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               O ÚLTIMO DESEJO DO DR. GENARINHO
	               episódio da série
	               CONTOS DE INVERNO 2002
	               argumento e roteiro de
	               Miguel da Costa Franco
	               Versão 27/03/2002
	               coordenação de texto da série
	               Jorge Furtado
	               e Giba Assis Brasil
	               produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
	               para RBS TV
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CENA 1 - INT/DIA - APTO DO DR. GENARINHO: QUARTO
	Quarto espaçoso, mobiliado em excesso, com móveis antigos e
	cortinas.
	Mão de velho abrindo o trinco da janela. Braços escancarando as
	venezianas. Genaro Pinzón, o DR. GENARINHO, homem baixinho e de
	peso proporcionado, 70 anos, com os cabelos remanescentes nas
	laterais, camiseta de física, ceroulas, desce rapidamente a
	guilhotina da janela.
	Volta-se para o interior do quarto e põe-se em frente ao espelho
	do roupeiro, mira-se com aprovação, e num gesto brusco abre
	rapidamente, de par em par, as portas (central e a sua direita)
	do roupeiro.
Vê-se armário muito bem organizado.
	Genarinho apanha cabide com "jeans", hesita, pára a mão no ar e
	devolve o cabide ao seu lugar.
	Terno marinho de riscado pousando sobre a cama. Blusão de
	cachemira grená caindo sobre o terno. Gravata escura também.
	Genarinho apanha camisa social branca, desdobra-a e veste-a.
	Senta-se na cama, pousa as botinas no chão e passa a lustrar uma
	delas, calçando-a com uma das mãos.
	Visão de Genarinho no espelho da cômoda: está elegantemente
	vestido, casaco abotoado, gravata posta. Braço erguendo-se até um
	porta-retratos sobre a cômoda. Fotografia de Antônia ainda jovem
	(30 anos) e bela, morena de rosto luminoso, cabelos cacheados e
	volumosos.
	Genarinho toca de leve o rosto na foto. Mãos pousam nos puxadores
	da primeira gaveta e a puxam com vagar. Vão aparecendo um vidro
	de cola e duas perucas, colocadas sobre suportes de veludo
	vermelho. Adiante elas, mais ao fundo da gaveta, recortes de
	jornal com os números 1 e 2, colados com durex.
	Genarinho corre o dedo sobre a folhinha de calendário que ladeia
	o espelho da cômoda e pousa-o no dia 16 de junho. Peruca da
	direita (n§ 2) sendo retirada rapidamente da gaveta.
	Genarinho, envergando a peruca, dirige-se ao cabide junto à
	janela e pega chapéu.
CENA 2 - INT/DIA - CORREDOR DO EDIFÍCIO
	FAXINEIRA, 35 anos, cabelo preso, meias frouxas e vestido de
	tecido floreadinho, equilibra-se sobre escada, com artefatos de
	faxina. Limpa o globo que protege a lâmpada junto ao teto do
	corredor. Há um balde ocupando a lateral da escada de metal, no
	chão.
Genarinho, com o chapéu na mão, aproxima-se sem pressa.
	Faxineira movendo-se ao ritmo do esfregão, meias frouxas
	escorregando canela abaixo.
	Genarinho passa com dificuldade, pelo lado direito da escada de
	metal, curvando-se para desviar do cabo de rodo atravessado no
	caminho, evitando roçar-se na serviçal e pulando sobre o balde
	cheio de água suja.
	Peruca engancha-se na ponta do rodo, sobre a escada, depois cai
	em direção ao balde e mergulha lentamente na água suja.
	Genarinho enterra o chapéu na cabeça descoberta enquanto retoma a
	posição vertical.
	               GENARINHO
	               (quase um murmúrio) Bom dia!
	Genarinho caminha em direção à porta da rua. Abre a porta e sai
	do prédio.
CENA 3 - EXT/DIA - CALÇADA DA RUA JUNTO AO EDIFÍCIO
	Genarinho pára numa banca de jornais, escolhe uma revista de
	palavras cruzadas, olha o preço na capa e enfia-a no bolso do
	paletó. Saca a carteira, abre-, tira uma nota de dez reais e
	estende-a para o homem da banca, que a pega com dificuldade em
	razão da distância. Genarinho tira o chapéu da cabeça e estende-o
	em direção ao jornaleiro para facilitar a devolução do troco.
