TOLERÂNCIA - texto final

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TOLERÂNCIA
TEXTO FINAL
junho/2000

produção: Casa de Cinema de Porto Alegre

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JÚLIO: Quando eu tinha dezoito anos, achava que as paredes da
casa da minha mãe eram brancas demais, e que, pra mudar o
mundo, a gente tinha que começar pelo lado de fora. O que eu
mais queria era sujar as paredes.

MÁRCIA: Quando eu fiz dezoito anos, decidi sair de casa, mas
eu não tinha pra onde ir. Aí uns amigos me convidaram pra
passar um fim de semana no interior e... Ai, Ai, Júlio! Júlio,
eu não quero gravar isso não, esquece.

JÚLIO: Foi aí que a gente se conheceu. Encruzilhada Natalino.
Nós acreditávamos que o Brasil do futuro tava sendo gerado
naquele instante, na frente dos nossos olhos. Tava mesmo. Só
que o futuro seria bem diferente do que a gente imaginava. De
repente, no nosso futuro, apareceu uma menina chamada Guida.
Feliz aniversário.

TEODORO: Doutora Márcia.

MÁRCIA: Ôi, Teodoro.

TEODORO: Eu... Quero falar a verdade.

MÁRCIA: É... Vocês me dão licença? A gente prossegue depois.

MÁRCIA: Teodoro, fica tranqüilo. Vai dar tudo certo. Eu tenho
certeza.

TEODORO: Eu sei, pode ser que dê tudo certo. Mas é que eu
queria que a senhora soubesse como aconteceu, como aconteceu
de verdade mesmo.

MÁRCIA: Eu já te expliquei: eu tou alegando legítima defesa,
eles querem provar que tu atirou primeiro. Só que eles não
podem fazer isso, eles não têm como. Só se tu confessar. E aí
a tua mulher, os teus filhos, vão te visitar na cadeia, todo
santo domingo, por muitos anos. É isso que tu quer?

TEODORO: Eu só quero contar a verdade, pelo menos pra senhora.

MÁRCIA: Que diferença isso faz?

JÚLIO: Alô. Não... Mas tu não disse que... Tudo bem, Emanuel.
Tudo bem, não vou discutir... Tá. Tá bom. Tou indo pra aí.

ORESTES: Tu acha que eu vou entregar a terra do meu pai prum
filho duma prostituta como tu? Eu prefiro a morte.

TEODORO: Foi assim que aconteceu. Eu atirei primeiro.

MÁRCIA: Eu sei. Mas nós não podíamos contar a história desse
jeito.

TEODORO: O Orestes, ele, ele tava me ameaçando, ele invadia a
plantação, derrubava a cerca, assustava as crianças. E depois
ele não pode nos tirar de lá. Aquela terra é minha. O velho
deu pra minha mãe, antes de morrer. Eu tenho direito.

MÁRCIA: Teodoro, eu já expliquei. Tu tem direito sobre a terra
porque a tua família mora lá há muito tempo. Esquece o resto!
Tu já deu o depoimento.

TEODORO: Eu não posso mudar?

MÁRCIA: Não! Ele atirou primeiro e tu teve que te defender.

TEODORO: A senhora não entende? Eles não gostam de mim, eles
já tinham me ameaçado de morte.

MÁRCIA: Teodoro, presta atenção: tu matou um sujeito rico, um
sujeito poderoso. A família dele tá pressionando, eles querem
te ver na cadeia pro resto da tua vida. E é exatamente isso
que vai acontecer, se tu mudar o que a gente combinou.

TEODORO: Eu só queria dizer que eu tava defendendo o que é
meu. Eu só queria falar a verdade.

MÁRCIA: Nem sempre a verdade é a melhor solução.

TEODORO: Pois devia ser.

MÁRCIA: Mas não é.

ORESTES: Tu acha que eu vou entregar a terra do meu pai prum
filho-da-puta como tu? Nunca!

TEODORO: Ai!

MÁRCIA: A história da luta pela terra no Brasil é uma história
sangrenta, que já causou milhares de mortes. E, cada vez que
novas vítimas aparecem, a discussão se resume a definir quem
deu o primeiro tiro. Imaginem a seguinte situação. O senhor
está em casa, na casa onde vive com a sua família, há mais de
trinta anos. A casa onde seus filhos nasceram. Então um homem
que já o ameaçou entra na sua casa, ofende, agride e diz que
vai matá-lo. Quanto tempo o senhor vai ficar esperando que
este homem violento, armado, gritando que vai matá-lo, dê o
primeiro tiro? Teodoro esperou, talvez mais do que devia. Uma
espera que poderia ter lhe custado a vida, porque o homem
atirou, um tiro de espingarda, à queima roupa. Só então
Teodoro respondeu o tiro, pra se defender, pra defender a sua
família. Esta é a verdade. E nada do que o promotor ou as
testemunhas disseram aqui neste processo contesta esta
verdade. Este país, senhoras e senhores, não pode mais
conviver com a mentira, com a pressão do poder econômico, com
as eternas injustiças aos pequenos agricultores, aos sem-
terra, aos sem esperança. Eu tenho certeza, senhores jurados,
que hoje a justiça será feita, e que este inocente, que agiu
em legítima defesa, sairá deste tribunal livre, e com a cabeça
erguida. Muito obrigada.

