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RUMMIKUB
roteiro de Jorge Furtado
versão de 26/03/2007
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
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CENA 1 - CASAS NA PRAIA - EXT/DIA
Dia de sol. Casas geminadas, sob as árvores, a praia ao fundo. A
casa da direita tem as janelas abertas, uma rede na varanda, uma
toalha estendida no jardim, um carro estacionado ao lado. A casa
da esquerda está fechada.
Chega um carro, cheio de malas, buzinando, pára na frente da casa
da esquerda. A porta da casa da direita se abre e dela saem o PAI
GAÚCHO, 40 e poucos anos, bermudas e camiseta, descalço, a MULHER
DO PAI GAÚCHO, 25, magra, bonita.
PAI GAÚCHO
E-rrê!
Do carro desce a MÃE PAULISTA, 40 e poucos anos, óculos escuros
na cabeça, luvas de motorista.
MÃE PAULISTA
Olá!!!
O Pai Gaúcho e a Mãe Paulista se abraçam, se beijam.
MÃE PAULISTA
Que saudade!
PAI GAÚCHO
Nossa! Quanto tempo?
MÃE PAULISTA
Ao vivo assim... oito anos!
PAI GAÚCHO
Tudo isso... Que horror...
O Pai Gaúcho apresenta a Mulher.
PAI GAÚCHO
Essa é a Tereza.
MÃE PAULISTA
Santa Tereza, para te agüentar...
FILHA PAULISTA, 20 e poucos, emerge entre as bagagens que
abarrotam o carro.
PAI GAÚCHO
Mas o que é isso? Quem é essa mulher?
FILHA PAULISTA
Oi.
PAI GAÚCHO
Olha isso! A última vez que eu te vi tu não tinha
os dois dentes da frente!
MÃE PAULISTA
Que exagero! Ela tinha 11 anos.
PAI GAÚCHO
E quando é que troca os dentes?
MÃE PAULISTA
Com 4, 5... E o guri?
PAI GAÚCHO
Dormindo... Ele chegou faz pouco. E essas luvas?
MÃE PAULISTA
Ayrton Senna!
A Filha Paulista olha para a janela do segundo andar da casa dos
gaúchos, uma fresta de persiana aberta.
CENA 2 - QUARTO DO FILHO GAÚCHO - INT/DIA
Da janela do quarto, o Filho Gaúcho vê a Filha Paulista pegar
suas malas no carro.
PAI GAÚCHO
Tu tá mais para Fittipaldi.
MÃE PAULISTA
Se eu sou o Fittipaldi tu é quem? O Fangio?
PAI GAÚCHO
Eu sou só um ano mais velho que tu.
MÃE PAULISTA
Um ano e 10 meses, quase dois.
CENA 3 - PRAIA - EXT/DIA
Todos - menos o Filho Gaúcho - na praia, dia de sol. Eles jogam
taco, Paulistas contra Gaúchos. Os Gaúchos perdem, o Pai Gaúcho
põe a culpa na Mulher.
PAI GAÚCHO
(para a Mulher) Essa bola era tua!
MULHER DO PAI GAÚCHO
Minha? Do jeito que você jogou?
O Filho Gaúcho aparece, dá uma olhada, desaparece.
CENA 4 - VARANDA DA CASA - EXT/NOITE
O Pai Gaúcho faz churrasco, as mulheres observam.
MÃE PAULISTA
Acho melhor subir um pouco a picanha.
MULHER DO PAI GAÚCHO
Também acho.
MÃE PAULISTA
O problema é que cortou um pouco fininha... Pode
secar. E aí fica dura.
MULHER DO PAI GAÚCHO
Picanha dura é horrível.
PAI GAÚCHO
Vem cá, a salada de vocês já está pronta? Ou vocês
vão botar um pé de alface na mesa e chamar de
salada? Eu aqui, fazendo tudo...
MÃE PAULISTA
Tudo? E quem espetou os coraçõezinhos? Hein?
Sessenta corações sangrentos de sessenta galinhas
mortas... Quem?
O Filho Gaúcho aparece.
PAI GAÚCHO
Olha que honra! Foi sentir o cheiro da picanha...
MÃE PAULISTA
Meu Deus... Menino!! Como você está lindo... Você
é a cara da sua mãe! Isso é que eu chamo de sorte!
Os filhos se cumprimentam.
FILHA PAULISTA
Oi.
FILHO GAÚCHO
Oi. Tudo bom?
FILHA PAULISTA
Tudo.
MÃE PAULISTA
Dá tempo de uma partidinha?
PAI GAÚCHO
Claro...
MÃE PAULISTA
Querem jogar?
FILHO GAÚCHO
Não.