	Seus olhos arregalam-se um pouco, olha para cima e percebe flocos
	de neve caindo. Deixa cair a carteira no chão. Deixa cair o
	chapéu - agora com cinco reais dentro - que fica oscilando sobre
	as revistas da banca.
	Genarinho, bem curvado para esquerda, aperta o peito com a mão
	direita e protege da neve a careca com a mão esquerda, o rosto
	mostrando muita dor, a boca meio torta. Genarinho cai. Passantes
	correm para ajudar.
	A mulher da loja em frente (Sara, de A Preferida - ver descrição
	de Sara em "A fome e a vontade de comer") sai da loja correndo
	para ajudar.
	Rosto de Genarinho sofrendo, ao lado da carteira aberta. Vê-se
	umas poucas notas de dinheiro, uma foto de mulher (30 anos,
	cabelos curtos, óculos escuros, roupa multicolorida) numa estação
	de esqui, um cartão de visitas de um escritório de contabilidade.
	Pessoas agrupam-se sobre Genarinho.
A neve cai mansamente sobre o grupo afobado.
CENA 4 - INT/DIA - LOJA "A PREFERIDA"
	Mulher da loja em frente (Sara em "A fome e a vontade de comer"),
	bastante nervosa ao telefone, atrás do balcão do caixa, vê
	ambulância saindo através da vitrine da loja, em meio à neve que
	cai. Segura nas mãos trêmulas um cartão de visitas.
	Sara aguarda de cabeça baixa, rosto sério. Ergue-a num repente,
	agora mais vivaz.
	               SARA
	               (sotaque) Quem está falando?
INTERCALADA COM
CENA 5 - INT/DIA - ESCRITÓRIO DE VASCO
	VASCO, 40 anos, corpo mirrado e esguio, cabeleira basta e escura,
	meio despenteada, barba rala e mal feita, vestindo um poncho de
	lã, sentado numa escrivaninha cheia de papéis, ao telefone, em
	frente a um quadro onde se lê "Conte com o contador".
	               VASCO
	               Vasco... Vasco Teixeira...
	(4) Sara caminhando em direção à porta da rua, faz sinal de
	positivo para o jornaleiro postado lá na calçada.
	               SARA
	               O senhor conhece o Doutor Genarinho?
(5) Vasco ergue-se da cadeira em que estava sentado:
	               VASCO
	               Sim, ... é o meu padrinho!
	Ouve Sara em silêncio, põe a mão no queixo, sobe dois dedos sobre
	a boca.
	               VASCO
	               Baaah!
	Contorna a escrivaninha segurando o aparelho e levantando-o para
	não espalhar a papelada que está sobre a mesa:
	               VASCO
	               Que coisa! Prá que hospital mandaram ele?
CENA 6 - INT/DIA - HOSPITAL: UTI, BALCÃO DA ENFERMAGEM
	Vasco (agora barbeado e bem penteado, vestindo um blusão de lã
	uma jaqueta de couro) aproxima-se sestroso do balcão da
	enfermagem. À aproximação de Vasco, a ATENDENTE da UTI, 30 anos,
	peitos grandes, rosto agradável, pára de escrever e levanta os
	olhos para ele, lentamente.
	               VASCO
	               (ansioso) Posso ver Genaro Pinzón?
	               ATENDENTE
	               O senhor é parente dele?
	Vasco reluta um pouco, desvia os olhos, mas torna a olhar para a
	atendente. Olhos negros de Vasco. Olhos azuis e provocantes da
	atendente. Ouve-se a voz resoluta de Vasco:
	               VASCO
	               Sou filho.
	A atendente mostra com o queixo a porta do quarto em frente,
	enquanto a aponta também com a caneta.
	               VASCO
	               Como ele está?
A atendente arqueia as sobrancelhas, desesperançada:
	               ATENDENTE
	               Parece que está vivo apenas para nos chamar de
	               perua o tempo todo.
	Vasco dá-lhe as costas, contrariado com o tom desrespeitoso da
	atendente, e dirige-se para o quarto. Abre a portado quarto com
	cuidado. Ouve-se leve ranger da porta.
CENA 7 - INT/DIA - QUARTO DE HOSPITAL
	Quarto com dois leitos, um vago com lençóis desarrumados, outro
	onde está um velho desacordado, com o torso semi-nu, entubado,
	ligado a diversos aparelhos, o rosto deformado pela isquemia, a
	calva manchada de sinais de velhice.
	Vasco dá uma espiada no velho e vai saindo do quarto quando se
	detém. Pega no bolso uma fotinho envelhecida, com um rosto jovem
	e masculino.
