Roteiro em modo texto: [ Download ]
SANEAMENTO BÁSICO, O FILME
roteiro de Jorge Furtado
versão de 01/01/2005
produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
****************************************************************
CENA 01 - ARROIO CRISTAL - EXTERIOR, DIA
Nuvens brancas sobre as árvores que cobrem uma montanha. Um véu
de água desce pela pedra e se esconde na floresta.
MARINA (FQ)
Disse o poeta que "a natureza é grande nas coisas
grandes, e enorme nas coisas pequenas". Nós
sabemos, senhor prefeito, que um pequeno arroio
que corta uma pequena comunidade do município é
apenas um pequeno arroio. Mas para nós, moradores
da comunidade da Linha São Marcos, antiga Linha
Marghera, o arroio Cristal é único.
Algumas casas surgem entre as árvores. Ao pé do morro o riacho
está maior, caudaloso, corre entre as pedras e passa sob uma
ponte.
MARINA (FQ)
(lendo) Foi pro isso, senhor prefeito, que a
comunidade da Linha São Marcos, antiga Linha
Marghera...
OTAVIANO (FQ)
Não precisa repetir isso. Agora pode ser só linha
São Marcos.
MARINA (FQ)
Tem razão. (lendo) Foi pro isso, senhor prefeito,
que a comunidade da Linha São Marcos, reunida em
assembléia no estacionamento da Móveis Marghera na
quinta-feira próxima passada...
O riacho se alarga e, próximo ao centro de uma pequena vila, ao
lado de uma fábrica de móveis, se transforma num esgoto, coberto
de espuma marrom. Cerca de 15 pessoas,
em cadeiras colocadas em círculo no pátio da fábrica, escutam
atentamente a fala de MARINA, 30 anos. Ela ocupa uma mesa e lê um
caderno. Ao seu lado está JOAQUIM, 35 anos.
MARINA
...resolveu tomar providências a respeito...
Seu OTAVIANO, 65 anos, magro, de óculos, lê os classificados de
um jornal.
OTAVIANO
Do cheiro de cocô.
Risos.
JOAQUIM
Seu Otaviano, por favor.
Marina encara Otaviano com seriedade e volta a ler.
MARINA
Resolveu tomar providências a respeito da
necessidade da construção de uma fossa para tratar
o esgoto da comunidade...
JOAQUIM
O esgoto da comunidade é ruim. Melhor "para tratar
da limpeza do arroio".
MARINA
A fossa é para o tratamento do esgoto. Qual o
problema de "esgoto da comunidade"?
JOAQUIM
Esgoto é uma palavra ruim. Parece "o cocô da
comunidade".
OTAVIANO
É o cocô da comunidade.
Risos.
MARINA
Papai, por favor. (para Joaquim) Vocês dois só
pensam em cocô, acham isso engraçado? Parecem
crianças! Esgoto da comunidade está ótimo, posso
continuar?
JOAQUIM
Continua.
MARINA
Foi escolhida uma comissão para pleitear junto à
subprefeitura a canalização do Arroio Cristal e a
construção de uma fossa. Um orçamento preliminar
feito por uma empresa local...
ANTONIO
Orçamento sem custos e sem compromisso.
ANTONIO, 65 anos, gordo, de bigode, está sentado numa das
cadeiras mais próximas à mesa.
MARINA
Um orçamento preliminar, sem custos e sem
compromisso, feito por uma empresa local, estima
em seis mil reais o preço da obra.
OTAVIANO
É preciso fazer outro orçamento.
ANTONIO
Claro.
OTAVIANO
Deve ter quem faça por menos.
ANTONIO
Se for mal feito é barato.
OTAVIANO
Às vezes é caro e mal feito...
ANTONIO
Isso é verdade. Em qualquer atividade.
MARINA
(interrompendo) A comissão eleita por unanimidade
para representar os moradores será composta pelo
senhor Joaquim Figueiredo e pela senhora Marina
Marghera Figueiredo, ficando o senhor Otaviano
Muller de suplente.
OTAVIANO
Acho que não vou poder ir.
MARINA
O senhor Otaviano ficou de confirmar até domingo
se acompanharia ou não a comissão em visita à
prefeitura.
OTAVIANO
Eu já fui lá uma dez vezes, aquela cambada só quer
cafezinho e auxílio paletó, não fazem merda
nenhuma.
MARINA
O senhor Otaviano pediu para deixar registrado que
o pleito da canalização do Arroio Cristal já foi
feito muitas vezes anteriormente, inclusive por
ele, que duas vezes procurou o prefeito
pessoalmente, além dos inúmeros abaixo-
assinados...
OTAVIANO
Isso não vai adiantar nada...
MARINA
... e afirma que a nova solicitação não vai
adiantar nada. Mas, se tiver tempo, talvez ele
acompanhe a comissão até a cidade.
OTAVIANO
Se der.
CENA 02 - FÁBRICA DE MÓVEIS MARGHERA - INTERIOR/DIA
Seu Otaviano caminha entre as máquinas, seguido por Marina.
OTAVIANO
Não dá.
MARINA
Papai, era muito importante que o senhor fosse.
OTAVIANO
Tenho que entregar oito hoje à tarde.
JOAQUIM
Eu fico e cuido de tudo, o senhor vai com a
Marina.
OTAVIANO
No carro com ela? Não, obrigado.
MARINA
Eu dirijo melhor que o Joaquim.
JOAQUIM
(inaudível)
MARINA
O que foi que você disse?
JOAQUIM
Eu não disse nada.
MARINA
Eu nunca bati.
JOAQUIM
Nem eu. O cara veio para cima de mim.
MARINA
Sei.
OTAVIANO
(para Joaquim) Você vai com a Marina, eu fico e
cuido de tudo.
JOAQUIM
(para Marina) Eu dirijo.
CENA 03 - ESTRADA - EXT/DIA
Carro desce uma pirambeira no meio do mato.
(créditos sobrepostos)
CENA 04 - ESTRADA - EXT/DIA
Carro andando numa estrada de terra.
(créditos sobrepostos)
CENA 05 - FAXINAL DO SOTURNO - EXT/DIA
Carro entra numa praça, passa na frente da igreja, pára na frente
de uma casa.
CENA 06 - SUBPREFEITURA - INT/DIA
Joaquim e Marina são recebidos por MARCELA, 40, primeira-
secretária do subprefeito.
JOAQUIM
O primeiro orçamento da construção da fossa, feito
por um empreiteiro de obras, é de seis mil reais.
MARINA
O mau cheiro no verão é insuportável. Muitas
crianças já apareceram com micoses, conjuntivite.
JOAQUIM
Claro que seria necessário fazer um outro
orçamento.
MARINA
As moscas que andam no esgoto entram pelas casas,
pousam na comida.
JOAQUIM
Talvez seja possível encontrar quem faça por
menos.
Marcela termina de ler o documento.
MARCELA
A reivindicação de vocês é totalmente legítima.
MARINA
É uma questão de saúde pública.
MARCELA
De saúde pública. Infelizmente... A subprefeitura
não possui mais verbas na rubrica saneamento
básico para este exercício.
Pausa.
MARCELA
Não tem dinheiro para obras este ano.
MARINA
Mas isso é um absurdo.
MARCELA
Concordo completamente. Também acho um absurdo. E
mais absurdo ainda é que, sem verbas para uma obra
importante como a construção da fossa no Arroio
Cristal, a prefeitura tem quase dez mil reais em
verbas para a produção de um vídeo, imagina só.
Pausa.
MARINA
Que vídeo?
MARCELA
Um vídeo.
MARINA
Como assim, um filme?
MARCELA
É, só que pode ser em vídeo.
MARINA
Como assim?
MARCELA
Tem uma verba para produção de um vídeo, um filme.
É um concurso federal, um prêmio para a produção
de filmes em cidades com até vinte mil habitantes,
imagina. O filho de um vereador apresentou um
projeto e foi premiado, mas ele desistiu, fez uma
banda de música e foi pra São Paulo. A verba já
foi locada, é do governo federal. Se não gastar,
vamos ter que devolver.
JOAQUIM
De quanto é a verba para o vídeo?
MARCELA
Dez mil reais. Já imaginou? Devolver dez mil reais
para Brasília?
MARINA
Dez mil reais?
MARCELA
Dá para fazer a fossa. Dá e sobra.
CENA 07 - SUPERMERCADO - INT/DIA
Marina e Joaquim enchem dois carrinhos de compras.
MARINA
Um vídeo ecológico.
JOAQUIM
Sobre o esgoto.
MARINA
Sobre o esgoto. E sobre a construção da fossa.
Sobre a importância do tratamento do esgoto.
JOAQUIM
Um vídeo sobre a construção de uma fossa?
MARINA
É.
JOAQUIM
E quem vai querer ver isso?
MARINA
É educativo. Para passar nas escolas. Para
crianças.
JOAQUIM
Coitadas das crianças.
MARINA
O vídeo não importa. Importa é que com o dinheiro
a gente vai poder fazer a obra.
CENA 08 - FÁBRICA DE MÓVEIS MARGHERA - INTERIOR/DIA
Seu Otaviano monta um beliche.
OTAVIANO
Que idéia ridícula!
MARINA
Ridícula porque não foi sua.
OTAVIANO
Não é verdade. Se fosse minha seria ridícula
também. Fazer um vídeo sobre a construção de uma
fossa? Para que filmar esgoto? Filme não tem
cheiro.
CENA 09 - COZINHA - CASA DE OTAVIANO
Marina e Silene, na cozinha. Ao fundo, a EMPREGADA trabalha no
fogão. Marina e Silene trabalham na mesa.
SILENE
E quem vai filmar?
MARINA
Não sei.
SILENE
O Fabrício tem uma filmadora de vídeo.
MARINA
É?
SILENE
Tem.
MARINA
E ele empresta?
SILENE
Emprestar acho que não, ele é cheio de paninho e
caixinha. Mas ele pode filmar.
MARINA
E ele sabe filmar?
SILENE
Sabe. Sabe mexer na máquina, faz uns efeitos. Às
vezes fica meio escuro, mas ele sabe.
MARINA
Você fala com ele?
SILENE
Falo.
CENA 10 - POUSADA DE FABRÍCIO
Silene e Fabrício estão na cama, ofegantes. Aparentemente
acabaram de transar.
SILENE
Você ainda tem aquela filmadora?
FABRICIO
(animado) Tenho. Quer que eu busque?
SILENE
Não. Quero emprestada. Minha irmã quer.
FABRICIO
Sua irmã?
SILENE
Não é para isso que você está pensando. Ela quer
fazer um vídeo para a prefeitura.
FABRÍCIO
Tinha que ser uma chatice qualquer.
Fabrício abre a maleta da máquina sobre a cama, Silene lê o
manual.
FABRÍCIO
E quem vai operar?
SILENE
Operar?
FABRÍCIO
Operar a câmera.
SILENE
A filmadora? Eu, ela. O Joaquim.
FABRÍCIO
Imagina que eu vou botar uma digital panasonic de
mil e quinhentos dólares na mão do Joaquim. Tem um
monte de controles, menus, tudo em inglês.
Silene pega a máquina, liga e sai gravando, em segundos.
FABRÍCIO
Desliga... Essa cueca é horrível.
Silene dá um close na cueca.
FABRÍCIO
Você nem viu se a fita estava no ponto. Pode estar
apagando alguma coisa.
SILENE (FQ)
Essas fitas só tem bobagem.
FABRÍCIO
É a melhor coisa de filmar.
SILENE
Pára. Me empresta?
FABRÍCIO
Nem pensar.
SILENE
Então você filma.
FABRÍCIO
Que dia?
SILENE
Não sei ainda. Te aviso.
FABRÍCIO
Tem que comprar fita.
SILENE
Eu compro. Que fita é?
Silene pega a caixinha.
CENA 11 - FÁBRICA DE MÓVEIS MARGHERA - INTERIOR/DIA
Marina examina a fita.
OTAVIANO
Cinqüenta reais? Cinqüenta reais é o preço de uma
cadeira.
Marina guarda a fita na bolsa.
MARINA
Pai, a gente não precisa de uma cadeira. Precisa
de uma fita.
OTAVIANO
Não dou. Não vou gastar meu dinheiro nessa idéia
ridícula.
JOAQUIM
Não pode usar essa fita? Só grava uma vez?
SILENE
Essa é do Fabrício, ele não quer apagar.
JOAQUIM
Eu compro a fita.
MARINA
Guarda a notinha.
CENA 12 - SOCIEDADE DE CANTO
Marcela encontra Joaquim no salão de uma sociedade de canto.
MARCELA
Guardou a notinha?
JOAQUIM
Guardei. Quarenta e oito reais uma fita.
MARCELA
Que absurdo... Quarenta e oito reais é o preço de
um classificador de metal para duas mil fichas.
Quanto tempo dá para gravar?
JOAQUIM
Acho que uma hora e meia.
MARCELA
Dá e sobra. O projeto é para curta-metragem.
(Ela puxa Joaquim para um canto. Fala baixo enquanto veste uma
toga. Ela precisa tirar o pulôver para vestir a toga e mostra um
palmo de barriga. Joaquim se distrai.)
MARCELA
Deixando claro que minha opinião é sigilosa e que
meu nome não pode ser citado, apoio fortemente a
idéia da realização do vídeo e da utilização da
verba, que seria um absurdo devolver para
Brasília, para a obra de canalização do arroio. No
entanto, para requerer a verba a comunidade deve
apresentar um roteiro e o projeto do vídeo.
JOAQUIM
Roteiro e projeto.