FILHA PAULISTA
Depois.
A Filha Paulista cozinha, observada pelo Filho Gaúcho. A Mãe
Paulista, o Pai Gaúcho e a Mulher do Pai Gaúcho sentam-se para
jogar.
FILHO GAÚCHO
E aí?
FILHA PAULISTA
Tudo certo. Não foi à praia?
FILHO GAÚCHO
Não. Não gosto muito.
FILHA PAULISTA
Tava ótima.
FILHA PAULISTA
Você foi para Ferrugem?
FILHO GAÚCHO
Fui.
FILHA PAULISTA
Onde?
FILHO GAÚCHO
Um bar.
FILHA PAULISTA
Bom?
FILHO GAÚCHO
Não. Ruim.
FILHO GAÚCHO
O que é isso?
FILHA PAULISTA
Estragão.
FILHO GAÚCHO
Estragão?
FILHA PAULISTA
Um tempero. Experimenta.
Ele experimenta.
FILHO GAÚCHO
Hmm.
FILHA PAULISTA
Eu estou fazendo um peixe. Não como carne.
FILHO GAÚCHO
Que peixe é?
FILHA PAULISTA
Garoupa.
MÃE GAÚCHA
Tu não me deixa torrar esta picanha!
PAI GAÚCHO
Com o tempo que vocês levam para jogar eu faço
churrasco e ainda molho a grama.
MÃE PAULISTA
Por isso que você perde.
PAI GAÚCHO
Para quem?
MÃE GAÚCHA
Não esquece que eu tenho o caderninho. E eu trouxe
o caderninho.
PAI GAÚCHO
Hoje tem a Mangueira. Uma da manhã.
MÃE PAULISTA
Mangueira... Mangueira... Gaúcho torce pela
Mangueira se achando carioca. Carioca mesmo é Vila
Isabel, Imperatriz ou, no máximo, Portela.
Mangueira é coisa de turista!
PAI GAÚCHO
Vai falar mal da Mangueira? Vai? E o Cartola?
Jamelão? São turistas? Tu nem carioca é, só nasceu
lá, está em São Paulo faz trinta anos. Tu é a
paulista mais paulista que eu conheço.
MÃE PAULISTA
Considero isso um elogio.
PAI GAÚCHO
Não foi minha intenção.
MÃE PAULISTA
O que gaúcho entende de samba? O negócio de vocês
é rancheira, vocês dançam de bota e calça de lã.
PAI GAÚCHO
Ah é? E o Lupicínio? Hein? "Há pessoas com nervos
de aço..."
MÃE PAULISTA
Eu, por exemplo, pra jogar contigo.
MULHER DO PAI GAÚCHO
Deu ou não deu?
PAI GAÚCHO
Só um pouquinho...
MÃE PAULISTA
Só um pouquinho? Faz dez minutos que tu tá mexendo
nestas pedras e este oito preto continua solto na
mesa. Não tem o que fazer com este oito preto,
desiste!
PAI GAÚCHO
Calma aí... Eu posso bater.
MÃE PAULISTA
Eu também poderia bater, se tivesse o que fazer
com este oito preto e o coringa solto! Não tem!
PAI GAÚCHO
Calma!
CENA 5 - VARANDA DA CASA - EXT/NOITE
Os filhos terminam de lavar e guardar a louça. Os Pais jogam.
FILHO GAÚCHO
Você vai à praia amanhã?
FILHA PAULISTA
Se tiver tempo bom...
FILHO GAÚCHO
Que horas?
FILHA PAULISTA
Eu acordo cedo.
FILHO GAÚCHO
Cedo é quando?
FILHA PAULISTA
Sete, sete e pouco.
FILHO GAÚCHO
Muito cedo. Bom... Boa noite.
FILHA PAULISTA
Boa noite.
FILHO GAÚCHO
(para todos) Boa noite.
Filha Paulista entra na casa, Filho Gaúcho se afasta na direção
da praia.
PAI GAÚCHO
Boa noite. (para a Mãe Paulista) Desculpe, mas aí
não tem 40 pontos.
MÃE PAULISTA
Tem 42. 15 do jogo de 5, o 2 que eu botei ali e 25
do coringa.
PAI GAÚCHO
O coringa vale 20.
MÃE PAULISTA
Rá! Quer apostar?
PAI GAÚCHO
Quero. O coringa vale 20.
MÃE PAULISTA
Vamos ligar para o Valdir.
PAI GAÚCHO
Que Valdir?
MÃE PAULISTA
O Valdir, do Clube do Comércio.