	Vasco aproxima-se do velho, relutante e apreensivo, conferindo
	com os olhos, de soslaio, a foto.
	               VASCO
	               (sussurrando) Padrinho,... padrinho...
	Vasco toma na sua a mão envelhecida e alisa-a ternamente, depois
	de relutar um instante.
	               VASCO
	  (em tom bem mais forte que antes) Pai...
	O velho se remexe, abre com dificuldade um olho, sorri, e deixa
	verter uma lágrima. Vasco está muito feliz. O olhar do velho se
	desvia para um crucifixo na parede. Sua boca torta mexe-se com
	dificuldade, como se tentasse orar. Olha para Vasco em súplica.
	               GENARINHO
	               Peru...a,... peru...a,...
Vasco olha-o com curiosidade.
	               GENARINHO
	               Peru...a,... peru...a,...
Genarinho fecha o olho, demonstra cansaço e adormece.
CENA 8 - INT/DIA - CORREDOR DA UTI
	Vasco sai do quarto, balançando a cabeça e esboçando um sorriso
	de reprovação. Passa sorridente e animado pela atendente.
	               VASCO
	               Meu pai também me chamou de perua!
	Atendente fica olhando Vasco afastar-se, espantada com sua
	animação.
CENA 9 - INT/DIA - APTO DO DR. GENARINHO: SALA
	Vasco, vestido com a jaqueta de couro, entra na sala sorrateiro,
	olha para os lados, passa o dedo sobre a cristaleira, limpa-o na
	roupa. Olha na parede uma placa de prata emoldurada "Ao Dr.
	Genaro Pinzón, o reconhecimento e a admiração de seus colegas dos
	Correios e Telégrafos". Circula pela sala e caminha em direção à
	porta da cozinha.
CENA 10 - INT/DIA - APTO DO DR. GENARINHO: COZINHA
	A cozinha branca contrasta com o restante da mobília escura e
	esmaecida da casa. Sobre a pia, uma cuia de mate sobre um
	descanso de couro cru, com erva usada. No fogão, uma chaleira.
	Vasco pára na porta da cozinha. Passa os olhos pela peça. Fixa os
	olhos na cuia. Vê as iniciais GP na bomba do mate. Toma-a nas
	mãos e escava a erva da cuia com a bomba, despejando-a no cesto
	de lixo.
	Abre a torneira, lava a cuia e a bomba e as deposita no secador
	de louça. Fecha a torneira, que permanece pinga-pingando como
	antes, sobre o fundo brilhante da cuba de inox.
	Pingo dágua tremelicando no cano da torneira vai ganhando o
	quadro, dominando-o.
CENA 11 - INT/DIA - APTO DO DR. GENARINHO: QUARTO
	Pingo de água aparece lentamente, tremelicando na ponta de um
	borrifador de nariz. Vasco, sentado sobre a cama, ergue o braço e
	deposita em seu nariz, num esguicho, o conteúdo do borrifador.
	Mergulha o artefato num vidro de remédio, recarrega-o e borrifa o
	conteúdo na outra narina. Dá uma tossida breve e funga, enquanto
	guarda o remédio na sua caixa e deposita-a na gaveta da mesinha
	de cabeceira.
	Visão de envelopes de remédios, contas de luz e água, um baralho
	de truco. Fecha a gavetinha e levanta-se rapidamente, dirigindo-
	se à porta do roupeiro.
	Posta-se em frente ao espelho do roupeiro. Avalia sem muito ânimo
	sua figura esguia. Abre a porta do armário, puxa os gavetões,
	onde estão meias, lenços, cuecas. Fecha-os.
	Procura algo pela peça, e encaminha-se para a cômoda. Abre a
	primeira gaveta da cômoda e encontra a peruca remanescente, o
	suporte vermelho vazio, a cola. Levanta os olhos para o espelho
	da cômoda, esboça um sorriso e balbucia, imitando a boca torta do
	velho no hospital:
	               VASCO
	               Peru...a,...peru...a
Volta a boca ao normal e, em meio-sorriso, repete:
	               VASCO
	               Peruca,... peruca...
	Fecha primeira gaveta, sorridente, e abre a segunda. Caixinhas
	diversas, com material de costura, uma efígie do Grêmio Futebol
	Portoalegrense, documentos pessoais de Genaro e Antonia Pinzón,
	um "álbum do bebê".