MARCELA
Eu posso ajudar a fazer o projeto, mas o roteiro
vocês vão ter que inventar.
JOAQUIM
Certo. O roteiro.
MARCELA
A história. E tem outra coisa: a verba tem que ser
usada necessariamente para obras de ficção.
JOAQUIM
Sei.
Marcela começa a cantar. Joaquim fica olhando.
CENA 13 - CASA DE JOAQUIM E MARINA
Marina e Joaquim tiram a mesa do jantar.
MARINA
Ficção?
JOAQUIM
É, ficção.
MARINA
Científica?
JOAQUIM
Acho que é.
MARINA
Acha ou tem certeza?
JOAQUIM
Acho, Marina, acho.
MARINA
E porque não perguntou?
JOAQUIM
Perguntar o quê?
MARINA
O que é ficção?
JOAQUIM
Todo mundo sabe o que é ficção.
MARINA
Todo mundo, menos você.
JOAQUIM
E você.
MARINA
É, mas eu não tenho vergonha de perguntar.
JOAQUIM
Então pergunta você.
CENA 14 - FÁBRICA DE MÓVEIS MARGHERA - INTERIOR/DIA
Marina atende um CASAL de compradores, que visitam a fábrica. Seu
Otaviano, ao fundo, trabalha.
MARINA
Além da boa qualidade da madeira e do acabamento,
os segredos do sucesso dos nossos beliches são a
segurança, com esta grade reforçada na cama de
cima, uma tranqüilidade para os pais, e a altura,
o espaço entre a cama de baixo e a de cima é de um
metro e quarenta centímetros e não um metro e
vinte, como nos beliches tradicionais. Nos
beliches comuns a pessoa se sente sufocada!
Seu Otaviano se afasta. Marina fala confidencialmente ao Casal.
MARINA
O meu pai é o oitavo de nove filhos, sempre dormiu
e beliches. Não contem para ninguém mas ele
detestava dormir em beliches. Diz que sonhava com
caixões na cama de baixo ou com precipícios na
cama de cima. Quando meu pai assumiu a marcenaria
a grande idéia dele foi aumentar o espaço entre as
duas camas, baixando a cama de baixo.
Seu Otaviano se aproxima.
MARINA
A cama de baixo sendo mais baixa, aumenta a
estabilidade do móvel. Se ele subisse a cama de
cima o dormente de cima ia ficar com o nariz no
teto. Os beliches Marghera são os melhores
produzidos na região, talvez os melhores do
estado. Fazemos muitas vendas para Porto Alegre,
até para São Paulo. Temos vários modelos. Temos
até um triliche.
Marina mostra ao casal o catálogo de preços, com fotos. Marina se
afasta do casal, se aproxima de Otaviano.
OTAVIANO
Marina, quando você fala "dormente" as pessoas não
entendem.
MARINA
Dormente é o que dorme, está certo.
OTAVIANO
Dormente parece aquela madeira de fazer trilho de
trem. Diga "a pessoa que dorme".
MARINA
Tá bom. Pai, o que é filme de ficção?
OTAVIANO
Como assim?
MARINA
O que é um filme de ficção?
OTAVIANO
Filme de monstro, futuro, de coisas que não
existem.
MARINA
É isso?
OTAVIANO
É.
MARINA
Tem certeza?
OTAVIANO
Claro que eu tenho certeza, eu já não vi milhares
de filmes de ficção, Marina?
CENA 15 - QUARTO DE MARINA E JOAQUIM
Marina e Joaquim conversam, no quarto.
MARINA
Ele disse que é filme de monstro, futuro, essas
coisas.
JOAQUIM
Monstro ou futuro?
MARINA
Filme de monstro ou filme que se passa no futuro,
de ficção, coisa que não existe.
JOAQUIM
Não entendi. Filme de monstro ou de futuro? Pode
ser monstro e ser no passado, monstro do pântano,
dinossauro. E pode ser no futuro sem monstro, com
foguete, gente de capacete e roupa de plástico.
Ficção é o quê?
MARINA
Você tinha que ter perguntado para a mulher!
JOAQUIM
Pergunta você!
CENA 16 - SUBPREFEITURA
Na subprefeitura, Marina escuta, Marcela lê o dicionário.
MARCELA
(lendo) Ficção: substantivo feminino, ato ou
efeito de fingir. Construção, voluntária ou
involuntária, da imaginação; criação imaginária,
fantasiosa, fantástica, quimera, mentira, farsa,
fraude.
MARINA
(baixinho) É crime?
MARCELA
(baixinho) Acho que não, no caso de um filme.
Vocês podem fazer um filme de ficção, uma
história, que se passa num riacho em obras.
MARINA
Uma história que se passa num riacho em obras?
MARCELA
Qualquer coisa! Só o que não pode acontecer é
devolver dinheiro para o governo federal!
MARINA
Precisa ter monstro?
MARCELA
Aqui não fala em monstro. (lê) Criação imaginária,
criação fantasiosa, fantástica; quimera.
MARINA
O que é quimera?
Marcela procura no dicionário.
MARCELA
(lendo) Monstro mitológico que se dizia possuir
cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente
e lançar fogo pelas narinas.
CENA 17 - ESCRITÓRIO DA FÁBRICA
Marina, Joaquim e Silene, no escritório. Silne está na mesa, ao
computador. Marina arquiva notas, Joaquim bebe café.
JOAQUIM
Não falei que tinha que ter monstro?
MARINA
Não, não falou.
JOAQUIM
(indignado) Não falei??!
MARINA
Não, você falou "ficção científica".
JOAQUIM
E monstro não é ficção científica?
MARINA
Depende do monstro. Ela disse que quimera é um
monstro mitológico.
JOAQUIM
E mitologia não é ficção científica?
MARINA
(rindo) Claro que não! Mitologia é como religião,
história.
JOAQUIM
(rindo) Monstro é história? Que ignorância!
MARINA
Ignorante é você!
SILENE
Calma aí! Vocês não brigar por causa de mitologia!
Se vão, vão brigar em casa, que você estão
atrapalhando meu serviço.
JOAQUIM
Que serviço, você está jogando Lemings.
SILENE
Agora, antes eu estava trabalhando! Vocês querem
que eu faça conta com essa gritaria de vocês? Sabe
o que mais? Vocês estão precisando ir para cama
mais cedo hoje.
MARINA
Para quê? Ele está com uma micose... Eu fico
imaginando onde ele pega tanta micose. Já é a
terceira.
Climão. Joaquim olha para Marina, de cara. Marina vira o rosto.
Silene baixa os olhos. Joaquim sai. Marina e Silene ficam em
silêncio. O som de uma serra elétrica toma o
ambiente. Silene volta ao computador, Marina sai.
CENA 18 - MATA PERTO DA POUSADA
O carro de Fabrício pára perto de uma cachoeira, desliga o motor.
Som da cachoeira e dos pássaros, do vento nas árvores. Silene e
Fabrício descem. Ele se aproxima da
cachoeira, molha a mão, lava o rosto. Silene respira fundo, enche
o pulmão, pega um cigarro, acende. Fabrício liga o som do carro,
bem alto, abre uma lata de cerveja e
entrega a Silene.
Fabrício e Silene, encostados no carro, escutam música, fumam e
bebem.
FABRÍCIO
Jogar fogo pelo nariz vai ser complicado.
SILENE
Pode ser só uma luz. Duas lanternas. E a cabeça de
leão?
FABRÍCIO
Cabeça de leão é uma juba e uma máscara.
SILENE
Juba de pano?
FABRÍCIO
Acho que sim.
SILENE
Corpo de cabra...
FABRÍCIO
Um casaco, peludo.
SILENE
E a cauda de serpente?
FABRÍCIO
Uma calça de couro. Eu tenho uma, vermelha.
SILENE
Ainda serve?
FABRÍCIO
Claro que serve!
Fabrício joga a lata vazia de cerveja na cachoeira.
SILENE
(grita) Ei!
FABRÍCIO
O que foi?
SILENE
Você é idiota?
FABRÍCIO
Por quê?
SILENE
Jogar a lata na cachoeira?
FABRÍCIO
O que é que tem?
SILENE
O que é que tem? Imagino você, dono de uma
pousada. Depois reclamam que aqui não tem turismo.
FABRÍCIO
Turismo? E quem vai vir fazer turismo aqui nessa
cachoeira?
SILENE
Cheia de lata de cerveja, ninguém.
FABRÍCIO
Onde você queria que eu jogasse a lata?
Silene joga a mata no mato.
SILENE
Ali. No mato. Parece idiota...
FABRÍCIO
Tá bom, desculpe.
Fabrício apaga o cigarro, cata a guimba no chão e joga no mato.
FABRÍCIO
Tá bom assim?
CENA 19 - CASA DE MARINA E JOAQUIM
Em casa, Marina e Joaquim brigam, fazem as pazes, transam e
comem, tudo isso em 10 segundos (de filme). Comendo, conversam.
JOAQUIM
O Monstro da fossa. Ele morava numa caverna, perto
do arroio. Estava hibernando há mais de dez anos.
A obra acordou o monstro, ele sai e ataca uma
moça, o marido a defende e mata o monstro.
MARINA
O monstro pode ser uma mutação genética decorrente
do uso de fertilizantes pelos agricultores, uma
mensagem ecológica.
JOAQUIM
Você pode ser a mulher.
MARINA
Eu? Deus me livre! A mulher é a Silene, que adora
mostrar aquele umbigo.
JOAQUIM
E o monstro?
MARINA
O monstro é o Fabrício.
JOAQUIM
E o marido?
MARINA
Você.
JOAQUIM
Eu? Vou ser marido da Silene?
MARINA
Você prefere ser o monstro?
JOAQUIM
Claro que eu prefiro ser o monstro. Monstro não
aparece a cara. O que o monstro faz?
MARINA
Bate na Silene.
JOAQUIM
Eu sou o monstro.
MARINA
E apanha do Fabrício. Do marido.
JOAQUIM
Apanha muito?
MARINA
De faz de conta.
JOAQUIM
Eu sou o monstro. Monstro não mostra a cara.
MARINA
Certo.
JOAQUIM
E você faz o quê?
MARINA
Eu faço todo o resto.
JOAQUIM
Que resto?
MARINA
Compro o pano, faço a fantasia de monstro,
costuro, vou no banco, faço todos os papéis na
subprefeitura, a porcaria do roteiro, tudo. Eu
faço tudo! Quer trocar comigo? Eu faço o monstro,
bato na Silene...
JOAQUIM
E apanha do Fabrício...
MARINA
Apanho do Fabrício de faz de conta. E você faz
tudo que eu vou fazer. Não quer o dinheiro para a
fossa?
JOAQUIM
Não, tudo bem, eu faço o monstro. Eu posso ajudar
na fantasia também.
CENA 20 - SEQUÊNCIA DE MONTAGEM
(música e montagem paralela de várias cenas)
Marina e Silene escolhem do figurino de Silene.
SILENE
Silene Santos.
MARINA
Santos?
SILENE
Silene Souza.
MARINA
Por que não Silene Marghera?
SILENE
Não combina. Marina Marghera combina.
MARINA
Marina Marghera sou eu.
SILENE
Você é Marina Figueiredo.
MARINA
Marina Marghera Figueiredo.
SILENE
Três nomes não dá. Marina Marghera é ótimo.
MARINA
Tá louca? Você vai querer roubar o meu nome?
SILENE
Não, claro que não, estou só experimentando.
Miriam Marghera. Mônica Marghera.
MARINA
Eu gosto de Silene.
SILENE
Silene Silberman. Silene Sandrelli. Silene
Sellers.
Joaquim e Fabrício tentam fazer a fantasia do monstro, incluindo
uma máscara com duas pequenas lanternas no nariz, cabeça de leão,
corpo de cabra e cauda de serpente.
Joaquim e Fabrício aprovam o figurino de Silene.
Joaquim e Fabrício experimentam métodos de fazer fumaça.
Joaquim e Fabrício aprovam ainda mais o figurino de Silene.
Joaquim veste a juba de pano, a calça de couro e uma jaqueta de
pele de carneiro.
Joaquim e Fabrício ficam bestas com o figurino de Silene.
CENA 21 - FÁBRICA
Joaquim e Marina fazem contas.
MARINA
Duas lanternas pequenas, dezesseis reais. Duas
pilhas grandes, seis reais. Papel, vinte reais
reais. Carvão?
JOAQUIM
Para a fumaça.
MARINA
Não dá para fazer com lenha?
JOAQUIM
Não. O café só faz fumaça na brasa.
MARINA
Já que é para fazer, melhor fazer bem feito. E
esse café?
JOAQUIM
Guardei o café passado. E o roteiro?
MARINA
Está aqui.
JOAQUIM
(lendo) O monstro da fossa, roteiro de Marina
Marghera Figueiredo. Ah é?
MARINA
Com a colaboração de Joaquim Figueiredo.
JOAQUIM
Colaboração...
MARINA
Quem escreveu fui eu. Você só inventou a história.
JOAQUIM
Tá bom. (lendo) Nossa história começa numa pequena
e tranqüila comunidade ao pé de uma montanha. Uma
brisa refrescante traz do vale o aroma das
corticeiras em flor. (pára de ler) Como é que você
vai filmar isso?
MARINA
O quê?
JOAQUIM
O aroma das corticeiras em flor.
MARINA
Não vou filmar, quem vai filmar é o Fabrício.
JOAQUIM
E como o Fabrício vai filmar o aroma das
corticeiras em flor?
