SAL DE PRATA - texto final

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               SAL DE PRATA
               texto final
               revisado em 18/03/2005

               Produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

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GAROTA: Nós gostaríamos muito que esse filme fosse censura livre.
Por uma questão comercial. No Brasil, os jovens e crianças
representam quarenta por cento da bilheteria. Por isso, não há
cenas com violência.

GAROTA: Também não há cenas com drogas. Talvez apareça alguém
bebendo uma cerveja, ou fumando um cigarro. Mas isso pode, né?
Ser alcoólatra e morrer de câncer não tem problema: o governo
recolhe imposto e tudo.

GAROTA: O nosso roteiro tem alguns palavrões, e isso... isso
faria o filme ser proibido para menores de doze anos, no máximo.
Mas tem outro problema: o nosso filme tem algumas cenas de nudez
e simulação de sexo, que algumas pessoas ainda consideram uma
afronta aos valores éticos e morais. Isso fará o nosso filme ser
proibido para menores de dezesseis anos, prejudicando muito a
nossa bilheteria.

GAROTA: Por isso, nós estamos muito felizes de ter vocês aqui
assistindo ao nosso filme. Vocês são a prova de que é possível
fazer cinema sem pensar apenas em questões comerciais.

GAROTA: Sei que isso é um baita lugar-comum, mas nós gostaríamos
que vocês, vendo esse filme, tivessem o mesmo prazer que nós
tivemos ao fazê-lo.

GAROTA: Eu adoro afrontar valores éticos e morais. O cinema não
faz o menor sentido se não afrontar valores éticos e morais. É ou
não é? Corta!

CÁTIA: Ôi, Cristóvão. E aí? Saiu o investimento? (...) Ótimo.
(...) Não, não vou poder voltar agora, eu tenho um compromisso.
(...) É. É muito importante, sim. (...) Eu sei da nossa
responsabilidade, amanhã eu faço a transferência. Não te
preocupa. Olha, eu tou no trânsito, depois te ligo. (...) Tchau.

CÁTIA: Ôi, Jane. (...) Claro que eu fiquei feliz também. (...)
Doze milhões de dólares até que não é mau, né? (...) Não, não vou
poder sair com vocês. (...) Mas comemorem por mim. (...) Amanhã a
gente se fala. (...) Tchau.

CÁTIA: Eu tou muito feliz, Rudi. Era tudo o que eu mais queria.
Mas eu tenho uma coisa pra te contar. Eu decidi te contar agora
porque... Meu amor, aconteceu o seguinte...

VERONESE: Isso já foi discutido na semana passada.

HOLMES: Exatamente.

JOÃO BATISTA: Tu não tá inscrito, Holmes.

HOLMES: Não tou mesmo. Mas vai te fuder, antes que eu me esqueça.

MIRABELA: Pera aí, Holmes. Calma, pessoal!

CASSANDRA: Calma mesmo. Se a gente continuar brigando, não vai
ter concurso nenhum, não vai ter filme nenhum. Eu tou precisando
trabalhar.

VALDO: Tu pode concluir o teu raciocínio, Veronese?

VERONESE: Num concurso com tão pouca verba, não faz sentido a
gente impedir o uso de tecnologias que barateiem a produção. Meu
Deus, isso era um ponto pacífico...

VALDO: Mas não foi votado.

JOÃO BATISTA: Não foi mesmo. E agora eu tou em dúvida.

HOLMES: Ah, é? Ficou em dúvida depois de conversar com o Valdo?

JOÃO BATISTA: Não. Depois de conversar com a tua mãe.

GERALDO: Chega! O Veronese ainda tem dois minutos.

VERONESE: É uma bobagem exigir que o curta tenha que ser feito em
película. A gente pode fazer mais filmes, dá mais trabalho pra
todo mundo.

JOÃO BATISTA: Um monte de filmes de merda...

HOLMES: Merda também se faz em trinta e cinco!

JOÃO BATISTA: Mas o vídeo aumenta a produção da merda. O vídeo é
o laxante do cinema.

GERALDO: Chega! Senta, João Batista. Conclui, Veronese.

VERONESE: Achar que cinema é sinônimo de película é a mesma coisa
que achar que literatura é sinônimo de caneta.

VALDO: Concluiu?

VERONESE: Concluí.

GERALDO: O próximo inscrito é o Valdo. Pode falar, Valdo.

VALDO: Se não foi votado, não foi decidido. Esse concurso é de
cinema, não de vídeo. Tem que filmar de verdade. Tem que usar sal
de prata. Se não, não é cinema. Vamos votar!

VERONESE: Isso é manobra!

JOÃO BATISTA: Sal de prata! Sal de prata!

VALDO: Sal de prata!

HOLMES: Vocês querem ir contra a história, porra? Sal de prata já
era!

JOÃO BATISTA: Ô, Geraldo, põe ordem nessa merda, pô!

GERALDO: Calma, pessoal! Calma!

CÁTIA: Rudii!

CÁTIA: Rudi! Rudi!

CÁTIA: Uma ambulância, pelo amor de Deus!

CASSANDRA: Liga, liga, liga!

MÉDICO: Ele tem algum problema no coração?

CÁTIA: Não. Não. Acho que não.

MÉDICO: Vamos monitorar.

MÉDICO: Adrenalina.

MÉDICO: Ele tem alguma alergia? Toma algum remédio?

CÁTIA: Ahn, eu não tenho certeza.

MÉDICO: A senhora não é parente?

CÁTIA: Sou namorada.

MÉDICO: Seria bom falar com algum parente.

CÁTIA: Os parentes dele não moram no Brasil.

CÁTIA: É muito grave?

MÉDICO: Mais adrenalina.

CÁTIA: Rudi.

VERONESE: Eu já disse que te amo?

CÁTIA: Já.

VERONESE: Tu pode me fazer um favor?

VERONESE: Eu já enviei aquele convite pra Linda. Escreve uma
mensagem pro mesmo endereço, dizendo que a gente talvez tenha que
adiar a festa. Escreve que eu... amo ela muito e... e que eu
sempre pensava nela. Tu faz isso pra mim?

VERONESE: Eu já disse que te amo?

CÁTIA: Eu também te amo, Rudi.

MÉDICO: Ele tá fibrilando.

CÁTIA: Rudi, Rudi, Rudi...

MÉDICO: Pára a ambulância!

CÁTIA: Rudi, acorda! Rudi...

MÉDICO: A senhora tem que ficar lá no fundo. Por favor. Tá sem
pulso. Afasta! Afasta! Afasta...

CÁTIA: Será que precisa de padre? O cara lá da funerária falou
qualguer coisa sobre um padre...

VALDO: Padre sempre é bom. É que ele fica rezando, e aí ninguém
precisa dizer nada. Ele era católico?

CÁTIA: Era.

VALDO: Vem cá.

CÁTIA: Eu tou bem aqui. Não te preocupa.

VALDO: Ai, que loucura! Nessa idade... Como é que pode?

CÁTIA: É melhor tu ir embora, Valdo. Eu tenho que sair.

VALDO: Pra onde? Eu vou contigo.

CÁTIA: Não. Não vai.

CÁTIA: Tchau, Valdo. Obrigada por tudo.

VALDO: É ruim ficar sozinha numa hora dessas. Tu tem certeza que
não quer que eu te leve?

LETREIRO: Uma mensagem enviada.

CÁTIA: Ôi.

VERONESE: ôI.

CÁTIA: Nossa, que concentração! Acabou o bloqueio?

VERONESE: Não é o roteiro, eu... tou escrevendo uma carta.

CÁTIA: Carta? Que milagre!

VERONESE: "Lembra daquela garota que eu te falei, a Cátia? Aquela
que é linda, inteligente e sabe fazer sagu? Nós vamos morar
juntos."

CÁTIA: Como é que é?

VERONESE: A gente se ama há muito tempo, e eu acho que pode dar
certo. É claro que não eu mereço uma garota maravilhosa como a
Cátia, e eu não tenho a menor idéia de por quê que ela gosta de
mim. Mas eu decidi arriscar. Vamos fazer uma festa, só para os
amigos mais íntimos, e eu gostaria muito que tu viesse.