	Retira cuidadosamente o álbum. Abre-o na primeira página, onde
	está uma grande foto de um bebê rechonchudo, de brincos, vestindo
	apenas fraldas. Ao pé da pagina, "Maria Lúcia" está escrito a
	nanquim em letras rebuscadas.
	Folheia rapidamente as outras páginas cheias de anotações. Na
	última encontra dois envelopes pequenos.
	Toma aquele em que está escrito "Maria Lúcia", abre-o e encontra
	uma mecha fininha de cabelo aloirado. Guarda-a. Toma o outro
	envelope, este sem qualquer nome na frente, e encontra nele uma
	mecha de cabelo escuro como o seu. Olha-o profundamente, cheira-
	o, testa sua textura com os dedos, enfia a mecha no envelope
	outra vez e guarda-o no próprio bolso.
	Repõe o álbum de Maria Lúcia na gaveta e fecha-a. Dirige-se
	rapidamente para a sala.
CENA 12 - APTO DO DR. GENARINHO: SALA
	Vasco caminha até a mesinha de canto onde está o telefone.
	Pousa os olhos sobre o retrato da família: Genarinho, Antônia e
	Maria Lúcia abraçados.
	Abre a gaveta e encontra uma agenda de endereços. Procura a letra
	M, abre a página e busca com o dedo o número de Maria Lúcia.
	Disca um número longo. Voz do outro lado atende em francês.
	               VOZ
	               ???
	Vasco desliga o aparelho instintivamente. Respira fundo. Fica
	parado com a mão sobre o aparelho. Fecha os olhos e respira fundo
	outra vez. O aparelho soa estridentemente. No terceiro toque,
	Vasco encoraja-se e encosta o telefone no próprio ouvido sem
	dizer nada.
INTERCALADA COM
CENA 13 - INT/DIA - ESCRITÓRIO DE MARIA LÚCIA
	O escritório é um cubículo de uns poucos metros quadrados, igual
	a inúmeros outros que se seguem um após o outro, todos equipados
	da mesma maneira, como se fosse a redação de um jornal. MARIA
	LÚCIA é uma mulher comum, de cabelos claros, 35 anos, bem
	produzida.
Maria Lúcia fala animada ao telefone, enquanto opera computador.
	               MARIA LÚCIA
	               Papai? És tu, paizinho?
	               VASCO
	               Alô!
	Maria Lúcia toma um lápis na mão que está livre, recosta-se na
	cadeira:
	               MARIA LÚCIA
	               Papai, ligaste prá mim?
Vasco pega o retrato da família nas mãos e fixa-se nele.
	               VASCO
	               Maria Lúcia?
	               MARIA LÚCIA
	               (intrigada) Sim, quem está falando?
Vasco levanta a cabeça e cerra os olhos:
	               VASCO
	               Vasco, lá de Caçapava, lembra de mim? ...O
	               afilhado do teu pai?
	Maria Lúcia abandona a posição relaxada em que se encontrava,
	quebra a ponta do lápis com o dedo:
	               MARIA LÚCIA
	               Vasco,... Vasco,... o filho da Clotilde?
	Vasco abre os olhos, baixa a cabeça lentamente e devolve o porta-
	retrato ao seu lugar.
	               VASCO
	               Ele, mesmo.
	               MARIA LÚCIA
	               Lembro, claro. Tu estás com o papai? Apareceu o
	               número dele... (ansiosa) Houve alguma coisa com o
	               papai? Ele está aí?
	               VASCO
	               Sinto ter de dizer isso, mas acho que devias vir,
	               se puderes. Ele teve um ataque.
	Maria Lúcia custa a responder, solta-se novamente sobre a
	cadeira, brotam-lhe lágrimas dos olhos.
	               MARIA LÚCIA
	               Ele está morrendo, Vasco?
Vasco mostra-se um pouco mais animado.
	               VASCO
	               Vou ver ele amanhã. Tenho que atender um pedido
	               dele.
CENA 14 - INT/DIA - APTO DO DR. GENARINHO: QUARTO
	Vasco no quarto do Dr. Genarinho se acordando, totalmente
	vestido. Senta-se na cama, levanta-se, caminha até o banheiro e
	some porta adentro.
CENA 15 - APTO DO DR. GENARINHO: BANHEIRO
	Vasco no banheiro lavando o rosto. Esfrega-o bem. Tira um pente
	do bolso detrás da calça e penteia-se. Lava o pente e as mãos,
	enxuga-as, aperta a toalha contra o pente para secá-lo e guarda-o
	no bolso traseiro da calça.