MARINA
Isso é só um roteiro, a Marcela disse que tem que
ter dez páginas, estou enrolando, só tenho três
páginas prontas. Não gostou? Escreve você!
JOAQUIM
Não, tudo bem, é que...
MARINA
Mania de criticar tudo que eu escrevo... Aquela
sua fantasia de quimera está uma beleza.
JOAQUIM
Não ficou pronta ainda.
MARINA
Me dá o roteiro.
JOAQUIM
Não, tudo bem, deixa eu ler. (lendo) Um caminhão
está descarregando material de construção ao lado
do arroio: x dúzias de tijolos, seiscentos reais,
x sacos de cimento, oitocentos reais, x metros
cúbicos de brita, (etc... lista de todo material
necessário para a construção de uma fossa). Vai
aparecer isso tudo?
MARINA
A Marcela disse pra incluir no roteiro, para
justificar a compra, é material necessário para o
filme.
JOAQUIM
Com o preço?
MARINA
Eu usei a lista do seu Antonio. Acha melhor tirar
o preço do roteiro? Vai ficar menor ainda.
JOAQUIM
Deixa o preço. (lendo) Silene Segal...
MARINA
S(i)gal.
JOAQUIM
Está escrito Segal.
MARINA
Se escreve com e mas se diz Sigal, como o George
Segal. Foi a Silene que escolheu.
JOAQUIM
Quem é George Segal?
MARINA
Um ator. Lembra do corujão e a gatinha?
JOAQUIM
Não.
MARINA
Ele era o corujão. A gatinha era a Barbara
Streisand. Tem uma cena dele vestido de caveira
que é de rolar de rir. Ela tem uma camisola com um
desenho de umas mãos assim, no peito. Continua.
JOAQUIM
Silene Sigal, uma bonita jovem de 20 anos, cabelos
longos, vestida para uma festa de formatura...
MARINA
É pra justificar o vestido. Ela diz que só faz o
filme se puder usar um vestido novo, não vai
aparecer com as roupas dela.
JOAQUIM
Ela quer comprar um vestido?
MARINA
Vamos tentar um patrocínio duma loja. Se ela não
conseguir, tem que comprar.
JOAQUIM
Que absurdo. Quanto custa?
MARINA
Trezentos e vinte.
JOAQUIM
Com trezentos e vinte dá para comprar... Cento e
cinqüenta tijolos.
MARINA
Cento e cinqüenta e cinco.
JOAQUIM
Com você vai justificar este gasto?
MARINA
Figurino. Continua.
JOAQUIM
Vai ter a festa de formatura no filme?
MARINA
Não, claro que não.
JOAQUIM
E como as pessoas vão saber que ela está indo para
a festa de formatura?
MARINA
Ela pode dizer para alguém.
JOAQUIM
Como?
MARINA
Ela pode falar para um dos operários que está indo
para a sua festa de formatura.
JOAQUIM
Como? "Bom dia? Meu nome é Silene Sigal e eu estou
indo para a minha festa de formatura..."
MARINA
Ela pode conhecer um dos operários. Ele pode
dizer: "Oi, Silene. Onde você vai tão bonita a
esta hora?" E ela responde: "Estou indo para a
minha festa de formatura".
JOAQUIM
É meio estranho.
MARINA
Isso não interessa. O que interessa é a construção
da fossa. Continua.
JOAQUIM
(lendo) Silene cumprimenta os operários...
MARINA
Viu?
JOAQUIM
... e se afasta pelo bosque. O dia está muito
quente. Silene pára e se refresca na margem de um
arroio. Então ela ouve um rugido na mata. Se
assusta. Observa, pensa que deve ter sido um bicho
qualquer, inofensivo. Como?
MARINA
Como o quê?
JOAQUIM
Como a gente vai ver que ela pensou isso?
MARINA
"Deve ter sido um bicho inofensivo..." Continua.
JOAQUIM
(lendo) Ela volta a caminhar, mas tem o semblante
apreensivo como se alguém a observasse. Caminha
pela mata, ouve passos. Silene olha para trás, mas
não vê nada. Neste momento o monstro vê Silene
entre as folhas... O monstro já apareceu? Na
primeira cena?
MARINA
Não. É só ele olhando a Silene.
JOAQUIM
Ele olhando?
MARINA
Como se fosse ele olhando, com a câmera sacudindo
assim, andando atrás dela, se escondendo atrás das
árvores.
JOAQUIM
Sei. E aí, o que acontece?
JOAQUIM
Continua a ler.
MARINA
(lendo) Silene está apavorada, corre pela mata,
cai, ofegante. Uma mão toca seu ombro. Ela grita.
Joaquim vira a folha, não há mais nada escrito.
JOAQUIM
E aí?
MARINA
Aí o quê?
JOAQUIM
O que acontece?
MARINA
Ficou interessado?
JOAQUIM
Você não escreveu mais?
MARINA
Escrevi.
JOAQUIM
Cadê?
MARINA
(toca na cabeça) Aqui.
JOAQUIM
É o monstro?
MARINA
Quer saber?
JOAQUIM
Quero, claro.
MARINA
A-há...
JOAQUIM
Marina, eu tenho que trabalhar.
MARINA
Pode ir. Vou escrever o resto e te mostro.
CENA 22 - ARROIO
Rural Willys de duas cores está parada ao lado do riacho.
Otaviano, sentado no carro, a porta aberta, fuma um cigarro,
olhando para o riacho.
Um pick-up moderna se aproxima. Pára. Antonio desce.
OTAVIANO
Boa tarde.
ANTONIO
Estou atrasado.
OTAVIANO
Não, ela não chegou. Bonito seu carro.
ANTONIO
Não é?
OTAVIANO
Deve ter sido caro.
ANTONIO
Comprei usado, quase novo. Ainda estou pagando. É
muito seguro, tem quatro air-bags.
Tração...(descreve).
OTAVIANO
Sei.
ANTONIO
O som é uma beleza.
Antonio liga o som do carro no máximo, uma orquestra de swing.
OTAVIANO
Muito bom.
Antonio desliga o som.
ANTONIO
Cabem doze cedês. Para viajar é uma maravilha.
OTAVIANO
Ainda estou no tempo da fita.
Antonio põe no seu toca-fitas uma ária muito triste que enche o
vale.
Antonio chora.
Um pequeno carro chega, desce Marcela.
MARCELA
Seu Otaviano...
OTAVIANO
Dona Marcela...
MARCELA
Seu Antonio...
ANTONIO
Tudo bem?
Antonio seca as lágrimas.
MARCELA
Algum problema?
ANTONIO
Não, não. Está tudo bem.
MARCELA
Esse é o riacho?
OTAVIANO
É.
MARCELA
Cheiro ruim.
OTAVIANO
Pois é.
MARCELA
Onde será a construção da fossa?
ANTONIO
(Antonio aponta). Ali.
MARCELA
Você tem o projeto?
Antonio pega uma pasta no carro, mostra o projeto a Marcela. Eles
conversam enquanto examinam o local da futura obra e o projeto.
ANTONIO
O material é... (descreve o material).
MARCELA
Quanto de cimento?
ANTONIO
600 sacos.
MARCELA
Tudo isso?
ANTONIO
Na obra da fossa vão 40 metros cúbicos de
concreto, 15 sacos por metro cúbico.
MARCELA
Dá para fazer um metro cúbico de concreto com dez
sacos de cimento. São 400 sacos.
ANTONIO
Não dá.
MARCELA
O senhor sabe que dá.
ANTONIO
Não dá. O padrão é 11 sacos por metro cúbico.
MARCELO
Mas o senhor já estava orçando 15! No dique na
Vila dos Ferroviários a prefeitura gastou 30.000
sacos de cimento e a obra tinha 2.800 metros
cúbicos de concreto.
ANTONIO
Numa obra grande o fornecedor dá desconto. Essa é
uma obra pequena.
MARCELA
Não tem nada a ver o desconto, o preço do cimento,
com a quantidade necessária, são duas questões
diferentes. E numa obra grande o desperdício é
maior.
ANTONIO
A questão é a mesma. No dique dos Ferroviários
vocês usaram Cimex, que rende bem mas liga menos.
Eu é que não queria morar do lado daquele dique.
Eu só uso cimento Garibaldi, é outro padrão.
MARCELA
O padrão é o mesmo, o senhor só usa Garibaldi
porque o representante de vendas é o Ernesto, que
é seu primo.
ANTONIO
Eu pago o preço de tabela. E a brita que usaram
nos Ferroviários? O que para eles é brita para mim
é areia.
MARCELA
400 sacos dá e sobra.
ANTONIO
550 é o mínimo. Menos que isso eu pago para fazer
a obra.
MARCELA
Feche em 450 e eu aprovo agora.
ANTONIO
Nem pensar.
MARCELA
O senhor também vai usufruir da obra. Precisa dar
a sua contribuição.
ANTONIO
Já contribuo muito pagando impostos. Que pagam o
salário de muita gente.
MARCELA
500.
ANTONIO
530.
MARCELA
500. É 500 ou eu questiono o caráter de urgencia
urgentísima da obra e vai tudo para licitação. E
aí o senhor sabe que vai perder, tem um pessoal de
São Paulo que faz um metro cúbico de concreto com
menos de 9 sacos.
ANTONIO
Tudo bem, 500. Eu faço isso em consideração à
comunidade, que precisa muito da obra. E também
para garantir que os investimento sejam feitos em
pessoal local, gerando empregos.
MARCELA
Inclusive o seu.
ANTONIO
E o seu.
MARCELA
Eu sou funcionária de carreira, concursada.
ANTONIO
Efetivada com concurso interno.
MARCELA
Passei em primeiro lugar.
CENA 23 - LOJA
Uma loja de roupas e acessórios femininos. Silene caminha pela
loja, examina os vestidos, acompanhada de uma VENDEDORA, 18.
Fabrício conversa com CARMEM, 50, dona da loja.
FABRÍCIO
O objetivo é filantrópico, mas a participação da
sua empresa no projeto também pode reverter no
fortalecimento da sua marca, hoje um fator
decisivo na competitividade. Todo mundo sabe que
grandes empresas, Brahma, Correios, Terra,
Petrobrás, estão se associando aos produtos
audiovisuais. A "Só Lindezas" é uma empresa de
porte médio, mas o investimento é pequeno. E o
público alvo são as crianças e as mães das
crianças da região, exatamente o seu público.
Silene experimenta um vestido, fica muito apertado. A vendedora,
tipo modelo, magra e alta, não consegue disfarçar um sorriso.
Silene percebe, passa a tratar a vendedora como um cabide móvel.
Silene experimenta de tudo, até vestir um modelo que lhe serve
perfeitamente.
CARMEM
O que vocês precisam?
FABRÍCIO
Existem dois tipos previstos de inserção de apoios
no vídeo. O primeiro, com maior visibilidade,
cartão com logotipo nos créditos de abertura do
vídeo, antes do título do filme. Esta inserção
corresponde a uma cota de patrocínio de mil reais.
CARMEM
Mil reais? Nem pensar. Qual o segundo tipo?
FABRÍCIO
A segunda inserção possível é com a doação de
material necessário para a realização do projeto.
Aí a sua empresa teria o nome citado nos
agradecimentos e a utilização do produto, em forma
de mershandising, dentro do filme.
CARMEM
Que tipo de material vocês precisam?
FABRÍCIO
Figurino, maquiagem.
CARMEM
Figurino?
FABRÍCIO
Vestidos, para as atrizes.
SILENE
E sapatos.
CARMEM
Empréstimo ou doação?
SILENE
Doação. Sapatos nem tem como devolver, usando uma
vez a sola fica marcada.
CARMEM
E os vestidos?
SILENE
Só uso se for meu.
CARMEM
E como a pessoa que está vendo o filme vai saber
que o vestido foi comprado na minha loja?
FABRÍCIO
Isso a gente dá um jeito.
CENA 24 - FÁBRICA
Otaviano, Marcela e Marina conversam. Otaviano não pára de
trabalhar enquanto fala.
OTAVIANO
Quando eu fui subprefeito o saneamento básico era
prioridade. Imagina gastar dinheiro em filme
quando as pessoas não têm esgoto.
MARCELA
O senhor está pensando pequeno.
OTAVIANO
A verba é pequena, melhor pensar pequeno.
MARCELA
Quando a verba é pequena tem que pensar grande. A
indústria do audiovisual é prioridade em todos os
países desenvolvidos.
OTAVIANO
Eles já têm esgoto.
MARCELA
Mas têm outras necessidades tão importantes como
esgoto: saúde pública, aposentadorias, segurança.
E mesmo assim investem muito em audiovisual. E a
participação da iniciativa privada, em parceria
com o setor público, é fundamental.
OTAVIANO
Quando eu fui subprefeito...
MARINA
Papai, isso faz tempo, a realidade é outra. E
quando o senhor foi subprefeito não tinha eleição,
o senhor foi nomeado.
OTAVIANO
O riacho não fedia.
MARCELA
A idéia do projeto é resolver este problema. O
senhor pode contribuir com a madeira necessária
para a obra.
OTAVIANO
Madeira custa dinheiro. Eu já pago muito imposto.
MARCELA
Nem tanto.
OTAVIANO
Como assim, nem tanto?
MARCELA
Na Espanha, na França, na Suécia, a carga
tributária é bem maior do que aqui.
OTAVIANO
Suécia... Vá ver se na Suécia tem esgoto a céu
aberto.
MARINA
Papai, por favor...
OTAVIANO
Quanto vocês precisam?