CENA 6 - QUARTO DA FILHA PAULISTA - INT/NOITE
Filha Paulista, pela janela, vê o Filho Gaúcho se afastando. Ele
se vira, olha para ela. Ela abana, ele abana.
CENA 7 - VARANDA DA CASA - EXT/NOITE
Mãe Paulista ao telefone.
MÃE PAULISTA
Alô Valdir? Sou eu. Desculpe eu ligar esta hora,
mas quanto é que vale o coringa? (...) Ah,
desculpe, não, eu quero falar com o teu pai. Você
tem a voz igual... (...) Ah, é? Nossa... Não sabia
não... (...) Nossa... (...) Bom, desculpe então...
(...) Diz para ele que eu mandei um abraço, que eu
estou torcendo por ele... (...) Tá bom... (...)
Boa noite.
PAI GAÚCHO
O que foi?
MÃE PAULISTA
Está no hospital, se recuperando de uma cirurgia.
PAI GAÚCHO
Que droga... E o coringa?
MÃE PAULISTA
Não perguntei, imagina.
PAI GAÚCHO
E agora?
MÃE PAULISTA
O coringa vale 25.
PAI GAÚCHO
Vinte.
MÃE PAULISTA
Quer apostar?
PAI GAÚCHO
Apostar o quê, pra eu ter que te emprestar para me
pagar?
MÃE PAULISTA
Te dou um cheque.
PAI GAÚCHO
Tem fundo?
MÃE PAULISTA
Eu vou lhe dizer uma coisa que eu quero dizer há
muito tempo. Você é um idiota!
PAI GAÚCHO
Sou idiota mas pago minhas contas!
MÃE PAULISTA
(saindo) Idiota!
PAI GAÚCHO
O coringa vale 20!
CENA 8 - BARRINHA - EXT/DIA
Chove.
CENA 9 - CASA PAULISTA - INT/DIA
A Mãe Paulista vê televisão, o desfile da escola de samba.
CENA 10 - CASA GAÚCHA - INT/DIA
O Pai Gaúcho dorme. A Mulher do Pai Gaúcho lê uma revista.
CENA 11 - BARRINHA - EXT/DIA
Chove. Os filhos se espiam de longe.
A Filha Paulista ouve um samba ("Zera a reza"). O Filho Gaúcho,
ouvindo um rock, fecha a janela.
CENA 12 - BARRINHA - EXT/DIA
Chove.
A Filha Paulista lê, na rede. O Filho Gaúcho desenha, sob um
guarda-sol.
CENA 13 - BARRINHA - EXT/DIA
A Filha Paulista na sacada, ouve música, o Filho Gaúcho aparece,
vindo da praia.
FILHA PAULISTA
Bom dia. Ou boa noite?
FILHO GAÚCHO
Boa noite. Eles continuam brigados?
FILHA PAULISTA
Acho que sim.
FILHO GAÚCHO
Por que eles brigaram?
FILHA PAULISTA
Por causa de um oito preto.
FILHO GAÚCHO
Parece sério. (...) Você gosta muito de samba, não
é?
FILHA PAULISTA
Quem não gosta de samba...
FILHO GAÚCHO
Eu sei. Ruim da cabeça.
FILHA PAULISTA
Não necessariamente. Pode ser doente do pé.
FILHO GAÚCHO
Pois é.
FILHA PAULISTA
O que você estava desenhando?
FILHO GAÚCHO
Cogumelos.
FILHA PAULISTA
Deixa eu ver?
Mostra.
FILHA PAULISTA
São bonitos. E comestíveis.
FILHO GAÚCHO
Ou venenosos. Ou alucinógenos.
FILHA PAULISTA
Estes são venenosos?
FILHO GAÚCHO
Não.
FILHA PAULISTA
Eu sei fazer um molho de cogumelos com estragão.
FILHO GAÚCHO
Mesmo?
FILHA PAULISTA
Sei.
CENA 14 - BARRINHA - EXT/DIA
Os filhos se encontram no jardim, ele entrega a ela um livro,
Romeu e Julieta, com uma página marcada.
FILHO GAÚCHO
Lê isso.
Ela pega o livro e lê, em voz alta.
FILHA PAULISTA
A terra, mãe da natureza, é também seu túmulo. A
mesma terra que lhe serve de sepultura é útero. E,
saídos deste útero, filhos de todo tipo
encontramos, sugando o seu seio natural. Muitos
deles excelentes, dadas as suas muitas virtudes.
Alguns deles sem virtude alguma, e, assim mesmo,
todos diferentes.
Eles colhem cogumelos.