EMANUEL: Pô! Demorou, hein?

JÚLIO: Não devia ter vindo, Emanuel. Esse tipo de problema,
não tenho mais paciência.

MODELO: Posso me vestir?

EMANUEL: Não te mexe!

MODELO: Mas eu tô cansada...

EMANUEL: Fica quieta! Jamonot, querido.

EMANUEL: Ô, Júlio. Tamos aqui há seis horas, já gastei uns dez
filmes, e agora que ela... virou, eu tô sentindo que a coisa
não vai funcionar.

JÚLIO: Por quê?

EMANUEL: Bunda, cara. A bunda não tá legal.

JÚLIO: Qual o problema?

EMANUEL: Tá cego, Júlio? Tou fotografando uma baleia.

JÚLIO: Psssst...

EMANUEL: Pô, a menina engordou uns quatro quilos desde a
última sessão.

JÚLIO: Então não mostra a bunda.

EMANUEL: Ei, louqueou? Eu, eu posso esconder os dentes, o pé,
a perna... Mas bunda, cara, a bunda tem que mostrar. E tu vai
dar um jeito.

JÚLIO: Ôi, tudo bem?

MODELO: Mais ou menos.

JÚLIO: Talvez eu possa ajudar. Tu pode deitar de novo?

MODELO: Claro.

JÚLIO: Talvez dê pra retocar a superfície, mas a curva... Não
sei, não. Bunda é uma coisa delicada de mexer. Pode ficar
artificial.

EMANUEL: Cara, eu sabia...

JÚLIO: Talvez dê pra trocar a bunda inteira. Coloco a da
Vanda. Elas são mais ou menos parecidas, a posição é quase a
mesma, acho que ninguém vai notar.

EMANUEL: Trocar a bunda, Júliio? Pelo amor de Deus!

JÚLIO: Qual é o problema, Emanuel? As fotos da Vanda tão no
meu computador ainda. Eu separo e...

EMANUEL: Não, não, parou, parou. Tem limite, cara. Eu, eu
posso trocar a cor do olho, posso... levantar um pouquinho o
seio, mas... Não, trocar a bunda, não, é demais!

JÚLIO: Então tá bom. Então refaz o trabalho todo. Prefere?

EMANUEL: Não, cara. Nem tenho filme pra isso. Júlio, tem que
pensar noutra coisa.

JÚLIO: Não tenho tempo pra pensar em mais mais nada, Emanuel.
Eu à noite troco a bunda e te mando pela Internet. O resultado
a gente vê na banca. Tá?

JÚLIO: Nem ela vai notar. E ainda vai ficar feliz.

JUIZ: Em conformidade com a decisão do conselho de sentença,
declaro absolvido o réu Teodoro Schmidt da imputação que lhe
foi feita.

JUVENAL: A senhora soltou um assassino. Espero que não se
arrependa.

JÚLIO: Como você tá vestida?

SABRINA: Vestida? Eu tou usando uma calcinha preta. E eu tenho
uma tatuagem que começa ao redor do umbigo e vai subindo em
direção aos seios. Você não quer ver mais de perto?

JÚLIO: Quero.

SABRINA: Pronto, agora estou quase encostada em você.

JÚLIO: Eu estendo a mão e toco sua pele, no início da
tatuagem. Vou subindo devagar, e vejo que você está cada vez
mais excitada. Minhas mãos chegam aos seios e...

MÁRCIA: Júlio?

JÚLIO: No escritório.

JÚLIO: Parabéns!

MÁRCIA: Tu já sabe?

JÚLIO: Vi na televisão.

MÁRCIA: Por um voto. Hummm...

JÚLIO: Tu achava que ia perder. O quê que aconteceu?

MÁRCIA: Ah... Troquei a ordem dos tiros, falei dos
agricultores sem terra do Brasil, falei das injustiças sociais
no campo, botei um pouco de política, fiz uma salada, o júri
engoliu... E o meu cliente não atrapalhou. Bem que ele quis,
viu, mas... Ficou quieto.