CENA 25 - ESCRITÓRIO DE UMA VINÍCULA
Marcela e Marina conversam com LEONARDO, 45, proprietário de uma
vinícula. O escritório tem uma janela para o interior da fábrica.
MARINA
Mil reais.
LEONARDO
E o que eu ganho?
MARCELA
O projeto é filantrópico, mas o logotipo da sua
empresa vai estar nos créditos de abertura. E o
público do vídeo alvo são as crianças e os pais
das crianças da região, exatamente o seu público.
MARINA
Vinhos Leonardo apresenta...
MARCELA
Acho que é melhor apresentam. Vinhos Leonardo
apresentam...
LEONARDO
Como é o nome do filme?
MARINA
O Monstro da Fossa.
MARCELA
O título é provisório. O senhor gosta de cinema?
LEONARDO
Senhor? Que é isso..
MARCELA
Você... Gosta de cinema?
LEONARDO
Muito. Tenho um home-teather com dts. Tenho uma
boa coleção de dvds, principalmente musicais,
shows de rock. Se vocês quiserem, podemos jantar,
ver um dvd e conversar sobre o projeto.
MARINA
Muito obrigado. Meu marido adora rock.
MARCELA
Não vamos lhe dar trabalho, sujar louça. Gente
pode sair, jantar fora, eu conheço um lugar ótimo,
música ao vivo, tem até uma pista de dança. E
depois passar na sua casa, para conhecer o home-
theater.
MARINA
Meu marido não gosta de dançar.
MARCELA
Eu tenho todos os detalhes do projeto. Mas nós
precisamos de uma definição hoje.
LEONARDO
Mil reais?
MARCELA
O que são mil reais para um empresário do seu
porte?
Leonardo assina o cheque.
LEONARDO
Em nome de quem?
MARCELA
Bolognesi Engenharia.
MARINA
É a empresa encarregada da obra, a verba vai
direto para a compra de brita e areia.
MARCELA
Muito obrigado. São empresários com a sua visão
social que o município precisa.
LEONARDO
Posso descontar a verba como despesa operacional?
MARCELA
Isenta de ICMS.
Marcela pega o cheque.
LEONARDO
E o nosso jantar?
MARCELA
Às nove? Você vai adorar este lugar, tem sempre
umas meninas lindas, muito jovens. No mês conheci
uma garota lá, uma graça.
LEONARDO
É?
MARCELA
Morena, cabelo curtinho, sarada.
LEONARDO
Eu não sei se vai poder ser hoje...
MARCELA
Você tem meu telefone no cartão. Quando quiser, é
só marcar.
LEONARDO
Está bem, claro.
MARINA
Muito obrigado.
CENA 26 - PADARIA
Marina e Marcela olham o cheque e comemoram, rindo. Se abraçam.
Marina pára de rir, fica sem jeito.
MARCELA
Eu não sou lésbica.
MARINA
Imagina, claro que não, eu...
Ficam em silêncio.
CENA 27 - RIACHO
Operários cavam o buraco da fossa. Silene, com seu vestido de
baile, se aproxima.
OPERÁRIO UM
Olha quem vem lá!
OPERÁRIO DOIS
Quem?
OPERÁRIO UM
A Silene.
OPERÁRIO DOIS
Que Silene?
OPERÁRIO UM
A Silene Seagal.
OPERÁRIO DOIS
Ah... Bom dia Silene.
SILENE
Bom dia.
OPERÁRIO UM
Onde você vai tão bonita a esta hora?
SILENE
Na minha festa de formatura.
OPERÁRIO DOIS
Que vestido bonito... Foi sua mãe que fez?
SILENE
Não. Comprei na Só Lindeza.
OPERÁRIO UM
Ah...
SILENE
Tchau, não posso me atrasar.
OPERÁRIO DOIS
Tchau Silene Segal.
MARINA
Corta.
Marina, Joaquim e Fabrício estão filmando, a câmera num tripé.
JOAQUIM
O que foi?
MARINA
Agora, na hora que ela vai embora, não precisa
dizer o sobrenome. É só: "Tchau Silene".
FABRÍCIO
Quer fazer tudo outra vez só por causa disso?
MARINA
Não, a gente volta a fita e faz só o final.
SILENE
Achei aquela coisa de dizer o nome da loja um
pouco falsa. Por que ela diria isso pros
operários?
JOAQUIM
Tem que falar o nome da loja.
SILENE
Não pode mostrar?
FABRÍCIO
Mostrar a loja?
MARINA
A etiqueta. Ela poderia estar com a etiqueta. Um
operário avisa, ela arranca a etiqueta e você
mostra o nome da loja.
FABRÍCIO
É, pode ser.
JOAQUIM
Vamos fazer tudo outra vez?
SILENE
Vamos.
FABRÍCIO
Vou voltar a fita.
CENA 28 - RIACHO
Operários cavam o buraco da fossa. Silene, com seu vestido de
baile, se aproxima.
OPERÁRIO UM
Olha quem vem lá?
OPERÁRIO DOIS
Quem?
OPERÁRIO UM
A Silene.
OPERÁRIO DOIS
Que Silene?
OPERÁRIO UM
A Silene Seagal.
OPERÁRIO DOIS
Ah... Bom dia Silene.
SILENE
Bom dia.
OPERÁRIO UM
Onde você vai tão bonita a esta hora?
SILENE
Na minha festa de formatura.
OPERÁRIO DOIS
Vestido novo...
SILENE
Como você sabe?
OPERÁRIO UM
Está com a etiqueta.
(risos)
SILENE
Obrigado.
Silene arranca a etiqueta, joga no chão. Close na etiqueta.
SILENE
Tchau, não posso me atrasar.
OPERÁRIO DOIS
Tchau Silene Si...lene.
FABRÍCIO
Corta.
OPERÁRIO DOIS
Eu parei no meio.
FABRÍCIO
Tudo bem, ficou ótimo.
SILENE
Vamos ver?
CENA 29 - RIACHO
Eles vêem a cena na câmera.
SILENE
Meu cabelo está horrível.
ANTONIO
Os operários estão sem luva e capacete. Não pode.
MARINA
Por que não?
ANTONIO
Tem que usar luva e capacete.
ANTONIO
Vamos fazer outra vez.
CENA 30 - RIACHO
Operários, de luva e capacete, cavam o buraco da fossa. Silene,
de cabelo preso, com seu vestido de baile, se aproxima.
OPERÁRIO UM
Olha quem vem lá!
OPERÁRIO DOIS
Quem?
OPERÁRIO UM
A Silene Seagal.
OPERÁRIO DOIS
Que Silene Seagal?
FABRÍCIO
Corta!
OPERÁRIO UM
Olha quem vem lá!
OPERÁRIO DOIS
Quem?
OPERÁRIO UM
A Silene.
OPERÁRIO DOIS
Que Silene?
OPERÁRIO UM
A Silene Seagal.
OPERÁRIO DOIS
Ah...Bom dia Silene Seagal.
FABRÍCIO
Corta!
OPERÁRIO UM
Olha quem vem lá!
OPERÁRIO DOIS
Quem?
OPERÁRIO UM
A Silene.
OPERÁRIO DOIS
Que Silene?
OPERÁRIO UM
A Silene Seagal.
OPERÁRIO DOIS
Ah...Bom dia Silene.
OPERÁRIO UM
Onde você vai tão bonita a esta hora?
SILENE
Na minha festa de formatura.
OPERÁRIO DOIS
Vestido novo...
SILENE
Como você sabe?
OPERÁRIO UM
Está com a etiqueta.
(risos)
SILENE
Obrigado.
Silene arranca a etiqueta, joga no chão. Close na etiqueta.
SILENE
Tchau, não posso me atrasar.
OPERÁRIO DOIS
Tchau... Silene.
FABRÍCIO
Corta! Perfeito! Ficou ótimo!
MARINA
Quanto tempo deu?
Fabrício examina a câmera.
FABRÍCIO
Quarenta segundos.
MARINA
Só? O filme tem que ter no mínimo 10 minutos.
FABRÍCIO
A próxima cena a gente faz mais devagar.
CENA 31 - RIACHO
Marina, planilha na mão, conversa com os operários.
OPERÁRIO UM
Eu moro na Linha Nova...
OPERÁRIO DOIS
Não dá o endereço, tu só ficou lá uma manhã...
(risos)
OPERÁRIO UM
Eu moro na Linha Nova, casa dezesseis.
Ela entrega o papel, ele assina.
MARINA
(ao Dois) Seu nome?
OPERÁRIO DOIS
João Maria Mercedes.
OPERÁRIO UM
João Maria Maria Mercedes? (risos)
OPERÁRIO DOIS
E tu, Setembrino.
OPERÁRIO UM
Setembrino é um nome normal. Nasci em setembro.
João Maria Mercedes. Acho que a tua mãe ficou na
dúvida se tu era João ou Maria Maria Mercedes.
OPERÁRIO DOIS
Mercedes é sobrenome, animal. Sorte tua foi que a
tua mãe foi rápida e tu não nasceu em outubro, já
pensou? Outubrino...
MARINA
O seu endereço?
OPERÁRIO DOIS
Vila dos Ferroviários, Rua Doze, número 36.
Ela entrega, ele assina. Eles voltam a cavar.
OPERÁRIO DOIS
Pra que é isso?
MARINA
Vocês têm que autorizar o uso da imagem.
OPERÁRIO DOIS
Que imagem?
MARINA
A imagem de vocês, no filme. Todo mundo que
aparece tem que autorizar, assinar e dar o
endereço.
OPERÁRIO UM
E a gente tem cachê?
MARINA
Não, desculpe, é só agradecimento. A figuração é
sem custos. É um trabalho filantrópico,
beneficente.
OPERARIO DOIS
Sei.
CENA 32 - FLORESTA
Silene caminha pela floresta. Abre um botão do vestido e abana-
se.
SILENE
Que calor...
Silene pára e se refresca na margem de um arroio. Então ela ouve
um rugido na mata. Se assusta. Observa, escuta.
SILENE
Deve ter sido um bicho inofensivo...
Silene volta a caminhar, mas tem o semblante apreensivo como se
alguém a observasse.
Silene caminha pela mata, ouve passos. Olha para trás, mas não vê
nada.
Ponto de vista de alguém que caminha entre as árvores, observando
Silene.
Neste momento o monstro vê Silene entre as folhas...
Silene está apavorada, corre pela mata, cai, ofegante. Uma mão
segura seu ombro. Ela grita.
É Fabrício.
FABRÍCIO
O que foi?
SILENE
É você?
FABRÍCIO
Sou eu. Quem você pensou que fosse?
SILENE
Não sei. Me assustei.
FABRÍCIO
Está machucada?
SILENE
Não, acho que não.
Silene levanta-se com a ajuda de Fabrício.
SILENE
Sujei o meu vestido.
Fabrício ajuda Silene a limpar o vestido, aproveita para tirar
uma casquinha, ela o detém.
FABRÍCIO
Então tira...
SILENE
Pára.
FABRÍCIO
Você está muito linda.
SILENE
Pára, Fabrício. Vamos, o baile já vai começar.
A câmera corrige para o céu.
Corta para a lua, corrige para a mata. (iluminada pelos faróis de
um carro) Silene e Fabrício se aproximam, de mãos dadas. Ele tem
a camisa aberta, gravata frouxa. Ela segura um canudo, o diploma.
SILENE
O baile estava ótimo.
FABRÍCIO
É verdade. E a orquestra? Uma maravilha.
SILENE
Tinha muita gente.
FABRÍCIO
Você era a mais bonita de todas.
SILENE
Obrigado.
FABRÍCIO
Você é muito linda.
SILENE
Pára, Fabrício.
FABRÍCIO
Linda demais.
SILENE
Pára, Fabrício! Vai amassar o meu vestido...
FABRÍCIO
Então tira...
SILENE
Tá louco? Pára...
FABRÍCIO
Você também...
SILENE
O quê?
FABRÍCIO
É cheia de frescura! Todas as suas amigas fazem
muito mais coisas que você...
SILENE
Então procura as minhas amigas. Tchau!
FABRÍCIO
Espera...
Silene se afasta de Fabrício, caminha sozinha pela floresta.
Silene continua caminhando pela floresta.
MARINA (FQ)
Quanto deu?
FABRÍCIO (FQ)
Quarenta e cinco segundos.
MARINA (FQ)
Só?
FABRÍCIO (FQ)
Vou filmar mais um pouco.
JOAQUIM (FQ)
O carro vai ficar sem bateria.
MARINA (FQ)
Liga o motor.
JOAQUIM (FQ)
E o barulho?
MARINA (FQ)
Não tem importância.
Som de motor ligando, a luz pisca. Silene caminha muito pela
floresta.
FABRÍCIO (FQ)
Chega. O Joaquim está pronto?
JOAQUIM (FQ)
Estou.
FABRÍCIO (FQ)
E a fumaça?
JOAQUIM (FQ)
É só jogar o café na brasa.
FABRÍCIO (FQ)
Então vamos lá. Corta!
CENA 33 - RIACHO
Fumaça em primeiro plano. A cabeça de Fabrício aparece.
MARINA (FQ)
Abaixa!
Fabrício sai de cena. A fumaça aumenta.
FABRÍCIO (FQ)
Vem!
Silene se aproxima, caminha na direção da fumaça. Ela passa pela
fumaça, fecha o nariz e os olhos. Pára.
MONSTRO (FQ)
Aaargh!
Silene se assusta, olha para os lados. Procura algo na bolsa.
(Fecha no rosto dela enquanto ela procura. Abre o plano e ela
tira da pequena bolsa uma lanterna enorme.) Liga a lanterna,
aponta para o mato.