VERONESE: Só falta acertar alguns detalhes.

VERONESE: Cátia, eu sei que esse apartamento é pequeno. Sei
também que o banho é horrível. Mas eu não vou me mudar. Talvez eu
permita que tu gaste o teu dinheiro numa pequena reforma. Pegar
ou largar.

CÁTIA: Tem que trocar o fogão e a geladeira.

VERONESE: Tudo bem.

CÁTIA: E faxina duas vezes por semana!

VERONESE: Vou pensar.

CÁTIA: Nem acredito, Rudi. Eu te amo, sabia?

CÁTIA: Rudi... Rudi, eu queria que... Rudi, eu tenho que tomar
banho.

VERONESE: O chuveiro tá quebrado.

CÁTIA: Pára, pára! Não, pera aí, pera aí. Pára.

CÁTIA: Tu tem certeza que não é mais uma história que tu tá
escrevendo?

VERONESE: Eu já disse, é uma carta.

CÁTIA: Carta pra quem?

VERONESE: Pra minha filha. Ela se chama Linda. Tem dezoito anos.
Ela mora no interior. Só me viu uma vez, no mês passado. Lembra
quando eu disse que tinha que fazer uma pesquisa? Eu menti. Era
aniversário dela.

VERONESE: Eu tenho uma reunião às oito e meia, e eu ainda não
terminei de escrever a mensagem. Vamos jantar juntos? Tem um
restaurante novo ali perto da associação. Aí eu conto tudo. Tu
pode me apanhar?

CÁTIA: Claro.

VERONESE: Talvez a gente possa... trocar o chuveiro elétrico por
um aquecedor a gás.

LETREIRO: Enviar.

LETREIRO: Enviado.

LETREIRO: Desligar.

LETREIRO: Roteiros.

LETREIRO: Advertência.doc

LETREIRO: Advertência ao espectador.

GERALDO: Que tal?

CÁTIA: Bonito.

VALDO: Esse é Jaques, do Diário.

JAQUES: Meus pêsames.

CÁTIA: Obrigada.

VALDO: Vamos conversar lá fora?

CÁTIA: O pai já morreu. A mãe é uma senhora de idade e tá muito
doente. Não pôde vir pro enterro.

JAQUES: Bom, e... vocês são...? O senhor eu sei quem é, claro.
Olha, eu gostei muito do seu filme...

VALDO: A Cátia era namorada. E nós somos amigos. O João Batista e
o Holmes também são diretores. A Mirabela é produtora.

JAQUES: É que eu tou começando no caderno de cultura. E eu acho
que nunca vi um filme do... falecido. Desculpe.

MIRABELA: A Cassandra foi atriz dos três últimos curtas do
Veronese.

JAQUES: Atriz?

CASSANDRA: É.

JAQUES: Claro! Eu tou reconhecendo, do comercial de televisão.
"Preço baixo e qualidade, bem no centro da cidade..." Bom,
então... vocês atuavam juntos...

VALDO: Não. Ela atuava nos filmes dele.

JAQUES: Pera aí, mas o... O Veroneli, ele não era ator?

JOÃO BATISTA: Não. É Veronese. Ele era diretor e roteirista.

JAQUES: Bom, desculpe a minha ignorância. Mas o... o falecido,
ele fez algum longa-metragem?

CASSANDRA: Não, mas ele tava escrevendo o roteiro de um longa.

JAQUES: Ótimo! Olha, isso é um bom gancho pra matéria. A gente
pode publicar um trecho. Qual era o assunto?

MIRABELA: O Veronese não gostava muito de falar sobre o que ele
tava escrevendo.

JAQUES: Sobre o quê que era? Alguém leu? Sei lá, um... um
pedacinho... Qual era o título?

CASSANDRA: O roteiro deve estar no computador dele.

JAQUES: Bom... Se vocês acharem, então... mandem pra mim.
Obrigado.

VALDO: Ele te falou alguma coisa sobre um longa?

CÁTIA: Não.

PADRE: Meus irmãos! Vamos jnuntar as mãos e rezar pela alma de
Rudi Veronese. Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o
vosso nome. Venha a nós o vosso reino...

CRISTÓVÃO: Cátia!

CRISTÓVÃO: Fica em casa amanhã. A Jane e o Lucas podem tocar a
transferência.

JANE: Deixa comigo, Cátia.

CÁTIA: Não. Essa conta é minha. Amanhã eu vou trabalhar.

LUCAS: Não, não precisa, Cátia. A gente se vira.

CÁTIA: Obrigada. Não se preocupem comigo. Eu tou bem.

LETREIRO: Roteiros.

VALDO: É aqui?

CÁTIA: Eu acho que o Rudi não ia gostar de ver todo mundo mexendo
nas coisas dele.

MIRABELA: Ao Veronese.

VALDO: E aí? Posso?

CÁTIA: Acho que pode.

VALDO: Vamos lá.

VALDO: Advertência ao espectador.

CASSANDRA: Eu vou ler.

CASSANDRA: Uma garota, vinte anos, de quem só vemos o rosto e os
ombros nus, dá o texto abaixo, olhando para a câmara.

CÁTIA: Mas é pra ter alguém com a tal garota?

MIRABELA: Acho que sim. Mas fora de quadro.

CÁTIA: Que quadro?

MIRABELA: Fora de quadro significa que alguém tá ali, mas a
câmara não mostra.

CÁTIA: Não mostra por quê?

MIRABELA: Tsc, deixa pra lá, Cátia. Tem cenoura na geladeira?

CÁTIA: Não, só me diz uma coisa: é pra ter alguém com a tal
garota? Quer dizer, eu entendi que tem alguém lá, fazendo alguma
coisa com ela, não tem?

MIRABELA: Eu acho que é pro espectador achar que sim.

CÁTIA: Tem um cara lá, chupando ela, é isso?

MIRABELA: É... Mas ela pode estar só fazendo de conta que tem
alguém chupando ela e não tem ninguém de verdade, entende?

CÁTIA: Não, não entendi. É pra ter, ou é pra não ter?

MIRABELA: Dá pra filmar de várias maneiras diferentes.

CÁTIA: O Rudi ia mesmo filmar aquilo?

MIRABELA: Não sei, Cátia. Como é que eu vou saber? Esqeuce isso,
é só um texto, uma bobagem.

CÁTIA: Tá, mas é que é tão...

MIRABELA: Cátia, esquece. Eu, se fosse tu, apagava todas essas
coisas do computador.

CÁTIA: Tu tá falando sério?

MIRABELA: Não. Claro que não.

VALDO: Não achei a continuação. Parece que é só a tal advertência
mesmo. Hum! Parece bom.

CASSANDRA: Bom, gente, eu tou indo embora. Cátia, a Mirabela vai
dormir aqui contigo, né?

CÁTIA: Não, não precisa. Imagina...

VALDO: Vai, sim. Tá decidido.

CASSANDRA: Bom, se tu precisar de algumna coisa... Sei lá, acho
que a gente podia conversar um dia desses. É só ligar. Tá bom?

CÁTIA: Tá bom. Tu quer que eu chame um táxi?

CASSANDRA: Não, não. Não precisa, eu vou a pé, eu moro a meia
quadra daqui. Sabe o edifício da padaria?

CÁTIA: Sei.

CASSANDRA: Então? O meu apartamento é bem ali. Quando quiser
fazer uma visita... Tchau, tchau.

CASSANDRA: Tchau, tchau, gente.

MIRABELA: Tchau, Cassandra.

VALDO: Tchau.

LETREIRO: Roteiros. Motéis v1.doc.

CÁTIA: (OFF) Vemos as pernas nuas de uma mulher, no banheiro de
um quarto de motel. A mulher, lentamente, coloca a calcinha. Uma
cortina de contas separa o banheiro do quarto, onde um homem,
deitado na cama, pode ver a silhueta do corpo da mulher e
observar as suas ações. Enquanto ela se veste, ouvimos a
narração:

CÁTIA: (OFF) O amor é um vestir. Ele só acontece quando o homem
cobre a nudez da mulher com algo que sai da sua imaginação. A
mulher que corresponde ao amor é aquela que se deixa vestir.

