SANEAMENTO BÁSICO, O FILME - texto final

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               SANEAMENTO BÁSICO

               Texto final 11/01/2007
               Jorge Furtado

               Produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

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MARINA: Oi, tudo bom? Tudo bem, que bom, graças a Deus que vocês
vieram. Não, pode sentar, por favor, tem cadeira aí sobrando.
Pega aquelas duas ali. Isso, vem! Pode, gente. Não, tem cadeira
ali, olha, tem cadeira aí. Senta. Tem outra ali também, pode
sentar. Vai sentando, gente. O casal aí, pode sentar ali. Isso.
Pega a cadeira aí pra sentar. Mas vão ficar sentados aí, longe?
Chega mais perto, gente, vamos, aqui. Isso. Por favor... Vamos
esperar um pouquinho, vai que chega mais alguém, né? Será que vem
mais alguém?, agora eu não... É chato, a pessoa atrasa... Não,
vamos começar logo, né, se a pessoa chegar atrasada, aí vocês
contam o quê que tá acontecendo, e é melhor. Vamos começar então,
melhor começar, né? Posso começar? Então vamos. Muito obrigada.

MARINA: Disse o poeta que "a natureza é grande nas coisas
grandes, e enorme nas coisas pequenas". Nós sabemos, senhor
prefeito, que um pequeno arroio que corta uma pequena comunidade
do município é apenas um pequeno arroio. Mas para nós, moradores
da comunidade da Linha Cristal, a antiga Linha Marghera, o arroio
Cristal é único. Foi por isso, senhor prefeito, que a comunidade
da Linha Cristal, a antiga Linha Marghera...

OTAVIANO: Filha, não precisa repetir isso. Agora pode ser só
Linha Cristal.

MARINA: É. Melhor.

MARINA: Então... Foi por isso, senhor prefeito, que a comunidade
da Linha Cristal, reunida em assembléia nas dependências da
Movelaria Marghera, resolveu tomar providências a respeito...

OTAVIANO: Do cheiro de cocô.

JOAQUIM: Ô, seu Otaviano...

MARINA: Resolveu tomar providências a respeito da recuperação do
Arroio Cristal, com a realização de obras de saneamento básico
para tratar o esgoto da comunidade...

JOAQUIM: Marina, eu acho... Eu acho "esgoto da comunidade" ruim,
eu acho melhor você botar "pra tratar da limpeza do arroio", uma
coisa assim mais...

MARINA: Mas a obra é para o tratamento do esgoto. Qual o problema
de falar "o esgoto da comunidade"? Não é?

JOAQUIM: Eu acho esgoto... Esgoto é uma palavra ruim, parece...
parece "o cocô da comunidade".

OTAVIANO: Mas é o cocô da comunidade.

MARINA: Ah, não papai, por favor! Joaquim... Parece criança os
dois, fala de cocô, fica achando engraçado? "O esgoto da
comunidade" não é bom?

OTAVIANO: É bom, é bom.

MARINA: Por favor, posso continuar?

JOAQUIM: Pode.

MARINA: A referida obra, com projeto em anexo... Roda, por
favor... Será realizada nas proximidades do Moinho Bertarello. Um
orçamento preliminar foi feito...

ANTÔNIO: Orçamento sem custos e sem compromisso.

MARINA: Ah, é bom, seu Antônio, um orçamento... Um orçamento
preliminar...

ANTÔNIO: É...

MARINA: ... sem custos e sem compromisso, foi feito por uma
empresa local, e estima em oito mil reais o valor da obra.

OTAVIANO: É preciso fazer um novo orçamento.

ANTÔNIO: Ma che... ma che... É claro, é claro, é claro.

OTAVIANO: Eu ainda acho que uma fossa nova atrás da igreja já
resolvia o problema.

ANTÔNIO: Não resolvia, não!

OTAVIANO: Antônio...

ANTÔNIO: Tem que ser lá em cima, perto do moinho. Atrás da igreja
o arroio já está completamente fedido.

MARINA: Seu Antônio, por favor... Papai, isso já foi decidido,
está no projeto em anexo. Por favor, essa obra vai ser feita lá
atrás, no moinho.

OTAVIANO: Claro. E lá a obra tem que ser bem maior...

ANTONIO: Se é pra fazer, tem que fazer bem feito...

OTAVIANO: Pode ser que tenha alguém que faça mais barato.

ANTÔNIO: Mais barato sai pior!

OTAVIANO: Pode ser caro e mal feito...

ANTÔNIO: Isto é vero. Porém acontece em todas as atividades.
Inclusive na sua.

OTAVIANO: Nem todas, Antônio, nem todas.

MARINA: Seu Antônio, seu Antônio... Papai... Seu Antônio!

OTAVIANO: Todas não, Antônio.

ANTÔNIO: Eh, eh, eh.

MARINA: A comissão eleita para representar os moradores será
composta pelo senhor Joaquim Figueiredo e pela senhora Marina
Marghera Figueiredo, ficando o senhor Otaviano Marghera de
suplente.

OTAVIANO: Eu acho que eu não vou poder ir.

MARINA: Bom, o senhor Otaviano então, ele ficou de confirmar até
segunda-feira se vai acompanhar ou não a comissão em visita à
sub-prefeitura.

OTAVIANO: Minha filha, já fui lá dez vezes, aquela cambada não
quer saber de nada, só de cafezinho, auxílio-paletó...

MARINA: Bom, o senhor Otaviano então gostaria de deixar aqui
registrado que o pleito para recuperação do arroio já foi feito
inúmeras vezes, inclusive por ele, que por duas vezes procurou...

OTAVIANO: Dez vezes! Não fazem porcaria nenhuma...

MARINA: Dez vezes procurou o sub-prefeito, além de inúmeros
abaixo-assinados...

OTAVIANO: Isso não vai adiantar de nada...

MARINA: E afirma aqui que isso não vai adiantar em nada. Mas que
talvez, não é papai, quem sabe, se tiver um tempo, talvez
acompanhe a comissão em visita à cidade.

OTAVIANO: Se der!

OTAVIANO: Não dá.

MARINA: Papai, por favor, era tão importante que o senhor fosse
conosco na sub-prefeitura, papai.

OTAVIANO: Eu tenho que entregar oito beliches hoje de tarde,
Marina.

JOAQUIM: Não, mas aqui tá quase tudo pronto já, seu Otaviano.
Esse aqui tem que embalar ainda. mas eu tomo aqui, conta de tudo
aqui pro senhor, o senhor vai lá com a Marina.

MARINA: Hum?

OTAVIANO: No carro com ela? Não, brigado...

MARINA: Isso é implicância do senhor, eu dirijo muito melhor que
o Joaquim.

JOAQUIM: É, de novo vem falar essa história...

MARINA: Quê que foi? Quê que você falou?

JOAQUIM: Não, eu não falei nada.

MARINA: Ah, eu nunca bati.

JOAQUIM: Nem eu bati, Marina. Eu tava com o carro parado, o cara
veio para cima de mim.

MARINA: Ah, sei.

JOAQUIM: É bater isso?

MARINA: Não sei.

JOAQUIM: É bater isso?

MARINA: Não sei...

JOAQUIM: Nhenheném, nhenhém, nhenhém, essa história desse carro,
seu Otaviano...

OTAVIANO: Calma, calma... Vamos fazer o seguinte: você vai com
Marina na prefeitura, e eu fico aqui e tomo conta de tudo.

MARINA: Viu, ó? Ó, ó...

OTAVIANO: Vai, vai.

MARINA: Eu dirijo.

se' ti fan un' po sofrire
perdonali perche
non sanno cosa fanno
io soffro come te
se tua sorriso triste
non li ha convinti mai
tu no li devi odiare
perdonarli se puoi
qualcuno deve amare
e' lo faremo noi

one, two, three, four

sha la la la la la, piangi con me

LETREIRO: SANEAMENTO BÁSICO, O FILME

sha la la la la la, piangi con me
domani forse cambiera vedrai
sha la la la la la, piangi con me
piangi con me

JOAQUIM: Você vai querer falar do...

MARINA: Você não quis falar, Joaquim...

JOAQUIM: Bom, o primeiro orçamento que foi feito por... Você
pegou o papel do... do orçamento?

MARINA: Como, não tá aí? Joaquim, tá aqui, Joaquim.

JOAQUIM: ... foi feito por um empreiteiro local, nosso lá, agora
ele é de oito mil reais.

MARINA: Essa obra tem que ser feita agora, no inverno, porque no
verão aquilo ali fica um cheiro insuportável, as crianças ficam
brincando naquela água podre, depois... ficam pegando doença,
muita conjuntivite no cidade.

JOAQUIM: Tem muita criança lá na região, né?

MARINA: ... muita gente também... aparecendo com micos.

JOAQUIM: Eu achava que você tinha que fazer outro orçamento,
porque você vai encontrar uma pessoa pra fazer isso por um
dinheiro...

MARINA: E as moscas que ficam pousando naquele esgoto, depois
elas entram pela janela na casa da gente, pousam na comida da
gente.

JOAQUIM: Você... você vai encontrar uma pessoa que faça isso por
menos do que tá aqui.

MARCELA: Não, ó: a reivindicação de vocês é totalmente legítima.

MARINA: É uma questão de saúde pública.

MARCELA: De saúde pública. Mas, infelizmente, a subprefeitura não
dispõe de verbas na rubrica saneamento básico para este
exercício.

MARINA: O quê que ela falou?

MARCELA: Não tem dinheiro para obras esse ano. Daqui a pouco já
vem a copa do mundo, depois tem eleições, depois tem o natal,
pronto! Acabou-se o ano.

JOAQUIM: Não, acabou o ano, já? É junho, ainda... Em junho,
acabou o ano?

MARINA: Um absurdo isso. Um absurdo!

MARCELA: Também acho um absurdo. Também acho.

JOAQUIM: Você lembra que eu tinha uma camisa dessas?

MARINA: Quê?

JOAQUIM: Eu tinha uma camisa dessas, só que era vermelha a rosa,
lembra?

MARINA: Vermelha e rosa? Como assim?

JOAQUIM: Não, vermelha e preta. A rosa era vermelha, a flor. Que
eu dei a seu pai, era uma camisa vermelha igual a essa.

MARINA: Pera aí, Joaquim, o quê que ela tá falando? deixa eu
prestar atenção.

MARCELA: E mais absurdo ainda é que, sem verbas para obras
importantes como essa, da construção da fossa no arroio Cristal,
a prefeitura tem quase dez mil reais em verbas pra produção de um
vídeo, imagina só.

MARINA: Desculpa, eu perdi o que a senhora falou.

MARCELA: Um vídeo.

MARINA: Um vídeo? Como assim, um vídeo?

JOAQUIM: É como se... como se fosse um filme...

MARCELA: É um filme, só que pode ser feito em vídeo.

MARINA: Como, um filme que faz em vídeo?

MARCELA: Tem uma verba para produção de um vídeo, um filme. É um
concurso federal, um prêmio pra produção de filmes em cidades de
até vinte mil habitantes, imagina só.

MARINA: Mas por quê que ela tá falando isso?

MARCELA: O filho dum vereador fez um projeto e foi aprovado. Mas
aí ele desistiu. A verba já foi locada, é do governo federal. Se
eu não gastar, eu vou ter que devolver.

MARCELA: A verba já foi alocada, é do governo federal.

MARINA: Poxa... Devolver dinheiro é chato.

JOAQUIM: Quanto é a verba que você falou?

MARCELA: Dez mil reais.

JOAQUIM: Dez mil reais! É muito dinheiro isso...

MARINA: Ah, dez mil reais é pra esse vídeo?

MARCELA: Já imaginou? Devolver dez mil reais para Brasília? Isso
não existe...

MARINA: Dez mil reais! Joaquim...

JOAQUIM: Isso é dinheiro...

MARCELA: Dá para fazer a fossa. Dá e sobra.

MARINA: Shhhh...

MARINA: Um vídeo ecológico.

JOAQUIM: Sobre o esgoto?

MARINA: É, sobre o esgoto, ué, sobre... Sei lá, sobre a
importância do tratamento do esgoto, sobre a construção da fossa.

JOAQUIM: Ah, mas um vídeo sobre a construção de uma fossa?

MARINA: É...

JOAQUIM: Quem vai querer ver isso, Marina?

MARINA: Sei lá, ué... A gente faz um vídeo educativo, pra...
passar em escola, pra criança ver.

JOAQUIM: Ah, coitadas das crianças.

MARINA: Ah, esse vídeo não importa, Joaquim. O importante é a
gente pegar esse dinheiro da prefeitura e fazer a fossa,
entendeu?

JOAQUIM: Não, sim... Fazer a fossa, aí eu acho que pode ser uma
boa idéia.

OTAVIANO: Que idéia ridícula!

MARINA: Ridícula porque não foi sua.

OTAVIANO: Não é verdade. Se fosse minha seria ridícula também.
Ora, fazer um filme sobre a construção de uma fossa? Pra que
filmar esgoto?

SILENE: Um filme...

MARINA: É. Só que pode ser feito em vídeo, entendeu?

SILENE: E quem vai filmar?

MARINA: Ah, sei lá, Silene.

SILENE: Ah, o Fabrício tem uma filmadora.

MARINA: Ele tem?

SILENE: Tem.

MARINA: Ah, e ele empresta, Silene?

SILENE: Hum. Emprestar acho que não, porque ele é cheio de
paninho e caixinha.

MARINA: Ah....

SILENE: Ah, mas ele pode filmar.

MARINA: Como, ele sabe filmar?

SILENE: Sabe, sim. Faz uns efeitos, às vezes fica meio escuro,
mas ele sabe.

MARINA: Ah, fala com ele, vai, Silene...

SILENE: Eu falo.

FABRÍCIO: Ah, não, Silene, vamos mais outra, rapidinho. É cedo
ainda, Silene. Olha como é que eu tou. Olha como é que eu tou...

SILENE: Você ainda tem aquela filmadora?

FABRÍCIO: Tenho. Quer que eu busque?

SILENE: Não, não, não! Quero emprestada.

FABRÍCIO: Hum?

SILENE: Minha irmã quer.

FABRÍCIO: Sua irmã, é?

SILENE: Não é pra isso que você está pensando, não, tá?

FABRÍCIO: Tinha que ser uma chatice qualquer.

FABRÍCIO: Cuidado com isso aí, Silene...

FABRÍCIO: Quem é que vai operar, hein?

SILENE: Operar?

FABRÍCIO: Operar a câmara.

SILENE: Ah... Sei lá, eu, Marina, Joaquim.

FABRÍCIO: Não, Joaquim, não. Eu não vou botar uma câmara de três
cecedês que custou três mil e quinhentos dólares na mão do
Joaquim, Silene. Isso daí é cheio de menus, controles, tudo em
inglês. Me dá a fita, vai. Não, desliga isso aí... Silene... Ô,
Silene, essa cueca é horrível. Pára com isso.

SILENE: Hum....

FABRÍCIO: Silene, desliga isso, você nem viu o que tinha nesta
fita, pode tá apagando alguma coisa.

SILENE: Ahn, só tem bobagem, essas fitas só tem bobagem, vai...

FABRÍCIO: É a melhor coisa de filmar. Sabia?

SILENE: Quê?

FABRÍCIO: Bobagem. Bobagem é bom de filmar.

SILENE: Hum... Você empresta?

FABRÍCIO: O quê, a câmara? Nem pensar. Era só o que faltava. O
Joaquim operando câmara...

SILENE: Então você filma.

FABRÍCIO: Tá bom, Silene. Tá bom. Que dia?

SILENE: Ah, não sei. Te aviso.

FABRÍCIO: De qualquer maneira, vai ter que comprar outra fita.

SILENE: Eu compro. Que fita é?

OTAVIANO: Cinqüenta real? Mas cinqüenta real é o preço de uma
cadeira.