JÚLIO: Tu quer dizer que... que o cara queria...

MÁRCIA: Hummm... Não fala assim comigo. Acabou, deu certo, ele
é inocente.

JÚLIO: Acho que eu preferia que tu não me contasse esse tipo
de coisa.

MÁRCIA: Mas eu conto tudo pra ti. Não foi assim que a gente
combinou? Hum? Não quero mais falar disso não. Cadê a Guida?

JÚLIO: Ela não vai com a gente. Telefonou dizendo que tem
ensaio. Vai dormir na casa de uma amiga, e as duas sobem
amanhã de manhã.

MÁRCIA: Que amiga?

JÚLIO: Da banda dela. Mandou avisar que a amiga é maior de
idade, que não bebe e que não passa dos oitenta na estrada.

MÁRCIA: Não devia ter deixado.

JÚLIO: Fazer o quê, Márcia? Trazer a Guida à força? Foi tu que
deu a guitarra, lembra?

MÁRCIA: Pelo menos conhecer essa amiga. Essa criança tá muito
sem limite, viu?

JÚLIO: Tu vai conhecer ela amanhã. E a Guida não é mais
criança, tem quase dezoito.

MÁRCIA: Quase.

MÁRCIA: Ah, eu tô tão cansada. Acho que não queria viajar hoje
não. Tu te importa de a gente ir amanhã?

JÚLIO: Não.

MÁRCIA: Então eu vou tomar um banho.

MÁRCIA: Júlio?

MÁRCIA: Tu ainda vai ficar aí muito tempo?

JÚLIO: Não. Vou só mexer um pouco mais nessa bunda.

MÁRCIA: Essa cachoeira... Sempre rendeu.

JÚLIO: Eu passei a viagem inteira pensando em te contar uma
coisa... Não tive coragem. Mas eu acho que agora eu tenho.

MÁRCIA: Conta.

JÚLIO: É que... na Internet... às vezes eu... converso com
algumas pessoas...

MÁRCIA: Que pessoas?

JÚLIO: Pessoas... que eu só conheço pelo apelido.

MÁRCIA: Sei. Tu tem uns amiguinhos por correspondência.

JÚLIO: É. Bom, na verdade, amiguinhas...

MÁRCIA: Hum... E o quê que tu conversa com essas amiguinhas?

JÚLIO: Converso... basicamente... sacanagem.

MÁRCIA: Ivanhoé! Ivanhoé! Cavaleiro justiceiro sem temor...

JÚLIO: Como tu sabe?

MÁRCIA: A Guida me contou.

JÚLIO: A Guida?

MÁRCIA: Foi. Faz um tempão.

MÁRCIA: A gente também já brincou. Mas eu achei meio chato.
Assim. Eu acho muito complicado cê sentir tesão e datilografar
ao mesmo tempo, ainda mais tendo que pensar se tesão é com S
ou com Z.

JÚLIO: Mas... Como é que tu f... Não era pra f...

MÁRCIA: Ah... Tu é muito ingênuo, Júlio. Eu já entrei no teu
escritório uma penca de vezes, tu tava lá, ali nessa
brincadeirinha, nesse Bate-papo e tu nem percebeu. Não, mas
tudo bem... Não tem problema não, cada louco com sua mania. Só
acho estranho esse apelido, né, Ivanhoé! Não, porque pensa
bem! Pensa! Já pensou a dificuldade de fazer sexo com aquela
malha de aço, aquele capacete, aquela tralha toda... Não,
sinceramente... Ah, ah, ah... Ô... Não fica assim. Não fica
assim que eu te amo. Tarado da Internet!

MÁRCIA: Eu também tenho uma coisa pra te contar. Transei com
um cara. Ontem. Transei com o Teodoro.

JÚLIO: Como é que é?

MÁRCIA: Eu não sei o que aconteceu comigo. Não sei, enfim,
aconteceu.

JÚLIO: O cara que tu defendeu, Márcia? O teu cliente?

MÁRCIA: Não teve importância alguma, não tou envolvida com
ele. Foi uma bobagem, não vai se repetir. Mas eu podia ficar
quieta, podia não te contar nada, mas eu não... não consigo.
Eu prefiro assim, a gente sempre... jogou limpo um com o
outro.

JÚLIO: Tu tem a cara-de-pau de transar comigo e dois minutos
depois vir falar iss...

MÁRCIA: Júlio, eu te amo, eu sou apaixonada por ti, eu tinha
que te contar. Eu só minto profissionalmente, pra ti eu não
vou mentir. Nunca!

JÚLIO: Tu pensa que é fácil assim, Márcia?

GUIDA: Mã-ãe! Pai! Vocês tão aí, é?