CÁTIA: (OFF) O desejo por um corpo depende do que imaginamos
vestir sobre ele. Toda carne é um fantasma. Todo amor é fantasia.
Toda beleza é construída. Por amor, as mulheres se transformam
naquilo que são nas mentes dos homens por quem são amadas.

CÁTIA: (OFF) A mulher termina de se vestir, pega um cigarro, olha
rapidamente para o homem e, ainda sem atravessar a cortina, diz:

MULHER: Apaga a luz.

LETREIRO: Apaga a luz.

CÁTIA: Apaga a luz.

CÁTIA: A outra. Apaga.

MIRABELA: (OFF) Cátia.

MIRABELA: São duas horas. Tu não tem que trabalhar amanhã?

CÁTIA: O Rudi nunca te mostrava o que ele escrevia?

MIRABELA: Não. Ele não mostrava pra ninguém. O Rudi tinha o mundo
dele. Era difícil entrar ali.

CÁTIA: É. Eu sei.

CÁTIA: Se ele não mostrava nada pra ninguém, como é que a
Cassandra sabia que ele tava escrevendo um longa? Ele nunca me
falou nada sobre um longa.

MIRABELA: Cátia, eu conhecia o Rudi há mais de dez anos. Ele
sempre foi daquele jeito. Nem eu, nem a Cassandra, nem ninguém
era capaz de entrar naquele mundinho. E eu tentei bastante.
Tentei até cansar, porque eu tava muito apaixonada. Não fica com
ciúme de mim, isso foi há muito tempo. E não conta pra ninguém,
tá? Promete?

CÁTIA: Prometo.

MIRABELA: Ele te amava muito, pode ter certeza. Isso ninguém vai
te tirar. Agora vamos dormir?

CÁTIA: Vamos.

MIRABELA: Boa noite.

CÁTIA: Boa noite.

CÁTIA: Querem um salgadinho?

CASSANDRA: Eu vou subir.

VALDO: Opa!

VERONESE: Ôooooo...

VERONESE: Cátia... A festa... É que... Que é isso, Cátia?

CÁTIA: Fecha a porta.

VERONESE: Mas pra quê?

CÁTIA: Fecha!

CÁTIA: Apaga a luz.

VERONESE: De jeito nenhum, Cátia.

CÁTIA: Tu gosta dela, né?

VERONESE: Vamos pra sala.

CÁTIA: Vem aqui, Rudi. Não precisa ter medo. Conta pra mim a
verdade.

VERONESE: A verdade... é que tu tá bêbada.

CÁTIA: Eu te vi olhando pra ela. Tu tá a fim dela, né?

VERONESE: Mas... Mas o que é isso, Cátia? Mas que bobagem!

CÁTIA: Rudi... A gente podia... chegar num acordo, entendeu? Ela
é muito bonita, a Cassandra. Bonita mesmo.

VERONESE: Sei.

CÁTIA: Rudi, eu não quero pegar doença. Eu não quero pegar
doença...

VERONESE: Cátia, vamos dançar, vamos.

CÁTIA: Não, vem aqui... Diz pra mim o quê que tu acha da minha
proposta.

VERONESE: Eu não acho nada, meu amor.

CRISTÓVÃO: Então? Dez milhões voltam e ficam parados, na conta
dele, aqui no Brasil, pelo menos até sexta-feira. Os outros dois
tu aplica. Tá entendido?

CÁTIA: Tá.

CRISTÓVÃO: Tem certeza que não precisa uma ajuda?

CÁTIA: Tenho.

CRISTÓVÃO: Bom, então, traz esse dinheiro de volta. Rapidinho.

LETREIRO: Roteiros.

LETREIRO: Motéis v1.doc

CÁTIA: Mais longe. Do outro lado.

JOÃO BATISTA: (OFF) Cátia? Cátia!

CÁTIA: Oi.

JOÃO BATISTA: Não tou atrapalhando nenhuma transação milionária
aí?

CÁTIA: Não, imagina.

JOÃO BATISTA: Tudo bom?

CÁTIA: Senta, por favor. Que bom que tu pôde vir.

JOÃO BATISTA: Tu disse que precisava falar comigo.

CÁTIA: É, eu tou lendo uns textos do Rudi... E, hoje de manhã,
quando eu abri esse aqui, eu percebi que ele era diferente dos
outros.

JOÃO BATISTA: Diferente? Diferente como?

CÁTIA: Os outros eu consigo entender. Esse aqui tem umas
expressões estranhas, eu não consigo compreender a história.

JOÃO BATISTA: O quê que tu não entende?

CÁTIA: Aqui... "Pê-um, pê-pê. Trav pra trás até pê-eme."

JOÃO BATISTA: Plano um. Primeiro plano. Traveling para trás até
plano médio. É o enquadramento inicial, a movimentação da câmara
e depois o novo enquadramento.

CÁTIA: Enquadramento?

JOÃO BATISTA: É que esse roteiro já tá pronto pra ser filmado. A
gente chama isso de roteiro técnico. Os outros que tu leu eram
mais fáceis porque eles não tavam decupados, entende?

CÁTIA: Hum, hum. E será que tu pode traduzir esse pra mim?

JOÃO BATISTA: Não, eu... eu posso fazer um resumo da história.

CÁTIA: Não vai dar muito trabalho?

JOÃO BATISTA: Não, imagina. Vai ser bem divertido. Ele gostava de
escrever bastante sacanagem, né? Posso?

CÁTIA: Não tira.

VERONESE: O que é que eu ganho se eu adivinhar o que é?

CÁTIA: Se tu adivinhar, eu te mato.

CRISTÓVÃO: O doutor Camargo acabou de ligar. Disse que o dinheiro
ainda não chegou na conta dele aqui no Brasil. O quê que houve?

CÁTIA: Eu tive um probleminha.

CRISTÓVÃO: Lá, ou aqui no Brasil?

CÁTIA: Aqui.

CRISTÓVÃO: Cátia, tamos falando de MUITO dinheiro. Isso quer
duzer MUITA incomodação. Cadê o dinheiro do doutor Camargo?

CÁTIA: Tá lá fora, ainda.

CRISTÓVÃO: E por quê que não foi feita a transferência?

CÁTIA: Eu esqueci.

CRISTÓVÃO: Esqueceu? Dez milhões de dólares? Esqueceu?

CÁTIA: Mas eu posso resolver isso num minuto.

CRISTÓVÃO: Não vai resolver mais nada, são seis da tarde. Não dá
tempo de fazer mais nada. Cátia, fica em casa amanhã. Descansa.
Vai ser bom pra ti e vai ser melhor pra empresa. Eu cuido disso.

VERONESE: Cátia? Já dá pra tirar esse negócio?

CÁTIA: Não, espera.

CÁTIA: Pode tirar.

CÁTIA: Feliz aniversário.

MIRABELA: Acho que tá tudo certo. O Veronese recolhia o fundo, os
salários tavam em dia. Pra despedir aqueles dois, é só pagar as
férias.

CÁTIA: Coitados, eles vão ficar arrasados.

MIRABELA: Fazer o quê? Tu vai administrar isso aqui?

CÁTIA: O Rudi gostava da Cassandra, né?

MIRABELA: Como atriz?

CÁTIA: Não. Como mulher.

MIRABELA: Eu nunca percebi nada entre os dois. Vamos?

CÁTIA: O Rudi nunca falou que ela morava tão perto.

MIRABELA: Ela se mudou faz pouco tempo. Não pensa bobagem.

CÁTIA: Mas ele escreveu um roteiro que...

MIRABELA: É ficção, Cátia. Se não parece ficção, é porque ele
escrevia bem. Quanto melhor a ficção, mais ela tem de real. Mas
ficção é ficção, e realidade é realidade. Bota isso na cabeça.

CÁTIA: Num roteiro que eu li, tem uma situação que... É muito
parecida com a nossa vida, a minha e a do Rudi... Nunca
aconteceu, mas...

MIRABELA: Cátia, esquece isso, tá?