MARINA: Sim, pai, mas a gente não precisa de uma cadeira, a gente
precisa de uma fita.

OTAVIANO: Não dou. Não vou gastar meu dinheiro numa idéia absurda
dessas.

JOAQUIM: Ah, mas não pode usar essa fita? Só grava uma vez essa
fita?

SILENE: Não. Essa é do Fabrício, ele não quer apagar.

MARINA: Fabrício, né?

JOAQUIM: Eu compro a fita.

MARINA: Você compra? O Joaquim compra, pai. E guarda a nota,
hein?

JOAQUIM: Quarenta e oito reais uma fita?

MARCELA: Ai, que caro... Deixando claro que a minha opinião é
sigilosa e que o meu nome não pode ser citado, eu apóio
fortemente a realização do vídeo e a utilização da verba, que
seria um absurdo devolver para Brasília... pra obra de saneamento
do Arroio Cristal. No entanto, pra requerer a verba, a comunidade
precisa apresentar o roteiro e um projeto do vídeo.

JOAQUIM: Um roteiro e o projeto.

MARCELA: No projeto, eu posso ajudar, mas o roteiro vocês vão ter
que inventar.

JOAQUIM: Roteiro...

MARCELA: Roteiro é a história.

JOAQUIM: A história.

MARCELA: A história. Ah, e tem outra coisa: a verba é
necessariamente pra obras de ficção.

LETRA DE MÚSICA: um vampiro, um lobisomem, um saci pererê: quando
à meia-noite me encontrar junto a você: algo diferente vou
sentir, vou precisar me esconder: na sombra da lua cheia, esse
medo de ser: um vampiro, um lobisomem, um saci pererê: um
vampiro, um lobisomem, um saci pererê

MARINA: Ficção?

JOAQUIM: É, tem que ser ficção.

MARINA: Mas científica?

JOAQUIM: Científica. Ficção científica.

MARINA: Ficção científica?

JOAQUIM: Acho que é.

MARINA: Como acha, Joaquim? Ou você acha ou você tem certeza...

JOAQUIM: Eu acho, Marina. Eu acho.

MARINA: Por quê que não perguntou pra mulher?

JOAQUIM: Perguntar o quê?

MARINA: Como, o quê? O quê que é ficção?

JOAQUIM: Todo mundo sabe o que é ficção.

MARINA: Todo mundo, menos você.

JOAQUIM: E você.

MARINA: Mas eu não tenho vergonha de perguntar!

JOAQUIM: Então vai lá e pergunta você!

MARINA: Ficção...

che bella cosa
na iurnata e sole
n'aria serena
doppo 'na tempesta
pe llaria fresca
para giá na festa
che bella cosa
na iurnata o sole

MARINA: E o nosso beliche, não, ele tem um metro de espaço entre
uma cama e outra. Eu acho que a gente fica tão sufocada em
beliche comum, vocês não acham? Meu pai que o diga, não é, pai?
Dormiu a vida inteira em beliche, é o oitavo de nove irmãos.

CLIENTE: Nossa!

MARINA: Tinha tanto problema de dormir em beliches, não é, pai?
Quando tava na cama de cima diz que sonhava que tava caindo num
precipício. Quando ia pra cama de baixo, tinha aquele sonho com
caixão. Foi por isso que ele teve essa idéia maravilhosa de botar
essa peça aqui, que é o grande segredo, entre uma cama e outra,
aumentando o espaço entre as camas. E o problema é que aí a cama
de cima subiu e tinha o problema do dormente bater com o nariz no
teto. O quê que ele fez? Ele cortou o pé, um pouco,

OTAVIANO: Marina!

MARINA: E chegamos ao beliche Marghera. Oi, pai. Só um
momentinho, nós temos diversos... modelos, e a gente tem até um
triliche, se a família for grande. Pode ficar a vontade, viu? Ô,
Joaquim, serve um café aqui... pra eles.

CLIENTE: Obrigada.

MARINA: Oi, pai.

OTAVIANO: Marina, quando você diz "dormente", as pessoas não
entendem.

MARINA: Ah, como não entende? Dormente é a pessoa que dorme, está
certo, pai.

OTAVIANO: Tá certo, mas nao se usa esta palavra assim. Dormente
parece mais aquelas madeiras de botar embaixo de... trilho de
estrada de ferro. Diga "a pessoa que dorme".

MARINA: Tá bom, pai. Vou falar.

MARINA: Pai...

OTAVIANO: Hã?

MARINA: O quê que é ficção?

OTAVIANO: Como assim?

MARINA: Um filme de ficção, pai, o quê que é?

OTAVIANO: É um filme... de, de monstro, futuro... coisa que não
existe. Ficção...

MARINA: É isso?

OTAVIANO: É.

MARINA: Tem certeza que é isso, pai?

OTAVIANO: Mas claro que eu tenho certeza! Então já não vi
milhares de filmes de ficção, Marina? Ah...

JOAQUIM: Filme de monstro ou filme de futuro?

MARINA: Ué, Joaquim, um filme de monstro ou... ou um filme que se
passa no futuro, é... é ficção, não sei, uma coisa que não
existe.

JOAQUIM: Não... É um filme de monstro ou é um filme de futuro,
porque pode ser filme de monstro e ser no passado. Ser filme de
lobisomem, de dino... Dinossauro é passado ou futuro?

MARINA: Passado.

JOAQUIM: Passado. E pode ser filme de futuro sem monstro, ser
filme de... capacete, daquelas pessoas de roupa de plástico,
de... De nave, de foguete, quer dizer.... Quer dizer: ficção é o
quê?

MARINA: Você tinha que ter perguntado para aquela mulher!

JOAQUIM: Ah.... Pergunta você, que inventou essa história desse
filme! Ha...

MARCELA: Ficção: substantivo feminino, ato ou efeito de fingir.
Construção, voluntária ou involuntária, da imaginação; criação
imaginária, fantasiosa, fantástica, quimera... mentira, farsa,
fraude...

MARINA: Como? É crime?

MARCELA: Não, acho que não, no caso de um filme. Vocês podem
fazer um filme de ficção, uma história que se passa num riacho em
obras.

MARINA: Ah, mas como é que eu vou fazer uma história de ficção
que se passa num riacho em obras?

MARCELA: Ah, não sei, faz qualquer coisa! O que não pode é
devolver dinheiro pra Brasília, isso não existe!

MARINA: Mas tem que ter monstro?

MARCELA: Ah, aqui não fala em monstro.

MARINA: Não?

MARCELA: Criação imaginária, fantasiosa, fantástica; quimera.

MARINA: O quê que é quimera?

MARCELA: É... Tem aqui...

MARINA: Aqui, aqui...

MARCELA: Quimbembe, quimbundo, quimera. Monstro mitológico...

MARINA: Ó, não falei que tinha que ter monstro? Meu pai falou...

MARCELA: ... que se dizia possuir cabeça de leão, corpo de cabra
e cauda de serpente e lançar fogo pelas narinas.

MARINA: É melhor anotar, né?

MARCELA: Tem que anotar. Vamos passar ali...

JOAQUIM: Eu não falei que tinha que ter monstro?

MARINA: Não, não falou.

JOAQUIM: Eu não falei?

MARINA: Hum, hum. Você falou "ficção científica".

JOAQUIM: Ficção cien... E monstro não é ficção científica?

MARINA: Hmmm, depende do monstro. Ela falou quimera, ó, quimera é
monstro mitológico.

JOAQUIM: Mitolo... Mitologia não é ficção científica?

MARINA: Claro que não, Joaquim! Mitologia, mitologia é história,
é religião...

JOAQUIM: Hein? Opa! Monstro é história?

MARINA: Ah, eu não falei isso, Joaquim, não falei isso.

JOAQUIM: "Monstro é história" é ignorância, Marina...

MARINA: Ah... Ignorante agora aqui sou eu, Silene... O quê que
você entende de história, né, Joaquim?

JOAQUIM: A mesmo coisa que você, minha filha. Ou você aprendeu
história naquela faculdade de administração de empresas?

MARINA: Como é que é? Como é que é, "naquela" faculdade de
administração de emp...? "Naquela" faculdade? Não foi isso que
você quis dizer.

JOAQUIM: Naquela faculdade. Eu quis dizer naquela faculdade. Eu
quis dizer naquela faculdade, a faculdade que você estudou. Eu
quis dizer a faculdade que você estudou. A faculdade que você
foi. Eu quis dizer "na faculdade que você estudou".

MARINA: Não foi, não.

JOAQUIM: Eu não falei mal da sua faculdade.

MARINA: Falou sim, você falou mal, sim, da minha faculdade, você
falou "naquela" faculdade que você fez. É totalmente diferente
falar "aquela faculdade" que você estudou. "Aquela" é uma coisa,
"naquela" é uma coisa totalmente diferente.

JOAQUIM: Eu não falei mal da sua faculdade, eu só queria dizer
"naquela faculdade", que faculdade? a faculdade que a pessoa foi.
Aquela faculdade, entendeu? Eu não estou falando mal da sua
faculdade.

MARINA: Você não devia falar mal de uma coisa que você nunca foi,
não sabe o que é, não conhece...

JOAQUIM: Opa... Você vai jogar na minha cara agora que eu não fiz
faculdade? Você vai jogar na minha cara que eu não fiz faculdade?
eu vou lhe dizer por que eu não fiz faculdade, Marina. Eu não fiz
faculdade porque eu fiquei aqui ajudando o seu pai, enquanto você
tava lá, ó... Ah... Tomando cerveja com os seus colegas.

MARINA: Não tou jogando nada na tua cara! Não tou jogando nada na
tua cara. Eu só falei que você não gostava de História, Joaquim!
Você falou que não gostava de História... Eu tava o quê? O que
você sabe de mitologia? Isso é que é mitologia?

SILENE: Vocês querem parar? Hein? Vamos parar? Vão ficar
discutindo por causa de mitologia? Que é isso? Pô, eu não consigo
nem me concentrar aqui no meu trabalho...

JOAQUIM: Que trabalho, SIlene? Que trabalho, você tá aí jogando
Copas!

SILENE: Agora! Mas antes eu tava trabalhando! Sabe o que eu acho?
Eu acho que vocês precisavam ir pra cama mais cedo hoje, viu?

MARINA: Pra quê? Que eu vou pra cama mais cedo hoje? Tá com
micose... Fico eu imaginando aqui... Onde é que pega tanta
micose? Terceira que me aparece.

JOAQUIM: Eu peguei esta micose no esgoto. Você não tinha o
direito de falar de intimidade minha. Você não tinha este
direito! Uma intimidade nossa, na frente da Silene, Marina! Não,
bobo sou eu. Bobo sou eu, porque eu tou ajudando você desde o
início com essa história desse vídeo. Agora isso você não
reconhece! Porque todo mundo aqui, inclusive o seu pai, acha que
você tá perdendo tempo, sabia? A Silene é uma fofoqueira, Marina!
é fofoqueira! Ela tem inveja de você porque o Fabrício é um
galinha e eu não sou, e você sabe que eu não sou!

MARINA: Terceira micose que você aparece, terceira! Cada vez que
vai de moto pra Bento Gonçalves, quando volta, ah! Uma micose!
Acha que eu sou boba? A Silene? A Silene sabe, a Silene sabe das
suas festinhas com o Fabrício, a Silene sabe. Você andava na zona
antes de casar e continuou depois. A Silene? A Silene sabe. Você
não fale assim da minha família! Eu não te dou o direito de falar
assim da minha família. A minha família não tem nada a ver com as
suas visitas aos puteiros de Bento Gonçalves!

TV: Uma hora depois, a esposa de Clint ligou para mim no hotel. A
história...

TV: No grupo E, em Zagreb, a Croácia acabou com a invencibilidade
da Inglaterra. O primeiro gol da Croácia nasceu de um...

TV: ... agora! Zero oitocentos, sete, sete, sete...

TV: Três anos atrás, a Polícia Federal...

TV: ... projetar a nossa cidade perante todo o estado, aumentando
a...

TV: Oh baby, ascoltami... Baby, baby ascoltami

JOAQUIM: "O Monstro da fossa".

MARINA: Oi?

JOAQUIM: "O Monstro da fossa". Que era um monstro que morava na
caverna, ali perto do arroio. E ele tava dormindo há mais de
vinte anos. Aí a... a obra acordou o monstro, o monstro ataca uma
mulher, o namorado da mulher vinha com um pedaço de pau ela e...

MARINA: É bom, hein?

JOAQUIM: ... Tau! na cabeça do monstro, e mata o monstro.

MARINA: É bom... Muito bom.

JOAQUIM: Hein?

MARINA: Muito bom.

JOAQUIM: "O Monstro da fossa".

MARINA: E se ele for uma mutação genética? Hein? Devido ao uso...
sei lá, de agrotóxicos, né, tanto fertilizante, tanto fungicida
que as pessoas tão tomando por aí.

JOAQUIM: Por causa do sujeira do...

MARINA: Da sujeira, a gente faz uma mensagem ecológica.

JOAQUIM: ... do esgoto.

MARINA: Aí, de novo, esse remédio. Toma.

JOAQUIM: Tem água?

MARINA: Não, engole direto mesmo. Pera aí, pera aí... A duração
do tratamento é de duas a quatro semanas, mas no caso de tinha do
pé pode ser necessário um tratamento de até seis semanas. É
aquilo mesmo: uma dose oral, única e semanal.

JOAQUIM: Você pode fazer a mulher.

MARINA: Que mulher?

JOAQUIM: Do filme.

MARINA: Ah... Não.

JOAQUIM: Por quê?

MARINA: Deus me livre, fazer a mulher, não.

JOAQUIM: Por quê?

MARINA: Porque mulher... porque mulher, mulher é a Silene, né?
Mulher é a Silene.

JOAQUIM: E o monstro?

MARINA: O monstro é o Fabrício.

SILENE: Ei!

FABRÍCIO: O que foi?

SILENE: Você é idiota?

FABRÍCIO: Por quê?

SILENE: Jogar a lata no rio?

FABRÍCIO: O que é que tem?

SILENE: O que é que tem? Imagina você, dono de uma pousada.
Depois reclamam que aqui não tem turismo.

FABRÍCIO: Turismo? E quem vai vir fazer turismo aqui nessa
cachoeira, Silene?

SILENE: Cheia de lata de cerveja, ninguém.

FABRÍCIO: Você queria que eu jogasse a lata onde?

SILENE: Ali no mato. Parece idiota...

JOAQUIM: Marina.

MARINA: Hum?

JOAQUIM: Se o Fabrício vai fazer o monstro, quem vai fazer o
namorado?

MARINA: Ah, sei lá, Joaquim, faz você.

JOAQUIM: Ah, eu vou ser namorado da Silene?

MARINA: Ah, não! Se você prefere, você faz o monstro?

JOAQUIM: Ah, eu prefiro ser o monstro. Monstro não aparece a
cara. O monstro faz o quê?

MARINA: Bate na Silene.

JOAQUIM: Ah, ah, ah... Eu sou o monstro.

MARINA: Ah, mas apanha do Fabrício. Do namorado.

JOAQUIM: Ah, mas não apanha de verdade... Então, eu faço o
monstro.

MARINA: Tá bom.

JOAQUIM: E você vai fazer o quê?

MARINA: Como o quê, Joaquim. Eu faço todo o resto todo, ué!

JOAQUIM: Que resto?

MARINA: Como que resto, eu... Eu compro o pano, eu faço a
fantasia de monstro, eu costuro, eu vou... no banco, entrego
aquela papelada pra prefeitura, eu faço a porcaria do roteiro, o
resto todo sou eu que faço, Joaquim. Se quiser a gente troca,
porque aí eu faço o monstro, eu bato na Silene...

JOAQUIM: E apanha do Fabrício...

MARINA: Ahn, apanho de mentira mas bato na Silene de verdade.
Quer trocar?

JOAQUIM: Não, eu quero fazer o monstro. Eu faço a roupa também,
do monstro. Eu gostei do monstro.