CENA 16 - APTO DO DR. GENARINHO: QUARTO
	Vasco dirige-se à cômoda, abre a primeira gaveta com decisão.
	Pega cuidadosamente a peruca em suas mãos, analisa-a, girando de
	um lado e de outro, olha-a por baixo e por fim coloca-a sobre a
	própria cabeça. Olha-se sério no espelho da cômoda. Depois ri e
	retira-a da cabeça. Sai do quarto.
CENA 17 - APTO DO DR. GENARINHO: COZINHA
	Vasco anda até a porta da cozinha. Olha para a cuia de mate,
	reluta e pára.
	Entra na cozinha e desocupa a mão, colocando a peruca sobre a
	própria cabeça. Pega a chaleira que está sobre o fogão, leva-a
	até a pia e abre a torneira sobre a chaleira. Aperta o botão do
	automático para acender o fogo.
	Começa a procurar alguma coisa nos armarinhos mais altos na
	parede. Abre uma porta, inclina-se procurando algo, fecha a
	porta. Abre outra porta, inclina-se outra vez. No armário, um
	pacote de erva que a mão esticada de Vasco alcança.
	Vasco, sem a peruca, pega um pacote de erva e deposita-o sobre a
	pia. Abre o pacote de erva, deposita-a na cuia até preencher-lhe
	a metade. Pára, farejando algo. Olha para o fogão onde a peruca
	em chamas consome-se rapidamente.
	Vasco fecha o gás, pega a chaleira e despeja água sobre a peruca.
	Abre uma gaveta, apanha um pegador de massa e pega a peruca,
	transformada num carvão cabeludo.
CENA 18 - INT/DIA - QUARTO DO HOSPITAL
	Vasco no quarto de hospital junto ao velho, andando lentamente de
	um lado a outro. Ao longe, um coral canta músicas sacras. O velho
	está desacordado, a cabeça pendida para o lado.
	Vasco dirige-se para a porta, pega a jaqueta de couro que pende
	de um cabide atrás dela, depois abre a porta, ouve-se mais nítido
	o som do coral, e sai.
CENA 19 - INT/DIA - CORREDOR DO HOSPITAL
	Vasco sentado no corredor do hospital, com a jaqueta ao seu lado
	no banco, olha o relógio da enfermagem avançando rapidamente de
	dez horas até às doze e trinta.
	Às treze horas, a atendente olha de soslaio para Vasco, que está
	comendo um sanduíche. Vasco percebe o olhar da moça em meio a uma
	mordida voraz no sanduíche. Ela sorri para ele. Ele encabula,
	mastiga com moderação, limpa os lábios com um guardanapo que
	estava no banco ao seu lado. A atendente olha-o com simpatia.
	Vasco desvia os olhos, tímidamente, para uma janela do corredor
	que mostra a plena luz do dia.
CENA 20 - INT/FIM DE TARDE - CORREDOR DO HOSPITAL
	A janela do fundo do corredor escurece-se lentamente. Vasco está
	sentado no mesmo banco e vê a atendente debruçar-se sobre o
	balcão, virando a cabeça de um lado e de outro, expondo-lhe os
	seios generosos.
	Vasco dirige o olhar para a peitarra. Ela o olha firmemente, abre
	ligeiramente os lábios brilhantes, enquanto recua lentamente à
	posição original, em pé atrás do balcão, com olhos marotos.
	Vasco se levanta e encaminha-se devagar para o balcão. Ela sorri
	cativante. Vasco, sem jeito, passa a mão nos cabelos
	despenteados. Olha-a amistosamente. Debruça-se sobre o balcão,
	aproximando-se do rosto da enfermeira, tosse ligeiramente.
	               VASCO
	               Sabes onde posso comprar uma peruca?
	A enfermeira fez que "não" com a cabeça, visivelmente desiludida.
	Volta as costas para Vasco, procurando alguma coisa, e vai saindo
	para a peça ao lado.
De costas para Vasco, aponta para trás de si com a mão.
	               ATENDENTE
	               Tenta o Instituto aí adiante!
Sai, fechando uma porta de vidro atrás de si.
CENA 21 - EXT/FIM DE TARDE - FRENTE DO HOSPITAL
	Porta de vidro do hospital se abre. Vasco, de jaqueta de couro,
	sai caminhando pela rua. Automóveis passam lentamente. Há um
	engarrafamento em frente ao hospital. Vasco caminha em velocidade
	maior que a dos carros.