CÁTIA: Esse roteiro tem uma frase que ele tirou de mim.

MIRABELA: Que frase?

CÁTIA: "Apaga a luz."

MIRABELA: "Apaga a luz"?

CÁTIA: É.

MIRABELA: Tu tem idéia de quantos milhões de pessoas, neste exato
momento, estão dizendo "Apaga a luz"? Os escritores misturam
tudo: o que eles vivem, o que eles observam da vida das outras
pessoas e o que eles inventam. A gente nunca sabe o que é uma
coisa ou outra, e eu aposto que às vezes nem eles mesmos sabem.

CÁTIA: Os filmes dele tinham tanto sexo. Pra quê?

MIRABELA: Sei lá. Era o estilo dele.

CÁTIA: Eu acho que não era estilo, não. Acho que era doença. E
essas fantasias, essas coisas mórbidas...

MIRABELA: Eram fantasias ou realidade? Tu te decide.

CÁTIA: Ah, é? E por quê que a Cassandra chorava tanto no enterro
dele, hein?

MIRABELA: Ele tá morto, Cátia. Se namorou a Cassandra ou não, que
diferença isso faz?

CÁTIA: É que eu tava namorando o Valdo!

CÁTIA: Ao meio-dia. Sempre ao meio-dia, na minha casa! Eu sou uma
idiota mesmo! Mas eu já tinha parado com essa loucura, e eu ia
contar tudo pro Rudi. Aí ele morreu!

CÁTIA: Eu vou me mudar para esse apartamento. O Rudi tinha me
convidado pra morar com ele. Isso ele não escreveu. Ele falou
comigo. De verdade. E eu aceitei o convite.

VALDO: Ôi.

CÁTIA: Ôi.

VALDO: A Mirabela me falou da mudança.

CÁTIA: É, eu vou passar um tempo no apartamento do Rudi.

VALDO: Posso ajudar?

CÁTIA: Se tu quiser...

CÁTIA: O meu carro tá aberto, Valdo, eu tenho que descer.

VALDO: Primeiro tu vai me escutar.

CÁTIA: Eu não tenho nada pra falar contigo.

VALDO: Cinco minutos! Que loucura é essa? Primeiro, tu me trata
como um desconhecido. Agora vai se mudar pra um apartamento que é
menor, pior, muito mais longe do teu trabalho...

CÁTIA: O apartamento é meu, a vida é minha. Dá licença, Valdo?

VALDO: Pára, Cátia!

CÁTIA: Tu tá me machucando, me solta!

VALDO: Me escuta!

CÁTIA: Me solta!

VALDO: Me escuta!

CÁTIA: Tu tá me machucando.

VALDO: Me escuta! Tu não tem culpa de nada. Eu te liguei, eu
insisti. Ninguém tem culpa.

CÁTIA: Solta!

VALDO: Ninguém tem culpa!

VALDO: Eu tenho que te contar uma coisa. Naquela noite, lá no
apartamento do Veronese, eu copiei os roteiros. Não resisti.
Desculpa. Não tem longa nenhum. Mas um dos roteiros me
interessou.

CÁTIA: Qual?

VALDO: "Motéis". Tá incompleto. Tu leu?

CÁTIA: Li.

VALDO: E o que é que tu achou?

CÁTIA: Ah, eu não acho nada. Eu não entendo a metade, e a metade
que eu entendo tá me fazendo mal. Eu já decidi que não vou mais
ler essas coisas.

VALDO: É uma boa história.

CÁTIA: Tu tá pensando em filmar?

VALDO: Talvez. Se eu conseguir escrever um final...

CÁTIA: Eu preciso ir, Valdo.

VALDO: Tudo bem. Mas pensa nisso. Tá? E, se tu precisar de
ajuda...

CÁTIA: Eu tou precisando ficar sozinha. Se tu quer mesmo me
ajudar, me deixa quieta no meu canto.

CÁTIA: Olha, muito obrigada, viu?

HOLMES: Ôi, Cátia.

CÁTIA: Ôi...

HOLMES: Porra, que zona... Quer uma ajuda?

CÁTIA: Não, tá tudo bem, obrigada.

HOLMES: Ó... É o resumo do "Filme de mentira". O João Batista
pediu que eu fizesse, é que ele tá sem tempo, sabe como é...
Publicidade.

CÁTIA: Nossa, eu nem tava com tanta pressa.

HOLMES: Não, a pressa é minha, Cátia. Eu adorei o roteiro e eu
quero filmar.

HOLMES: Porra, é o João Batista. Ele sabe que eu tou aqui e ele
tá puto comigo. Cátia, lembra: eu pedi primeiro!

CÁTIA: Pediu o quê?

HOLMES: Pra filmar.

JOÃO BATISTA: Ôi, Cátia.

CÁTIA: Ôi, João.

JOÃO BATISTA: Tudo bom.

CÁTIA: Tudo bom, entra.

JOÃO BATISTA: Eu chamo isso de traição.

HOLMES: Ele tá louco. Enlouqueceu.

JOÃO BATISTA: Não, a Cátia sabe quem é o maluco aqui.

CÁTIA: Pera aí, do quê que vocês tão falando?

JOÃO BATISTA: É o seguinte: ontem eu mandei o roteiro do Veronese
pro Holmes e pedi um serviço pra ele.

HOLMES: Não, não, não. Um serviço não: um favor.

JOÃO BATISTA: Eu ia te pagar.

HOLMES: Ah, é? Quanto?

JOÃO BATISTA: Cátia, tu sabe o quanto eu gosto das coisas que o
Veronese escrevia, não?

HOLMES: Ele nem leu a história, nem sabe do roteiro. Só leu o meu
resumo.

JOÃO BATISTA: Vamos parar com a palhaçada? Cátia, eu quero fazer
o "Filme de mentira". Como uma homenagem ao Veronese, entende?

HOLMES: Cátia, Cátia, eu cheguei primeiro.

CÁTIA: Mas tem outros roteiros...

JOÃO BATISTA: Acontece que eu já convidei a Cassandra pra
trabalhar no filme como atriz, e ela topou.

HOLMES: Grande merda! Porque eu também convidei a Cassandra, e
ela também topou. É óbvio que o Veronese ia convidar a Cassandra
pra fazer o filme dele.

CÁTIA: Eu nem sei se esses roteiros devem ser filmados.

JOÃO BATISTA: Não. Esse deve, Cátia.

HOLMES: Cátia, Cátia, eu cheguei primeiro!

CÁTIA: Eu não vou me meter nesse assunto. Vocês são amigos, não
são?

CASSANDRA: Ôi.

CÁTIA: Desculpa, eu devia ter ligado antes.

CASSANDRA: Não, não dá nada. Entra.

CÁTIA: O João Batista e o Holmes me disseram que vão filmar um
dos roteiros do Veronese, e que tu vai atuar.

CASSANDRA: Ah, na verdade eu nem sei que roteiro é esse. Tu quer?

CÁTIA: Não, obrigada.

CASSANDRA: Aceitei pra eles pararem de me encher o saco.

CÁTIA: O Rudi me dizia que existem dois tipos de pessoas: aquelas
que fazem as coisas porque realmente gostam de fazer, e aquelas
que gostariam de não fazer nada, mas fazem pra que os outros
parem de encher o saco.

CASSANDRA: Engraçado que uma vez o Rudi me disse que dividia as
pessoas de outro jeito.

CÁTIA: Ah, é? Como?

CASSANDRA: Não... Deixa pra lá. Bobagem.

CÁTIA: Diz.

CASSANDRA: Nem me lembro direito, Cátia.

CÁTIA: Por favor, Cassandra. Diz.

CASSANDRA: Bom. Tem as pessoas que se masturbam pensando em
alguém, e as pessoas que se masturbam pensando nelas mesmas. As
primeiras são as mais bacanas, mas as outras ganham muito mais
dinheiro. Hm... Falei que era uma bobagem.

CÁTIA: Eu não achei bobagem. Quando foi que ele te disse isso?

CASSANDRA: Ah, não faço a menor idéia, Cátia.