SILENE: Silene Santos...  Silene Souza...

JOAQUIM: Aqui, Fabrício, ó.

MARINA: Mas por que não Silene Marghera? É ótimo...

SILENE: Não combina, Marina.

JOAQUIM: A peruca ficou boa sem a... Tá legal, tá bom...

FABRÍCIO: Legal?

SILENE: Não!

SILENE: Marina Marghera combina.

MARINA: Como? Marina Marghera é o meu nome.

SILENE: Você é Marina Figueiredo.

JOAQUIM: Atacar o monstro, ó... Shiu, shiu, shiu, shiu...

MARINA: Silene, você enlouqueceu, você está querendo pegar o nome
da própria irmã!

SILENE: Tou só experimentando, Marina. Tá? Tou só experimentando.

JOAQUIM: Isso aí pode ser o rabo do monstro, Fabrício, ó, ó!

MARINA: Não é? Né?

JOAQUIM: É, essa tá boa. Ficou bom, ficou uma coisa...

SILENE: Não.

MARINA: Que foi?

SILENE: Não.

MARINA: Silene!

SILENE: Não!

MARINA: Ah...

SILENE: Silene Sanders. Silene Sandrelli.

FABRÍCIO: ôooooo... Temos fumaça!

MARINA: Seis pilhas grandes! Dezoito reais de pilha.

JOAQUIM: Mas é o preço.

MARINA: Papel, vinte reais. E essa carvão aqui?

JOAQUIM: Ué, carvão pra fazer fumaça.

MARINA: Não dá para fazer com lenha?

JOAQUIM: Já viu fazer fumaça em lenha? Café só faz fumaça na
brasa.

MARINA: Não, se é para fazer, tem que fazer bem feito. E esse
café?

JOAQUIM: Não precisa botar o café que eu vou usar o café passado.

MARINA: Hum.

JOAQUIM: Cadê o roteiro?

JOAQUIM: "O monstro da fossa"... Roteiro de Marina Marghera
Figueiredo?

MARINA: Com a colaboração de Joaquim Figueiredo.

JOAQUIM: Pô, colaboração, Marina?

MARINA: Ué? Quem escreveu fui eu. Você? Você... Você só inventou
a história, Joaquim.

JOAQUIM: Colaboração...

JOAQUIM: Nossa história começa numa pequena e tranqüila
comunidade ao pé de uma montanha. Bonito... Uma brisa refrescante
traz do vale o aroma das corticeiras em flor. Como é que você vai
filmar isso?

MARINA: O quê?

JOAQUIM: O aroma das corticeiras em flor.

MARINA: Não, mas eu não vou filmar, quem vai filmar é o Fabrício.

JOAQUIM: E como é que o Fabrício vai filmar o aroma das
corticeiras em flor?

MARINA: Bom, não sei, o... Mas, Joaquim, isso aí é só o... o tal
do roteiro, a Marcela falou que tinha que ter dez páginas, euc
comecei a enrolar, né? E olha, só tá com três páginas. Não
gostou, me dá aqui.

JOAQUIM: Não, não é não gostei, Marina, eu fiz uma pergunta. Não
é pra você ficar assim, eu fiz uma pergunta pra você.

MARINA: Então faz você, por que você não faz? Mania que você tem
de criticar as coisas dos outros... Também achei aquela sua
fantasia de quimera uma coisa maravilhosa. Uma coisa... linda.

JOAQUIM: A fantasia não tá pronta ainda, Marina.

MARINA: Me dá esse roteiro.

JOAQUIM: Não vou te dar, não. Que mania, você qualquer coisa,
nhenhém, nhenhém, nhenhém... Então a gente não pode falar uma
coisa que você fica nervosa.

MARINA: Ah, vai...

JOAQUIM: Silene Seagal, uma jovem bonita...

MARINA: Não, é Sigal.

JOAQUIM: Aqui tá escrito Seagal.

MARINA: Está escrito Seagal porque é Seagal, mas fala Sigal.
Igual ao Steve Seagal.

JOAQUIM: Quem é Steve Seagal?

MARINA: Como, quem é Steve Seagal, Joaquim? Aquele... do rabo de
cavalo... meio argentino, meio chinês, que, que luta caratê, que
você...

JOAQUIM: Stephen.

MARINA: Steven... Stiven?

JOAQUIM: Stephen? Stifen... Stephen... Stephen Seagal.

JOAQUIM: Silene Sigal, uma jovem bonita de cabelos longos...

MARINA: Silene...

JOAQUIM: ... uma jovem bonita de cabelos longos, vestida para uma
festa de formatura...

MARINA: A festa de formatura eu botei pra justificar o vestido,
porque a Silene diz que só faz se puder comprar vestido novo, que
não faz com vestido velho dela...

JOAQUIM: Ela quer comprar um vestido?

MARINA: Não, o Fabrício disse que ai conseguir de graça. Mas que,
se não conseguir, vai ter que comprar.

JOAQUIM: Que absurdo. Quanto custa um vestido desses?

MARINA: Trezentos reais.

JOAQUIM: Com trezentos reais dá para comprar... Quantos tijolos?

MARINA: Pois é.

JOAQUIM: Quantos tijolos?

MARINA: Dois mil tijolos, Joaquim.

MARINA: Entra. Entra, Joaquim, entra!

JOAQUIM: Vai ter a festa de formatura no filme?

MARINA: Hein?

JOAQUIM: A festa. De formatura?

MARINA: No filme? Não, claro que não.

JOAQUIM: Não vai? E como a gente vai saber que ela tá indo para a
festa de formatura? Entendeu?

MARINA: Qh, não sei, meu amor, ela fala pra alguém.

JOAQUIM: Como?

MARINA: Como o quê, Joaquim? Ela... Ela, ela, sei lá, conhece um
operário, aí pergunta, fala pra ela.

JOAQUIM: Como? "Bom dia, operário? Meu nome é Silene Sigal e eu
tou indo para a minha festa de formatura..."

MARINA: É, meu amor, ou o operário pergunta: "Oi, Silene. Onde
vai tão bonita?" E ela fala: "Estou indo para a minha festa de
formatura".

JOAQUIM: Aqui. Eu acho muito estranho. Ela re refre, obse...
ahn... Se refresca na... Silene cumprimenta o operário...

MARINA: Aí, ó: cumprimenta o operário, viu?

JOAQUIM: Silene para, se refresca na margem de um aroio. Então
ela ouve um rugido na mata. Se assusta. Observa...

MARINA: Vocâ acha melhor "assusta-se"?

JOAQUIM: Hein?

MARINA: Em vez de "se assusta", você acha melhor "assusta-se"?

JOAQUIM: Se assusta.

MARINA: Assusta-se.

JOAQUIM: Assusta-se.

MARINA: Porque "se assusta"...

JOAQUIM: Assusta-se.

MARINA: Assusta-se.

JOAQUIM: Assusta-se.

MARINA??: É melhor, né?

JOAQUIM: Assusta-se.

MARINA: Assu... vou trocar.

JOAQUIM: Assusta-se.

MARINA: É melhor, né?

JOAQUIM: Assusta-se.

MARINA: As-sus-ta-se...

JOAQUIM: Observa... E pensa que deve ter sido um bicho qualquer,
inofensivo.

MARINA: Isso! O quê, meu amor?

JOAQUIM: Como?

MARINA: Ah, meu Deus! Como o quê?

JOAQUIM: Telespectador... Como é que a gente... como é que, que a
genta vai saber que ela pensou que é um bicho inofensivo?

MARINA: Eu, eu...

JOAQUIM: Entendeu? Que o bicho era inofensivo. Como é que...?

MARINA: Joaquim, eu... eu não sei. Eu não sei, ela, ela... ela
penss ee ela fala isso: "Deve ter sido um bicho inofensivo..."

JOAQUIM: É estranho, Marina... Como é que eles, as, as pessoas...
As pessoas não vão entender isso, Marina.

MARINA: Joaquim, isso aqui, esse roteiro não tem importância,
você entende? Isso aqui é só pra gente pegar o dinheiro e fazer a
fossa, meu amor. Deixa eu trabalhar.

JOAQUIM: Não, mas eu acho que, se... pra que se... melhor fazer,
melhor fazer... Depois: "ah, porque Joaquim não me ajuda nas
coisas..."

MARINA: Deixa eu trabalhar, Joaquim! Que coisa!

OTAVIANO: Boa tarde.

ANTÔNIO: Ah... Eu estou atrasado, não é?

OTAVIANO: Não, ela ainda não chegou.

ANTÔNIO: É?

OTAVIANO: Carro novo, hein?

ANTÔNIO: É...

OTAVIANO: Bonito...

ANTÔNIO: Não é, não é? Venha ver, venha ver. Hum... Ah.

OTAVIANO: Deve ter custado caro, hein?

ANTÔNIO: É... Eu comprei usado, semi-novo. Ainda estou pagando.
Agora, é muito seguro, tem quatro air-bags.

OTAVIANO: É?

ANTÔNIO: É... E o som? O som! Uma belezura. Ouça. Ó... Ah, ah,
ah, ah...

OTAVIANO: É... He he he... Muito bom.

ANTÔNIO: É... He he he... Cabem doze CDs. Para viajar é uma
maravilha.

OTAVIANO: O meu é do tempo da fita.

ANTÔNIO: Da fita, é?

OTAVIANO: Vem ver.

ANTÔNIO: Hmmm.

OTAVIANO: Ascolta.

ANTÔNIO: Che belo!

OTAVIANO: Quanto è bella, quanto è cara!

LETRA DE MÚSICA: quanto è bella, quanto è cara!: più la vedo, e
più mi piace...: ma in quel cor non son capace: lieve affetto ad
inspirer.

essa legge, studia, impara...: non vi ha cosa ad essa ignota...:
Io son sempre un idiota,: io non so che sospirar.

MARINA: E aí?

JOAQUIM: Muito bom. É ótimo. Muito bonito.

MARINA: Não. Tem que mudar umas partes.

JOAQUIM: Eu adorei.

Você tá de parabéns. Eu gostei muito. Muito bom.

MARINA: Mas... Não vai fazer uma sugestão?

JOAQUIM: Não, de modo geral é muito bom, assim... Tem umas coisas
que eu não entendi, mas eu também não entendo muita coisa mesmo,
né?

MARINA: O quê que você não entendeu, Joaquim?

JOAQUIM: Não, não vou falar, você fica nervosa quando eu falo.

MARINA: Não, não tou nervosa.

JOAQUIM: Posso falar?

MARINA: Pode. Claro.

JOAQUIM: Essa parte aqui da Silene... O dia está muito que...
Não, não é aqui. Onde a Silene... Onde ela... Tá aqui: ela olha
pra trás mas não vê nada. ela caminha pela mata, olha pra trás
mas não vê nada.

MARINA: É. Então?

JOAQUIM: OK, ela tá com o semblante apreensivo, como se alguém a
observasse. Certo... Tá aqui: Neste momento o monstro vê Silene
entre as folhas...

MARINA: É...

JOAQUIM: Mas o monstro já apareceu na segunda cena? Entendeu?

MARINA: Não, mas ele não aparece. É o monstro olhando a Silene.

JOAQUIM: Sim...

MARINA: Joaquim, é o monstro olhando ela... Joaquim... É o
monstro assim, ó... Por trás duma árvore, entendeu, olhando
ela...

MARINA: O monstro, assim, olhando a Silene.

MARINA: Com a filmadora, assim, sacudindo, atrás dela, entendeu?
Olhando a Silene...

JOAQUIM: Entendi.

MARINA: Entendeu?

JOAQUIM: Como se fosse... como se a gente fosse...

MARINA: ... o monstro, entendeu? Eu vi num... num filme uma vez,
aí eu botei.

JOAQUIM: Tá muito bom, viu?

MARINA: Gostou, né?

JOAQUIM: Você tá de parabéns, eu gostei muito. Mas acontece o
quê, depois? Porque você não...

MARINA: Ué... Lê aí...

JOAQUIM: Não, mas você só escreveu aqui... Silene, ahn, tá
apavorada, corre, cai, e uma mão toca seu ombro. Ela grita. e
acontece o quê, depois?

MARINA: Ficou interessado, hein?

JOAQUIM: Você escreveu mais aí?

MARINA: Eu escrevi, sim.

JOAQUIM: Cadê?

MARINA: Tá aqui.

JOAQUIM: Deixa eu ver.

MARINA: Não!

JOAQUIM: É o monstro que toca no ombro dela?

MARINA: Ué, você quer saber, eu falo.

JOAQUIM: É o monstro?

MARINA: Quer saber?

JOAQUIM: Você não vaii falar?

MARINA: Eu vou falar. Quer saber?

JOAQUIM: Ah, Marina, eu vou trabalhar.

MARINA: Ah, Joaquim, quer saber, eu digo.

JOAQUIM: Você não vai me falar?

MARINA: Ué... Você diz pra mim "eu quero saber", aí eu falo.

JOAQUIM: Eu quero saber.

MARINA: Ahá...

LETRA DE MÚSICA: ma in quel cor non son capace: lieve affetto ad
inspirer.

MARCELA: Seu Otaviano...

OTAVIANO: Dona Marcela...

MARCELA: Seu Antônio...

ANTÔNIO: Bon giorno, bon giorno.

MARCELA: Algum problema, seu Antônio?

ANTÔNIO: Não, não, não. Tá tutto bene, tutto bene.

MARCELA: Esse é o riacho?

ANTÔNIO: É.

OTAVIANO: É.

MARCELA: Hmm. Cheiro ruim.

OTAVIANO: É. Pois é, eh, eh, eh.

MARCELA: Onde vai ser a construção da fossa?

ANTÔNIO: É, é por aqui, é por aqui, venha.

MARCELA: Com licença.

MARCELA: Eu recebi o seu projeto.

ANTÔNIO: Ah. Ele pode sofrer alguns ajustes, dependendo do volume
da água do arroio. É que, nesta época, chove muito por aqui.

MARCELA: Quanto de cimento?

ANTÔNIO: Somente duzentos sacos.

MARCELA: Tudo isso?

ANTÔNIO: Como, tudo isso? Vão ser feitos quinze metros cúbicos de
concreto na fossa. Cada metro são quinze sacos.

MARCELA: Duzentos por quinze dá treze e pouco. Dá pra fazer um
metro cúbico de concreto com dez sacos de cimento. São cento e
cinqüenta sacos.

ANTÔNIO: Sinto muito mas não dá.

MARCELA: O senhor sabe que dá.

ANTÔNIO: Não dá. O padrão são onze sacos por metro cúbico.

MARCELA: Cento e trinta sacos dá e sobra.

ANTÔNIO: Cento e setenta e cinco é o mínimo. Menos do que isso,
eu vou pagar pra fazer a obra. Ela foi orçada em oito mil, e eu
já vou gastar dez. E ainda vou receber daqui a três mês. Só de
terraplenagem, só dessa terraplanagem aqui, eu gastei mil e
trezentos. Fora o cimento que eu comprei todo ele antes que
aumente o preço. Quer dizer: vai ficar, no mínimo, no mínimo, por
doze e quinhentos.

MARCELA: Feche em cento e quarenta e eu aprovo agora.

ANTÔNIO: Nem pensar.

MARCELA: O senhor precisa dar a sua contribuição.

ANTÔNIO: Eu dou a minha contribuição pagando o meu imposto em
dia. Que paga o salário de muita gente.

MARCELA: Inclusive o seu.

ANTÔNIO: E... e o seu.

MARCELA: Eu sou funcionária de carreira, concursada.

ANTÔNIO: Efetivada com concurso interno.

MARCELA: Passei em primeiro lugar.

ANTÔNIO: Mas tava concorrendo sozinha.

MARCELA: Não, não. O João Carlos, seu primo, era um dos
candidatos.

ANTÔNIO: Ma, mas ele não estudou, ele não estudou.