CENA 22 - EXT/FIM DA TARDE - FRENTE DO INSTITUTO DE BELEZA
	Vasco chega em frente a um instituto de beleza. Através da
	vitrine, onde se lê "Salão de Beleza Lídia", vê-se duas mulheres
	(Carmem e Jurema - ver descrição em "O Bochecha") conversando,
	outras duas embaixo de secadores de cabelos. Uma mulher loira
	perambula de um lado a outro.
	Vasco dirige-se para a porta e abre-a cuidadosamente. Diversos
	conjuntos de "sete sinos da felicidade" balançam acintosamente.
	Vasco vacila, fica com meio corpo dentro, meio corpo fora da
	peça. Olha para todas as mulheres sequencialmente. Todas lhe
	retribuem um olhar curioso. Vasco fixa-se em Jurema que está de
	pé, ligando o secador de cabelo.
	               VASCO
	               (alto) Bom dia...
	               JUREMA
	               (alto) Sim?
	               VASCO
	               (alto) Sabe onde eu posso comprar uma peruca
	               masculina?
	               JUREMA
	               (alto) Não, mas tem uma garagem aqui na frente.
	Vasco fica alguns segundos parado, sorri e sai. Os sinos da
	felicidade ficam bimbalhando forte.
CENA 23 - EXT/FIM DE TARDE - RUAS
	Vasco caminhando pela avenida, em meio ao engarrafamento. Os
	carros agora têm as sinaleiras acesas. Motorista de um carrão
	tira tatu do nariz, enquanto espera o sinal abrir. Motorista de
	um carro velho também.
CENA 24 - EXT/NOITE - RUAS
	Travesti JOANA, 30 anos, alta, peruca loira, peitos grandes e
	siliconados, vestindo casaco longo e lingerie vermelha, olha
	sedutora para Vasco e entreabre o casaco, oferecendo-lhe o corpo.
	Meneia a cabeça, agitando a cabeleira loira sobre Vasco. Vasco
	encolhe-se um pouco, olha-a de lado.
	               JOANA
	               Me leva daqui contigo, meu índio!
Vasco segue caminhando.
	               VASCO
	               (envergonhado) Não, obrigado.
Joana segue-o sem pressa.
	               JOANA
	                 Sou Joana, ativa e passiva.
	Vasco volta-se, mas segue andando devagar. Está com um sorriso
	maroto nos olhos.
	               JOANA
	               (irritada) Tá rindo de quê, sua bicha?
	Vasco pára, dirige-se lentamente para Joana, olhando meio
	embevecido para ela. Passa uma senhora com ar de reprovação,
	enojada.
	               VASCO
	               (com educação) De duas coisas, Dona Joana. A
	               primeira é que sou contador, de modo que para mim
	               ou é ativo ou é passivo, as duas coisas não dá, e
	               a outra...
Joana desdenha de Vasco. Faz cara de incrédula.
	               JOANA
	               (agitada, gesticulando muito) Ih..a vida não tem
	               nada a ver com contabilidade, neguinho. Eu sou
	               completa, luz e sombra, lagarta e borboleta,
	               homem-mulher, ativo-passivo.
	Põe o indicador nos lábios entreabertos, ergue os seios e aponta-
	os para Vasco.
	               JOANA
	               Quer conhecer a minha escrita?
	Vasco desvia-se do olhar provocante do travesti. Passa a mão no
	cabelo, encabulado.
	               VASCO
	               A outra coisa é que me importa mais... Podias me
	               dizer onde comprar uma peruca?
	Joana dá um passo para trás, põe as mãos em volta da boca, a
	bolsa balançando no braço. Faz cara de surpresa.
	               JOANA
	               Olha o contador aí, gente! Querendo uma peruquinha
	               que nem a minha, hem?
	Olha para Vasco avaliativa. Caminha em torno dele. Vasco tenta
	seguir seus movimentos, meio sem jeito.
	               JOANA
	               Hum,... acho que loira não vai ficar bem para ti,
	               minha bonequinha, sugiro morena. Não, ... melhor
	               ruiva, vai ficar melhor com a tua pele de índio...
	Vasco segura com decisão o braço de Joana, mas sem machucá-la.
	Olha-a com firmeza nos olhos. Seus olhos brilham emocionados.
	               VASCO
	               É sério, Joana, onde compraste a peruca?
	O travesti fica sério. Solta-se de Vasco, apóia a bolsa sobre a
	coxa desnuda e começa a remexer dentro dela. Vê-se de relance
	várias camisinhas, batons, artefatos de pintura, chicletes,
	chaves. Olha-o sentida, faz beicinho.