CÁTIA: Tu faz de conta que não faz a menor idéia de nada, não é,
Cassandra?

CASSANDRA: Calma, Cátia.

CÁTIA: Calma, coisa nenhuma. Tu acha que conhecia o Veronese? O
que ele escrevia? O que ele pensava? O que ele vivia? Tu tá muito
enganada: o Rudi tinha uma filha, o nome dela é Linda, ela tem
dezoito anos.

CASSANDRA: Que loucura...

CÁTIA: Tu não sabia mesmo que ele tinha uma filha?

CASSANDRA: Não.

CÁTIA: Ele nunca te disse nada?

CASSANDRA: Não!

JOVEM MODELO: Foi há dois anos. Eu tava aqui no shopping,
passeando, e aí me descobriram. Eu tou muito feliz de estar
desfilando na minha cidade depois de dois anos em Nova Iorque.

LINDA: Quer falar comigo?

CÁTIA: Eu queria. Eu sou... Eu era namorada do Rudi.

LINDA: Tu pode esperar um pouquinho?

CÁTIA: Hum, hum.

REPÓRTER: Quando entrar na passarela, hoje à noite, Lisandra com
certeza estará muito emocionada, pois seu sonho se tornou
realidade. Para o Jornal da Tarde, José Torresini.

REPÓRTER: O quê que tu achou?

LINDA: Tá ruim, Zé. A gente precisa botar alguma coisa no final.
Vocês gravaram o ensaio do desfile?

REPÓRTER: Gravamos. Mas tá horrível. Tinha um monte de criança
olhando.

LINDA: Eu quero ver. Cadê a fita?

REPÓTER: Ali no arquivo.

LINDA: Aproveita e traz essa outra fita e esse CD.

CÁTIA: Eu não quero atrapalhar.

LINDA: Imagina... Desculpa não ter respondido aquele e-mail. Eu
não sabia o que dizer. Até pensei em ir no enterro, mas desisti.
Não fazia sentido.

CÁTIA: Eu entendo.

REPÓRTER: Faltam vinte minutos pro jornal entrar no ar. Tu acha
que vai dar tempo?

LINDA: Vai. Sempre dá tempo, Zé.

REPÓRTER: ... pois seu sonho se tornou realidade. Para o Jornal
da Tarde, José Torresini.

APRESENTADORA: Boa tarde.

LINDA: Minha mãe e meu pai. Queriam fazer cinema. Ele dirigia e
ela montava. Fizeram uns filmes em super-8. Nessa foto, a minha
mãe já tava grávida de mim, mas ele ainda não sabia. Ela dizia
que esse foi o último dia feliz da vida deles.

CÁTIA: O quê que aconteceu?

LINDA: A mãe descobriu que o Rudi tinha tirado todo o dinheiro
que eles tinham no banco pra comprar uma câmara dezesseis usada.
Ele tava fazendo um filme com uns amigos. O nome do filme era
"Aurora".

CÁTIA: O Rudi nunca me falou desse filme.

LINDA: A vó sempre disse que não tinha filme nenhum. A mãe ficou
tão braba que expulsou o Rudi de casa. Eu acho que ele ficou
muito chateado. Foi pra Porto Alegre e desapareceu.

LINDA: Mês passado, ele apareceu no meu aniversário de dezoito
anos. Minha mãe já tinha morrido. Câncer.

CÁTIA: Achei muito legal aquilo que tu fez lá na TV. Ficou
emocionante.

LINDA: Hum. Eu junto os pedaços e encontro um sentido. Não é
difícil.

LINDA: Quando eu era criança, tinha medo dele. Achava que ele
podia voltar e me fazer mal.

CÁTIA: Linda, isso é um absurdo.

LINDA: Eu li alguma coisa sobre os filmes dele. Eram meio fortes,
né?

CÁTIA: É... Mas ele era muito diferente dos filmes. Ele era
compreensivo, carinhoso... Teria sido um ótimo pai.

LINDA: Quando eu fiz quinze anos, ele me mandou esse livro de
presente. Pelo correio. Eu nunca tinha lido um roteiro na vida.
Ainda mais em espanhol.

LETREIRO: Interiores.

LINDA: Minha mãe disse que ele era louco. Depois lançaram o filme
em vídeo. Aí eu assisti aqui nessa TV. Pela primeira vez na minha
vida, eu senti a presença do meu pai. E entendi o presente.

CRISTÓVÃO: Cátia, o quê que foi agora? Esqueceu da reunião?

CÁTIA: Claro que não. Imagina...

CRISTÓVÃO: Hora de decidir. Tu volta pro planeta Terra, ou fica
nesse mundinho da lua.

LETREIRO: Interiores.

CÁTIA: Tudo bom, Mira?

MIRABELA: Tudo.

CÁTIA: E aí? Será que eu podia dar uma olhadinha na filmagem?

MIRABELA: Tu sabe como o João Batista é nervoso, né? Ele acabou
de dar o maior esporro na guria que tava fazendo a claquete, a
coitada saiu daqui chorando.

CÁTIA: Não, mas eu não vou atrapalhar não, eu falei com ele hoje
à tarde... Quem sabe eu... até podia fazer alguma coisa, não
sei... Como é que se faz uma "claquete"?

FOTÓGRAFO: Tá, liga. Não, só uma. Deu.

JOÃO BATISTA: Vamos lá! Tamos por quem? Vamos lá! Vamos rodar!

MIRABELA: Tá pronta?

CÁTIA: Acho que sim.

JOÃO BATISTA: Vai grua. Vamos filmar, Cátia? Tamo por ti. Ô,
Rafael, aumenta o meu retorno aqui, pô!

CÁTIA: Por mim?

MIRABELA: Tu tem que botar a claquete na frente da câmara.

ASSISTENTE: Atenção, pessoal, silêncio, vamos desligar os
celulares, por favor.

CÁTIA: Cassandra... Desculpa. Eu tava um pouco nervosa aquele
dia.

CASSANDRA: Tudo bem.

JOÃO BATISTA: (OFF) Não tá faltando alguma coisa?

CASSANDRA: É que tu tem que abrir aqui...

CÁTIA: Pronto, agora tá pronto.

JOÃO BATISTA: Então tá, vamos lá! Vamos rodar!

ASSISTENTE: Atenção então, silêncio no estúdio!

JOÃO BATISTA: (OFF) Vai som!

OPERADOR DE SOM: (OFF) Foi som.

CÁTIA: (OFF) Filme de mentira. Cena dois, plano um, tomada um.

JOÃO BATISTA: (OFF) Câmara.

OPERADOR: Foi câmara.

JOÃO BATISTA: (OFF) Pode bater, Cátia.

JOÃO BATISTA: (OFF) Ação!

GARCIA / CINEASTA: Hummm... Deliciosa...

CASSANDRA / GAROTA: Eu sei o que tu quer. Mas não vai levar.

GARCIA / CINEASTA: Mas eu só quero te amar!

CASSANDRA / GAROTA: Nhá... Tu só quer o meu corpo.

GARCIA / CINEASTA: Quem te disse uma besteira dessas, meu amor?

CASSANDRA / GAROTA: Todo mundo que eu conheço.

GARCIA / CINEASTA: Tudo mentira. Eu já te falei: tu vai ser a
atriz principal do meu filme.

CASSANDRA / GAROTA: Ah, eu vou ser mesmo? Jura que eu vou ser
atriz?

GARCIA / CINEASTA: Juro por Deus.

CASSANDRA: Ai...

GARCIA / CINEASTA: Mas... tu tem que superar alguns pequenos
problemas.

CASSANDRA / GAROTA: Problemas?

GARCIA / CINEASTA: Eu tou te achando um pouco inibida. Uma atriz,
ela tem que saber seduzir o público. Senão as pessoas desligam,
entendeu?

CASSANDRA / GAROTA: Viu? Eu não sou envergonhada. Mas tu só vai
chegar perto de mim quando eu for atriz de verdade.

JOÃO BATISTA: Corta!

FOTÓGRAFO: Mais uma pra mim, mais uma pra mim, mais uma pra luz.