MARCELA: Ahn, não estudou porque bebe.

ANTÔNIO: Quem, quem diz que ele bebe?

MARCELA: Eu fui vizinha do João Carlos muito anos, e ele faz
horrores quando bebe.

ANTÔNIO: O quê que ele faz?

MARCELA: Ele bate na mulher.

ANTÔNIO: Ah, mas ela gosta... É uma tradição de família.

MARCELA: O senhor pode contribuir com a madeira necessária pra
obra.

OTAVIANO: Quando eu fui subprefeito, saneamento básico era pri-o-
ri-da-de. Imagina gastar dinheiro fazendo filme quando as pessoas
não têm nem esgoto.

MARCELA: O senhor tá pensando pequeno.

OTAVIANO: Verba pequena, melhor pensar pequeno.

MARCELA: Não, não. Quando a verba é pequena, a gente tem que
pensar grande.

OTAVIANO: Quando eu fui subprefeito...

MARINA: Papai, isso faz tempo, papai, é uma outra realidade.
Quando o senhor foi subprefeito não tinha nem eleição, o senhor
foi nomeado.

OTAVIANO: E o riacho não fedia.

MARINA: Mas a idéia é resolver agora o problema do riacho, papai.

OTAVIANO: Madeira custa caro. E eu já pago muito imposto.

MARCELA: Nem tanto.

OTAVIANO: Como, nem tanto?

MARCELA: Na Espanha, na França, na Suécia, a carga tributária é
bem maior do que aqui.

OTAVIANO: Na Suécia... E a senhora já viu esgoto a céu aberto n
Suécia? Cocô viajando pra Noruega? Ah...

MARINA: Papai, por favor...

OTAVIANO: Quanto de madeira?

MARINA: Mil reais.

LEONARDO: E o que eu ganho?

MARCELA: O projeto é filantrópico, mas o logotipo da sua empresa
vai estar nos créditos de abertura.

FABRÍCIO: O objetivo é filantrópico, mas a participação da sua
empresa no projeto pode reverter no fortalecimento da marca.

MARCELA: E o público alvo são as crianças e os pais das crianças
da região, exatamente o seu público.

MARINA: E aí ficaria: "Vinhos Leonardo apresenta..."

MARCELA: Apresen-TAM.

MARINA: Tam.

MARCELA: Eu acho melhor: "Vinhos Leonardo apresentam..."

MARINA: Tam.

FABRÍCIO: E o nosso público alvo são as crianças e as mães das
crianças da região, exatamente o seu público.

CARMEM: E o quê que vocês precisam?

FABRÍCIO: Nós estamos prevendo dois tipos de apoio ao vídeo. No
primeiro, com maior visibilidade, a sua marca estaria aparecendo
na abertura do filme, antes do título. Esse tipo de inserção
corresponde a uma cota de patrocínio de mil reais.

CARMEM: Mil reais?

LEONARDO: Bom, se vocês quiserem, podemos jantar, assistir um DVD
e depois... falar sobre o projeto.

MARINA: Obrigada, o meu marido, ele gosta muito de rock.

MARCELA: Não, e nós não vamos lhe dar trabalho, sujar louça,
essas coisas. Nós podemos é sair pra jantar. Eu conheço um lugar
ótimo!

FABRÍCIO: Bom, a segunda forma de apoio seria com a doação de
material necessário para a realização do projeto. Aí a sua
empresa teria como retorno o nome citado nos agradecimentos e a
utilização do produto, em forma de merchandising, dentro do
filme.

CARMEM: Que tipo de material vocês precisam?

FABRÍCIO: Ah... Figurino, maquiagem.

CARMEM: Figurino?

FABRÍCIO: Figurino... Vestidos, para as atrizes.

SILENE: E sapatos.

MARCELA: O que são mil reais para um empresário do seu porte?

LEONARDO: Em nome de quem?

MARCELA: Bologna Engenharia. Bolo-g-na.

MARINA: Já é a empresa encarregada da obra, que esse dinheiro vai
direto pra compra de brita, de areia, de cimento...

LEONARDO: Hum...

MARCELA: Muito obrigada. O país precisa de mais empresários com a
sua visão social.

CARMEM: Mas como é que a pessoa que tá vendo o filme vai saber
que o vestido foi comprado aqui, na minha loja? Hã?

FABRÍCIO: Isso a gente dá um jeito. Não se preocupe.

LEONARDO: E o nosso jantar?

MARCELA: Hoje, às nove? Você vai adorar o lugar. Tem umas meninas
lá... lindas. No mês passado eu conheci uma garota...

LEONARDO: É?

MARCELA: Morena, cabelo curtinho, sarada.

LEONARDO: Eu acho que hoje não vai dar, é que eu, é, eu...

MARCELA: O senhor tem o meu cartão. Se quiser, é só ligar.

LEONARDO: Claro, eu, eu ligo.

MARINA: Muito obrigada.

MARCELA: Até logo.

MARCELA: Eu inventei tudo aquilo... do bar, da garota...

MARINA: Não, lógico...

OPERÁRIO UM: Olha quem vem lá!

OPERÁRIO DOIS: Quem?

OPERÁRIO UM: A Silene.

OPERÁRIO DOIS: Que Silene?

OPERÁRIO UM: A Silene Sigal.

OPERÁRIO DOIS: Ah... Bom dia, Silene.

SILENE: Bom dia.

OPERÁRIO UM: Aonde vai tão bonita a esta hora?

SILENE: À minha festa de formatura.

OPERÁRIO DOIS: Que vestido bonito... Foi sua mãe que fez?

SILENE: Não. Comprei na Só Lindezas.

OPERÁRIO UM: Ah...

SILENE: Tchau, não posso me atrasar.

OPERÁRIO DOIS: Tchau, Silene Sigal.

MARINA: Não, pera aí, pera aí. Pera aí. Pára, Fabrício! Pára a
câmara.

FABRÍCIO: Parei, parei, parei, o quê que foi?

MARINA: Não, é que eu achei tão esquisito ele falar o sobrenome
dela agora, quando ela vai embora. Não é estranho? Ninguém fala o
sobrenome. Quando for embora, é só dizer: "Tchau Silene". Não é
melhor?

FABRÍCIO: Mas tu quer fazer tudo de novo só por causa disso?

MARINA: Não, ué? A gente volta a fita... Cadê? Como é que volta?

FABRÍCIO: Pera aí, pera aí, pera aí... Não, não, não, não, não,
deixa que eu mexo.

SILENE: Eu achei aquela coisa de ela dizer o nome da loja um
pouco falsa. Por quê que ela diria isso pra eles?

FABRÍCIO: Tem que dizer o nome da loja.

SILENE: Ah, não pode mostrar?

JOAQUIM: Você quer mostrar a loja, Silene?

OPERÁRIO UM: Olha quem vem lá!

OPERÁRIO DOIS: Quem?

OPERÁRIO UM: A Silene.

OPERÁRIO DOIS: Que Silene?

OPERÁRIO UM: A Silene Sigal.

OPERÁRIO DOIS: Ah... Bom dia, Silene.

SILENE: Bom dia.

OPERÁRIO UM: Aonde vai tão bonita a esta hora?

SILENE: À minha festa de formatura.

OPERÁRIO DOIS: Vestido novo...

SILENE: Como você sabe?

OPERÁRIO UM: Está com a etiqueta. Ah, ah, ah, ah, ah...

SILENE: Ah...

SILENE: Obrigada.

FABRÍCIO: Vira, vira, vira, tá de cabeça pra baixo. Não!

LETREIRO: SÓ LINDEZAS

SILENE: Tchau, não posso me atrasar.

OPERÁRIO DOIS: Tchau Silene Si... lene.

JOAQUIM: Seu Antônio! Seu Antônio! Venha ver aqui o filme! O
filme! Venha ver!

MARINA: "Silene Silene"? Vamos fazer de novo!

SILENE: Como é que vê isso?

FABRÍCIO: Vamos fazer de novo, vamos.

SILENE: O meu cabelo ficou horrível.

ANTÔNIO: Os operários tão sem luvas e sem capacete, não pode.

MARINA: Ué, por que não?

ANTÔNIO: Ahnm tem que luva e capa... senão eu sou multado, minha
filha. Me desculpa, mas vocês vão ter que fazer de novo.

OPERÁRIO UM: Olha quem vem lá!

OPERÁRIO DOIS: Quem?

OPERÁRIO UM: A Silene Sigal.

OPERÁRIO DOIS: Que Silene Sigal?

FABRÍCIO: Corta!

OPERÁRIO UM: Olha quem vem lá!

OPERÁRIO DOIS: Quem?

OPERÁRIO UM: A Silene.

OPERÁRIO DOIS: Que Silene?

OPERÁRIO UM: A Silene Sigal.

OPERÁRIO DOIS: Ah... Bom dia, Silene Sigal.

FABRÍCIO: Corta!

OPERÁRIO UM: Olha quem vem lá!

OPERÁRIO DOIS: Quem?

OPERÁRIO UM: A Silene.

OPERÁRIO DOIS: Que Silene?

OPERÁRIO UM: Silene Sigal.

OPERÁRIO DOIS: Ah... Bom dia, Silene.

SILENE: Bom dia.

OPERÁRIO UM: Aonde vai tão bonita a esta hora?

SILENE: À minha festa de formatura.

OPERÁRIO DOIS: Vestido novo...

SILENE: Como você sabe?

OPERÁRIO UM: Está com a etiqueta. Ah, ah, ah...

SILENE: Ahn...

MARINA: E... Nome?

OPERÁRIO DOIS: João Maria Mercedes.

OPERÁRIO UM: Ah... João Maria Mercedes?

OPERÁRIO DOIS: Ah, ô... Setembrino.

OPERÁRIO UM: Setembrino é um nome normal. Eu nasci em setembro.
Agora, João Maria Mercedes, a mãe confundiu... Não sabia se era
João ou Maria Mercedes.

OPERÁRIO DOIS: Mercedes é sobrenome, animal! Tua sorte é que
nasceu rápido, senão era Outubrino...

OPERÁRIO UM: Ah... Outubrino... Ah, ah, ah...

MARINA: E endereço?

OPERÁRIO DOIS: Pra que é isso?

MARINA: Ah, é pra autorização da imagem.

OPERÁRIO DOIS: Que imagem?

MARINA: Ué, a imagem que aparece no filme. Tem que autorizar, a
prefeitura que pediu, aí tem que dar o nome, o endereço e assinar
embaixo, tá?

OPERÁRIO UM: E vai ter cachê?

MARINA: Ah... Não... Não vai ter cachê, tá? A figuração é sem
custo. É só agradecimento mesmo, é... é beneficente, isso aqui é
filantrópico.

OPERÁRIO UM: Ah...

OPERARIO DOIS: No filantrópico dos outros...

MARINA: Ah, muito obrigada. Tem banana... ali depois pra vocês.
Tá?

OPERÁRIO DOIS: Banana...

MARINA: Pai. A gente já tem quarenta e cinco segundos do filme.

OTAVIANO: E precisa de quanto?

MARINA: Precisa... Bom, precisa de dez minutos.

OTAVIANO: Então ainda falta... nove minutos e quinze segundos.

MARINA: É, pai.

MARINA: Tá doendo?

OTAVIANO: Não, não, foi só um mau jeito.

MARINA: Jura?

OTAVIANO: É.

MARINA: Imagina, hein, pai? Se tudo der certo, até o verão... a
gente como essa obra pronta, sem esse cheiro na rua...

OTAVIANO: Se der certo.

MARINA: Sim, o senhor acha que não vai dar.

OTAVIANO: Espero que dê.

MARINA: Sim, mas acha que não vai dar.

OTAVIANO: Eu tentei fazer esta obra muitas vezes, Marina. Cansei
de tentar.

MARINA: Sim, tentou e não conseguiu, pai. Talvez eu agora vá lá e
consiga.

OTAVIANO: Eu entendo por que você tá dizendo isso. Você é jovem.

MARINA: Eu também entendo que o senhor teja cansado, pai.

OTAVIANO: Claro. Sou um velho.

MARINA: Eu não disse isso.

OTAVIANO: Você tem razão, Marina. Eu sou um velho. "Ah, que me
metam entre cobertores e não me façam mais nada, que a porta do
meu quarto fique pra sempre fechada." Marina, quando você sair,
feche a porta, que tem um vento... E o meu braço tá doendo.

MARINA: O senhor falou que não estava, pai.

OTAVIANO: Eu menti.

MARINA: Deixa eu ver, deixa eu te ajudar.

OTAVIANO: Não, deixa. Ham...

MARINA: Deita, pai!

OTAVIANO: Eu quero dormir. Quero descansar. Ai...

MARINA: Tá bem?

OTAVIANO: Boa noite, filha.

MONSTRO: Aaargh!

SILENE: Deve ter sido um bicho inofensivo...

MONSTRO: Aaargh!

SILENE: Ai! Ai!

SILENE: Aaaaaaaaaaiiii!

FABRÍCIO: O que foi?

SILENE: É você?

FABRÍCIO: Sou eu.

SILENE: Pára, Fabrício.

FABRÍCIO: Você es...

SILENE: Pára!

FABRÍCIO: Você está muito linda.

SILENE: Pára, Fabrício!

FABRÍCIO: Hein?

SILENE: Vamos, o baile já vai começar.

MARINA: Vai... Vai!

SILENE: O baile estava ótimo.

FABRÍCIO: É verdade! É verdade. É verdade! E a orquestra? Uma
maravilha.

SILENE: Tinha muita gente.

FABRÍCIO: Você era a mais bonita de... Linda demais.

SILENE: Pára! Vai amassar o meu vestido...

SILENE: Então vai procurar as minhas amigas.

FABRÍCIO: Sílene, espere... Sílene!

SILENE: Peraí, gente. Pera aí, pera aí, pera aí.

MARINA: Oi?

SILENE: Gente, não dá, não.

FABRÍCIO: Hum?

SILENE: Eu não consigo, gente. Desculpa.

MARINA: O quê, Silene?

SILENE: Não faz sentido essa cena, não tem sentido isso. Essa
menina tem o quê? Dezesseis, dezessete anos, no máximo.

MARINA: Ué?

SILENE: Então? Não combina nem com o meu vestido, gente. Olha
aqui! Eu tenho vinte e seis anos, eu não posso fazer uma moça que
tá se formando, com um canudo na mão, virgem...

JOAQUIM: É... Aí...

MARINA: É, virgem...

SILENE: Marina, eu quero fazer uma pessoa que exista, entendeu?
Uma mulher que exista!

SILENE: Ah, é, tá... Tá certo. Boa noite. Tá.

FABRICIO: Espere, Silene! Eu preciso falar com você, me escute...

SILENE: Olha Fabricio, você é uma pessoa muito bacana, a gente se
divertiu muito, mas eu tenho uma carreira. Eu não posso me
prender a ninguém agora. Adeus, Fabricio.

FABRICIO: Espera, Silene...

FABRÍCIO: Hã?

MARINA: Sai, Fabrício! Tá aparecendo, Fabrício, sai!

FABRÍCIO: Vem, Silene!

MONSTRO: Aaargh! Aaargh! Aaargh!

SILENE: Aaaa-

MONSTRO: Aaargh!

SILENE: Aaaaaaaiiii!

MONSTRO: Aaargh! Aaargh! Aaargh!

SILENE: Cof, cof, cof!

FABRÍCIO: Sai! Humpf! Ai!

JOAQUIM: Ô, Fabrício...

FABRÍCIO: Você está bem?

SILENE: Um Monstro horrível me atacou.

FABRÍCIO: Ah... Eu vi.

SILENE: Você me salvou.

FABRÍCIO: Silene...

SILENE: Fabrício...

SILENE: Deu, deu. Né? Não deu? Não deu? Deu...

JOAQUIM: Fabrício...

MARINA: Onde desliga, Fa...?

JOAQUIM: Pô, nós combinamos de bater devagar.