MÁRCIA: A Guida!

GUIDA: Nossa! Vocês tomaram banho? Que coragem, hein, essa
água é gelada!

JÚLIO: Faz bem pra saúde.

MÁRCIO: Oi, meu amor!

GUIDA: Oi, mãezinha.

GUIDA: Essa é Anamaria.

JÚLIO: Acho que eu tô meio fora de forma.

GUIDA: Eu e a Anamaria programamos uma seção de ginástica pra
hoje.

JÚLIO: Nem pensar. Esse final de semana eu só quero saber de
comer e dormir.

GUIDA: Ah, é, que vergonha, né? Olha aqui, olha aqui, ó:
gordo, ah, ah, ah, gordo...

JÚLIO: Ah, pára com isso, ô...

ANAMARIA: Imagina, Guida! O teu pai tá super bem.

GUIDA: Quantos anos tu acha que ele tem?

ANAMARIA: Ah, sei lá... Uns... Trinta e dois...

JÚLIO: Muito obrigado.

MÁRCIA: E eu, Anamaria?

ANAMARIA: Ah! Tu tem uns trinta.

MÁRCIA: Adorei a tua amiga. Isso quer dizer que eu tive a
Guida com uns... doze anos.

ANAMARIA: Ah! Claro. Que burrice! Mas é que vocês parecem
mesmo bem novos.

MÁRCIA: Tou indo no armazém. Querem ir?

GUIDA: Não.

GUIDA: A gente vai aproveitar esse sol. Vamos?

MÁRCIA: Não deixem o Júlio nem comer nem dormir, hein?

GUIDA: Pode deixar, mãe, que a gente vai deixar ele em forma
pra ti.

MÁRCIA: Depois a gente conversa mais. Eu te amo muito.

GUIDA: Três... quatro... cinco... seis... sete... oito...

GUIDA: Um... dois... três...

GUIDA: Me ajuda aqui, Anamaria!

GUIDA E ANAMARIA: Trinta e seis... trinta e sete... trinta e
oito... trinta e nove... quarenta!

GUIDA: Vinte e oito... vinte e nove... trinta... trinta e
um... trinta e...

JÚLIO: Ah... Ai! Quero água!

GUIDA: Pai!

JÚLIO: Oi!

GUIDA: O chuveiro não tá esquentando.

JÚLIO: Eu experimentei *há pouco* e tava bom. É só ter um
pouquinho de paciência, ó. Aí, já tá ficando melhor.

GUIDA: Aí. Valeu.

ANAMARIA: Sacanagem, Guida! Era eu primeiro, né?

GUIDA: Ai! Vem que a gente toma juntas.

ANAMARIA: Tu parece criança.

GUIDA: Pai!

JÚLIO: Que é?

GUIDA: Vem aqui! A água tá fria de novo.

JÚLIO: Guida! Pensei que vocês tavam de biquíni.

GUIDA: Ah, pai... Não enche. Vamos logo, que a gente tá
congelando.

JÚLIO: Então se vistam, vai?

GUIDA: Pai! Deixa de ser idiota. Arruma logo essa porcaria.

JÚLIO: Com licença.

JÚLIO: Vocês abriram demais.

JÚLIIO: Agora vai esquentar.

GUIDA: Ah, mas aí, olha aqui, ó: fica só uns pinguinhos...

JÚLIO: Quem mandou vocês tomarem banho juntas?

ANAMARIA: Ah, agora tá bom. Brigada, tá?

JÚLIO: De nada.

GUIDA: Pai...

JÚLIO: Ahn, Guida?

GUIDA: Tu esfrega as nossas costas?

GUIDA: Tempo!

MÁRCIA: Um bicho... Um animal selvagem! Um leão! Já sei: O Rei
Leão! Não? É... Mas é um bicho? É um bicho, é uma fera...

MÁRCIA: A Bela e a Fera! Não? A, a, a... A Marca da Pantera!

JÚLIO: Parece mais um cachorro louco.

MÁRCIA: Um urso? O Urso? Não?

JÚLIO: Tá longe, tá longe...

MÁRCIA: Já sei. Aquela do leão vesgo... É Simba Safari...
Não... É, é... Daktari!

GUIDA: Olha o tempo, mãe! Dez segundos...

MÁRCIA: Daktari! Não? Não. É...

JÚLIO: Vai acabar, hein?

GUIDA: Desiste, Anamaria.

MÁRCIA: Ah, pera aí, pera aí, pera aí.

MÁRCIA: Que é isso? O Leão que fuma?

MÁRCIA: Instinto Selvagem!

ANAMARIA: Yes!

MÁRCIA: Yes!