MONSTRO (FQ)
Aaargh!
Silene se vira e dá de cara com a Quimera, com lanternas no
nariz.
SILENE
(grita) Aaaaaaa!
O Monstro avança sobre ela, ela grita. O Monstro a estrangula.
Fabrício chega, dá um soco no monstro.
MONSTRO
Cacete!
FABRÍCIO
Aaarg!
O Monstro foge. Fabrício abraça Silene.
FABRÍCIO
Silene! Você está bem?
SILENE
Fabrício! Um Monstro horrível me atacou.
FABRÍCIO
Eu vi.
SILENE
Você me salvou.
FABRÍCIO
Silene...
SILENE
Fabrício...
Beijam-se. A câmera perde o foco.
SILENE
Corta.
MARINA (FQ)
Onde desliga?
Fabrício vem até a câmera e desliga.
CENA 34 - POUSADA
Marcela, Marina, Joaquim, Silene e Fabrício acabam de ver o
vídeo. Não parecem muito animados.
MARINA
Quanto deu?
FABRÍCIO
Cinco minutos e doze.
MARINA
Metade. E agora?
JOAQUIM
Tem que inventar mais história. Explicar o
monstro, a coisa ecológica, dos agrotóxicos.
FABRÍCIO
Eu posso ser um cientista, especialista em
genética.
SILENE
Você não tem cara de cientista.
MARINA
A gente encontra alguém. Temos que escrever a
cena.
JOAQUIM
Vamos.
Marina senta no computador, os outros se aproximam.
JOAQUIM
Onde é a cena?
MARINA
No laboratório do cientista.
SILENE
Onde a gente vai achar um laboratório?
MARINA
É só botar uns vidros com líquidos coloridos
dentro.
JOAQUIM
Eu posso conseguir gelo seco na sorveteria.
MARINA
Ótima idéia! Vidros com fumaça.
JOAQUIM
E o cientista explica porque surgiu o monstro.
MARINA
Certo. (escrevendo) "O monstro deve ter surgido
por causa de um..."
SILENE
Não tem que apresentar o cientista?
MARINA
Como assim?
SILENE
Dizer quem é.
FABRÍCIO
É melhor, pro público entender.
SILENE
O Fabrício pode perguntar e já apresentar o
cientista.
MARINA
Boa. O Fabrício diz: "O senhor, que é um cientista
famoso, tem alguma explicação para o surgimento
deste monstro?"
FABRÍCIO
Não tem que dizer o nome do cientista? Não sei,
senti falta, na fala.
SILENE
É melhor.
MARINA
Como vai ser o nome?
SILENE
Depende de quem vai ser o cientista.
JOAQUIM
Por quê?
SILENE
Ué... o nome combina com a cara da pessoa.
MARINA
Que bobagem. Tu acha que eu tenho cara de Marina?
SILENE
Completamente.
JOAQUIM
Que besteira! Eu tenho cara de Joaquim, por acaso?
SILENE
Tem, a maior cara de Joaquim.
MARINA
Como assim? Como é cara de Joaquim?
JOAQUIM
O nome não importa, pode ser qualquer um.
SILENE
Qual?
FABRÍCIO
Sei lá... Doutor Franklin.
JOAQUIM
Franklin? É um cientista americano?
FABRÍCIO
Pode ser.
MARINA
Melhor não, o filme é brasileiro.
FABRÍCIO
Tá bom. Doutor Tavares.
SILENE
Tavares é nome de político, engenheiro, delegado.
FABRÍCIO
Doutor Ernesto.
JOAQUIM
Nome do meu tio.
FABRÍCIO
O que ele faz?
JOAQUIM
Tem uma loja de ração.
SILENE
Doutor Fernando Henrique Cardoso.
MARINA
O nome tanto faz.
FABRÍCIO
Calma, vamos pensar mais um pouco.
Longa passagem de tempo.
JOAQUIM
Doutor Franz.
FABRÍCIO
Alemão.
MARINA
Pode ser, por que não?
FABRÍCIO
Eu sugeri Franklin vocês disseram que não podia
ser americano.
JOAQUIM
Aqui não tem americano. Alemão tem um monte.
FABRÍCIO
Um cientista alemão morando aqui? Aqui só tem
caipira.
JOAQUIM
A começar por você.
FABRÍCIO
Eu tenho curso superior.
JOAQUIM
De turismo. Aquela faculdade é um hotel.
FABRÍCIO
Curso superior.
MARINA
Chega, são duas da manhã. Eu escrevo sozinha. A
gente convida alguém para fazer o cientista e ele
escolhe o nome, eu tenho que trabalhar às 7 e
meia. E vocês também.
CENA 35 - FÁBRICA
Otaviano está fazendo um beliche.
MARINA
Doutor Otaviano.
OTAVIANO
Me deixa trabalhar, Marina.
OTAVIANO
Doutor... Agostinho. O senhor adora Santo
Agostinho...
Otaviano trabalha.
OTAVIANO
A gente filma aqui mesmo, em cinco minutos. Na
hora do almoço.
OTAVIANO
Esse filme é uma palhaçada. Usar dinheiro público,
dinheiro que devia ser usado para fazer esgoto,
estrada, colégio... para fazer um filme. A que
ponto esse país chegou meu Deus do céu.
OTAVIANO
O senhor adora cinema.
OTAVIANO
Que cinema, Marina, e filmar cocô é cinema? Você
tem cada idéia, Marina, pelo amor de Deus.
OTAVIANO
Eu não vou lhe explicar tudo outra vez, papai, por
favor. O filme só serve para fazer a fossa, mas
tem que fazer primeiro o filme! E para fazer o
filme tem que ter um cientista, que explique a
história, é a maneira mais simples de fazer!
Otaviano fica olhando para Marina.
CENA 36 - LABORATÓRIO
Três frascos com líquidos coloridos sobre uma mesa. Joaquim, com
luvas de couro, segura o gelo seco. Fabrício e Marina prepararam
um toca discos com vidros sobre o prato, girando, para dar a
idéia de uma fábrica. Silene cuida do visual do pai. Otaviano lê
seu texto.
OTAVIANO
Tem que decorar?
MARINA
Pode ler.
OTAVIANO
Decorado é melhor.
MARINA
É muito grande, pode ler.
OTAVIANO
Posso decorar uma parte e improvisar um pouco.
MARINA
Pode, claro.
Silene não pára de pentear Otaviano.
OTAVIANO
Chega, Silene.
SILENE
Papai, pro ator, a coisa mais importante do mundo
é o cabelo.
OTAVIANO
Que besteira.
SILENE
O cabelo faz do homem um ser misterioso que
carrega na cabeça, a parte do corpo que é mais
nítida e mais marcada, uma coisa rebelde como um
mar e confusa como uma floresta. O cabelo está
quase fora do corpo, é uma espécie de jardim
privado, onde o dono exerce a vontade sua fantasia
e sua desordem. É qualquer coisa que cresce e que
transborda como se estivesse livre do domínio da
alma.
Todos olham pára ela, impressionados.
SILENE
Tem um cartaz com este texto na sala de espera do
salão. Bonito, né? É do Gustavo Corção.
FABRÍCIO
E você decorou só de ler no salão?
OTAVIANO
Com o tempo que ela passa no salão dava pra ter
decorado a Bíblia.
Joaquim ri.
SILENE
Tá rindo de quê, o quimera... Vai cuidar da tua
micose.
MARINA
Vamos filmar, tá bom assim.
JOAQUIM
Posso botar o gelo?
FABRÍCIO
Calma.
Fabrício liga o toca-discos, os vidros giram.
FABRÍCIO
Gelo seco!
Joaquim põe o gelo nos vidros. Os líquidos borbulham.
Marina liga a câmera. Faz um gesto teatral para Otaviano.
Otaviano fica olhando para ele.
MARINA
Pode ir. Pode falar. Ação!
Seu Otaviano encara olha para Fabrício.
MARINA
Fabrício, fala!
FABRÍCIO
Ah, desculpe, sou eu que começo.
MARINA
Corta. Tem que voltar a fita.
OTAVIANO
Deixa, depois tira esta parte.
MARINA
Tira como?
OTAVIANO
Corta esta parte, na hora de montar o filme.
MARINA
Como faz isso?
OTAVIANO
Vocês não vão montar o filme? Botar música, essas
coisas?
FABRÍCIO
Tem um jeito nessa câmera de botar música depois,
mas eu não sei bem como é. Tem que ler o manual.
OTAVIANO
Vocês estão filmando tudo, na ordem?
MARINA
Estamos.
FABRÍCIO
É mais simples.
OTAVIANO
E presta?
MARINA
Presta, papai. Presta. O horário do almoço está
acabando. Vamos lá? Gravando!
Fabrício, dividido entre a câmera e seu Otaviano.
FABRÍCIO
Doutor Aristóteles, o senhor, que é um cientista
famoso, tem alguma explicação para o surgimento
deste monstro?
Otaviano olha para Fabrício, olha para a câmera, olha para o
papel.
OTAVIANO
Os venenos jogados no rio deve ter provocado uma
mutação genética em algum animal.
FABRÍCIO
Isto pode nos servir de alerta para a necessidade
de respeitar a natureza. E o que podemos fazer
para destruir o monstro?
Otaviano dá uma olhadinha para papel. Larga o papel.
OTAVIANO
Vamos matá-lo. Com fogo, com armas, com mais
veneno. E outros monstros vão surgir, mais fortes,
maiores. E vamos matá-los outra vez, com armas
mais terríveis, venenos ainda piores. E mataremos
todos os monstros até que surja um monstro que não
possamos matar e que nos mate. Os monstros
dominarão a terra e a natureza enfim estará livre
do homem.
Só Joaquim parece impressionado com a fala de Otaviano.
MARINA (FQ)
Corta. Muito bom. Quanto tempo deu?
Fabrício examina a câmera.
FABRÍCIO
Um minuto e doze.
MARINA
Faltam cinco minutos.
Joaquim se aproxima de Otaviano.
JOAQUIM
Muito bom, seu Otaviano.
SILENE
O cabelo ficou ótimo.
FABRÍCIO
A cena da morte do monstro pode ter cinco minutos.
OTAVIANO
Cinco minutos morrendo? Ele vai morrer de quê? De
asma?
MARINA
Tem que fazer mais uma cena.
JOAQUIM
O monstro pode matar mais alguém.
MARINA
Quem?
JOAQUIM
O Fabrício.
FABRÍCIO
E quem mata o monstro?
SILENE
O monstro pode matar o cientista.
MARINA
Claro! O monstro tem que matar o cientista!
OTAVIANO
Me esqueçam!
MARINA
Por favor papai...
OTAVIANO
Eu tenho que trabalhar, não posso ficar fazendo
cinema o dia inteiro.
SILENE
O monstro matar o cientista era perfeito!
OTAVIANO
Usem um dublê.
MARINA
Como?
OTAVIANO
O cientista só aparece de costas, o monstro ataca.
Peguem o meu casaco.
JOAQUIM
O único homem para fazer o dublê é o Fabrício.
FABRÍCIO
Desculpe, mas eu sou muito alto e magro e forte
para ser o dublê do seu Otaviano.
CENA 37 - RIACHO
Antonio, com o casaco de Otaviano, caminha se afastando da
câmera. Imita o jeito de andar de Otaviano. O Monstro pula sobre
ele, derrubando-o no chão. Antonio se levanta e dá uma surra no
Monstro.
FABRÍCIO
Corta!
MARINA
Pára, seu Antonio!
Fabrício apanha. Marina entra em cena batendo no seu Antonio.
Corta.
Antonio, com o casaco de Otaviano, caminha se afastando da
câmera.
O Monstro entra em cena, agora com mais cuidado, e grita. Antonio
põe a mão no coração e cai, fulminado por um ataque cardíaco. O
Monstro, como Tarzan, bate no peito, em triunfo.
FABRÍCIO
Corta.
MARINA
Quando deu?
FABRÍCIO
Vinte e dois segundos.
MARINA
Tem que fazer mais devagar.
FABRÍCIO
O Monstro pode morrer devagar.
JOAQUIM
Quatro minutos morrendo? Vão acabar as pilhas do
nariz. Vamos fazer outra mais devagar.
MARINA
Vamos.
Antonio, com o casaco de Otaviano, caminha se afastando da
câmera.
O Monstro entra em cena, e grita. Antonio põe a mão no coração e
cai. Fica agonizando. O Monstro continua a gritar e faz uma dança
ritual ao redor de Antonio. O Monstro não resiste e pula sobre
Antonio, estrangulando-o. Antonio reage. Marina entra em cena.
Fade out.
FABRÍCIO
Corta! Corta!
CENA 38 - POUSADA
Marina, Joaqui, Silene e Fabrício assistem no vídeo, cheio de
edições estranhas.
Fabrício entra em cena, com uma metralhadora, acerta o monstro. O
monstro cai. Fabrício continua metralhando bastante tempo.
FABRÍCIO
(para a câmera) O Monstro está morto. Agora, para
evitar que novos monstros surjam, é preciso cuidar
bem da natureza.
Fade.
FABRÍCIO
Este fade final ficou ótimo.
SILENE
O seu cabelo está estranho.
JOAQUIM
Ficou legal. Mas só tem oito minutos. Faltam dois.
FABRÍCIO
A gente pode botar dois minutos de créditos
finais.
MARINA
Ficou horrível.
JOAQUIM
Não, ficou legal.
MARINA
Ficou horrível. Ninguém vai aceitar isso, pagar
dez mil por essa porcaria? Foi uma idéia péssima.