MARINA: Fabrício, tá filmando, onde é que desliga?

JOAQUIM: Pô, não era pra bater de verdade, não, cara!

MARINA: Fabrício, tá filmando, Fabrício...

FABRÍCIO: Ah, é muito fácil, ó...

FABRICIO: Quanto deu?

MARINA: Cinco minutos e doze segundos.

JOAQUIM: Metade só, né?

FABRICIO: E agora?

JOAQUIM: Eu acho que tem que explicar por que esse monstro
surgiu,

MARINA: Como?

JOAQUIM: Não sei, falar aquele negócio que você falou lá em casa,
do... Negócio do agrotóxico, da ecologia...

MARINA: Vai fumar?

JOAQUIM: Um cigarro.

FABRÍCIO: Eu podia ser... um cientista, especialista em genética.

MARINA: Cientista é bom!

FABRÍCIO: Pá! Hein?

SILENE: Você não tem cara de cientista, Fabrício.

MARINA: Não, mas isso a gente arruma alguém que faça. É muito
bom, cientista.. Vai render uma cena, quatro minutos... Vamos
escrever?

JOAQUIM: Onde é a cena?

MARINA: No laboratório do cientista.

JOAQUIM: E no laboratório o cientista vem e aí ele explica por
que o monstro surgiu.

SILENE: Vem cá, não tem que apresentar o cientista?

MARINA: Como assim?

SILENE: Dizer quem ele é.

FABRÍCIO: É melhor.

SILENE: Não é?

FABRÍCIO: Pro público entender.

MARINA: Mas como faz isso?

SILENE: Ué, o Fabrício pode perguntar e já apresentar o
cientista.

MARINA: É bom!

MARINA: O Fabrício vira pro cientista e fala: O senhor, que é um
cientista famoso, como explica o surgimento do monstro? Não é
bom? Ótimo! Fabrício apresenta o cientista.

FABRÍCIO: Não tem que dizer o nome do cientista, não?

SILENE: É melhor, é melhor.

FABRÍCIO: Eu senti falta, quando você falou.

SILENE: É, é.

FABRÍCIO: O cara tem que ter nome, né?

MARINA: Mas qual vai ser o nome?

SILENE: Ué, depende de quem vai ser o cientista.

JOAQUIM: Por quê, Silene?

SILENE: Ué... o nome tem que combinar com a cara da pessoa.

MARINA: Que bobagem, Silene, que boba... Imagina se eu... Você
acha que eu agora tenho cara de Marina?

SILENE: Completamente.

JOAQUIM: Que besteira isso! Eu tenho cara de Joaquim, por acaso?

SILENE: Tem, tem a maior cara de Joaquim.

MARINA: Como assim? Como é cara de Joaquim?

SILENE: Tem cara de Joaquim!

FABRÍCIO: Ah, pára de falar bobagem, Silene!

SILENE: Ah, bobagem o quê?

FABRÍCIO: E eu tenho cara Fabrício?

SILENE: Totalmente, tem a maior cara de Fabrício.

FABRÍCIO: Ah, eu tenho cara de Fabrício?

SILENE: Tem cara de Fabrício.

FABRÍCIO: E tu? Tem cara de quê? Silene Sigal...

SILENE: Como é que é?

FABRÍCIO: Tu tá mais para Silene Silva.

SILENE: O quê?

FABRÍCIO: É isso mesmo!

SILENE: Ah, é?

FABRÍCIO: É, é isso mesmo!

SILENE: Bi-biu!

JOAQUIM: Bi-biu?

FABRÍCIO: Silene...

SILENE: Bi-biu...

MARINA: Silene, pára! Silene, pára! Pára, SIlene!

FABRÍCIO: Você começa, depois se arrepende.

SILENE: Ah, vai, tou morrendo de medo de você, Bi-biu!

MARINA: Por favor, vamos voltar aqui pra ver o nome do cientista,
gente. Por favor...

JOAQUIM: Doutor Franz.

MARINA: Oi?

JOAQUIM: Franz.

MARINA: Ótimo.

FABRÍCIO: Alemão.

MARINA: Tá ótimo, Franz... Um cientista alemão.

FABRÍCIO: Como assim? Você sugeriu Franklin e todo mundo
concordou que não podia ser americano.

JOAQUIM: É que aqui não tem americano, Fabrício. Alemão tem um
monte.

MARINA: Tem um monte.

FABRÍCIO: Um cientista alemão morando aqui? Aqui só tem caipira,
Joaquim.

JOAQUIM: A começar por você.

FABRÍCIO: Eu tenho curso superior.

JOAQUIM: De turismo. Aquela faculdade sua é um hotel.

FABRÍCIO: Curso superior! High school!

JOAQUIM: Se aquilo é faculdade... Aquela faculdade é um hotel!

MARINA: Ei! Gente, pelo amor de Deus, chega! Tamos aqui, às duas
da manhã, discutindo nome de cientista... Isso aí não tem a menor
importância. Amanhã a gente encontra alguém para fazer esse
cientista e ele dá o nome, pronto!

MARINA: Doutor Otaviano.

OTAVIANO: Me deixa trabalhar, Marina.

MARINA: Doutor Agostinho. Hã? Doutor Agostinho, o senhor gosta
tanto de Santo Agostinho...

OTAVIANO: Agostinho...

MARINA: Hein, papai? Cinco minutos, o senhor vai lá em casa, com
a gente... Almoça lá em casa depois, não vai atrapalhar em nada,
papai, na hora do seu almoço...

OTAVIANO: Filha, esse filme é uma palhaçada. Gastar dinheiro
público, dinheiro que é pra ser usado com construção de estrada,
colégio...

MARINA: Imagina o senhor falar isso, o senhor adora cinema.

OTAVIANO: Cinema! Adoro cinema. Desde quando fazer filme de
esgoto é fazer cinema?

MARINA: Papai, eu não vou explicar tudo de novo pro senhor.

OTAVIANO: Que explicar, minha filha... Marina...

MARINA: Eu já lhe expliquei, papai, eu já falei pro senhor que
esse filme não tem iportância, o que é importa é fazer a fossa,
mas pra fazer a fossa tem que fazer o filme, né?

OTAVIANO: Mas e... isso..

MARINA: E para fazer o filme tem que ter o cientista, papai.

OTAVIANO: Mas pra que faró io o cientista?

MARINA: Porque o senhor é a melhor opção pra fazer o cientista.
Papai! Esse cientista é quem explica a história toda. Senão, não
vão entender nada do que a gente filmou, não vão dar o dinheiro,
papai. Entende, é a maneira mais simples de fa...

OTAVIANO: Filha...

MARINA: Papai, a gente tem que fazer essa fossa. Concorda?

OTAVIANO: Sim, d'accordo.

MARINA: Então?

MARINA: Me ajuda!

OTAVIANO: Precisa decorar?

MARINA: Não, não. Pode ler, não tem problema.

OTAVIANO: Não, mas decorado é melhor, não é?

MARINA: É muito grande pra decorar, pai. Pode ler.

OTAVIANO: Então eu decoro uma parte... e improviso o resto.

MARINA: Tá bom, faz como o senhor quiser. Tá bom assim, Silene!

SILENE: Ô, Marina, faz o seu!

OTAVIANO: Silene, tá bom, não tá?

SILENE: Só um minutinho, pai.

OTAVIANO: Não vai, não vai mudar, não vai mudar muito, não.

SILENE: Papai! A coisa mais importante do mundo pro ator é o
cabelo.

OTAVIANO: Que besteira!

SILENE: Não, papai, tou falando sério. O cabelo faz do homem um
ser misterioso que carrega na cabeça, a parte do corpo que é mais
nítida e a mais marcada, uma coisa rebelde como um mar e confusa
como uma floresta. O cabelo está quase fora do corpo...

OTAVIANO: Tá, mas..

SILENE: É uma espécie de jardim privado, onde o dono exerce à
vontade a sua fantasia e a sua desordem. É qualquer coisa que
cresce e que transborda como se estivesse livre do domínio da
alma.

SILENE: Quê que é? Tem um cartaz com esse texto na sala de espera
do salão. É bonito, né, pai?

OTAVIANO: É.

SILENE: É? É do Gustavo Corção.

FABRÍCIO: E tu decorou isso tudo só de ler no salão?

OTAVIANO: Tem boa cabeça a minha filha. E depois, com o tempo que
você passa no salão, dava pra decorar até a Bíblia.

JOAQUIM: Ah, ah, ah...

SILENE: Tá rindo o quê, ô... quimera? Vai cuidar da tua micose,
vai!

MARINA: Opa!

SILENE: Eh, eh, eh...

MARINA: Parou, Silene! Pára, Silene!

SILENE: Ah, ah, ah...

MARINA: Vamos filmar, Pára! Não liga. Não liga... Joaquim...

JOAQUIM: Posso botar o gelo, Fabrício?

MARINA: Vai, vai, vai...

FABRÍCIO: Gelo seco, gelo seco...

OTAVIANO: Os venenos...

MARINA: Vai, vai, vai, Fabrício.

JOAQUIM: Essa coisa rodando aqui... Eu não sei como eu vou
acertar.

OTAVIANO: É.

MARINA: Sai, Joaquim!

JOAQUIM: Ficou preso aqui no...

MARINA: Vamos, vamos, vamos.

OTAVIANO: Venenos...

MARINA: Sai, Joaquim! Sai! Gravando...

MARINA: Vai! Pode ir. Pode falar. Ação!

MARINA: Fala, Fabrício!

FABRÍCIO: Ah, desculpe, era eu que começava...

MARINA: Ah, não acredito, Fabrício, agora tem que voltar a fita,
porque eu não sei fazer isso.

FABRÍCIO: Pera aí, pera aí, pera aí, deixa que eu volto.

OTAVIANO: Deixa, de, depois tira esta parte.

MARINA: O quê, pai?

OTAVIANO: Corta esta parte, na hora de montar.

MARINA: Fazer o quê?

OTAVIANO: Vocês não vão montar o filme?

MARINA: Vamos, Fabrício?

OTAVIANO: Vocês tão filmando tudo na ordem?

MARINA: Tamos, né?

FABRÍCIO: É mais simples.

OTAVIANO: E presta?

MARINA: Presta, não é, papai, presta.

MARINA: Papai, isso não tem importância, papai, só tem que ter
dez minutos pra gente entregar pra Prefeitura. Vamos?

OTAVIANO: Bom... Tá.

MARINA: Pelo amor de Deus, gente, tá na hora do almoço. Vamos?
Vai, Fabrício, vai! Vai...

OTAVIANO: Os venenos jogados no rio devem ter provocado...
mutação genética...

MARINA: Atenção! Atenção? Gravando...

FABRÍCIO: Doutor Vitor Hugo, o senhor, um cientista famoso, tem
uma explicação para o surgimento desse monstro?

OTAVIANO: Os venenos, os dejetos, os detritos jogados no rio
devem ter provocado uma mutação genética em algum animal.

FABRÍCIO: Isso pode nos servir de alerta...

OTAVIANO: Sim.

FABRÍCIO: ... para a necessidade de respeitarmos a natureza.

OTAVIANO: Certo.

FABRÍCIO: E o que o senhor acha que nós podemos fazer para
destruir o monstro?

OTAVIANO: Vamos matá-lo! Com fogo, com armas, e com venenos. E
aparecerão outros monstros ainda maiores, mais fortes. E os
mataremos com armas mais terríveis, venenos ainda mais poderosos.
E assim sucessivamente, porque a natureza se defende criando
anticorpos contra as nossas ações. Então outros mostros
aparecerão, mais fortes e mais fortes e mais fortes. Até o dia em
que aparecerá um monstro que não poderemos matar. E nos matará a
todos. E os monstros dominarão o mundo. E a natureza estará livre
do homem, o que será um alívio. Quando o homem respira, a
natureza treme. Treme!

MARINA: Ótimo, papai!

OTAVIANO: Eu posso fazer de novo?

MARINA: O senhor falou muito... quanto deu, Fabrício?

OTAVIANO: É que eu, é que eu... eu posso fazer melhor. Eu... eu
compor a fita.

FABRÍCIO: Um minuto e doze.

OTAVIANO: É só o preço de uma cadeira.

MARINA: Jura? Mas então ainda faltam quatro minutos...

OTAVIANO: Hã? Não? Bom...

FABRÍCIO: A cena da morte do monstro pode ter quatro minutos.

OTAVIANO: Quatro minutos pra morrer? E vai morrer de quê? De
asma?

MARINA: Nõa, tem que ter outra cena, não adianta.

JOAQUIM: Eu acho que o monstro pode matar mais uma pessoa.

MARINA: Quem?

JOAQUIM: O Fabrício.

FABRÍCIO: E quem é que mata o monstro, rapaz?

SILENE: O monstro pode matar o cientista. Não é?

OTAVIANO: Eu?

MARINA: Silene...

SILENE: Não é?

MARINA: É ótima essa idéia, Silene... Hein, papai?

OTAVIANO: Não, filha, me esqueçam, por favor!

MARINA: O monstro mata o cientista.

OTAVIANO: Minha filha, eu tenho que trabalhar, não posso ficar o
dia inteiro o dia inteiro.

SILENE: Papai, papai, o monstro matar o cientista era perfeito!

OTAVIANO: Então usem dublê.

MARINA: Usar o quê?

OTAVIANO: Dublê. Que fica no lugar do artista. Pega o meu casaco,
e o boné. Mostra ele pelas costas, e o monstro ataca.

MARINA: Papai!

JOAQUIM: A única pessoa que pode fazer o dublê do seu Otaviano
aqui é o Fabrício.

OTAVIANO: Hum.

FABRÍCIO: Ah, não, desculpe, mas eu sou muito alto e magro e
forte para fazer dublê do seu Otaviano.

SILENE: Ah, ah, ah...

FABRÍCIO: Gravando.

MARINA: Vai, seu Antônio!

ANTÔNIO: Hein?

MARINA: Vai.

FABRÍCIO: A gente pega dali pra frente, né?

ANTÔNIO: Ahn? Monstro... de cocô! Finocchio! Vagabundo!

FABRÍCIO: Corta, corta, corta!

MARINA: Seu Antônio, pera aí! Larga!

FABRÍCIO: Calma, seu Antônio!

JOAQUIM: É um filme, seu Antônio!

MARINA: Calma, calma, calma!

FABRÍCIO: ô, ô, ô...

ANTÔNIO: Que foi?

MARINA: Vem aqui, Joaquim! Vem!

FABRÍCIO: Seu Antônio, é de brincadeira isso aqui.

ANTÔNIO: Me desculpa, me desculpa...

MARINA: Vem, tudo bem. Vamos de novo!

FABRÍCIO: Vamos fazer outra... fingindo, tá?

MONSTRO: Argh... argh...

ANTÔNIO: Minha... Mamma mia! É o monstra do fossa! Ai, meu Deus
do céu! Meu coração não agüenta.

MONSTRO: Argh... Argh...

FABRÍCIO: Corta! Vinte e dois segundos.

MARINA: Só? Mas então tem que fazer mais devagar, gente.

JOAQUIM: Tá, tá acabando aqui a luzinha da...

MARINA: A pilha?

JOAQUIM: A pilha.

MARINA: Seu Antônio!

ANTÔNIO: Hein?

MARINA: Seu Antônio, volta! Tem que fazer outra, seu Antônio.

ANTÔNIO: Fazer outra, é?

MARINA: Fazer outra.

FABRÍCIO: Vov voltar a fita.

MARINA: Isso, seu Antônio! Fazer outra, rápido! Mais devagar,
hein?

ANTÔNIO: É rápido ou mais devagar?

OPERÁRIO DOIS: Bom dia, Silene.

OPERÁRIO UM: Aonde vai tão bonita a esta hora?

SILENE: Aaaaaaahhhh!

SILENE: Adeus, Fabrício.

FABRÍCIO: Espera, Silene!