JOÃO BATISTA: Muito bom, muito bom!

MIRABELA: E aí? Gostou?

JOÃO BATISTA: Agora vamos fazer de novo, do outro lado, com
câmara na mão.

CÁTIA: Gostei. É incrível como parece de verdade.

VALDO: Cátia. Ôi.

CÁTIA: Ôi.

VALDO: Posso ajudar?

CÁTIA: Tem certeza? Tá pesado, hein?

CÁTIA: Obrigada.

VALDO: Senta aqui.

CÁTIA: Tu tá brincando, Valdo.

VALDO: Ah... Relaxa, Cátia...

CÁTIA: Dá pra tu largar isso aí, por favor?

CÁTIA: Ah, desculpa. Pode abrir. Era do meu vô.

VALDO: Tu quer que eu vá embora?

VERONESE: Mesmo? De verdade?

CÁTIA: Quero. Ou a gente tem uma casa, uma cama e uma vida
juntos, Rudi, ou a gente tem duas casas, duas camas e duas vidas
separadas. Eu aceito uma coisa ou outra, tudo bem. Agora, eu não
aceito uma casa e meia, uma cama e meia, uma vida e meia.

VERONESE: Tudo isso só porque eu disse que tava com preguiça de
ir pra casa?

CÁTIA: Não é só por causa de hoje. É por causa da semana passada,
do mês passado, do ano passado... Esses dias eu dormi na tua casa
e tive que ficar dois dias com a mesma calcinha, pô! Tou cansada!

VERONESE: Ah, meu amor... Tá chovendo...

CÁTIA: Nem vem, Rudi, nem vem.

VALDO: Sabe o que eu acho? Posso te dizer o que eu acho? Talvez
seja útil.

CÁTIA: Acho difícil. Mas vamos lá.

VALDO: Eu acho que tu criou uma culpa enorme, que tá te fazendo
sofrer de um jeito que tu não merece.

CÁTIA: Terminou?

VALDO: Não. Eu te amo.

VERONESE: Cátia... A gente se ama, tá tão legal... Poxa, cada um
na sua casa é...

CÁTIA: Se a gente for morar junto, a gente vai parar de se amar?

VERONESE: Amor é uma coisa muito complicada, Cátia.

CÁTIA: Pra mim não, Rudi. É bem simples. Vai pra tua casa.

VALDO: Tu tem certeza que é bom pra ti ficar sozinha?

CÁTIA: Sabe o que eu acho? Posso dizer o que eu acho? Eu tenho a
minha culpa, que é grande. Mas a tua também é, Valdo. Tu não me
ama.

MIRABELA: Se tu quiser, a gente espera. (...) Tá. (...) Tá, tudo
bem. (...) Tchau. (...) O João Batista tá na produtora. Mandou a
gente ver sem ele. Tava muito estranho.

CÁTIA: Ué, tá sem som?

MIRABELA: É assim mesmo. O som a gente põe depois.

MIRABELA: Alô. (...) Não. (...) Não, ninguém me disse nada. (...)
Era a Sílvia. Ela tá no estúdio. O João mandou desmontar os
nossos cenários.

JOÃO BATISTA: Atenção! Câmara! Ação!

JOÃO BATISTA: Corta! Eu quero mais um metro de trilho lá no fim.
Desliga o playback.

ASSISTENTE: Ô, Paulão. Mais um metro de trilho rapidinho,
rapidinho que a gente vai rodar.

JOÃO BATISTA: Cátia...

CÁTIA: Ôi, João. Olha, eu posso esperar, viu?

JOÃO BATISTA: Não, eu só vou sair desse estúdio daqui a uma
semana.

CÁTIA: Uma semana pra gravar um comercial?

JOÃO BATISTA: Não, cinco comerciais. Esse é o primeiro, e já
estou com vontade de matar aquela modelo. Ela não consegue tomar
energético e piscar ao mesmo tempo. É terrível.

CÁTIA: Se é tão terrível assim, por quê que tu faz?

JOÃO BATISTA: Tu sabe qanto que eu vou ganhar pra fazer cinco
comerciais de energético? Olha, ontem, na minha análise, eu
cheguei à conclusão que filmar o roteiro do Veronese era uma
espécie de cerimônia de despedida. Eu já me despedi. Diz isso pro
Holmes. Fala que ele pode terminar a obra-prima dele lá sem se
preocupar comigo. Tá bom?

CÁTIA: Tá bom.

HOLMES: Tá brincando.

CÁTIA: Parou mesmo. Desistiu. Bom, mas agora o filme é todo teu.
E aí, quantos dias ainda faltam de filmagem ?

HOLMES: Pois é, eu, eu não sei, eu... Acabou o dinheiro.

CÁTIA: Tu não disse que ia fazer o filme com três mil reais?

HOLMES: Eu disse, Cátia, mas é que... Eu fiz mais da metade. Mas
é que a Cassandra, ela tá complicando.

CASSANDRA: Ôi.

CÁTIA: Ôi.

CASSANDRA: E aí? Conseguiu a grana?

HOLMES: A grana?

CASSANDRA: A grana. Aquela coisa que serve pra pagar comida,
aluguel, conta de luz. Conseguiu?

HOLMES: Não. Mas eu, ma, mas eu consegui uma fita. Nova. Pelo
menos a gente não vai ter que refazer por causa de fita amassada.
Cassandra, vamos filnmar. Simone, a fita! Vamos lá, gente, a
Cassandra tá pronta. Cinema é vida!

CASSANDRA: Tá fria essa merda!

HOLMES: Pronto, tá pronto? Gravando? Então vai lá.

ASSISTENTE: Filme de mentira, cena dois, plano um, primeira.

HOLMES: Ação.

CASSANDRA / GAROTA: Ôi.

AFONSO: Ôi.

CASSANDRA / GAROTA: É aqui?

AFONSO: Claro.

CASSANDRA / GAROTA: Vamos lá.

AFONSO: Entra!

AFONSO / CINEASTA: Quê que achou? Não é perfeito?

CASSANDRA / GAROTA: É... É. O quê que é isso aqui?

AFONSO / CINEASTA: Ah, isso aqui é um fotômetro. Serve para medir
a luz.

CASSANDRA / GAROTA: Ahã.

AFONSO / CINEASTA: A gente tem que considerar a ASA do filme.
Sabe a ASA?

CASSANDRA / GAROTA: É.

AFONSO / CINEASTA: Estudou a cena?

CASSANDRA / GAROTA: É... Onde é que tá o ator?

AFONSO / CINEASTA: Ele, ele vai chegar mais tarde. Por enquanto,
eu vou fazer o papel, pra gente não ir perdendo tempo. Vamos lá?
É a cena do beijo.

CASSANDRA / GAROTA: Engraçado que... aquilo ali não é uma
filmadora de cinema, né? É, meu tio tem uma igual, quer dizer, a
dele é mais nova. E esse teu radinho de pilha não engana ninguém.
Tchau.

HOLMES: (OFF) Vai atrás dela.
 
HOLMES: Ô, Cassandra! Era pra ter saído direto, Casandra.

CASSANDRA: Vou embora.

HOLMES: Não, não, tava ótima a cena. Tava ótima. Ótima.

CASSANDRA: Vou embora, Holmes. Sabe que o imbecil do João
desistiu do filme dele, não? Sabe que eu paguei a minha passagem
de ônibus pra filmar contigo?

HOLMES: Cassandra...

CASSANDRA: Então, quando tu tiver uma grana, me liga.

HOLMES: Olha aqui, Cassandra...

CASSANDRA: Pensando bem... Não liga!

HOLMES: Cassandra...

CÁTIA: Escuta aqui, Holmes... E aquele dinheiro que eu te
emprestei?

HOLMES: Aquele dinheiro?

CÁTIA: É...

HOLMES: Eu tive que pagar o meu aluguel. Tava seis meses
atrasado. Acabou o filme. Desculpa, Cátia. Desculpa.

HOLMES: Tu tava gravando isso tudo? Tava gravando? É? Pô, desliga
essa merda, porra!

VALDO: Esse tem uma trepada sensacional. A menina tinha dezessete
anos, deu um baita rolo com a mãe dela.

