA: Por que não amanhã?

ANDRÉ: É que amanhã eu tenho que resolver um problema.

FEITOSA: Tá atrasado.

ANDRÉ: Achei que tinha alguém me seguindo.

FEITOSA: Ah, tu trouxe.

ANDRÉ: Quer conferir?

FEITOSA: Claaaro!

ANDRÉ: Tá tudo aí, eu tenho que ir embora.

FEITOSA: Paraí, André.

ANDRÉ: Não, eu tenho que ir.

FEITOSA: Paraí... Paraí, que é isso, André? André!

FEITOSA: Cagalhããão!

ANDRÉ (VS): Cagalhão eu até posso ser. Mas otário eu não sou. Eu
disse que era perigoso pular, ele pulou porque quis.

LOCUTOR (VS): Um lobo marinho, pesando mais de meia tonelada, foi
a atração da praia do Cassino nesta quinta-feira. Pescadores
acreditam que ele se perdeu numa corrente, ou ficou trancado em
alguma rede.

ANDRÉ: Mãe? Mãe, eu vou viajar.

MÃE: Pra onde?

ANDRÉ: Pra Holanda. Tudo pago. Eu vou ser padrinho de casamento
da Marinês, lá da loja. O noivo dela mandou as passagens, ele é
muito rico.

MÃE: Tu volta quando?

ANDRÉ: Eu volto logo. São só alguns dias. Mas eu vou deixar o
dinheiro do aluguel.

MÃE: Tu tem roupa?

ANDRÉ: Tenho, sim senhora.

MÃE: Na Holanda é muito frio.

ANDRÉ: Eu tenho roupa, mãe.

MÃE: Boa noite, meu filho. Eu vou me deitar. Televisão me dá um
sono.

ANDRÉ: Mãe? Boa noite.

MÃE: Boa noite, André.

CARDOSO: Desculpe, mas é que não tinha vaga pra parar o carro.

MARINÊS: Faz assim, ó: Rááh...

CARDOSO: Que é isso...

MARINÊS: Faaaz!

ANDRÉ: Cardoso, essa é a...

CARDOSO: Raah...

ANDRÉ: Cardoso?

CARDOSO: Hein?

ANDRÉ: Sílvia.

CARDOSO: Ô, prazer, Cardoso, o seu escravo.

SÍLVIA: Oi.

CARDOSO: Cê fuma?

SÍLVIA: Não.

CARDOSO: Não? Nem eu.

SÍLVIA: Parabéns.

ANDRÉ: Bom, nós... Cardoso? Nós temos um plano. Não é muito bom,
mas a gente não conseguiu pensar em nada melhor.

CARDOSO: Por quê que a gente não dá logo o dinheiro pro pai dela?
Não o nosso dinheiro, o dinheiro do assalto.

ANDRÉ: Não, metade eu nem tenho mais.

MARINÊS: E a polícia, gente, já tem o número dessas notas. Se ele
começar a gastar esse dinheiro, vão acabar pegando esse cara.

CARDOSO: Não, mas e daí? Desculpa, eu quis dizer assim, que a
gente não vai mais tá por aqui, ué.

ANDRÉ: Se ele for preso, ele vai me entregar também. Eu não quero
ficar fugindo por aí. A gente podia dar parte do dinheiro do
prêmio pra ele.

SÍLVIA: Não. Nem pensar, André. Ele vai querer mais, ele vai
querer tudo.

MARINÊS: E qual é o plano?

ANDRÉ (VS): A Sílvia escreveu uma carta pro Antunes como se
tivesse no Rio. Pediu pra um amigo mandar a carta de lá, pra ter
o carimbo do correio do Rio, com a data. O Cardoso põe o dinheiro
roubado numa maleta e consegue uma galinha.

CARDOSO: Hum... Pra que essa galinha?

ANDRÉ (VS): Calma. A Marinês segura o Antunes no bar o maior
tempo possível.

ANDRÉ (VS): Enquanto isso, eu e o Cardoso vamos pro apartamento
da Sílvia. Eu preparo a bomba.

MARINÊS: Bomba?! Como assim, vocês vão matar o pai dela?

SÍLVIA: Ele não é meu pai.

MARINÊS: Mesmo assim.

SÍLVIA: Ele é um escroto.

MARINÊS: Mas eu não quero matar ninguém!

ANDRÉ: Marinês, tu só tem que segurar ele no bar.

MARINÊS: Ahhhh, pára, e tu acha que eu dou pra modelo?

MARINÊS: Hã, continua.

CARDOSO: Pra que a galinha?

ANDRÉ (VS): Tu vai ver. A gente se encontra no carro e liga pros
bombeiros.

ANDRÉ: É, um cheiro de gás fortíssimo.

ANDRÉ (VS): Aí a gente se manda pro Rio.

MARINÊS: Dá a chave!

CARDOSO: Hein?

MARINÊS: Eu dirijo.

CARDOSO: Ué, a chave tá com você.

MARINÊS: Não, eu te dei junto com os documentos do carro.

ANTUNES: Alô?

MARINÊS: Oi, querido, tudo bem?