JOAQUIM
Foi uma idéia ótima. É uma idéia ótima. Vamos
fazer mais dois minutos com a volta do monstro. O
monstro não morreu e mata o Fabrício.
FABRÍCIO
Não morreu? Isso é ridículo.
MARINA
Tem que montar o filme. Tem que botar música, tem
umas horas que aparece a nossa voz falando. Tem
que tirar as partes ruins, inventar outra cenas.
Está ridículo, as pessoas vão morrer de rir da
nossa cara. É melhor desistir. O papai tem razão,
é uma idéia idiota. Eu sou uma idiota.
JOAQUIM
Você não é uma idiota e o seu pai sabe que você
não é uma idiota, ele é só um velho ranzinza. Você
teve uma idéia ótima, uma chance real de resolver
um problema que é de todos, uma idéia sua para
melhorar a vida de muitas pessoas. Aquele esgoto
sendo jogado no riacho é um crime, contra nós
mesmos, contra os nossos filhos. Aquele esgoto
causa doenças, é claro que foi por causa da água
do riacho que eu peguei aquela micose. Você sabe
disso.
MARINA
Eu sei.
Eles se beijam.
FABRÍCIO
Que micose é essa?
JOAQUIM
Se nós temos que montar o filme a gente monta.
Qual é o problema?
MARINA
Vai ter que pagar.
JOAQUIM
Quanto?
MARINA
Não sei. Não sei nem quem faz, como faz. Vamos ter
que ir a Santa Maria.
JOAQUIM
Eu faço uma pesquisa por telefone. Vai ver nem é
tão caro. Eu tenho aquela moto parada, já me
ofereceram dois mil por ela.
MARINA
Você vai vender a moto para pagar o filme?
JOAQUIM
Por que não?
Beijam-se.
CENA 39 - ZICO PRODUÇÕES
Uma galeria no centro de Santa Maria. Joaquim e Marina são
recebidos por ZICO, 25, vestindo camiseta e jeans, chinelos.
ZICO
Sim?
MARINA
Vocês fazem edição de filmes?
ZICO
Fazemos. Podem entrar.
Joaquim e Marina entram, um escritório, ilha de edição, atelier
de pintura, muitas fitas em prateleiras. Além da cadeira de Zico
(em frente a ilha) há na sala duas cadeiras, uma alta e outra
baixa.
ZICO
Sentem.
Marina e Joaquim demoram um pouco a escolher as cadeiras, Joaquim
fica na alta, Marina na baixa. O vestido de Marina não a deixa
confortável na cadeira, ela levanta, pede para trocar com
Joaquim, eles trocam. Marina continua pouco confortável com o
vestido.
ZICO
Casamento?
JOAQUIM
Não é um... filme.
ZICO
Antigo?
MARINA
Não, é novo. Nós que fizemos. É uma ficção.
JOAQUIM
Chama "O Monstro da Fossa".
CENA 40 - RIACHO
Os operários cavam. As escavações estão interrompendo o caminho
para a vau do riacho. Antonio caminha, supervisionando a obra.
Otaviano vai atrás dele.
OTAVIANO
E como é que eu vou passar?
ANTONIO
Tem que dar a volta lá por cima.
OTAVIANO
Está louco? Passar pelas pedras? Aquilo é puro
limo.
ANTONIO
É o único jeito. As crianças passam toda hora por
lá.
OTAVIANO
Não deviam. E eu não sou criança. É só fazer uma
pinguela aqui.
ANTONIO
A pinguela não está no projeto da obra e,
portanto, não está orçada.
OTAVIANO
Uma pinguela, o que é que custa isso? Dois paus e
um compensado.
ANTONIO
Dois paus, um compensado, pregos, mão de obra...
Quer que eu orce? Quem paga?
OTAVIANO
É sua obrigação, durante a realização da obra,
providenciar uma maneira das pessoas poderem
passar por aqui.
ANTONIO
Minha obrigação é cumprir o contrato, fazer a obra
conforme o projeto e o orçamento. E olhe que eu
estou começando sem ter recebido nada, que a verba
ainda não foi liberada.
OTAVIANO
É muita mesquinharia... Dois paus e um
compensado...
ANTONIO
Mesquinharia? Por que você não fornece a madeira?
Você tem madeira de sobra.
OTAVIANO
Fazer um pinguela com madeira de lei?
ANTONIO
Dois paus e um compensado.
OTAVIANO
A obrigação é sua! Isso é coisa de gente sovina.
ANTONIO
Sovina é você! Paga um salário de fome pros
próprios filhos!
OTAVIANO
E você que sustenta metade da família com verbas
de obras da prefeitura. É bem coisa de bolonhês,
ficar mamando no dinheiro do governo.
ANTONIO
Coisa de bolonhês... E sonegar imposto, é coisa de
veneziano?
OTAVIANO
Quem sonegou imposto? Va fan culo!
ANTONIO
Tu sono un froxo.
OTAVIANO
Tu mama fai buchinni nei raggazzi.
ANTONIO
Imbecile.
Otaviano e Antonio seguem batendo boca em italiano. Um comboio se
aproxima pela estrada: três carros, duas vans e um caminhão. Os
carros param e deles começam a descer muitas pessoas. O PREFEITO,
a frente da comitiva, seguido por duas senhoras, fotógrafo,
vereadores e demais autoridades, se aproxima de Antonio e
Otaviano. Alguns operários descarregam do caminhão dois paus e um
compensado. É uma placa de "mais um obra da administração
municipal". Enquanto o prefeito conversa com Otaviano e Antonio
os operários colocam a placa ao lado da obra.
PREFEITO
Boa tarde.
ANTONIO
Senhor prefeito! Boa tarde.
PREFEITO
Quem bom, as obras já começaram.
ANTONIO
É verdade.
PREFEITO
Qual a previsão de término?
ANTONIO
Depende da liberação da verba, mas se tudo correr
bem é coisa de três semanas.
PREFEITO
É rápido.
ANTONIO
O pessoal é bastante capacitado.
PREFEITO
E o que o senhor está achando da obra?
OTAVIANO
Estou achando que aqui deveria ter uma pinguela.
As crianças estão tendo que atravessar o riacho
pelas pedras, cheias de limo, isso vai acabar em
pescoço quebrado.
PREFEITO
Toda obra certamente causa alguns desconfortos mas
é importante para a comunidade, o senhor não acha?
É uma reivindicação antiga, muitas vezes
solicitada pela comunidade, e finalmente atendida
pela prefeitura, apesar da precariedade dos
recursos. O importante é que obras como esta, de
saneamento básico, obras que nem aparecem, que não
fazem vista, estão sendo priorizadas. Isto é
administrar com inteligência o recurso público,
isso é preparar o minicípio para crescer, para o
futuro.
Aplausos.
PREFEITO
O resto do pessoal...
OTAVIANO
Foram a Santa Maria.
PREFEITO
Vocês são moradores.
ANTONIO
Ele é... Eu moro na região.
PREFEITO
Por favor, vamos tirar aqui uma foto com
representantes da comunidade e da região.
Fotos.
PREFEITO
Obrigado, passem bem. Parabéns. Adeus.
A comitiva desaparece tão rapidamente como chegou. Só o que fica
no cenário é a placa, um compensado e dois paus.
CENA 41 - RIACHO
Otaviano e Antonio inauguram a pinguela feita com a placa.
Antonio passa, volta, experimenta a firmeza da pinguela. Otaviano
passa, aprova. Encontram-se sobre a pinguela.
OTAVIANO
Seu Antonio, desculpe se eu me exaltei um pouco...
ANTONIO
Não peça desculpas, senhor Otaviano...
OTAVIANO
É que aquele caminho das pedras não é mais para
mim. O senhor não sabe o que faz um reumatismo. É
uma dor insuportável...
ANTONIO
Seu Otaviano, o senhor vai saber o que é dor,
quero dizer, espero que não lhe aconteça nunca,
quando tiver uma cólica renal. Eu já pedi para a
Isolda me matar, acredite em mim... Pedi, por
favor, me mate, eu não agüento mais...
OTAVIANO
No inverno, este joelho... O senhor me desculpe...
ANTONIO
Eu é que peço desculpas...
OTAVIANO
Então está bem.
ANTONIO
Obrigado.
OTAVIANO
Passe bem.
ANTONIO
O senhor também, um bom dia...
Otaviano e Antonio se afastam. Os operários continuam cavando.
CENA 42 - ZICO PRODUÇÕES
Zico assiste o vídeo.
O Monstro entra em cena, e grita. Antonio põe a mão no coração e
cai. Fica agonizando. O Monstro continua a gritar e faz uma dança
ritual ao redor de Antonio. O Monstro não resiste e pula sobre
Antonio, estrangulando-o. Antonio reage. Marina entra em cena.
Fade out.
FABRÍCIO
Corta! Corta!
Zico dá stop na máquina. Fica parado olhando o monitor.
ZICO
Genial. Maravilhoso.
JOAQUIM
Gostou?
ZICO
Se eu gostei? (levanta) É uma obra prima. Vocês
não têm idéia do que vocês fizeram... Esse filme
tem... verdade, espontaneidade. É real, e é
engraçado. O cientista é ótimo!
MARINA
Meu pai.
ZICO
O texto é seu? É ótimo!
MARINA
Ele improvisou um pouco.
ZICO
E a fantasia do monstro? A fantasia do Monstro é
maravilhosa!
JOAQUIM
Obrigado.
ZICO
O... Fabrício, apesar da pronúncia imperfeita, tem
um certo charme rude, uma coisa assim meio Jean
Paul Belmondo, meio Paulo Betti.
MARINA
Dá para editar?
ZICO
Dá, claro que dá. Tem que cortar umas partes. E a
Silene!
MARINA
O que é que tem?
ZICO
A Silene é uma deusa, vai acabar na Globo! Que
mulher é aquela? Ela é de agência?
MARINA
É minha irmã.
ZICO
Sua irmã?
MARINA
É.
ZICO
Mesmo pai, mesma mãe?
MARINA
É, irmã.
ZICO
Vocês são muito diferentes.
MARINA
É.
ZICO
Ela é... incrível. A gente precisa fazer mais
alguns planos. Diz para ela não mexer no cabelo.
Ela mexeu no cabelo?
MARINA
Não, acho que não.
ZICO
Liga para ela, agora. Diz para ela não mexer o
cabelo.
MARINA
Ela não vai mexer no cabelo.
ZICO
Estou falando sério. (pega o telefone) Liga para
ela agora. Ela tem celular? Qual o número?
Marina pega o telefone e disca.
ZICO
"O Monstro da Fossa"... Genial! Pode ser "A Bruxa
de Blair" da retomada. "O Monstro da Fossa..." "O
Monstro do fosso..." "O Monstro do fosso" é
melhor, só com =s. "O Monstro do Fosso".
JOAQUIM
Qual a diferença entre fossa e fosso?
ZICO
Não sei.
Zico procura um dicionário. Encontra, folheia.
MARINA
Silene? Sou eu. Onde você está? (...) No salão?
Zico entrega o dicionário a Joaquim.
MARINA
Escova?
Zico relaxa.
MARINA
Já cortou?
Zico fica em pânico, mãos na cabeça.
MARINA
Vai cortar...
ZICO
Não corta!
MARINA
Só as pontas...
ZICO
Não corta! Nem as pontas. Não toca no cabelo!
MARINA
É melhor não cortar.
ZICO
Não mexe em nada!
MARINA
É por causa do vídeo. O...
ZICO
Zico...
MARINA
Zico. O rapaz que vai fazer a edição do filme, ele
gostou muito do seu cabelo. (...) Gostou assim,
achou bonito. (...) Não, acho que não. (...) Ele
quer fazer outras cenas, tem que ser com o mesmo
cabelo.
ZICO
Continuidade.
MARINA
É continuidade, pro cabelo não ficar diferente.
(...) Depois eu te explico... (...) Não, nem as
pontas.
Zico pede o telefone.
ZICO
Deixa eu falar com ela.
MARINA
Ele que falar com você. (...) Fala com ele.
Zico pega o telefone.
ZICO
Silene... É o Zico, tudo bem. Olha, parabéns pelo
seu trabalho no filme. Excelente. Nós vamos fazer
algumas cenas adicionais, preciso do seu cabelo.
Não mexa nada, não corte. Já fez a escova? (...)
Lavar tudo bem, mas já fez escova? (...) Não faça
a escova. (...) Não faça. (...) Confie em mim, não
faça. (...) A produção paga. Não faça. (...) Você
não vai fazer? (...) Obrigado, muito obrigado. Eu
vou passar o telefone para a sua irmã. Obrigado e
parabéns, viu!
MARINA
Oi. (...) Pois é. (...) Não sei ainda, acho que
vai. (...) Não sei. (...) É. (...) Uns... 25.
(...) Menos de 30. (....) É. (....) A-hã. (...) Tá
bom. (...) Olha, não mexe no cabelo mesmo, é
sério. (...) Tá bom.
JOAQUIM
Fossa é buraco, cova ou fosso. É a mesma coisa.
ZICO
Ótimo! O Monstro do Fosso... O horroroso monstro
do fosso. Os ós do cartaz podem ser olhos de
monstros.
MARINA
Cartaz?
ZICO
Vocês já fizeram o cartaz?
JOAQUIM
Não. Olha o objetivo do filme é construir uma
fossa na comunidade.
ZICO
Claro, claro. Um fosso. O horroroso monstro do
fosso é muito longo. O Monstro do fosso. E aquela
lanterna enorme naquela bolsinha? Aquilo é ótimo.