	               JOANA
	               (amuada) Achei que íamos brincar, docinho,... me
	               enfeito toda,... boto peito,... boto bunda,... e
	               tu só queres a minha peruca... Pode? Toma, pega
	               logo.
	Estende para ele um cartãozinho de apresentação amarrotado. Vasco
	apanha-o com reverência e olha enternecido para Joana. Joana
	recupera o aprumo. Ergue novamente o busto, joga-lhe um beijo com
	a mão direita e vai lhe dando as costas, sedutora. Segue olhando-
	o sempre nos olhos, rebolando provocativa.
	               JOANA
	               Mas hoje já é tarde, de noite ela não atende.
Vasco leva o cartão até a luz, à altura dos olhos e lê:
AMÁLIA PERUQUEIRA
CENA 25 - EXT/DIA - FRENTE DA CASA DA PERUQUEIRA
	A casa da peruqueira é de madeira, com jardim mal-cuidado e
	portãozinho de ferro. Há uma placa na parede onde sê "Amália
	Peruqueira". Vasco empurra o portãozinho que range
	cavernosamente.
	Ouvem-se passos firmes no interior da casa. Vasco aguarda a meio
	caminho da porta.
	Ela se abre apenas o suficiente para ver-se parcialmente o rosto
	de AMÁLIA, 50 anos, alta, cabelos claros, rosto agringalhado com
	olheiras sob os olhos profundos, vestindo calça comprida e blusão
	leve. Vasco cumprimenta-a com meneios de cabeça. Aproxima-se,
	respeitoso.
	               VASCO
	               É aqui que se compram perucas?
	Amália abre a porta e estende-lhe a mão, deixando de lado o corpo
	para que passe. Vasco sobe os degraus da escadinha e entra na
	casa.
CENA 26 - INT/DIA - CASA DE AMÁLIA: SALA
	A sala da casa de Amália é escura e modesta, tem duas
	poltroninhas de curvim, com mesinha no meio, um espelho na parede
	do fundo, televisão velha sobre um armarinho de gavetas em frente
	às poltronas. Uma cortina floreada separa a sala do corredor.
	Vasco espera Amália fechar a porta, ela corre uma tranquinha sob
	o trinco, e volta-se para ele, sacudindo na mão o molho de
	chaves. Vasco olha-a timidamente. Aponta para a própria cabeça.
	               VASCO
	               Eu queria uma peruca de homem, dona. Só para a
	               tampa da cabeça. Pode ser da cor do meu cabelo.
	Amália encaminha-se preguiçosamente para os fundos da casa,
	atravessando a cortina floreada do corredor, que fica flutuando
	sob o vento encanado.
	Vasco corre os olhos pela peça. Detêm-se num São Jorge, montado
	sobre um dragão, que está pousado sobre a televisão. Amália
	atravessa a cortina outra vez, traz nas mãos uma peruca loira e
	outra ruiva, ambas femininas e compridas. Oferece-as à Vasco,
	pousando nele uns olhos compreensivos e profundos. Vasco
	enrubesce e fica estático.
	               VASCO
	               A senhora não entendeu...
	Amália deixa as perucas sobre uma das poltronas de curvim amarelo
	e desaparece por trás do cortinado outra vez. Vasco segue atrás
	dela mas não atravessa a cortina. Fica espiando-a pela fresta.
	Volta-se para o interior da sala, anda prá lá e prá cá, nervoso e
	encabulado. Vira-se para a cortininha floreada.
	               VASCO
	               (gritando) Dona...
	Fica imóvel por um instante. Olha para as perucas sobre a
	cadeira. Ri sozinho e balança a cabeça em desaprovação. Pega a
	peruca ruiva e olha-a com atenção. Vira-a e revira-a. Veste-a e
	volta-se para o espelho. Ajeita-a sobre a cabeça. Sorri. Manda
	beijinhos para sua imagem refletida. Curva a cabeça para o lado e
	faz uma careta de surpreendida aprovação.
	               VASCO
	               (gritando) Dona, por favor... É só um aplique de
	               homem...
	A cortina abre-se repentinamente. Vasco joga a peruca ruiva sobre
	a poltrona. A peruca embola-se junto ao encosto da poltrona.
	Amália olha-o com seu olhar inexpressivo. Traz na mão uma caixa,
	como as de faqueiro. Vasco caminha pela sala nervosamente.