ANTUNES: Q-Quem é que tá falando?

MARINÊS: Ah, já te esqueceu de mim é? A gente acabou de se
conhecer ali na lancheria...

ANTUNES: Ah, claro, claro... tudo bem? Que bom que você ligou,
hein?

MARINÊS: Ahh, me diz uma coisa, tu tá num telefone sem fio?

ANTUNES: Não, não. Eu não tenho telefone sem fio.

MARINÊS: Ahhh, não é porque tá meio chiadinha aqui a ligação, e
tu tá onde então?

ANTUNES: Tou na sala. Na sala da minha casa.

MARINÊS: Ahhh, na sala, que ótimo.

ANTUNES: Ah... é, só-só um minutinho, hein? Só um minutinho...

MARINÊS: O, o quê que houve?

ANTUNES: Não é... é que chegaram umas pessoas aqui em casa.

MARINÊS: Ahhhhh, então tá. Tchau.

ANTUNES: Alô?! A-alô?!!

ANTUNES: O que tá acontecendo, hein?

CARDOSO: Meu casaco.

ANDRÉ: Desculpe, eu não lhe apresentei, esse é o Cardoso esse é o
seu Antunes.

CARDOSO: Tudo bom seu Antunes, prazer Cardoso, um seu escravo. É,
o meu casaco.

ANTUNES: Prazer.

ANTUNES: Quê que vocês querem, hein?

CARDOSO: Meu casaco.

ANTUNES: Hein? Que que vocês querem?

CARDOSO: Não, é que a gente esqueceu o casaco e uma cerveja...

ANDRÉ: E a geladeira ligada!

ANTUNES: A ge-ge-geladeira ligada?

ANDRÉ: É-é que a geladeira tá com um problema.

ANTUNES: Que tipo de problema?

ANDRÉ: No motor! E o Cardoso veio aqui pra poder desligar a
geladeira. Com cuidado.

CARDOSO: O Cardoso?

ANDRÉ: É.

CARDOSO: É, então.

ANDRÉ: Com cuidado.

ANDRÉ: É melhor deixar a geladeira desligada porque ela tá com
problema de vazamento de gás. O senhor não tá sentindo?

ANDRÉ: É isso, então nós viemos aqui pra buscar o casaco, a
cerveja e pra desligar a geladeira.

ANTUNES: Não tou entendendo isso aí não, hein, rapaz.

ANDRÉ: Não, é... eu acho melhor inclusive o senhor chamar uma
assistência técnica porque o problema dela é meio s...

CARDOSO: Vambora, hein? Vamos?

ANDRÉ: Vamos.

ANDRÉ: Até logo, seu Antunes.

ANTUNES: Peraí, rapaz! E quando é que a gente resolve aquele
nosso assunto?

ANDRÉ: Amanhã, sem falta. Vamos, Sílvia?

SÍLVIA: Tu não precisa me esperar.

ANDRÉ: E agora, como é que tu vai explicar a comida dentro da
máquina de lavar?

CARDOSO: E a galinha? Como é que vai explicar a galinha?

SÍLVIA: Eu não vou explicar nada. Eu liguei a geladeira de novo.

SÍLVIA: Vamos embora?

CARDOSO (VS): Além de uma galinha, a polícia encontrou parte do
dinheiro roubado na agência da Presidente Roosevelt. A galinha,
que estava dentro do armário da sala, sobreviveu à explosão.

CARDOSO: Eles falam mais da galinha que do morto! E aí, gostou
aqui?

MARINÊS: Ai, achei bem bonito, só tá meio cheio né, e podia ter
um ar condicionado pra gente, tu não acha?

CARDOSO: Ô Marinês, tu não te contenta com nada, hein? Te dei o
que tinha de melhor nesse mundo pra te fazer feliz, te joguei no
chão, te fiz mulher e tu aí reclamando do quê?

ANDRÉ (VS): Mãe, depositei no banco o dinheiro do aluguel. Semana
que vem a senhora vai receber uma tevê nova, como a senhora
queria, com todos aqueles canais. Na Holanda não é tão frio.
Assim que der eu volto ou então trago a senhora pra cá. Um beijo.

ANDRÉ (VS): Mãe, conheci uma guria. A senhora vai gostar dela. O
nome dela é Sílvia.

SÍLVIA (VS): Meu nome é Sílvia Maria, mas o Maria eu não uso. O
senhor não me conhece mas talvez se lembre da minha mãe. O nome
dela era Thelma, com agá. Ela morava no Edifício Santa Cecília.

SÍLVIA (VS): Minha mãe me disse uma vez que Sílvia vinha de
selva, e que eu era que nem um bicho do mato, vivia me
escondendo. Eu vivia me escondendo mesmo, até conhecer o André.

SÍLVIA (VS): A primeira vez que eu vi o André ele estava me
espiando da janela do quarto dele. Bom, eu achei que ele estava
me espiando mas não tinha certeza.

SÍLVIA (VS): Eu fui até a sala, no escuro, e vi que ele estava na
janela, de binóculo, olhando para o meu quarto.