Aquilo fica.
MARINA
Quanto vai custar a edição?
ZICO
É barato, não vai dar dois mil, dois mil e pouco.
JOAQUIM
Dois mil?
ZICO
Dois mil e pouco. Tem também que sonorizar, mixar,
fazer cópias. E o cartaz. Mas nós temos que filmar
mais algumas cenas. O ataque do monstro a Silene,
o Monstro tem que rasgar o vestido, ele pode
correr atrás dela pela floresta. E tem que ter um
texto para a Silene antes de achar que vai morrer,
com o vestido todo rasgado. Poder deixar que este
texto eu escrevo.
MARINA
Rasgar o vestido.
ZICO
E aquela fumaça, pelo amor de deus. Como vocês
fizeram aquilo? Com café e brasa?
JOAQUIM
É.
ZICO
Usaram café passado, úmido.
JOAQUIM
Usamos.
ZICO
Tem que usar café novo, seco. Claro, o bom é uma
máquina de fumaça.
MARINA
Tem que rasgar o vestido?
ZICO
Tem que rasgar o vestido.
JOAQUIM
Ela não vai deixar rasgar o vestido. A Silene.
ZICO
A gente compra outro, igual. Ou faz um parecido,
só para rasgar. Isso a gente filma em um dia, dois
no máximo.
MARINA
E o custo?
ZICO
Não sei, mas acho que com tudo, edição e
refilmagem, não dá quatro mil.
JOAQUIM
A gente só tem dois.
ZICO
Seguinte: eu realmente gostei muito do material
que vocês fizeram, mas falta ainda muito trabalho
ali. Eu entro como co-produtor. Só cobro os custos
de edição, equipamento, operador, máquina de
fumaça, luz, essas coisas. Fica por dois mil.
JOAQUIM
Dois mil. Tudo bem.
ZICO
E também assino como co-diretor.
MARINA
Co-diretor?
ZICO
Quem dirigiu?
MARINA
Eu, o Fabrício. O Joaquim ajudou.
ZICO
Direção... Como é o seu nome?
MARINA
Marina.
ZICO
Direção: Marina, Fabrício e Zico. Assistente de
direção: Joaquim.
MARINA
Não pode ser... diretor assistente e co-
roteirista?
ZICO
Pode claro. Diretor assistente e co-roteirista.
Quando a gente pode filmar?
MARINA
Sábado, à tarde.
ZICO
Sábado eu tenho um aniversário. Pode ser domingo?
Tenho um casamento de manhã, pode ser à tarde.
MARINA
Domingo.
CENA 43 - OFICINA
Joaquim se despede da moto, uma despedida longa e triste. Zico
pega o dinheiro.
CENA 44 - RIACHO
Silene está com seu vestido de formatura. Fabrício, Marina e
Joaquim observam. Zico segura um vestido, parecido com o que ela
está usando, num cabide. Coloca o vestido na frente dela,
examina.
ZICO
(entrega o vestido para Fabrício) Segura aqui.
Zico vai para a câmera, montada num tripé. Olha o visor.
ZICO
Levanta o vestido.
Fabrício levanta o vestido na frente de Silene.
ZICO
Põe do lado, assim, para eu poder comparar.
Fabrício obedece.
ZICO
É, engana. Quantos têm?
MARINA
O quê?
ZICO
Quantos vestidos nós podemos rasgar?
MARINA
Este, só este.
ZICO
Só tem um?
MARINA
Pra que mais?
ZICO
E se a cena não ficar boa, com o vestido já
rasgado?
JOAQUIM
A gente costura.
ZICO
Pelo amor de deus, quanto custa este vestido?
MARINA
Oitenta e cinco.
ZICO
Não podia comprar dois pelo menos?
MARINA
Comprar vestido para rasgar? Isso é um absurdo!
JOAQUIM
Não precisa rasgar muito.
ZICO
Tudo bem. Pode vestir.
Silene pega o vestido, vai saindo.
ZICO
Onde você vai?
SILENE
Vou em casa, trocar.
ZICO
Nã, não. Troca aqui, rapidinho. A luz está caindo.
SILENE
Você acha que eu vou trocar de roupa aqui?
ZICO
E aí?
FABRÍCIO
Tá louco?
ZICO
Que besteira! Troca no carro, ninguém vai ficar
olhando.
Silene sai com o vestido, para trocar no carro. Marina ajuda,
Fabrício fica de costas para o carro, protegendo Silene e
encarando Zico. Zico vai falar com Joaquim, já figurinado de
Quimera.
ZICO
Desculpe...
JOAQUIM
Joaquim.
ZICO
Joaquim. Esta é a sua cena. E é a cena chave do
filme, é a cena do cartaz, é a cena que resume
tudo, é a síntese do filme. O primeiro encontro do
monstro com a mocinha. É por causa desta cena que
o filme existe. A gente só tem um vestido, não
pode dar errado. Esta é a sua cena. Você é um
monstro. Um monstro, um animal irracional, dotado
de uma força espantosa. Você estava hibernando há
mil anos numa caverna e você foi despertado do seu
sono pelas obras da fossa. Do fosso. Você acordou,
faminto e furioso, e a primeira coisa que você vê
é a Silene. A Silene. A Silene. Você vai engolir,
mastigar a Silene. Você vai destruir a Silene. E,
principalmente, você vai rasgar o vestido da
Silene, vai rasgar muito, rasgar todo. Se ela não
deixar, lute! Você é um monstro! Está pronto?
JOAQUIM
Estou.
ZICO
A Silene está pronta?
FABRÍCIO
Quase.
ZICO
Quase?
Zico caminha na direção do carro, furioso. Afasta Fabrício do
caminho, abre a porta do carro. Silene está quase vestida.
ZICO
Quanto tempo vocês precisam para trocar um
vestido? A luz está caindo!
Silene, terminando de se vestir, sai do carro com Marina.
ZICO
E o cabelo? Está bom? O cabelo está bom. A luz
está caindo. Põe uma fita nova, vou fazer um plano
seqüência, sem cortes. A máquina de fumaça está
pronta?
MARINA
Está.
ZICO
Esta é a cena da máquina de fumaça. A coisa mais
importante desta cena é a fumaça.
MARINA
Tudo bem, vai dar certo.
ZICO
Eu sei que vai. Silene, pode vir comigo por favor.
Decorou o texto?
SILENE
Decorei.
ZICO
Você está linda, muito linda. Você é muito linda.
SILENE
Você também é bonitinho.
ZICO
Sou? Ah... Obrigado. Silene, esta é a sua cena. E
é a cena chave do filme, é a cena do cartaz, é a
cena que resume tudo, é a síntese do filme. O
primeiro encontro do monstro com a mocinha, é por
causa desta cena que o filme existe. A gente só
tem um vestido, não pode dar errado. Esta é a sua
cena. Você é a mocinha. Você é uma mulher
maravilhosa, uma estrela, perdida neste... neste
fim de mundo aqui. Você tinha que estar em Paris,
em Nova Iorque, Barcelona. Você acaba de se formar
e vai fugir deste buraco fedorento e cheio de
esgoto para conquistar o mundo. É sua última noite
aqui. Mas o monstro, o monstro do esgoto quer te
prender aqui, quer te segurar, quer te levar com
ele para o esgoto. Mas você vai resistir. Você vai
lutar! Está pronta?
SILENE
Estou.
ZICO
Fabrício, faz o que você quiser, diz o texto que
quiser, se errar não pára, mas não olha para a
câmera. Nunca. Nem com o canto do olho.
FABRÍCIO
Pode deixar.
ZICO
Atenção então que eu vou rodar. Silêncio!
Todos ficam parados, em silêncio absoluto.
ZICO
Fumaça.
A máquina funciona muito bem, o caminho se cobre de fumaça,
marcando fortemente os raios de sol entre as árvores. Zico tira a
câmera do tripé.
ZICO
Eu estou gravando... Ação.
Silene se aproxima, caminha na direção da fumaça. Ela passa pela
fumaça. Pára.
MONSTRO (FQ)
Aaargh!
Silene se assusta, olha para os lados. Procura algo na bolsa.
(Fecha no rosto dela enquanto ela procura. Abre o plano e ela
tira da pequena bolsa uma lanterna enorme.) Liga a lanterna,
aponta para o mato.
MONSTRO (FQ)
Aaargh!
Silene se vira e dá de cara com a Quimera, com lanternas no
nariz.
SILENE
(grita) Aaaaaaa!
O Monstro avança sobre ela, ela grita. O Monstro a estrangula,
começa a rasgar o vestido dela. Ela resiste, briga feia. Zico
acompanha tudo com a câmera na mão.
O Monstro derruba Silene no chão. Zico se aproxima, fica no
posição do monstro, fecha nela.
Silene encara a câmera.
SILENE
Você não vai me destruir. Você não passa de um
monstro do esgoto! Você é lixo! Eu sou uma
estrela. Uma estrela não pode morrer no lixo!
Zico fecha no Monstro, que está furioso. O Monstro pula sobre
Silene, destrói o vestido dela, bate mesmo. Ela revida.
Fabrício entra em cena, batendo no monstro. O Monstro cai.
Fabrício abraça Silene.
FABRÍCIO
Silene! Você está bem?
SILENE
Fabrício! Um Monstro horrível me atacou.
FABRÍCIO
Eu vi.
SILENE
Você me salvou.
FABRÍCIO
Silene...
SILENE
Fabrício...
Beijam-se. O Monstro pula sobre eles, furioso, bate em Fabrício e
Silene, o Monstro enlouqueceu. O Monstro derruba Fabrício e
Silene e vem para frente da câmera fazer sua dança ritual de
vitória.
ZICO
Fade! Corta!
Silene e Fabrício se erguem, aos poucos.
ZICO
Genial! Ficou perfeito! Vocês foram maravilhosos!
Fabrício não olhou para a câmera nenhuma vez! A
fumaça estava perfeita! A Silene! Silene você é
uma estrela! Ficou ótimo!! Perfeito, parabéns! O
Monstro exagerou um pouco no final, mas eu posso
cortar aquela dança na edição. E eu tenho uma
surpresa para vocês.
Ele mostra o cartaz de "O Monstro do Fosso" onde os "ós" do
título são olhos monstruosos. Todos ficam olhando, exaustos. Zico
desmonta o equipamento e põe no carro.
MARINA
Acabou? Está tudo pronto?
ZICO
Agora começa a melhor parte. A montagem.
CENA 45 - ZICO PRODUÇÕES
Zico está editando,faz cortes descontínuos no ataque do monstro,
experimenta uma trilha. Está empolgado. Faz vários cortes, cada
vez gosta mais do resultado. Dá um slow no rosto do monstro.
Gosta do resultado. Zico desliga a máquina e acende um cigarro.
A fita bruta fica rodando e surge no vídeo uma imagem de Silene,
numa cachoeira. Zico fica atento. Silene está linda, entra na
água, joga água na câmera. O vestido dela está bastante
transparente. Silene começa a tirar a roupa. Zico fica muito
atento.
CENA 46 - ZICO PRODUÇÕES
Zico desocupa uma cadeira para que Marina sente.
MARINA
Está pronto?
ZICO
Quase. Quero te mostrar uma coisa.
Ele prepara o vídeo, dá um search, dá pause.
ZICO
Posso mostrar?
MARINA
Pode.
Zico liga a máquina. No vídeo surge a cena em que Fabrício
encontra Silene.
Silene levanta-se com a ajuda de Fabrício.
SILENE
Sujei o meu vestido.
Fabrício ajuda Silene a limpar o vestido, aproveita para tirar
uma casquinha, ela o detém.
FABRÍCIO
Então tira...
SILENE
Pára.
FABRÍCIO
Você está muito linda.
SILENE
Pára, Fabrício. Vamos, o baile já vai começar.
A câmera corrige para o céu.
Corta para a lua, corrige para a...
... cachoeira. Silene entra na água. A cena tem um tom azul, um
efeito de noite americana.
MARINA
O que é isso?
ZICO
Noite americana. Um efeito de azul, para parecer
que é noite.
MARINA
Que fita é essa?
ZICO
Estava gravado na fita que nós usamos. De quem era
essa fita?
MARINA
Do Fabrício. O que acontece?
ZICO
Você vai ver. E olha a trilha. Billie Hollyday.
Marina e Zico ficam olhando a cena. Ela está pasma.
CENA 47 - PADARIA
Marina e Zico tomam café.
MARINA
A cena é incrível. Aquela música é incrível.
ZICO
Não te falei? Vamos ganhar prêmios.
MARINA
A Silene vai me matar. O Fabrício vai me matar. O
papai vai me matar.
ZICO
Só se morre uma vez. Temos que usar a cena.
MARINA
É maravilhosa.
ZICO
Tem que ser a cena final, depois da morte dela. A
Silene morreu, mas o Fabrício não. A gente filma o
Fabrício, no cemitério, botando umas flores no
túmulo dela. Aí ele começa a chorar e lembrar
dela. Entra a cena do banho, com a trilha, e
créditos finais.
MARINA
Vai ficar ótimo.
ZICO
A Silene, quando ver, vai adorar. Ela está linda.
Vai ficar famosa. Temos que comprar os direitos da
música.
MARINA
Quanto custa?
ZICO
Dois mil.
MARINA
Dois mil reais?
ZICO
Dois mil dólares.
MARINA
O quê?
ZICO
Pago mil.
MARINA
Mil dólares dá...
ZICO
Três mil reais.
MARINA
É o dinheiro que temos, para a obra. Para o
cimento que falta.