	               VASCO
	               (terrivelmente envergonhado) Acredite, dona, não é
	               prá mim. É para o meu pai que está morrendo...
	Amália estende-lhe a caixa entreaberta, onde estão diversos
	exemplares de peruca masculina. Vasco elege uma rapidamente.
	Amália deposita a caixa sobre a poltrona livre, toma a peruca
	escolhida por Vasco, mostra-a a ele perguntando-lhe com os olhos
	se era aquela mesmo a escolhida. Vasco abre sua carteira e
	estende-lhe uma nota de R$ 50,00. Amália move o dedo polegar
	sobre o indicador da mão esquerda. Vasco pega outra nota de R$
	50,00 e entrega para Amália.
	Amália guarda os R$ 100,00 na cintura da calça. Abre uma gaveta
	do armário sob a tevê, pega uma folha de papel pardo de embrulho
	e envolve a peruca com ele.
	Ouve-se o rangido do portãozinho de ferro. Vasco pega o pacote
	com devoção. Amália corre o ferrolho da porta e abre para a
	passagem de Vasco.
	Aparece a figura do rabino de "A fome e a vontade de comer" no
	quadro da porta, a mão no alto pronta para bater. Vasco sai
	apressado, sem se despedir. O rabino fica olhando para ele,
	assustado. Amália, no vão da porta, acompanha Vasco afastar-se
	com tristeza e comiseração, balançando levemente a cabeça para os
	lados.
CENA 27 - EXT/DIA - RUAS
	Vasco vai feliz pela rua, embrulho com a peruca na mão direita,
	anda rápido, quase correndo, volta-se e gesticula para um ônibus
	que está chegando. O ônibus pára e Vasco sobe nele.
CENA 28 - INT/DIA - QUARTO DO HOSPITAL
	Porta do quarto do hospital se abre e a atendente vem saindo
	cabisbaixa. Olha para Vasco e abraça-o, compungida. Vasco deixa
	cair, desanimado, o braço que carregava a meia altura a peruca
	desejada. Desvencilha-se da atendente e entra no quarto.
	O segundo leito está escondido pelo cortinado fechado mas
	percebe-se que está ocupado por outro paciente.
	Corre a cortina do leito do Dr. Genarinho e encontra-o morto
	sobre a cama, o rosto lívido e grave do velho posicionado para a
	frente, a boca torta, o olho cambaio, vistas cerradas. Os tubos e
	cabos já retirados, os aparelhos desligados. Os braços estão
	soltos ao lado do corpo, sobre os lençóis.
	Vasco pega-lhe a mão emurchecida e arroxeada, afaga-a
	cuidadosamente.
	               VASCO
	               (choramingando) Cheguei tarde, pai. Me perdoa.
	Lágrimas escorrem mansamente do rosto de Vasco. Seu olhar desvia-
	se do Dr. Genarinho e pousa sobre a mesinha ao lado da cama, onde
	se vê um rolo de esparadrapo.
	Vasco solta o embrulho pardo sobre a cama e caminha decidido para
	o rolo de esparadrapo. Pega-o. Seu rosto aparenta tranquilidade.
	Espicha a fita, corta um pedaço com os dentes e cola-o na borda
	da mesinha de cabeceira.
	Corta um segundo pedaço também com os dentes e devolve o rolo de
	esparadrapo para a mesa de apoio. Faz um anel com a fita que
	ficara em sua mão e cola-o com cuidado no meio da careca manchada
	de marcas de velhice de Genarinho.
	Pega a fita colada à beira da mesinha e repete o anel, colando-o
	também sobre a calva do padrinho. Volta-se para o embrulho,
	desmancha-o rapidamente, pega a peruca, escolhe o lado certo e
	cola-a com cuidado sobre a careca do velho.
	Ouve o ruído de uma voz esganiçada no corredor, ouve o barulho da
	porta se abrindo. Surge Maria Lúcia junto ao cortinado do leito,
	chorando, ar desesperado no rosto, a mão no queixo, trajando um
	vistoso casacão vermelho. Entra e ajoelha-se junto ao leito.
	O rosto do velho aparece sorridente. Enverga uma peruca idêntica
	à cabeleira de Vasco. Vasco também está feliz, mas tem os olhos
	arregalados.
FIM
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	(c) Miguel da Costa Franco, 2002
	Casa de Cinema de Porto Alegre
	http://www.casacinepoa.com.br
10/08/2002
| Anexo | Tamanho | 
|---|---|
| genarinh.txt | 30.5 KB |