MÁRCIA: O banho continua uma merda. Acho que é encanamento. As
meninas já dormiram?

JÚLIO: Acho que sim.

MÁRCIA: Tu vai ficar furioso quando souber quanto custou,
mas... eu não resisti. É bonita essa Anamaria, não é? Bem mais
velha que a Guida. Parece que o pai dela é muito rico. Mãe
morreu, sabe?. E... ele foi morar em São Paulo, com uma menina
de vinte anos. Pode? A filha ficou no apartamento aqui em
Porto Alegre, sozinha... Faz o que bem entende. E agora
resolveu ser produtora da banda da Guida. Não sei se é bom pra
Guida ter uma amiga assim... mais velha.

MÁRCIA: Júlio...

MÁRCIA: Então? Que tal o investimento? Gostou?

MÁRCIA: Tu vai ficar o fim de semana inteiro mudo?

JÚLIO: Preciso de um tempo pra me acostumar com a situação.

MÁRCIA: Que situação? Eu já disse que acabou. Eu te amo.

JÚLIO: Ótimo.

MÁRCIA: Tu não parecia tão abalado assim meia hora atrás.

JÚLIO: Eu não tou abalado.

MÁRCIA: Eu é que devia estar com ciúmes. Tu passou a noite
inteira olhando pra Anamaria.

JÚLIO: Nós estávamos jogando, Márcia.

MÁRCIA: Tá, tá bom, tá bom.

MÁRCIA: É, eu entendo. Ela é muito bonita mesmo. Merece ser
olhada. Não é uma velha como eu.

JÚLIO: Tu tá cada vez mais bonita.

JÚLIO: Se eu não te amasse tanto, seria mais fácil.

MÁRCIA: Eu também te amo.

MÁRCIA: Psst... Quietinho! Quietinho...

MÁRCIA: Não. Não, não, não. Ele me garantiu que não voltava.
Voltou, tem certeza? Olha, essa acusação é muito grave, eu
espero que o senhor tenha provas, porque...

JÚLIO: Bom dia.

ANAMARIA: Bom dia.

GUIDA: Ôi, pai. Dormiu bem?

JÚLIO: Acho que eu ainda tô dormindo.

ANAMARIA: A Guida me falou que tu é fotógrafo.

JÚLIO: Não. Eu era.

MÁRCIA: Mas o Teodoro não tem relação nenhuma com as outras
famílias. Pode ter sido qualquer um.

GUIDA: Mas tu tá sempre com a câmara, pai!

MÁRCIA: Não, agora o senhor me escute.

ANAMARIA: Ela me mostrou algumas fotos.

MÁRCIA: Só porque ele está aí não significa que ele tenha
feito isso!

GUIDA: Mostrei aquelas antigas... dos pobres.

MÁRCIA: Mas ele não é estúpido.

ANAMARIA: São lindas.

MÁRCIA: E ele vai negociar, eu garanto pro senhor.

JÚLIO: Agora eu sou editor. Trabalho com fotos de outras
pessoas.

MÁRCIA: Onde é que ele tá agora? Mas por quê que ele iria
atirar num cavalo? Não tem cabimento!

GUIDA: Essas eu não mostrei, pai.

MÁRCIA: Sei... Tá bom, vou ver o que eu posso fazer. Tá certo.
Até logo.

JÚLIO: O quê que foi?

MÁRCIA: O meu cliente. Disse que ia ficar em Porto Alegre,
resolveu voltar pra Cruz Alta. Aí um débil mental lá atirou
num cavalo do fazendeiro, o homem tá lá furioso, diz que foi o
Teodoro.

GUIDA: Esses sem-terra são uns chatos!

MÁRCIA: Ele não é sem terra, Guida.

JÚLIO: Era ele, no telefone?

MÁRCIA: Não. Era o fazendeiro, o dono da terra. O dono do
cavalo.

GUIDA: Não entendi. Quantos donos tem essa terra então?

MÁRCIA: Não perturba, Guida. Júlio, eu tenho que ir. O cara
pode fazer uma bobagem. E depois não é tão longe assim, umas
três, quatro horas... Eu indo de carro, de repente eu consigo
voltar no início da noite. O mais tardar amanhã de manhã.
Pitutuca... Desculpa, tá? Bom, tu decerto volta aqui outra
vez, né?

ANAMARIA: Claro.

MÁRCIA: Eu tenho que ir, amor. Não pensa bobagem, vai? Não tem
nada mais importante que a nossa família. Nada.

JÚLIO: Vamo lá. Vai! Vira pra cá agora!

JÚLIO: Aí! Junta mais. Vai! Bacana!