ZICO
Sem a música, não tem a cena. E a cena é incrível.
A música é mais longa que a cena, mas eu posso
completar com imagens do mato, uma metáfora de
amor à natureza, à beleza. Não existe nada mais
natural, nada mais bonito que uma mulher bonita.
MARINA
Eu tenho que mostrar para ela.
ZICO
Eu faço uma cópia em VHS.
CENA 48 - POUSADA
Fabrício, Silene, Marina e Joaquim assistem ao vídeo. Começa a
música. "It had to be you..."
Fabrício se levanta, pasmo. Silene fica atenta. Joaquim fica
paralizado.
FABRÍCIO
O que é isso?
SILENE
Sou eu. Você que filmou.
FABRÍCIO
Como ele conseguiu esta fita?
MARINA
Eu usei a fita, sua fita, para gravar a cena. Uma
parte ficou embaixo.
FABRÍCIO
Que absurdo!
MARINA
A cena é linda.
FABRÍCIO
Eu vou matar esse cara!
MARINA
Você está linda.
FABRÍCIO
Olha só!
MARINA
Ele quer usar a cena.
FABRÍCIO
O quê? Nem pensar.
MARINA
Você nem aparece.
FABRÍCIO
Você vai mostrar isso nas escolas? Para um bando
de pirralhos?
JOAQUIM
Acho que eles vão gostar.
MARINA
Você está linda. Mas a decisão é sua.
Silene fica olhando a cena.
MARINA
Não sei se vai dar para usar a música, tem que
pagar, é caro.
JOAQUIM
Quanto?
MARINA
Três mil reais. É o dinheiro que nós temos. Do
cimento.
FABRÍCIO
Você vai usar o dinheiro do cimento para comprar
essa música?
MARINA
Sem a música, não tem a cena. E a cena é incrível.
É uma metáfora do amor à natureza. É um
investimento. Com o filme a Linha São Marcos pode
ficar famosa, a Silene pode ficar famosa. A
repercussão pode trazer dinheiro, com o
desenvolvimento do turismo. Pode dar dinheiro de
sobra para essa obra e muitas outras. (para
Silene) Mas a decisão é sua.
Silene fica se olhando no vídeo.
CENA 49 - GINÁSIO
Ônibus escolares descarregam crianças num ginásio. Prefeito,
autoridades, professoras, vão tomando seu lugar. Há um telão
montado sobre o palco onde acontece um balé infantil.
Joaquim mostar a Marina que seu Otaviano e seu Antonio estão
chegando. Eles sentam lado a lado na platéia. Marina vai falar
com eles.
MARINA
Papai?
OTAVIANO
Quer sentar aqui?
MARINA
Não, não... O senhor poderia vir aqui um momento?
Otaviano levanta.
OTAVIANO
O que foi?
MARINA
Papai, é que... Algumas cenas do vídeo, tem cenas
em que a Silene aparece assim, com pouca roupa.
OTAVIANO
Ela e o Fabrício?
MARINA
Não, só ela, sozinha.
OTAVIANO
Ah, então tudo bem. Que calor horrível. Vai
demorar?
MARINA
Não, já vai começar, é depois do balé.
Aplausos. O balé termina. Otaviano vai sentar, Marina volta para
a coxia, fica ao lado de Joaquim. Marcela vai para o palco, pega
o microfone.
MARCELA
Eu gostaria de pedir mais uma salva de palmas para
todos os alunos e também para os professores do
grupo de balé da escola de primeiro grau Leonel
Brizola.
Aplausos.
MARCELA
E agora, como parte dos eventos da semana de
cultura da rede municipal, nós vamos assistir a um
vídeo produzido pelos moradores da comunidade da
Vila Nova, antiga Vila Marghera. O vídeo é
financiado pelo programa federal de apoio a
produção audiovisual em municípios de até vinte
mil habitantes e faz parte de um projeto que
pretende enfrentar a questão do tratamento de
esgoto na comunidade. Eu chamo aqui a equipe que
realizou o vídeo, por favor.
Aplausos. Marina, Zico, Fabrício, Joaquim e Silene entram no
palco.
MARCELA
A Marina foi a idealizadora do projeto, por favor
Marina.
MARINA
Eu... Obrigado. (olha para Otaviano) Obrigada! A
gente diz obrigado, mas mulher é obrigada, homem
obrigado, varia conforme o... gênero. Bom...
Obrigada. Eu espero que vocês gostem e que sirva
para alertar as pessoas, esse vídeo, sobre a
necessidade de respeitar a natureza, especialmente
as crianças. Obrigada.
Aplausos.
MARINA
Desculpe... Mais uma coisa. Eu esqueci de
agradecer o senhor Leonardo, da Vinhos Leonardo,
que nos apoiou. E a dona Carmem, da "Só Lindezas",
que forneceu o figurino da atriz, um vestido muito
bonito. Obrigado.
MARCELA
Alguém mais quer falar?
FABRÍCIO
Não, eu não quero falar, só quero agradecer, como
a Marina já fez, aos empresários da iniciativa
privada que participaram, com as suas empresas,
desse empreendimento. Deste vídeo. Obrigado.
ZICO
Eu quero falar, desculpe, mas eu preciso falar. Eu
quero agradecer a iniciativa da prefeitura,
inclusive aqui na presença do senhor prefeito, uma
salva de palmas, por favor.
Aplausos.
ZICO
Porque são iniciativas como esta, de ousadia, de
desconstrução do aparato opressivo audiovisual,
com o surgimento de uma linguagem verdadeira,
ousada e visceral como esta, senhor prefeito.
Muito obrigado, senhor prefeito, e nós agradecemos
ao senhor pela coragem, por demonstrar que um
sujeito, um cidadão, para ser artista e expressar
a sua arte, não precisa ir para Porto Alegre.
Muito obrigado.
Muitos aplausos.
MARCELA
Joaquim...
JOAQUIM
Desliguem os seus celulares. Ah, ah, ah.
Nenhum aplauso.
MARCELA
Silvana, quer falar alguma coisa?
SILENE
Quero. O meu nome... é Silene.
Risos e muitos, muitos aplausos.
MARCELA
Silene. Vamos ver o filme então.
Eles descem do palco. Silene senta ao lado do prefeito e depois,
na ordem: Zico, Fabrício, Marina, Joaquim e Marcela. Otaviano e
Antonio estão nas filas de trás. Ao lado de Otaviano, uma FREIRA
e, ao lado da Freira, uma MULHER DE CABELO VERMELHO. O ginásio
está bastante cheio, especialmente de crianças e adolescentes.
As luzes se apagam, as crianças gritam, o vídeo começa. Joaquim,
pega um cigarro, olha para Marina, faz sinal de que vai sair.
Joaquim levanta e sai.
CENA 50 - CORREDOR
Joaquim sai no corredor, põe o cigarro na boca. Procura fogo, não
encontra. Procura alguém, não encontra.
Sai caminhando, em busca de alguém, só vê crianças. Passa por um
GURI, sentado, lendo.
Caminha, cigarro na mão, vai até a calçada. Vê o MOTORISTA do
prefeito, sentado no volante. Se aproxima, vê que o Motorista
está dormindo. E afasta.
Procura alguém, não encontra. Volta a se aproximar do Motorista,
pára ao lado dele. Tosse. Tosse mais. Espira. Espira bem alto.
Espira bem alto e bate com a mão no carro. O Motorista acorda.
JOAQUIM
Oba! Tudo bem?
O Motorista se ajeita.
JOAQUIM
Pois é... Tem fogo?
MOTORISTA
Não.
JOAQUIM
No carro...
MOTORISTA
Não tem. Perdeu o acendedor.
JOAQUIM
Ah... Obrigado.
Joaquim sai caminhando, vê o Guri, com 12 anos no máximo,
sentado, lendo.
Joaquim se aproxima, fica observando.
JOAQUIM
Tem fogo?
O Guri pega um Zipo na mochila. Acende o cigarro.
JOAQUIM
Obrigado.
Joaquim sai fumando, na direção do ginásio. Ouve risos. Se
aproxima mais. Ouve mais risos, aplausos. Apaga o cigarro e entra
no ginásio.
CENA 51 - GINÁSIO
Joaquim entra, senta em seu lugar ao lado de Marina. O ginásio
está às gargalhadas, é a cena final, do ataque do Monstro. Todos
parecem muito felizes.
Na tela surge a cena do Cemitério.
CENA 52 - CEMITÉRIO
Fabrício, de terno preto, observa um túmulo. Põe uma rosa branca
sobre o túmulo. Uma lágrima corre em seu rosto.
Na platéia, Fabrício se emociona. Começa a tocar "It Had To Be
You".
Silene surge na tela, na cachoeira. O ginásio silencia.
Silene começa a tomar banho. Silene começa a tirar a roupa.
No ginásio o prefeito e sua esposa, crianças, Seu Antonio,
professoras e freiras, Carmem, Leonardo, todos estão
petrificados, de olho na tela.
As imagens de Silene na cachoeira se misturam com imagens da
natureza: flores, regatos, árvores ao vento, nuvens sobre a
serra. Sobre as últimas imagens, ao final da trilha, um lettering
surge no vídeo: A natureza é bela.
Fade final e créditos.
O ginásio explode numa ovação. Gritos e assobios, bravos e
aplausos.
O Prefeito se levanta e cumprimenta Silene com um forte abraço.
Joaquim beija Marina. Seu Antonio cumprimenta seu Otaviano. A
Mulher de Cabelo Vermelho vem falar com o Prefeito.
MULHER DE CABELO VERMELHO
Senhor Prefeito, meus parabéns. Sensacional, o
filme. Moderno, ágil, inovador, divertido. Não tem
nada daquelas chatices educativas e ecológicas. As
crianças adoraram e eu vou lhe dizer: eu sou
membro do conselho nacional de educação em
Brasília e eu vou recomendar fortemente que este
filme seja adotado pela rede pública de todo o
Brasil. Meus parabéns!
PREFEITO
Obrigado.
A Freira se aproxima, vem falar com Marina e Joaquim.
FREIRA
Marina, minha filha, meus parabéns. Que iniciativa
bonita, eu fiquei até emocionada. Muito divertido
e educativo. E a sua irmã? Que beleza? Eu tinha
certeza que ela dava pra artista.
Silene está cercada de rapazes que lhe pedem autógrafos. Leonardo
diz alguma coisa no ouvido dela, ela ri.
FREIRA
Silene, minha filha, meus parabéns. Você está
linda, uma beleza, uma força da natureza mesmo,
bem como diz o filme. Tão bonita, uns seios
firmes. Meus parabéns, minha filha. Seu pai veio?
Fabrício recebe os cumprimentos da esposa do prefeito.
FABRÍCIO
A senhora não conhece? Precisa conhecer... Sexta e
sábados nós temos fondue.
Silene é fotografada.
SILENE
Eu não tirei a roupa, quem tirou a roupa foi o meu
personagem. Para fazer um personagem, acho que
vale tudo. Eu não tenho vergonha do meu corpo.
CENA 53 - SEQÜÊNCIA DE MONTAGEM
A foto de Silene, com a frase "Eu não tenho vergonha do meu
corpo" na capa de um jornal local.
Fabrício, na pousada, lotada de clientes.
FABRÍCIO
Nós temos um pacote que inclui cinco dias de
hospedagem com passeios pelas trilhas e visitas a
todas as locações do filme.
Outra foto de Silene, pequena, mas na capa. Outra foto, na capa,
com um ator famoso. E outra foto, grande, na capa, sozinha.
Marcela, na Sociedade de Canto, conversa com seu Antonio.
MARCELA
Eu lamento que a obra não tenha sido concluída,
seu Antonio. O mais importante foi que o dinheiro
foi aplicado na região. O vídeo movimentou a
economia local, gerou renda e emprego.
SEU ANTONIO
Mas eu não recebi nem pela areia.
MARCELA
O senhor não entregou a areia.
SEU ANTONIO
Mas encomendei.
MARCELA
Mas não pagou.
Silene na tevê:
SILENE
Já recebi muitas propostas. Até algumas de
trabalho. Eu estou aberta.
Foto. Silene na capa, com a frase: Estou aberta.
Marina mostra aos clientes da fábrica uma linha de beliches
infantis decorada com imagens do Monstro do Fosso.
Joaquim tira fotos de turistas num painel, daqueles onde há um
buraco para enfiar a cabeça, com imagens do Monstro e da Mocinha.
Uma criança mostra um bonequinho de madeira do Monstro.
Fabrício recebe o Prefeito e sua esposa em seu restaurante na
pousada.
CENA 54 - PALÁCIO DO GOVERNO
Cerimônia de entrega de prêmios num Palácio em Brasília.
CHEFE DO CERIMONIAL
E para entregar o prêmio de melhor vídeo
educativo, eu chamo sua excelência o senhor
Ministro da Cultura, Caetano Veloso.
Caetano entrega o prêmio para Marina (grávida), Joaquim, Zico e
Fabrício.
Caetano cumprimenta Silene com um forte abraço. Os fotógrafos
cercam a cena.
Joaquim e Marina escapam do bolo e se beijam. Saem atrás de um
garçom.
CENA 55 - RIACHO
Vila Nova, chuva. Seu Otaviano, de guarda-chuva, caminha na
direção do arroio. O buraco da fossa continua aberto, com algumas
pedras ao lado. Seu Otaviano passa pela pinguela e desaparece no
mato.
FIM
****************************************************************
(c) Jorge Furtado, 2005-2007
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br 01/01/2005
Anexo | Tamanho |
---|---|
saneam1.txt | 142.13 KB |