MONSTRO: Aaaaargh...

SILENE: Aaaaaaiii!

FABRÍCIO: Ai!

SILENE: Fabrício! Hmmm... Deu.

OTAVIANO: Vamos matá-los!

ANTÔNIO: Mamma mia!

MONSTRO: Aaaaargh...

FABRÍCIO: O Monstro está morto. Agora, para evitar que novos
monstros surjam, é preciso cuidar da natureza.

FABRÍCIO: Pô, este final ficou ótimo, hein?

SILENE: Eu não entendi direito o que você falou. Você fala muito
baixo, hein, Fabrício.

JOAQUIM: Ficou bom. Tem oito minutos, tem que fazer agora... mais
dois minutos.

FABRÍCIO: A gente pode fazer dois minutos de créditos.

JOAQUIM: Acho que tinha que fazer com... dois minutos de...

MARINA: Ficou horrível, gente.

FABRÍCIO: Hum?

MARINA: Ficou uma coisa... Ficou horrível isso, ficou... Quem é
que vai pagar, meu Deus, dez mil reais pra gente por causa duma
porcaria dessa?

SILENE: Ai, Marina...

MARINA: Joaquim, a gente pode ser preso até, Joaquim!

JOAQUIM: Que preso, Marina? Que coisa tão horrível...

SILENE: Preso, Marina?

MARINA: Uma idéia idiota que eu fui ter...

JOAQUIM: Não é idiota... Marina!

MARINA: Meu Deus, que idéia idiota que eu fui ter! Não dá nem pra
montar isso, que o papai falou. Uma coisa ridícula dessa... E
aquela hora que a Silene ficou andando e a gente falando atrás
dela, todo mundo ouve.

JOAQUIM: Eu falei, eu falei pro Fabrício.

MARINA: Você? Eu pedi pra você ficar quieto, eu fiquei: "Shhh...
shhhh..." Vai ficar... Isso aí, vão rir da gente, Joaquim. Vão
rir da gente. Meu pai que tinha razão, uma idéia... Uma idéia
péssima...

JOAQUIM: Não, Marina, pára com isso.

JOAQUIM: Que é isso? Tira, vem cá. Olha  aqui pra mim, olha aqui,
tira essa mão aí do rosto. Que é isso? Ninguém vai rir da gente,
que é isso? Seu pai? Seu Otaviano tá velho, Marina. Tá velho, tá
ranzinza, é isso mesmo, tem que... Você tem que aceitar isso.
Você teve uma idéia ótima. Sua idéia foi ótima. É uma idéia... de
uma pessoa que quer ajudar os outros, quer... ajudar a melhorar
as coisas e tal... Uma idéia sua pra melhorar a vida de todo
mundo, das crianças... Crime? Crime é esse esgoto aí sendo jogado
no riacho. Isso é crime! É crime contra todo mundo aqui, é contra
mim, contra você...

JOAQUIM: Isso é um crime contra os nossos filhos. Isso é um crime
contra os nossos filhos.

MARINA: Eu sei.

JOAQUIM: Esse esgoto causa muita doença, Marina. Foi por causa da
água daquele esgoto que eu peguei aquela micose. Você sabe disso,
né?

MARINA: Eu sei, Joaquim. Hmmm....

FABRÍCIO: Que micose é essa, hein?

JOAQUIM: Se tem que montar o filme, a gente vai montar o filme.
Vamos montar esse filme...

MARINA: O problema é que tem que pagar, né?

JOAQUIM: Tem que pagar quanto?

MARINA: E eu sei? Eu não sei nem... como faz isso, quem faz isso.

JOAQUIM: Quem faz isso, Fabrício?

FABRÍCIO: Vamos ter que ir a Bento.

MARINA: Oi...

FABRICIO: Eu faço uma pesquisa por telefone.

JOAQUIM: É, o Fabrício telefone, isso não é assim pra você
ficar... aí, chorando... por causa de filme.

JOAQUIM: Calma, pode ser, não ser nada disso.

JOAQUIM: Não precisa ficar assim por causa disso, não.

ZICO: Sim, pois não?

MARINA: Oi, é... daqui que vocês fazem... ahn... quando monta o
f...?

ZICO: Montagem? Fazemos, sim. Podem entrar.

ZICO: Fiquem à vontade. Senta. Casamento?

MARINA: Ah, não!

FABRÍCIO: Não, não é.

MARINA: Não, não, não.

FABRÍCIO: É um... um filme.

ZICO: Ah, tá. Antigo?

MARINA: Não, é, é um filme... novo. Que... foi a gente que fez. É
um filme de ficção.

FABRICIO: É... "O Monstro da Fossa". É o nome do filme.

ZICO: Hmmm, tá.

ANTÔNIO: Ah...

OTAVIANO: Como é que eu vou passar?

ANTÔNIO: Lá por cima. Ahn, pelo lajeado.

OTAVIANO: Nas pedra? Você tá louco, aquilo é limo puro.

ANTÔNIO: É o único jeito. As, as crianças tão passando por lá
toda hora.

OTAVIANO: Pois não deviam. E eu não sou criança. Tem que fazer
uma pinguela aqui.

ANTÔNIO: Não está no projeto, portanto não está orçada.

OTAVIANO: Mas o que é que custa uma pinguela? Dois pau e um
compensado.

ANTÔNIO: Dois paus, um compensado, prego, parafuso, porca, mão de
obra... Eu posso orçar. Mas quem é que paga?

OTAVIANO: A obrigação é sua. Já fui subprefeito.

ANTÔNIO: Hã? Ahã.

OTAVIANO: Durante a construção da obra, a sua obrigação é fazer
com que as pessoas passem aqui com toda segurança.

ANTÔNIO: A minha obrigaçón é cumprir o contrato, fazer a obra de
acordo  com o planejamento e com o orçamento. E olha que eu ainda
não recebi nada, porque a verba não foi liberada.

OTAVIANO: É muita mesquinharia... Dois pau e um compensado...

ANTÔNIO: Mesquinhari...? Então dá você... a madeira. Você tem
madeira de sobra.

OTAVIANO: Ah, ah, ah...

ANTÔNIO: É....

OTAVIANO: Fare uma pinguela com madeira de lei?

ANTÔNIO: Hã? Dois paus e um compensado...

OTAVIANO: Muita mesquinharia, isso é coisa de... A obrigação é
sua, hein? Coisa de unha de fome.

ANTÔNIO: Unha de fome é tu, que paga um salário de fome pros seus
próprios filhos!

OTAVIANO: E você, que sustenta metade da família com as verbas da
prefeitura!

ANTÔNIO: Olha...

OTAVIANO: Carro novo, importado!

ANTÔNIO: Carro novo, sim!

OTAVIANO: Coisa de bolonhês...

ANTÔNIO: Cosa, cosa, cosa...

OTAVIANO: Mamar nas teta do governo...

ANTÔNIO: É coisa de bolonhês? E sonegar imposto é coisa de
veneziano!

OTAVIANO: Como, coisa de veneziano? Va fa'n culo!

ANTÔNIO: Va tu! Va tu che tu sono un frouxo, tu sono un frouxo

OTAVIANO: La tua mamma fai buchinni col raggazzi.

ANTÔNIO: E tu é un imbecile.

OTAVIANO: Finocchio!

ANTÔNIO: Finocchio é tu! Adamado!

OTAVIANO: Tu! Sei tu! Sei tu!

ANTÔNIO: Adamado...

OTAVIANO: Mortaci!

ANTÔNIO: Olha, olha, olha... Imortaci é...

PREFEITO: Olha, a coisa já tá andando... Que beleza!

ANTÔNIO: Ai, meu Deus!

PREFEITO: Bom dia!

ANTÔNIO: Signor prefeito, bon giorno!

PREFEITO: Bom dia!

OTAVIANO: Bom dia.

PREFEITO: Quem bom, as obras já começaram.

ANTÔNIO: É vero, é vero, é vero. Ah, ah, ah, ah...

PREFEITO: E qual a previsão de término?

ANTÔNIO: Bom, as verbas não foram liberadas ainda. Mas, se tudo
correr bene, em três semanas.

PREFEITO: Ah, é rápido.

ANTÔNIO: É, o pessoal é muito eficiente.

PREFEITO: E o senho? O que o senhor está achando da nossa obra?

OTAVIANO: Eu tou achando...

ANTÔNIO: É...

OTAVIANO: É que aqui devia de ter uma pinguela.

ANTÔNIO: Oh...

OTAVIANO: As crianças tão tendo que atravessar o riacho por cima
das pedras, que tão cheias de limo. Isso, Deus o livre, pode
acabar em pescoço quebrado, hein?

PREFEITO: Toda obra certamente causa alguns desconfortos, mas é
importante, o senhor não acha?

OTAVIANO: Sim, eu já fui subprefeito.

PREFEITO: É uma reivindicação antiga, muitas vezes solicitada
pela comunidade, e finalmente atendida pela prefeitura.

OTAVIANO: Ah, e como... Ó, ó, ó...

PREFEITO: Se eu fosse me pautar pela imprensa e pela oposição, eu
nunca investiria recursos públicos em obras de saneamento básico.

OTAVIANO: Hum, hum...

PREFEITO: E isto é administrar o recurso público com
inteligência, é preparar o município pra crescer, pro futuro.

ANTÔNIO: Ah... Muito bene... Muito bene.

PREFEITO: Então, por favor, vamos fazer uma foto aqui, com
representantes da comunidade e de toda a região.

ANTÔNIO: Nós dois, é? Ah...

PREFEITO: Muito obrigado. Passar bem. Felicidades, brigado.

ANTÔNIO: É, vamos ver, vamos ver...

OTAVIANO: Tá firme, hein?

ANTÔNIO: Que tal, que tal? Ah, ah, ah, ah...

OTAVIANO: Desculpe, seu Antônio, se eu me excedi um pouco...

ANTÔNIO: Ô, seu Otaviano, não me peça desculpas...

OTAVIANO: É que essas pedras não são mais pra minha idade.

ANTÔNIO: É?

OTAVIANO: Se o senhor soubesse o que um reumatismo é capaz de
fazer... Uma dor insuportável...

ANTÔNIO: Seu Otaviano, o senhor não sabe ainda o que é dor. Só
vai saber...

OTAVIANO: Como não sei o que é dor?

ANTÔNIO: ... o dia em que tiver uma crise de cólica renal. Ahn,
não é que eu queira que o senhor tenha não, hein? Mas, olha... eu
pedi pra a Isolda: "Me mata, me mata pelo amor de Deus, que eu
não agüento mais...

OTAVIANO: Mas e no inverno, este joelho, no inverno...

ANTÔNIO: Que tem?

OTAVIANO: Ah... Bom, me desculpe, me desculpe...

ANTÔNIO: Não, não, me desculpa a mim.

OTAVIANO: Bom, agora o senhor me dá licença, que eu... eu preciso
ver se ainda pego um gaturamo.

ANTÔNIO: Hm, mas pra quê? O senhor tem um gaturamo aí que é uma
belezura de passarinho!

OTAVIANO: Esse é macho.

ANTÔNIO: É macho.

OTAVIANO: Eu quero pegar uma fêmea.

ANTÔNIO: Ah...

OTAVIANO: O coitado anda tão triste, ó.

ANTÔNIO: Ah, ah... Eu entendo isso, eu entendo isso. No inverno,
então, é...

OTAVIANO: Ó, ó...

ANTÔNIO: É. Eu tou ouvindo.

OTAVIANO: É a fêmea.

ANTÔNIO: É a fêmea.

OTAVIANO: Então o senhor, o senhor me dá licença, então. Me
desculpa, viu? Boa tarde.

ANTÔNIO: Boa tarde. Boa tarde.

OTAVIANO: Passe bem.

ANTÔNIO: Ahn, passar bem o senhor também, igualmente.

OTAVIANO: Passar bem também.

ANTÔNIO: Ah, ah, ah... Ah, meu Deus...

MONSTRO: Aaaargh...

ANTÔNIO: Ô, rapaz! Isto é cinema!

JOAQUIM: Ai, seu...

ANTÔNIO: Isso não é de verdade, não. Vocês viram? Vocês viram?

ZICO: Ge-ni-al! Maravilhoso.

FABRÍCIO: Gostou?

ZICO: Nossa! Se gostei? Isso aqui é uma obra-prima. Vocês não têm
idéia do filme que vocês fizeram não, né? Esse filme tem...
verdade, tem espontaneidade. Ele é real e ao mesmo tempo é
engraçado. Nossa, o cientista, o cientista é ótimo!

OTAVIANO: ... remos matar. E nos matará a todos!

MARINA: Meu pai.

ZICO: Ah, seu pai... No... e o texto, o texto é seu? O texto
também é ótimo!

OTAVIANO: E os monstros dominarão o mundo.

MARINA: É, mas a... a  parte do meu pai ele saiu falando sozinho.

MONSTRO: Aargh...

ZICO: Caramba, a fantasia do monstro... Essa fantasia do Monstro
é incrível!

FABRÍCIO: Obrigado.

ZICO: Você tem um charme rude, uma coisa meio Jean-Paul Belmondo,
meio Paulo Betti.

FABRÍCIO: Você acha?

ZICO: É, acho sim...

MARINA: Mas... pode... melhorar, editar isso?

ZICO: Claro, claro que eu posso. E a Silene?

FABRÍCIO: O quê que tem a Silene?

ZICO: Nossa! Essa mulher é uma deusa! Que mulher é essa? É de
agência?

MARINA: Não, ela é de família... É minha irmã.

ZICO: Sua irmã? Mesmo pai, mesma mãe?

MARINA: Não, é que ela é adotada.

ZICO: Ah, tá. Muito diferente de você. Ó... A gente vai ter...
que refilmar algumas cenas, certo, adicionar umas outras... E vem
cá, como é que tá a Silene? A Silene cortou o cabelo, diz pra ela
não mexer no cabelo!

MARINA: Não, ela não vai mexer no cabelo.

ZICO: Não, mas liga para ela agora e diz pra ela não mexer no
cabelo.

MARINA: Não, mas ela não vai mexer no cabelo.

ZICO: Não, pst... Tou falando sério: diz pra ela não mexer no
cabelo.

ZICO: Cadê esse telefone? Ela tem celular?

MARINA: Tem.

FABRÍCIO: Tem, é.

ZICO: "O Monstro do Fosso..." Acho que somente com O fica melhor,
heina? "O Monstro do Fosso".

FABRICIO: Qual a diferença entre fossa e fosso?

ZICO: Procura aí. Liga!

MARINA: Ah... Pera aí. Ó...

ZICO: Essa camisa também ficou ótima!

FABRÍCIO: Ah... Essa aí eu comprei em São Paulo.

ZICO: Ah, logo vi.

MARINA: Alô? Silene? Oi, sou eu. Silene, onde é que você tá? No
salão? É escova? Já cortou? Vai cortar.

ZICO: Não, não corta!

MARINA: Não corta!

MARINA: Só as pontas...

ZICO: Não, não pode! Nem as pontas, diz pra ela não mexer no
cabelo!

MARINA: Eu acho melhor você não mexer nesse cabelo, Silene.

ZICO: Não, diz pra ela não tocar no cabelo.

MARINA: Não toca nesse cabelo, Silene! Porque eu tou aqui com
o...

ZICO: Zico...

MARINA: ... o Zico. Eu vim aqui em Bento, no, no... pra editar o
filme, e aí ele assistiu, Silene... Ele gostou muito, muito do,
do seu cabelo. Enfim, ele quer fazer umas cenas ainda, não é,
e...

ZICO: Por causa da continuidade, pra não dar diferença quando a
gente for refilmar, continuidade.

MARINA: Tem que continuar igual porque ele quer fazer mais cenas,
tem que ficar o mesmo, entendeu, Silene? Não, Silene, nem as
pontas...

ZICO: Deixa eu falar com ela.

MARINA: Pera aí que ele vai falar com você. Só um minuto.