GUIDA: Pai, tu não acha que a Anamaria podia ser modelo? Ela
tem um corpo perfeito, tu não acha?

ANAMARIA: Pára, Guida. Que saco...

GUIDA: Ai, mas tu disse que tu não...

ANAMARIA: Eu não disse nada.

GUIDA: Tira o biquíni pra ele ver.

ANAMARIA: Guida!

JÚLIO: Ninguém vai tirar nada, Guida.

GUIDA: Quê que tem? Tu não passa o dia inteiro olhando pra
essas coisas?

JÚLIO: Chega, Guida!

GUIDA: Tudo bem. Mas eu só acho um desperdício.

ANAMARIA: Quer?

GUIDA: Pode fumar, pai. Eu sei que tu gosta. Ele e a mãe fumam
escondidos de mim, dá pra acreditar? Aquele fedor de maconha
pela casa toda, e eles achando que eu não sei de nada, hã...

JÚLIO: Guida, eu acho que tava mesmo na hora de a gente ter
uma conversa séria...

GUIDA: Não! Pelo amor de Deus!

GUIDA: Uma conversa séria sobre drogas... Os perigos da
dependência química... Ah, pelo amor de deus, eu tou morrendo
de frio, vou lá em casa pegar um abrigo.

ANAMARIA: Quer?

TEODORO: Eu cansei, Orestes. Cansei de ser tratado como bicho.
Eu cansei de ficar pedindo licença pra plantar, pra colher. Eu
tou cansado de ficar esperando que vocês decidam o quê que
vocês vão fazer comigo. Eu quero o que é meu, Orestes!

ORESTES: Teu?

ORESTES: Tu não tem nada. E nunca vai ter.

JUVENAL: Foi isso que aconteceu.

MÁRCIA: Não foi. A perna de quem leva um tiro assim fica cheia
de pólvora...

MÁRCIA: ... a perícia teria mostrado. O senhor tá criando uma
fantasia.

JUVENAL: Pode ser. Mas uma coisa eu lhe digo, e não é
fantasia: o Teodoro é um homem violento, imprevisível. Conheço
ele melhor que a senhora.

MÁRCIA: Claro. Ele é seu irmão.

JUVENAL: Não, ele não é meu irmão.

MÁRCIA: Doutor Juvenal, eu sei e o senhor também sabe que o
Teodoro é seu irmão. Seu pai também sabia,

MÁRCIA: ... deu a terra pra mãe dele. Mais cedo ou mais tarde,
o senhor vai ter que admitir.

JUVENAL: Mas eu não vou ter que admitir coisa alguma.

MÁRCIA: Tá bom. Tá bom. Talvez nem precise. O Teodoro tem
direito à terra porque mora nela desde que nasceu, há mais de
trinta anos. Não importa se é seu parente ou não. E depois,
ninguém precisa ficar sabendo. O melhor pra todo mundo é
conversar, negociar...

JUVENAL: Talvez. O Orestes nunca foi muito de conversa mesmo.
Mas eu sou um homem diferente. Eu sou mais tolerante. A
senhora entende?

MÁRCIA: O cavalo já foi sacrificado?

JUVENAL: Já. Tava sofrendo muito. Mas a gente ainda não
enterrou ele, a senhora quer ver?

MÁRCIA: Não.

ANAMARIA: Nossa! É lindo aqui. Isso tudo é terreno de vocês?

JÚLIO: Não. É de um amigo nosso, mas ele deixa a gente usar à
vontade.

ANAMARIA: Hum. Legal. Posso olhar a câmara?

JÚLIO: Claro. Aqui, ó! Segura. Alô? Ôi, Márcia. Hum-hum. Tudo
bem. Tchau. A Márcia só vai poder voltar segunda de noite.
Posso voltar com vocês?

ANAMARIA: Não. Claro. Ela bate sozinha?

JÚLIO: Bate.

ANAMARIA: Então... tu pode tirar uma foto de nós dois?

JÚLIO: Posso, claro.

ANAMARIA: Queria de lembrança.

JÚLIO: Mais pra cá... Aí!

MÁRCIA: Deixe seu recado depois do sinal.

ANAMARIA: Alô, Guida. Sou eu, Anamaria. Alô, Guida... Bom, só
queria saber se o teu pai já fez as fotos. Eu queria ver, tou
super curiosa. Era isso. Quando tu chegar em casa, liga pra
mim...

JÚLIO: Alô, Anamaria? É o Júlio. A Guida saiu. As fotos
ficaram ótimas. Eu tava vendo agora.

ANAMARIA: Já tão prontas? Que legal! Eu queria ver.

JÚLIO: Claro. Quando tu quiser.