SÍLVIA (VS): Voltei pro quarto, vesti uma roupa e passei na
frente da janela, bem devagar. Depois corri pra sala para ver se
ele tinha visto. Ele estava me espiando mesmo.

SÍLVIA (VS): No outro dia acordei cedo e fiquei esperando ele
sair do prédio. Achei bonitinho.

SÍLVIA (VS): Segui ele até o trabalho dele. Entrei, mas ele não
me viu. Ele desenha, desenha super bem.

SÍLVIA (VS): Eu sempre quis conhecer o Rio e fiquei pensando que
seria muito bom se eu tivesse alguém para viajar comigo. Viajar
sozinha é chato.

SÍLVIA (VS): Uns dias depois eu achei que ele estava me seguindo
na rua. Eu corri para pegar o ônibus, só para confirmar. Estava
mesmo. Achei que ele ia falar comigo mas não.

SÍLVIA (VS): Ele me seguiu até a loja onde eu trabalho. Ficou
fazendo tempo para entrar. Acabou entrando e inventando um
presente para a mãe.

SÍLVIA: Tu pode me dar dois pré-datados pelo chambre.

SÍLVIA (VS): Achei mais bonitinho ainda.

ANDRÉ: De repente eu volto. Brigado, hein?

SÍLVIA (VS): Ele disse um "Obrigado" assim, automático, sem olhar
para mim.

SÍLVIA: Obrigado a você.

SÍLVIA (VS): Respondi "Obrigado a você", assim olhando para
baixo, para ele não perceber que eu estava interessada. Eu tive
certeza que ele não ia aparecer nunca mais.

ANDRÉ: Me passa o sal? Oi!

SÍLVIA: Oi.

ANDRÉ: Obrigado.

SÍLVIA (VS): Passei a almoçar perto do trabalho dele, para ele
poder me seguir até o restaurante.

ANDRÉ: Tchau.

SÍLVIA: Tchau.

SÍLVIA (VS): Deu certo.

SÍLVIA (VS): O senhor pode achar estranho eu estar lhe contando
tudo isso. A minha mãe falava muito do senhor. Ela casou com o
Antunes, que eu acho que o senhor não conheceu. Desde que ela
morreu eu penso em lhe escrever, mas eu era pequena e sempre me
faltou coragem.

SÍLVIA (VS): Ela morreu quando eu tinha onze anos. Eu fiquei
sozinha com o Antunes naquela casa.

SÍLVIA (VS): Ele sempre me disse que achava que eu não era filha
dele. Eu rezava para ser verdade, eu não queria ser filha dele de
jeito nenhum. Eu levei tempo pra descobrir que eu tinha que
trancar todas as portas. Tempo demais.

SÍLVIA (VS): Minha mãe me contou que uma vez vocês viajaram
juntos pro Rio. Eu tenho uma foto dela no Corcovado, acho que foi
o senhor quem bateu a foto.

SÍLVIA (VS): Tudo o que eu queria era que o André tivesse
dinheiro para me tirar daqui e me levar para o Rio. Troquei de
ônibus, para ver se me encontrava com ele.

ANDRÉ: Tu quer casar comigo e sair daqui?

SÍLVIA (VS): Aí aconteceu uma coisa ótima: o André conseguiu um
emprego, ganhou um bom dinheiro e me pediu em casamento.

SÍLVIA: Claro que sim.

SÍLVIA (VS): O André falou com o Antunes e disse que a gente ia
se casar e se mudar para o Rio.

SÍLVIA (VS): Nós vamos chegar no Rio no domingo e eu pensei se a
gente podia se encontrar. Podia ser ao meio-dia, no alto do
Corcovado, para não dar desencontro.

SÍLVIA (VS): Talvez o senhor ache tudo isso muito estranho e nem
apareça. Mas a minha mãe sempre dizia que o senhor era um
artista. Se ela estava certa, acho que o senhor vai entender a
minha carta.

PAULO: Sílvia.

SÍLVIA: Paulo?

PAULO: Ahã! Ôôooi! Menina, você é a cara da sua mãe!

SÍLVIA: (risadinha) Ela falava muito no senhor.

PAULO: Ah, senhor não, pelo amor de deus. Senhor é ele.

SÍLVIA: Vou te apresentar.

SÍLVIA: Esse aqui é o André...

PAULO: Prazer.

SÍLVIA: Paulo, o amigo da minha mãe que eu te falei...

ANDRÉ: Prazer!

SÍLVIA: Essa aqui é a Marinês...

MARINÊS: Oi, como vai, tudo bem?

PAULO: Oi, Marinês? Tudo bem?

CARDOSO: Prazer, felicidade imensa, satisfação enorme. Tudo bom?
Prazer... é Cardoso.

SÍLVIA (VS): Pê Esse. Têm uns detalhes que eu não posso ou não
quero contar, não importa. Numa carta tudo acontece rápido,
parece que as coisas se encaixam. A vida é mais complicada que um
quebra-cabeças. Mas acho que eu consegui, escrevendo esta carta,
contar quase a verdade. E só isso já me deixa mais tranqüila.
Agora parece mais fácil entender a vida.

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(c) Jorge Furtado, 2002-2003
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
01/12/2002

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