CÁTIA: Pode tirar. Já vi em vídeo.

CÁTIA: O João Batista e o Holmes desistiram dos filmes.

VALDO: Eu sei. Em compensação, eu começo o meu depois de amanhã.

CÁTIA: Ah, é?

VALDO: Tu quer dar uma passada no set?

CÁTIA: Posso ir mesmo?

VALDO: Claro.

CÁTIA: Então eu vou.

VALDO: Tu não quer ler o final que eu escrevi?

CÁTIA: Não.

VALDO: Esse eu nunca vi.

CÁTIA: "Aurora"...

VALDO: Tu pega pela perna, assim.

ATOR: Ah, na perna.

VALDO: Isso, e usa o joelho.

CASSANDRA: Ah... Tri bom!

VALDO: Mais suave, né?

CASSANDRA: Ahã.

VALDO: Já tira o sapato...

CASSANDRA: Tá.

ATOR: É bem melhor assim.

VALDO: OK?

CASSANDRA: OK.

VALDO: Vamos passar a cena? toda?

CASSANDRA: Vamos.

ATOR: Agora vai.

VALDO: Vamos lá?

CASSANDRA: Tu pega aqui?

VALDO: Posição inicial... Ah, silêncio, hein? Vamos passar do
início até o fim.

CASSANDRA: Devagarzinho fica melhor.

ATOR: Fica mais bonito.

VALDO: Vamos lá? OK?

CASSANDRA: Vamos.

VALDO: Ensaiando.

VALDO: Isso! E já vai tirando a roupa dela. Bom esse beijo.
Suave, suave, isso...

CASSANDRA: Espera.

VALDO: Um pouquinho mais alto, Cassandra.

CASSANDRA: Espera.

VALDO: Pede agora! Pede agora, Cassandra!

CASSANDRA: Apaga a luz!

CASSANDRA: Apaga a luz...

VALDO: Ele não quer saber de luz porra nenhuma.

CÁTIA: Ahn, eu quero fechar a cortina.

CASSANDRA: Por favor...

CÁTIA: Fecha a cortina... Fecha!

VALDO: Agora o momento em que ela pede de novo.

CASSANDRA: Apaga... a luz!

ATOR: Mais luz?

VALDO: Olha pro teto. Olha pro teto.

CÁTIA: Filho da puta!

VALDO: Como é que eu ia adivinhar? Pra mim, aquilo tudo é ficção.

CÁTIA: Eu sei. Ficção. Por quê que tu falou pro Rudi da gente?

VALDO: Eu não falei nada, Cátia.

CÁTIA: Falou. Eu sei que falou. Valdo, não mente mais pra mim.
Por favor.

VALDO: Ele sabia.

GARÇONETE: Bom apetite.

VERONESE: Obrigado.

VERONESE: Não precisa ter medo. Eu amo muito a Cátia. E vou
continuar amando.

VALDO: Tira essa bobagem da cabeça, Rudi. Eu pensei que tu queria
falar sobre o regulamento do concurso. De onde é que tu tirou...

VERONESE: A Cassandra me disse que tu andava meio estranho. Aí eu
pensei: eu vou ligar pro Valdo, faz tempo que a gente não se
fala. Aí eu liguei, pra marcar um almoço. Tu é um cara muito
ocupado, eu sei. Mas as tuas desculpas eram... horríveis.

VALDO: Eu tô realmente muito ocupado.

VERONESE: Tudo bem. É o preço do... sucesso. Só que, nos mesmos
dias em que eu tentava marcar contigo, depois de não conseguir,
eu tentava marcar com a Cátia. E ela também me dava desculpas...
horríveis.

VALDO: Coincidência, Rudi. Que coisa ridícula!

VERONESE: Quatro vezes seguidas? Tsc, tsc, tsc, tsc. Coincidência
demais. E aí, de repente, tu me liga e diz "amanhã eu posso". E,
uma hora depois, a Cátia também me liga, me convidando pra
almoçar.

VALDO: Paranóia, cara! Tu tá completamente enganado.

VERONESE: Talvez. Mas a Cassandra me disse outra coisa também. Tá
transando contigo. Há mais de um mês.

VALDO: Porra!

VALDO: E eu fiquei com medo.

CÁTIA: Medo do quê?

VALDO: Me escuta até o fim! Por favor...

VALDO: Obrigado.

VALDO: Tudo bem. Eu admito. Tou namorando a Cassandra. A gente
combinou de não contar pra ninguém, mas ela falou pra ti. E daí?
O que é que a Cátia...

VERONESE: Tu e a Cassandra. Meus parabéns. Eu vou contar pra
Cátia. Vai ser bom pra mim. Ela sempre teve ciúmes da Cassandra.
E talvez agora ela pare de me encher o saco. Eu sei que é melhor
ficar quieto. Eu só preciso que tu me diga a verdade. É um trato.
Fica tudo como tá.

VALDO: Olha, Rudi... Eu e a Cátia... Eu sei que foi errado. Muito
errado.

VERONESE: Errado? Não sei. Talvez tenha sido bom. Tou falando
sério. Me fez pensar. Eu amo muito a Cátia. E eu decidi morar com
ela. A gente pode casar, ter filhos, sei lá.

VALDO: Eu tive medo de te magoar.

CÁTIA: E tu também transava com a Cassandra porque tinha medo de
me magoar?

VALDO: Com a Cassandra não era sério, Cátia. Por ti eu tava
apaixonado. Hum... Tu não acredita em mim, né?

CÁTIA: Não. Na tua paixão não. Mas tudo bem. Eu acredito no
resto. Faz sentido. E é o que importa, né? A gente junta os
pedaços e encontra um sentido.

GARCIA / CINEASTA: OK, deixa eu ver aqui... Tu, na hora que
abraçar ela, tá, demonstra o carinho mesmo. Tudo bem?

CASSANDRA / GAROTA: Mas não parece uma câmara de cinema.

ROGER: Mas é. De cinema digital.

CASSANDRA / GAROTA: Ahã...

GARCIA / CINEASTA: É, teve um filme que ganhou o festival de
Cannes que foi filmado com um câmara igualzinha a essa. Chama
"Dançando no escuro". A Bjork, aquela cantora, fez uma cega. Tu
chegou a ver, não?

CASSANDRA / GAROTA: Não.

GARCIA / CINEASTA: Não?

CASSANDRA / GAROTA: Acontece que eu não sou cega. E o público
também não. Eu sou uma atriz, eu não sou cantora. E eu não passei
dez mil horas malhando numa academia para ficar dançando no
escuro. Eu quero atuar no claro. E na frente de uma câmera de
cinema!

GARCIA / CINEASTA: Mas, mas é um filme pós-moderno, que usa
várias tecnologias. Olha só: amanhã a gente filma em dezesseis
milímetros, tá bem? Eu juro.

CASSANDRA: Amanhã eu quero ver uma câmara de cinema. Cinema! Ou
então esse filme acaba antes de ter começado. Droga! Sai daqui!

AFONSO / CINEASTA: Você se aproxima dele e diz "eu te amo".

ATOR: Entendi.

AFONSO / CINEASTA: E abraça.

CASSANDRA / GAROTA: Tá, tá certo, tá certo. Então ele me abraça,
mas vamos começar, né?

AFONSO / CINEASTA: Atenção! Vai som.

OPERADOR DE SOM: Foi som.

ASSISTENTE: (OFF) Cena três, plano um, tomada um.

AFONSO / CINEASTA: Câmara.

OPEERADOR DE CÂMARA: Foi câmara.

AFONSO / CINEASTA: Pode bater. Vamos rodar. Ação!

CASSANDRA / GAROTA: Corta!

AFONSO / CINEASTA: Corta?

CASSANDRA / GAROTA: Abre essa câmara.

OUTRO ROGER: Não, não. Vai estragar o filme.

CASSANDRA / GAROTA: Não, não tem filme nessa câmara. Ele tava
rindo de mim. E essa porcaria não tá funcionando, sai daquiaqui!

AFONSO / CINEASTA: Que paranóia! É claro que tem filme...