ANAMARIA: Posso dar uma passada aí agora?

JÚLIO: Agora? É... É que eu tou terminando um serviço.

ANAMARIA: Não, claro. É... A Márcia já voltou da viagem? Quem
sabe tu vem me visitar mais tarde?

JÚLIO: É, quem sabe.

ANAMARIA: Então anota o endereço. É Garibaldi...

JÚLIO: Pera aí. Pode falar. Olha, Anamaria, eu não sei se vai
dar pra ir hoje, porque eu tou meio atrasado aqui com umas
coisas.

ANAMARIA: Tudo bem, Júlio. Vem quando quiser. Um beijo.

ANAMARIA: Hum. Tá ótima. Posso ver as outras?

JÚLIO: Claro.

ANAMARIA: Hum. Tão lindas. Hum. Mais alguma?

JÚLIO: Eu... fiz uma brincadeira.

ANAMARIA: Deixa eu ver. Ah... Como é que tu fez?

JÚLIO: É fácil, eu trabalho com isso o tempo todo.

ANAMARIA: Ah, ah, ah.

ANAMARIA: Que sacanagem! Ah, ah. Por isso que as mulheres nas
revistas são tão perfeitas. Mas tem uma coisa. Eles são bem
diferentes. Tu tá com a câmara aí?

ANAMARIA: Alô? Pode subir. A Guida tá subindo.

JÚLIO: Ela não pode me ver aqui.

ANAMARIA: Ali. Vem. Calma.

GUIDA: Oi.

ANAMARIA: Oi.

GUIDA: Esse é o Ciro.

CIRO: E aí?

ANAMARIA: Tudo bom?

GUIDA: Ahn... Empresta o quarto?

ANAMARIA: A cama tá desarrumada, Guida.

CIRO: Não faz mal. Tu te importa?

GUIDA: Não.

ANAMARIA: Bom, então eu vou dar uma saída. E volto lá pelas
quatro. Tá bom?

GUIDA: Legal.

GUIDA: Vamos?

CIRO: Vamos.

ANAMARIA: Tá entregue.

JÚLIO: Quer entrar?

ANAMARIA: Tu tem cigarro em casa?

JÚLIO: Não. Só cigarrilha.

ANAMARIA: Então eu vou comprar aqui perto e já volto. Enquanto
isso, tu não quer pedir uma pizza?

JÚLIO: Hum.

ANAMARIA: Eu gosto de califórnia, tá?

JÚLIO: Queria fazer um pedido, por favor.

JÚLIO: Márcia!

MÁRCIA: Por que o susto?

JÚLIO: Ahn... Não. Tu não avisou que vinha. Pensei que tu tava
viajando ainda.

MÁRCIA: Tenho uma reunião na secretaria da Justiça. Aí
aproveitei pra tomar um banho, pegar umas roupas. Vou ter que
voltar pra Cruz Alta logo em seguida. Cadê a Guida, hein?

JÚLIO: É... Ela... tá na casa, na, no apartamento da Anamaria.
Hum, hum.

MÁRCIA: Ai, tava com poeira até os ossos. Que horror aquele
lugar, viu! Depois, a água do chuveiro não esquenta.

JÚLIO: Antigamente tu gostava. Dizia que fazia bem pra saúde.

MÁRCIA: É... Quando eu tinha dezessete também, eu gostava de
cuba-libre, dos livros do Fernando Henrique...

MÁRCIA: Alô? Oi, meu amor! Não, eu tou, eu vim pruma reunião.
Tou voltando para lá daqui a pouco. Vou tentar voltar.
Prometo. Eu não tenho tempo pra discutir agora, Pitutuca. Não,
tá bom, tá bom. Tá, juízo, hein? Tá, eu falo pra ele. Tá,
tchau.

MÁRCIA: A Guida mandou te avisar que ela está na casa da
Anamaria.

JÚLIO: Ela já tinha me dito.

MÁRCIA: Sei. Talvez ela durma lá. Tu voltou a ver essa menina?

JÚLIO: Quem?

MÁRCIA: Anamaria.

JÚLIO: Não. Nunca mais.

TEODORO: A doutora Márcia está?

MÁRCIA: Teodoro!

TEODORO: A Jussara telefonou, diz que tem um trator cavando um
buraco grande na lavoura de milho. Disseram pra ela que é um
açude, eles vão acabar com tudo, Márcia! O Juvenal diz uma
coisa e depois faz outra.

MÁRCIA: Tu conhece o Júlio, é meu marido.

TEODORO: Prazer. Depois, lá na fazenda ninguém viu cavalo
ferido nenhum. Isso tudo é invenção dele. Ele te mostrou esse
cavalo? Tu viu o cavalo?