MARINA: Viu que sorte?

ZICO: Obrigado. Alô! Silene... Tudo bom? Quem tá falando é o
Zico. Isso. Olha, em primeiro lugar parabéns por suas cenas, você
tá perfeita no filme, maravilhosa, tá incrível. Você é linda.

FABRÍCIO: É cheia de frescura... Todas as suas amigas são...
Fazem muito mais coisas que você.

SILENE: Então vai procurar as minhas amigas.

FABRÍCIO: Silene, espere!

ZICO: E a outra coisa é que nós vamos precisar fazer aqui umas
cenas adicionais pro filme, e você não pode cortar o cabelo. Não,
não. Não. Não. Nem escova. Mas principalmente não corta. Não
corta. Tá? Não, não corta, não corta... Corta não... Você me
promete que não corta? Então tá ótimo. Obrigado e parabéns!

FABRÍCIO: Olha só, achei aqui: fossa: cavidade subterrânea pro
despejo de imundícies, cova, fosso. E fosso é fossa. É a mesma
coisa.

ZICO: Ótimo!

ZICO: "O Monstro do Fosso"... "O Horroroso monstro do fosso". Os
ós do cartaz podem ser olhos do monstro.

MARINA: Qual cartaz?

ZICO: Vocês já fizeram o cartaz?

FABRICIO: Não.

MARINA: Não...

FABRÍCIO: Ô, Zico... O objetivo desse filme é construir uma fossa
na comunidade.

ZICO: Claro, claro. Um fosso.

MARINA: Um fosso.

ZICO: Um fosso. "O Horroroso monstro do fosso" eu acho muito
longo. "O Monstro do fosso".

MARINA: E... Qual seria o custo dessa edição, esse... ?

ZICO: Ah, isso é barato: dois mil, dois mil e pouco.

FABRICIO: Dois mil?

ZICO: Dois mil e pouco. Eu tava pensando em nós fazermos uma cena
na floresta, onde o monstro persegue a Silene e rasga o vestido
dela. Esse texto poode deixar que eu escrevo.

MARINA: Rasgar o vestido?

ZICO: Tem que rasgar o vestido.

FABRICIO: Ela não vai deixar rasgar o vestido.

ZICO: Não, isso não tem problema. A gente compra um vestido novo.
Ou manda fazer um parecido. Isso a gente filma em um ou dois
dias, no máximo.

MARINA: Mas qual o preço disso, entende?

ZICO: Não sei, entre... edição e refilmagem, não dá quatro mil.

MARINA: Ah...

ZICO: Eu pago. O café. Ah, ah, ah... Eu pago o café. Ah, ah,
ah...

LETREIRO: GALERIA CENTRAL

MARINA: Não, mas eu não posso fazer isso. O dinheiro que a gente
tem é pra fazer a obra da fossa.

ZICO: Vamos fazer assim: eu entro como co-produtor. Vocês só
cobrem os custos de edição, equipamento, operador, máquina de
fumaça, luz, câmara, essas coisas.

FABRICIO: Não, câmara não precisa.

MARINA: Hum!

FABRÍCIO: Usa a minha: digital, três CCDs, não precisa outra.

ZICO: Então tá, perfeito. Então fica tudo por dois mil reais... O
pagamento tem que ser a vista. E eu assino como co-diretor.

MARINA: Como o quê?

ZICO: Co-diretor. Quem dirigiu o filme?

MARINA: Como, quem dirigiu? Quem, quem fez?

ZICO: Hum, hum.

MARINA: Eu... fiz, né, o Fabrício. O Joaquim ajudou também.

JOAQUIM: Mas dois mil reais?

MARINA: Dois mil reais, Joaquim.

JOAQUIM: Dois mil?

MARINA: Dois mil. E tem que ser à vista.

JOAQUIM: Eu consigo.

MARINA: Oi?

JOAQUIM: Eu consigo.

MARINA: Ah, você... Joaquim, onde é que você vai arrumar dois mil
reais agora, Joaquim?

JOAQUIM: Consigo.

c'è gente che ha avuto mille cose
tutto il bene, tutto il male del mondo.
Io ho avuto solo te
e non ti perder=
non ti lascer=
per cercare nuove aventure

c'è gente che ama mille cose
e si perde per le strade del mondo
io che amo solo te
io mi fermer=
e ti regaler=...
quel che resta della mia gioventú.

JOAQUIM: Obrigado. Cuida dela aí. Até logo.

MARINA: O que é isso?

JOAQUIM: Dois mil reais.

MARINA: Onde é que você arrumou isso?

JOAQUIM: Eu vendi a moto.

MARINA: Você vendeu tua moto?

JOAQUIM: Vendi.

JOAQUIM: Você não vai tomar?

MARINA: Ah, não.

JOAQUIM: Por que não vai tomar?

MARINA: Porque não vou.

JOAQUIM: Por que não vai?

MARINA: Porque não.

ZICO: Segura aqui. Segura. Tira o cobertor.

ZICO: Vai, tira, tira!

FABRÍCIO: Tou tirando, pô!

ZICO: Isso. Levanta o vestido. Não, o outro, amor, o outro.

FABRÍCIO: Hein?

ZICO: Esse aí. Esse aí. Vai, põe de lado, para eu ver. É, engana.
Quantos têm?

MARINA: O quê?

ZICO: Quantos a gente pode rasgar?

MARINA: Ué, só esse, né?

ZICO: Só tem um?

MARINA: Pra que mais?

ZICO: Ué, e se a cena não ficar boa, com o vestido já rasgado?

JOAQUIM: Aí a gente costura.

ZICO: Não, gente, pelo amor de deus, quanto é que custa esse
vestido?

MARINA: Ué, setenta e cinco reais.

ZICO: Então? Não dá pra comprar dois?

MARINA: Eu vou comprar dois vestidos agora para rasgar? Setenta e
cinco reais é o preço de cinco sacos de cimento.

JOAQUIM: Não precisa rasgar muito o vestido.

ZICO: Não, precisa rasgar muito! Tudo bem. Vai lá, Silene, troca
a roupa. Ué? Tá indo pra onde?

SILENE: Vou em casa, trocar o vestido.

ZICO: Não, não. Troca aqui, rapidinho. A luz tá caindo.

SILENE: Você acha que eu vou trocar de roupa aqui?

ZICO: E daí?

FABRÍCIO: Tu é louco?

ZICO: Não, gente, não... Ninguémm vai olhar, não. Troca ali atrás
duma árvore. Vai lá, vai.

MARINA: Vem, Silene, eu faço uma paredinha, vem.

JOAQUIM: Arghh, argh.... Argh...

ZICO: Desculpa?

JOAQUIM: Joaquim.

ZICO: Joaquim! Joaquim. Essa é a sua cena. Hein? Essa é a cena
chave do filme, é a cena do cartaz, é a síntese da história, tá,
é o resumo de tudo. É a cena em que o monstro encontra com a
mocinha pela primeira vez. Hã? O filme existe pra ter essa cena.
Ó: não pode dar nada errado, que só tem um vestido, tá? Essa é a
sua cena. Hã? Você é um monstro.

JOAQUIM: Eu sou um monstro.

ZICO: Você é um monstro, você é um monstro... Você é um animal
irracional...

JOAQUIM: Ele tem raiva.

ZICO: Ele tem raiva! Ele é dotado de uma força espantosa,
Joaquim.

JOAQUIM: Ele tem raiva...

ZICO: Você tava hibernando numa caverna há mil anos...

JOAQUIM: Ele tava quieto.

ZICO: ... e foi acordado pelo barulho das obras da fossa.

JOAQUIM: Da obra. Ele tava quieto lá.

ZICO: Tava, aí as obras... Da fossa não, do fosso!

JOAQUIM: Do fosso?

ZICO: Isso! Você...

JOAQUIM: Da fossa.

ZICO: Não, do fosso.

JOAQUIM: Da fossa!

ZICO: Do fosso. Você foi acordado pelo barulho e acordou, faminto
e furioso, e qul foi a primeira coisa que você vê?

JOAQUIM: A Silene.

ZICO: A Silene!

SILENE: Segura isso.

ZICO: A Silene. A Silene. E você vai fazer o quê?

JOAQUIM: Ah, vou bater nela.

ZICO: Não, você vai engolir, você vai mastigar, você vai destruir
a Silene.

JOAQUIM: Vou bater nela. Vou bater mesmo.

ZICO: E, principalmente, você vai fazer sabe o quê? Você vai
rasgar o vestido.

JOAQUIM: Tem que rasgar aquele vestido.

ZICO: Tem que rasgar. Você rasga o vestido todo, rasga o vestido
muito!

JOAQUIM: Posso... Posso dar uns tapas nela mesmo, assim?

ZICO: Não... Faz como você sentir, vai fazendo como vier. Tá? Se
ela não deixar, lute! Tá? Você é um...

JOAQUIM: Eu sou um monstro!

ZICO: Você é o quê?

JOAQUIM: Sou um monstro!

ZICO: Um monstro!

JOAQUIM: Aarrrgh! Aaaaargh...

ZICO: Tá pronto?

JOAQUIM: Aaaaaargh...

ZICO: Silene, já tá vestida?

MARINA: Quase.

FABRÍCIO: Tá quase.

ZICO: Mas como, quase? Quanto tempo demora pra trocar um vestido?
A luz tá caindo! Deixa eu ver, vem cá. Cadê?

MONSTRO: Argh... Aaaaargh.

ZICO: O cabelo tá bom? Tá, o cabelo tá ótimo. ô, Marina! Coloca
uma fita nova, porque eu vou fazer um plano-seqüência, sem
cortes, tá?

MARINA: Fita?

ZICO: É. E... a máquina de fumaça? Tá pronta?

MARINA: Tá.

ZICO: Olha, essa máquina é muito importante, hein? A coisa mais
importante da cena é a fumaça.

MARINA: Tá.

MARINA: Ah, vai dar certo, vai.

ZICO: Eu sei que vai. Vem cá... Tá pronta? Decorou o texto?

SILENE: Decorei.

ZICO: Nossa! Você tá linda, muito linda! Você é linda.

SILENE: Você também é bonitinho.

ZICO: Sou, é?

SILENE: É.

ZICO: Obrigado.

SILENE: Hmmmm....

ZICO: Ô, Silene... Essa é a sua cena. Tá? É a cena chave do
filme, é a cena do cartaz, é a cena que sintetiza tudo, é o
resumo da história. É a primeira vez que o monstro encontra com a
mocinha do filme. É por causa dessa cena que o filme existe. Não
pode dar nada errado porque só tem um vestido. Certo? Essa é a
sua cena. Você é a mocinha desse filme. Você é uma mulher
maravilhosa. Você é uma estrela. Você não tinha que tá aqui,
jogada nesse... fim de mundo. Você devia tá era em Curitiba, em
Paris, em Londres, em Barcelona.

ZICO: Você acabou de se formar e vai embora daqui, desse buraco
fedorento.

ZICO: Hoje é sua última noite aqui. Mas no meio do caminho você
encontra com o monstro. O monstro que quer te levar pro esgoto,
onde ele mora, junto com ele. Mas você não vai deixar, Silene!

SILENE: Não.

ZICO: Você vai resistir.

SILENE: Vou.

ZICO: Você vai resistir!

SILENE: Eu vou!

ZICO: Tá pronta?

SILENE: Eu tou pronta.

ZICO: Fabrício... Olha, você faz o que você quiser, você fala o
texto que você quiser, mas, pelo amor de Deus, não olha pra
câmara.

FABRÍCIO: Tudo bem.

ZICO: Ó...

FABRÍCIO: Pode deixar.

ZICO: Nem de canto do olho.

ZICO: Atenção, gente, vamos rodar! Fumaça!

FABRÍCIO: Silene... Silene...

ZICO: Sai, Fabrício! Sai, Fabrício! Vamos lá... SIlêncioooo!
Ação!

MONSTRO: Aaargh!

ZICO: Fogo pelo nariz! Nariz, nariz!

MONSTRO: Aaargh!

SILENE: Aaaaaaa!

MONSTRO: Aaargh! Aaaaaargh... Aaaaaargh...

SILENE: Ai! Ai! Cof, cof, cof! Ai, ai!

ZICO: Pode sair, pode sair! Sai, sai, sai, sai!

MONSTRO: Aaaarrgh...

SILENE: Você não vai me destruir. Você não passa de um monstro!
Você é lixo! Eu sou uma estrela. E uma estrela não pode morrer no
lixo. Nããão!

MONSTRO: Aaaaargh... Aaaargh!

FABRÍCIO: Largue ela! Seu monstro malfeitor! Puf, puf, puf!

SILENE: Mata! Mata! Mata! Mata!

FABRÍCIO: Aaaaaah! Aaaaa! Silene!

SILENE: Fabrício!

FABRÍCIO: Ele machucou você?

SILENE: Um monstro horrível me atacou.

FABRÍCIO: Ah... Eu vi.

SILENE: Você me salvou.

FABRÍCIO: Silene...

SILENE: Fabrício...

MONSTRO: Aaaaaaargh... Aaaargh... Aaaaargh...

ZICO: Atenção... Corta!

ZICO: Perfeito!

SILENE: Aaaaaaaahhh!

ZICO: Maravilhoso! Nossa, gente, como vocês tavam ótimos,
parabéns! Fabrício... você não olhou pra câmera hora nenhuma!

ZICO: E a fumaça? A fumaça tava maravilho... nossa senhora, e
você, Silene! Você é uma estrela! Perfeita! Ahn, o monstro no
final deu uma exagerada, mas eu resolvo na edição, tá?

MARINA, SILENE, FABRÍCIO, JOAQUIM: [reações diversas à fala do
Zico]

MARINA: E agora, tá pronto?

ZICO: Não. Agora vem a melhor parte.

no te partas, señorita
cuando a noche está chegando
porque es tarde, señorita
y el amor está chamando

poco importa, señorita
no te quiero aprisionada
é que à tarde, señorita
estás muy bien acompañada

en la volta de la vida
cuando tudo ha terminado
delirante señorita
el amor é uma mentira
é melhor ficar solita
do que viver namorando

MARINA: Mas já tá pronto?

ZICO: Quase. Primeiro eu quero te mostrar uma coisa. Senta aí.
Posso mostrar?

MARINA: Pode, ué...

MARINA: O que é isso?

ZICO: Um efeito em espelho, que eu faço no computador.

MARINA: Não, mas... essa fita, que fita é essa?

ZICO: Ué, é a fita que vocês me deram pra filmar. De quem era?

MARINA: Era do Fabrício. O que mais tem nessa fita?

ZICO: Calma! Olha a trilha. Que linda...

MARINA: Olha isso... Maravilhoso.

it had to be you,
it had to be you
I wandered around,
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a somebody who
could make me be true...

MARINA: Mas a Silene vai me matar. Fabrício... o Fabrício vai me
matar. Meu pai, meu pai vai me matar!

ZICO: Marina! Só se morre uma vez na vida. Nós temos que usar a
cena.

MARINA: Eu sei, é uma cena maravilhosa, aquela cena.

ZICO: Ó, tem que ser a cena final do filme.

MARINA: Hum?

ZICO: É a cena logo depois que a Silene morre. Só ela morreu, o
Fabrício não... Nós filmamos o Fabrício no cemitério, levando
flores pro túmulo dela. Ele se emociona, começa a chorar, começa
a lembrar dela. Entra a trilha sonora...

MARINA: A música, aquela música...

ZICO: ... com as imagens do banho, e créditos finais.

MARINA: Ah, vai ficar maravilhoso. Vai ficar maravilhoso!

ZICO: Prêmios! Nós vamos ganhar prêmios.

MARINA: Aaaaiiii...

ZICO: Você viu, a música era um pouco maior, mas eu coloquei umas
imagens do mato.

MARINA: Aquelas imagens...

ZICO: Como se fosse uma metáfora do amor à natureza, à beleza.
Não há nada mais natural, não há nada mais bonito, Marina, do que
uma mulher bonita.