OPERADOR DE CÂMARA: Eu botei... Bá, esqueci o filme.

CASSANDRA / GAROTA: Tu ainda vai ouvir falar de mim! Eu vou ser
atriz!

AFONSO / CINEASTA: Tu não é atriz e tu nunca vai ser!

CASSANDRA / GAROTA: E tu vai passar a vida inteira dizendo que
faz cinema pra tentar comer as atrizes. Mas não faz filme nenhum!
E não come ninguém!

CÁTIA: Tá super bom. Bom mesmo! Parabéns, viu?

LINDA: Obrigada. Mas e agora?

CÁTIA: Daqui pra frente?

LINDA: É... Umas cenas tão incompletas. E tem três cenas
faltando, que nenhum dos dois filmou. Eu tenho uma idéia.

CÁTIA: Que idéia?

LINDA: Não sei se vai dar certo. Nunca fiz um filme antes.

CÁTIA: Hum, nem eu. Mas conta aí: qual é a idéia?

LINDA: Depois dessa cena vem um letreiro, tipo assim: "Alguns
anos depois."

CASSANDRA / GAROTA: Ai, é tão difícil saber se é um simples
desejo, se é amor ou se é paixão. Talvez o problema seja essa
mania de ligar cada sentimento a uma determinada palavra.

CASSANDRA / GAROTA: Quem sabe, sem palavras o mundo seria menos
confuso... Sem nomear, só sentir.

CASSANDRA / GAROTA: Mas como eu poderia dizer "eu te amo" sem
usar palavras?

DIRETOR: (OFF) Corta! Ótimo. Almoço!

CASSANDRA / GAROTA: Ah, que saco!

CASSANDRA / GAROTA: Ah, minha filha, ai!

ASSISTENTE DE FIGURINO: Ai! Tem um moço querendo falar contigo.

CASSANDRA / GAROTA: Que moço?

ASSISTENTE DE FIGURINO: Aquele ali.

CASSANDRA / GAROTA: Sai!

CASSANDRA / GAROTA: Hum... É, faz quase três anos.

GARCIA / CINEASTA: Passa depressa, né?

AFONSO / CINEASTA: Nunca pensei em trabalhar como assistente na
televisão. Eu até pensei em recusar. Mas, quando fiquei sabendo
que era contigo...

CASSANDRA / GAROTA: Há. E o cinema?

GARCIA / CINEASTA: Hum... Fiz um curta agora, mas... não ficou
muito bom.

AFONSO / CINEASTA: Vi quase todos os capítulos semana passada. É
impressionante como a tua personagem foi crescendo.

CASSANDRA / GAROTA: É... Dizem que a audiência cresce nas minhas
cenas. Dizem que eu tenho "empatia" com o público. Quanto maior o
decote, maior a empatia.

AFONSO / CINEASTA: Que bobagem. Tu é uma atriz muito talentosa.

CASSANDRA / GAROTA: Ainda não sou nada. Mas quero ser. Eu tenho
que fazer cinema. Eu tenho que fazer cinema!

ASSISTENTE: Solemara! Dez minutos. Vamos começar a vestir?

CASSANDRA / GAROTA: Humpf...

CASSANDRA / GAROTA: Vou te contar um segredo.

AFONSO / CINEASTA: Quê?

CASSANDRA / GAROTA: Eu vou posar pra Playboy. Uma milha! Vou
comprar apartamento novo, carro novo... Mas também vou produzir
um filme. Eu vou ser a atriz principal, e tu vai dirigir.

AFONSO / CINEASTA: E qual é a história?

CASSANDRA / GAROTA: Jovem cineasta inventa filme de mentira pra
tentar conquistar garota ingênua que deseja ser atriz. Topa?

ESTRELA: E o prêmio de melhor atriz de curta-metragem vai para...
Solemara Silva, por "Filme de mentira"!

CASANDRA / GAROTA: Meu Deus do Céu, eu... eu acho que eu vou
desmaiar. Bom... Primeiro, eu queria agradecer a equipe deste
filme, ao Festival... Mas tem uma pessoa que eu devo agradecer
acima de tudo. E essa pessoa é o homem que eu amo, meu marido,
diretor deste filme, Volnei Sanches!

CASSANDRA / GAROTA: Só, só um minuto. É... Eu gostaria de
contar... Faz três anos... o Volnei me convidou pra fazer um
filme.

CASSANDRA / GAROTA: Eu pensava que ele queria se aproveitar de
mim.

CASSANDRA / GAROTA: Ele me jurava que era um filme de verdade.

CASSANDRA / GAROTA: Mas hoje eu sei.

CASSANDRA / GAROTA: E sabem por que ele mentiu?

CASSANDRA / GAROTA: Ele era capaz de fazer qualquer coisa pra
ficar perto de mim.

CASSANDRA / GAROTA: Ele era capaz de escrever uma história, com
personagens que ele inventava, pra tentar me dizer o que ele
sentia. De chamar um monte de gente pra... fazer de conta que
tava filmando aquela história. E eu, burra, não percebi que só um
homem apaixonado é capaz de tanto esforço.

CASSANDRA / GAROTA: O nosso filme é sobre isso. Sobre como o amor
nos leva a fazer as coisas mais idiotas e maravilhosas da face da
terra. Sobre como a arte nos faz compreender melhor o mundo. E
como é preciso fabricar ilusões para dizer alguma coisa sobre as
nossas verdades mais preciosas.

CASSANDRA / GAROTA: Viva o amor!

CASSANDRA / GAROTA: E viva o cinema!

LETREIRO: Roteiro: Rudi Veronese.

LETREIRO: Montagem: Linda Veronese e Cátia Lima.

LETREIRO: Direção: João Baptista Conrado e Holmes Padilha.

VALDO: O filme só tem um problema, Cátia. Ué? Cadê a Cátia?

MIRABELA: Elas estavam aqui.

JOÃO BATISTA: Qual é o problema, Valdo?

VALDO: Os créditos. Tão errados. O filme não é teu, nem do
Holmes. É da Cátia e da Linda.

JOÃO BATISTA: Por quê? Se elas montaram o que eu filmei...

HOLMES: Não! O que nós filmamos.

JOÃO BATISTA: Eu filmei, em trinta e cinco. Tu fez esse lixo em
digital.

HOLMES: Lixo? Lixo são esses teus planos de comercial de
refrigerante que tu faz.

MIRABELA: Vão começar?

CASSANDRA: Vocês filmaram o que o Veronese escreveu. O filme é
dele.

VALDO: Mas as duas é que juntaram os pedaços e deram um sentido.
Um sentido novo. Isso é o que interessa. A Cátia e a Linda
fizeram este filme. Cadê elas?

CÁTIA: Um menino cresce muito solitário, numa cidade do interior.
E o único divertimento que ele tem é o cinema. Ele se apaixona
por todas as atrizes e nunca é correspondido, claro. Isso faz com
que ele fique meio estranho: ele não consegue se relacionar
direito com as mulheres de verdade, entende? É isso. Tu acha que
dá um curta?

LINDA: É a história do meu pai?

CÁTIA: É... Talvez, um pouco. Quem é que pode saber, não é? Tu
gostou?

LINDA: Acho que sim. E a segunda idéia?

CÁTIA: A segunda já é mais complicada, acho que dá um longa.

LINDA: Sobre...

CÁTIA: Sobre cinema. E sobre amor. O Rudi sempre dizia que os
filmes bons são sobre amor.

LINDA: Já tem título?

CÁTIA: Tem. "Sal de prata".

LINDA: Bonito. "Sal de prata". Como é a história?

CÁTIA: Ah, ainda tou começando a escrever...

LINDA: Só a primeira cena...

CÁTIA: Só a primeira? Tá bom, essa eu sei, foi o teu pai que
escreveu: assim, aparece uma garota, a gente só vê o rosto dela e
os ombros nus. Aí ela olha pra câmara e diz:

CASSANDRA: Corta!

CÁTIA: Corta.

DIRETOR: Corta!

************************************************************

(c) Carlos Gerbase, 2004-2005
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

18/03/2005

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