FILHA PAULISTA (OFF)
Oh, enorme é a poderosa graça que têm as ervas,
plantas e pedras, com suas reais qualidades, pois
nada vive na terra que seja tão vil que não tenha
um bem especial para lhe doar. E nada é tão bom
que não possa ser mal-empregado e, contrário à sua
própria origem, chegar as raias do abuso. Mal-
aplicada, a virtude transforma-se em vício, e o
vício, pela ação, pode por vezes ser dignificado.
CENA 15 - CASA PAULISTA - INTERIOR/NOITE
Os filhos preparam um jantar de reconciliação.
FILHA PAULISTA (OFF)
Dentro da corola ainda criança desta florzinha
mínima o veneno encontrou abrigo, e a medicina
encontrou poder. Ao ser cheirada esta partezinha
traz euforia a cada parte do corpo; ao ser
provada, mata todos os sentidos e ainda o coração.
Acampam-se, de sentinela, a graça e a desgraça,
dentro do homem e das plantas, defendendo reis tão
rivais.
O jantar está quase pronto.
FILHA PAULISTA
É certo que eles não são venenosos?
FILHO GAÚCHO
Praticamente certo.
FILHA PAULISTA
Praticamente certo?
FILHO GAÚCHO
É. Praticamente certo.
CENA 16 - CASA PAULISTA - INTERIOR/NOITE
Os filhos servem os pais.
FILHO GAÚCHO
Faltam talheres.
FILHA PAULISTA
E pratos.
FILHO GAÚCHO
E copos.
FILHA PAULISTA
A gente vai buscar.
Eles saem para buscar pratos e talheres.
CENA 17 - BARRINHA - EXTERIOR/NOITE
Enquanto os pais comem os tais cogumelos, os filhos se olham. E
se beijam.
Depois do beijo, voltam para casa, a Filha Paulista detém o Filho
Gaúcho.
FILHO GAÚCHO
O que foi?
FILHA PAULISTA
Os pratos.
FILHO GAÚCHO
É verdade. Os pratos.
Eles saem.
CENA 18 - CASA PAULISTA - INTERIOR/NOITE
Os filhos entram, com pratos e talheres, os pais estão
amicíssimos.
PAI GAÚCHO
A gente só chama de idiota quem não é idiota.
MÃE PAULISTA
Eu sei... Eu também acho que você é um idiota. Mas
eu te adoro. (para a Mulher do Pai Gaúcho) Eu
adoro o teu marido.
MULHER DO PAI GAÚCHO
Eu sei.
MÃE PAULISTA
E aquele dinheiro... eu vou te pagar.
PAI GAÚCHO
Eu também te adoro. Não precisa pagar nada.
MÃE PAULISTA
Eu faço questão. Te considero muito.
PAI GAÚCHO
Tu é minha irmã. (para a Mulher) Ela é minha irmã.
MÃE PAULISTA
Você também. E sabe do que mais?
PAI GAÚCHO
O quê?
MÃE PAULISTA
Vamos ao jogo.
PAI GAÚCHO
Ao jogo.
MULHER DO PAI GAÚCHO
Não, eu vou dormir, boa noite.
Preparam-se para jogar.
CENA 19 - VARANDA - EXTERIOR/DIA
Amanhece, parou de chover. A Filha Paulista, com um pano de chão
e um balde, seca a varanda da casa. O Filho Gaúcho, com um
ancinho na mão, aparece, vindo da praia.
FILHA PAULISTA
Bom dia ou boa noite?
FILHO GAÚCHO
Bom dia.
FILHA PAULISTA
Estava desenhando?
FILHO GAÚCHO
Escrevendo.
FILHA PAULISTA
O quê?
FILHO GAÚCHO
A letra de um samba.
CENA 20 - PRAIA - EXT/DIA
Os dois no morrinho antes da praia.
Ele mostra a letra de "Zera a reza", grandes letras escritas com
o ancinho, ao longo da praia.
Ela pega o ancinho da mão dele, improvisa, com o pano de chão, um
estandarte. Ele pega o balde e um pedaço de pau e improvisa um
surdo, toca.
Os dois cantam os primeiros versos do samba e dançam.
OS DOIS
(cantando)
Vela leva a seta tesa
Rema na maré
Rima mira a terça certa
E zera a reza
Sobre créditos finais, o samba na voz do autor, Caetano Veloso.
CAETANO
Zera a reza, meu amor
Canta o pagode do nosso viver
Que a gente pode entre dor e prazer
Pagar pra ver o que pode
E o que não pode ser
A pureza desse amor
Espalha espelhos pelo carnaval
E cada cara e corpo é desigual
Sabe o que é bom e o que é mau
Chão é céu
E é seu e meu
E eu sou quem não morre nunca
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(c) Jorge Furtado, 2007
Casa de Cinema de Porto Alegre
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26/03/2007
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