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might never be cross
or try to be boss
but they wouldn't do
for nobody else
give me a thrill
with all your faults
I love you still

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wonderful you
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FABRÍCIO: O que é isso?

SILENE: Hã... Sou eu. Hã... Você que filmou.

FABRÍCIO: Como é que ele conseguiu essa fita?

MARINA: Não, fui... eu usei a fita, ô Fabrício... Eu usei aquela
fita que tava dentro da, da câmara, eu tive que usar e... gravou
essa cena em cima e ficou esse pedacinho embaixo.

FABRÍCIO: Como é que é, Marina? Eu não tou acreditando nisso.

FABRÍCIO: Que absurdo!

MARINA: Você tá tão linda nessa cena, Silene.

FABRÍCIO: Eu vou matar esse cara!

MARINA: Ele quer muito usar a cena.

FABRÍCIO: Como é que é? Mas nem pensar!

MARINA: Ahn... Você nem aparece, ô!

FABRÍCIO: Você vai querer mostrar isso nas escolas? Pra um bando
de pirralhos?

JOAQUIM: Eu acho que eles vão gostar, Fabrício.

MARINA: Ó!

FABRÍCIO: Era só o que faltava.

MARINA: É uma cena linda. Olha isso, Silene. Olha isso! Mas a
decisão é sua.

FABRÍCIO: O que mais que tem nessa fita?

MARINA: Só a Silene. Tá? E essa música, também, eu nem sei se eu
vou poder usar, porque...

JOAQUIM: Hã?

MARINA: Ai, a música é linda, olha... Mas é cara! Tem que pagar.

JOAQUIM: Mas tem que pagar a música? Tem que pa, pagar quanto?

MARINA: Três mil reais.

SILENE: Ahhhh!

FABRÍCIO: Hum...

JOAQUIM: É dinheiro!

MARINA: Não, e a obra lá já tá em nove e cem, e eu não comprei
cimento, vou ter que... comprar cimento, fui ver, o preço do
cimento subiu.

FABRÍCIO: E você vai querer usar o dinheiro do cimento para
comprar uma música?

MARINA: Mas, sem essa música, não tem cena, Fabrício. E sem essa
cena... Essa cena é uma... metáfora... do amor à natureza. É uma
cena incrível, olha! É um investimento, Joaquim, que a gente vai
fazer aqui na região. Esse filme vai acontecer, gente! A Linha
Cristal vai ficar famosa. Silene, você vai ficar famosa, Silene.
Vai entrar dinheiro aqui, investimento pra... pro turismo... sei
lá, pra... pras pousadas, Fabrício! Vai entrar dinheiro aqui, vai
ter dinheiro de sobra, a gente faz fossa, faz quantas fossas
quiser, mas olha essa cena... Agora, a decisão é sua, Silene.

MARINA: Depende de você.

JOAQUIM: Olha lá.

MARINA: O quê?

JOAQUIM: Seu Otaviano.

MARINA: Tenho que ir lá falar com o papai, da Silene.

MARINA: Pai, é que...

OTAVIANO: Que foi?

MARINA: No filme, a Silene...

OTAVIANO: Hã?

MARINA: Ela aparece... com pouca roupa.

OTAVIANO: Com o Fabrício?

MARINA: Não! Não, sozinha, pai.

OTAVIANO: Ah, não tem importância. Tá frio, é!

MARINA: Hoje eu... não tou sentindo.

OTAVIANO: Demora muito pra começar?

MARINA: Não, não. Vai ter essa dança, e logo depois é o filme.
Pode sentar, papai, eu já vou.

OTAVIANO: Marina...

OTAVIANO: Parabéns.

MARCELA: E agora, como parte dos eventos da Semana de Cultura da
rede municipal, nós vamos assistir a um vídeo. Vocês podem fechar
a janela, por favor? Produzido pelos moradores da comunidade de
Linha Cristal, antiga Linha Marghera.

MARINA: É melhor você subir, que eu vou ali atrás pra ver o som.

JOAQUIM: Vai aonde?

MARINA: Ali atrás pra ver o som, você apresenta o filme pra
mim...

JOAQUIM: Não, você vai subir lá e você vai apresentar o seu
filme.

MARCELA: Eu chamo aqui a equipe que produziu o vídeo, por favor.

MARINA: Obrigado. Não! É... obrigada, não é, porque... é... a
gente fala obrigado, mas é obrigada, porque concorda com o
gênero. Então mulher fala obrigada, e homem é que fala obrigado.
Então... obrigada. E... eu... espero muito que vocês gostem,
porque... ahn... eu espero que que sirva de alerta, esse vídeo,
pra importância de se preservar a natureza, principalmente as
crianças.

MARINA: Só mais uma coisa, eu queria... agradecer muito... a uma
pessoa que... que me apoiou desde o início deste projeto, que é o
meu marido... Joaquim Figueiredo.

MARINA: Nõa, mais um... Desculpe... É... Eu tenho que agradecer,
não é? Eu tenho que agradecer a... o senhor Leonardo, da Vinhos
Leonardo, que apresenTAM esse filme. E... e também a dona Carmem,
aqui... da "Só Lindezas", que forneceu o vestido da atriz, um
vestido... muito bonito. E... só, né? É. Então... Muito obrigado.
Da. Obrigada.

MARCELA: Alguém mais? Alguém mais quer falar?

FABRÍCIO: Eu, eu não quero falar. Mas também preciso parabenizar
os empresários da iniciativa privada que participaram, com as
suas empresas, desse empreendimento. Desse vídeo! Obrigado.

ZICO: [mas acho que dá pra usar o original]: Ahn, eu quero
falar... Desculpe, mas eu preciso falar. Eu queria agradecer a
iniciativa da prefeitura, aqui na presença do senhor prefeito.
Uma salva de palmas pra ele, por favor.

ZICO: São iniciativas como essa, senhor prefeito, de ousadia, de
desconstrução do aparato opressivo audiovisual, com o surgimento
de uma linguagem verdadeira, ousada e visceral como essa, senhor
prefeito. Muito obrigado. Obrigado pela coragem, por demonstrar
que um sujeito, um cidadão, pra ser artista e expressar a sua
arte, ele não precisa ir para Porto Alegre. Muito obrigado.

MARCELA: Joaquim...

JOAQUIM: Eu espero que, depois desse filme... ninguém fique não
fossa.

MARCELA: Hmm... A... Suelen, quer falar alguma coisa?

SILENE: Quero. Meu nome é Silene.

PÚBLICO: Silene! Silene! Silene!

MARCELA: Silene, então, Silene. Silene. Hã... Vamos ver o vídeo,
então. Por favor...

APRESENTADOR: Semana da Cultura de Santo Antônio de Pádua.
Crescendo para o futuro. As atividades da semana de cultura do
município não seriam possíveis sem o envolvimento de toda a
comunidade e o apoio de empresas e entidades que merecem o nosso
aplauso: Moinho Bertarello e salão paroquial de Santa Teresa.

PREFEITO: ... é que nós estamos prevendo uma alíquota específica
desses empreendimentos, como falou o seu colega, pra que nós
possamos...

ZICO: Tá friozinho, né? É isso, senhor prefeito, tem que
descentralizar. A regra é essa mesmo.

PREFEITO: Eu que agradeço a equipe fantástica, que é importante
pra levar adiante o nosso projeto. Pra que a gente possa
alavancar os projetos do... culturais, como se...

ZICO: Sim, e a iniciativa privada se interessa.

PREFEITO: É fundamental a parceria. Agora, isso representa muito
bem...

PÚBLICO: Êeeeee...

JOAQUIM: Opa, desculpa... Tá, desculpa aí.

OPERÁRIO UM: Olha quem vem lá!

OPERÁRIO DOIS: Quem?

OPERÁRIO UM: A Silene.

OPERÁRIO DOIS: Que Silene?

OPERÁRIO UM: Silene Sigal.

OPERÁRIO DOIS: Ah... Bom dia, Silene.

SILENE: Bom dia.

OPERÁRIO UM: Aonde vai tão bonita a esta hora?

JOAQUIM: Oba! Tudo bem?

JOAQUIM: Hum... Cof, cof, cof... Engasguei. Tem fogo aí?

MOTORISTA: Não tenho.

JOAQUIM: Aí no, no... No carro...

MOTORISTA: Ah, não. Perdeu o acendedor.

JOAQUIM: Ah... Desculpa, é que eu tou... com uma tosse.

JOAQUIM: Você tem fogo?

MENINO: Tenho.

JOAQUIM: Hein?

MENINO: Tenho.

JOAQUIM: Obrigado.

MENINO: De nada.

FABRÍCIO: Largue ela! Seu monstro malfeitor!

FABRÍCIO: Silene!

SILENE: Um monstro horrível me atacou.

FABRÍCIO: Ah... Eu vi.

SILENE: Você me salvou!

MONSTRO: Aaaaaaaaargh... aaarrrgh...

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PEDAGOGA: Senhor Prefeito! Senhor Prefeito, parabéns!

PREFEITO: Obrigado.

PEDAGOGA: Parabéns! Sensacional, o filme! Divertido. E não tem
nada daquelas chatices educativas.

SILENE: Si... gal. Entendeu?

FREIRA: Silene, minha filha, meus parabéns!

SILENE: Obrigada!

FREIRA: Você tá linda!

PEDAGOGA: Eu faço parte do Conselho Nacional de Educação. E eu
vou recomendar fortemente que este filme seja adotado pela rede
pública de todo o Brasil.

FREIRA: ... uma força da natureza, bem como diz o filme. Seios
firmes... Muito bonita.

ZICO: O meu próximo projeto é um curta, né? Eu já tenho até um
pré-roteiro e algumas propostas de patrocínio. Chama-se "O Sonho
do Ovo". A primeira cena é um flash-back...

FABRÍCIO: ... que nós dominamos inteiramente o segmento de
hotelaria aqui da região. Ah, desculpe, eu nem me apresentei.
Fabrizio... com Z.

SILVANA: Silvana.

ZICO: É uma reflexão, onde o ovo se vê pinto, o pinto se vê
frango e o frango não se vê. Porque eu quero falar sobre a
questão da gente que tá assim...

FREIRA: E a sua irmã? Eu sempmre achei que ela dava pra artista.
Hmmm... Cadê o seu pai? O cientista?

PREFEITO: Esse é um trabalho de todos nós. Agora, se eu fosse me
pautar pela imprensa ou pela oposição, eu nunca investiria
recursos públicos da Prefeitura em projetos culturais. Mas
estamos vitoriosos. Muiuto obrigado.

FABRÍCIO: Precisa conhecer a minha pousada.

SILVANA: Adoraria.

FABRÍCIO: Sexta-feira temos foundue.

SILENE: Ah, não, não, não. Quem tirou a roupa foi o personagem,
não fui, entendeu? Quer dizer, pra fazer um personagem, eu acho
que vale tudo. E eu também não tenho vergonha do meu corpo. Anota
isso aí.

MARCELA: Eu lamento que a obra não tenha sido concluída, seu
Antônio. Mas o importante é que a verba foi aplicada na região,
gerou emprego, renda... Só este ano, por exemplo, o número de
turistas cresceu dezesseis mil por cento.

SEU ANTÔNIO: E com essas milhares de turistas...

MARCELA: Na verdade, foram cento e sessenta.

SEU ANTÔNIO: E então... Com esta centena de turistas querendo
conhecer o cenário do Monstro do Fosso, nós temos que fazer uma
ponte sobre o Arroio Cristal.

MARCELA: Antes de construir a ponte, nós precisamos terminar a
obra da fossa.

ANTÔNIO: Ah, meu Deus!

MARCELA: Que dizer: do fosso.

FABRÍCIO: Senhor Prefeito! Dá licença... Que bom que vieram!

PREFEITO: Parabéns!

FABRÍCIO: Muito obrigado.

PREFEITO: O pessoal de São Paulo disse que ia passar por aqui.

PREFEITO: Cento e vinte mil? Mas isso é ambulância ou
helicóptero? (...) Quem disse? (...) Sei, e entregam quando?
(...) Tem que ser antes de novembro. Pode ser outubro? (...) E
quem vem pra entregar? (...) Tem certeza?

FABRÍCIO: Primeira Dama... Por favor... Primeira e mais bela dama
do município. Antes do jantar, eu gostaria de lhe mostrar
pessoalmente todas as dependências da pousada. Aqui, por exemplo,
é a área de convivência... Não, é, temos uma sala de jantar, um
fitness center, uma churrasqueira...

SILVANA: Muito bom. Adorei.

FABRÍCIO: Vamos dar uma olhada nos quartos.

MARCELA: A prefeitura não dispõe de verba para a construção de
uma ponte.

SEU ANTÔNIO: Mas dispõe de verba pra merenda escolar.

MARCELA: O senhor quer que eu use a verba da merenda escolar pra
construir uma ponte?

SEU ANTÔNIO: A escola daqui funciona num turno só, à tarde. A
criança já sai de casa almoçada e volta pra jantar. Pra que tanta
comida nesse interregno, meu Deus do céu? Elas estão é
engordando, engordando.

MARCELA: O senhor me desculpe, seu Antônio. Tenha a santa
paciência!

ANTÔNIO: A senhora nunca ouviu falar em obesidade infantil
crônica, nunca ouviu, é?

REPÓRTER: Quais os seus planos assim para o futuro?

MARCELA: O que foi?

CARA DO BAR: Olha a Silene, olha a Silene!

SILENE: Olha, eu, eu... Eu, eu tenho recebido muitas propostas,
assim, muitas. É... até de trabalho. Eu, eu... gente, eu tou
aberta.

MARINA: Bom, a nossa linha tradicional de beliches Marghera com
um metro de distância entre uma cama e outra vocês já conhecem.
Estamos vendendo pro Brasil inteiro. E agora nós estamos lançando
a linha infantil, que chama "O Monstro do Fosso". Uma graça, né?
E na compra do berço e da cômoda, vocês ainda ganham o abajur.
Não é uma graça, o abajur? As crianças adoram! Foi o meu marido
que fez. Ele fez o monstro também, no filme. E olha que
interessante, quando a lâmpada esquenta, aí... é que faz o
movimento.

JOAQUIM: Aqui... Aqui, você tá muito... Dá um... aí, um sorr...
Tá vendo eles ali, ó?

MENINA: Hum, hum.

JOAQUIM: Aqui, ó! Olha aí. Viu? Aqui, ó. Depois são vocês também.
Vem cá. Você agora vai fazer a Silene, e você vai ser o Fabrício.
Quer ver aqui? Aqui...

MENINA: Tá começando a chover.

JOAQUIM: Tá chovendo, gente. Vamos... Vam, vá, vamos entrando...
Depois vocês... Depois eu faço a de vocês.

MARINA: Ué, começou a chover?

JOAQUIM: É, começou a chover.

MARINA: Pai!Pai! Pai, vai onde, com essa chuva, pai?

OTAVIANO: Eu não sou de açúcar!

c'è molta gente sai
troppa gente in questo cinema
uomini, comparse
e primedonne pallide
e io che sono qui
dentro il mio angolo
e non ti vedo più
neanche per un attimo

ma ride, la gente ti sorride
dentro al cinema
con le bocche inzuccherate
e gli occhi morbidi
e io che sono qui
prigioniero nel mio angolo
io non ti ho avuta mai
neanche per un attimo

ma non siamo noi, non siamo noi
che facciamo il cinema
le primedonne ormai
hanno stregato il pubblico
però restiamo qui stretti
stretti in questo angolo
e adesso che ci sei
mi sembra il massimo

ma non siamo noi, non siamo noi
a fare il cinema
che le comparse sai
non c'hanno un pubblico
però restiamo qui stretti
stretti in questo angolo
e da quando ci sei tu
mi sembra il massimo

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(c) Jorge Furtado, 2007
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
11/01/2007

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