JÚLIO: Com licença.

MÁRCIA: Deixa de ser bobo, Júlio.

JÚLIO: Agora tu anda pra cima e pra baixo com esse cara. Até
no jornal já vi os dois juntos!

MÁRCIA: Mas é claro, sou advogada dele, eu preciso tá perto...

JÚLIO: É advogada, mas não precisa trepar com ele.

MÁRCIA: Não grita!

JÚLIO: Não tou gritando. Tou calmo.

MÁRCIA: Eu acho que tu não tá entendendo o que aconteceu. Eu
vou te explicar.

JÚLIO: Não precisa explicar nada, Márcia!

MÁRCIA: Ô, Júlio, não tou te reconhecendo! Olha, vamos fazer o
seguinte: eu não vou mais nessa reunião. A gente fica em casa
e discute com calma. Se tu quiser, eu nem vou mais na tal
fazenda.

JÚLIO: Não. A gente precisa terminar o que começou.

JÚLIO: A Márcia tá pronta.

MÁRCIA: Vamos. Tá na hora.

ENTREGADOR: Opa! Meia muzzarella, meia califórnia e duas
cocas.

MÁRCIA: Califórnia?

JÚLIO: É, califórnia, eu... pensei em deixar pra Guida, ela
adora. Obrigado.

MÁRCIA: Não esquece de uma coisa, Júlio: eu não menti.

ANAMARIA: Já tentei largar três vezes.

ANAMARIA: Tu não gostou de ver a Guida lá em casa, né? Eu
entendo. Deve ser difícil pra ti. Mas não precisa ficar
preocupado. A Guida é muito responsável, não vai fazer nenhuma
bobagem.

ANAMARIA: Ela não é mais criança.

JÚLIO: Desculpe, Anamaria. Eu acho que não foi uma boa idéia
tu vir aqui. Pode chegar alguém. Acho melhor tu ir embora.

ANAMARIA: Tu quer mesmo que eu vá embora?

JÚLIO: É melhor. Eu nunca fiz isso.

ANAMARIA: E a gente se vê de novo?

JÚLIO: Não sei. Olha, desculpa. Desculpa eu ser tão
atrapalhado.

ANAMARIA: Acho que a gente se vê, sim.

JÚLIO: Desculpa. Ah... Desculpa.

ANAMARIA: Pára de pedir desculpa! Desculpa de quê?

JÚLIO: Eu não vou fazer de novo.

ANAMARIA: Acho que vai, sim. Tudo bem. Eu vou embora. Mas,
antes, posso ir ao banheiro pelo menos?

JÚLIO: Claro. No final da escada.

ANAMARIA: Vou deixar contigo. Quando tu quiser me visitar,
conversar um pouco...

JÚLIO: Não precisa.

ANAMARIA: Eu sei que tu não vai. Mas assim pelo menos eu
alimento um pouco as minhas fantasias. Eu tou dormindo, de
madrugada, e um homem misterioso entra no meu apartamento...
Ah, ah, ah. Eu gosto de pensar essas bobagens. Isso não faz
mal, faz?

MÁRCIA: Tu não precisava ter feito ameaças.

TEODORO: Eu não ameacei ninguém.

MÁRCIA: Mas disse que não admitia ninguém andando nas tuas
terras.

TEODORO: Claro! Se eu deixar, daqui a pouco os peão do Juvenal
estão colhendo o que eu plantei.

MÁRCIA: Juridicamente, as terras ainda não são tuas. São do
Juvenal. Tem uma coisa chamada escritura, sabe?

TEODORO: Márcia, o meu pai, antes de morrer, ele disse que...

MÁRCIA: O teu pai nunca passou as terras para o nome da tua
mãe. Portanto o que ele disse não faz diferença.

TEODORO: Bom, enquanto a coisa não se resolver, ninguém cruza
aquela cerca.

MÁRCIA: Minha filha de dezessete anos é mais madura que tu.

TEODORO: A tua filha já tá com dezessete, é?

MÁRCIA: Hum. Faz dezoito amanhã. Casei cedo. Tira a mão, vai.
Olha, presta atenção no que eu vou te dizer. Eu amo o meu
marido. Já contei pra ele o que aconteceu. Eu não me arrependo
de nada, não, mas... não vai acontecer de novo. Então... Tira
a mão, vai. Tira. Agora!

MÁRCIA: O Juvenal quer falar contigo. Vou marcar uma reunião
assim que a gente chegar.

TEODORO: O Juvenal quer me matar, é isso que ele quer.

MÁRCIA: Não. Ele quer conversar. Conversar!

JUVENAL: Medo? Eu é que deveria ter medo, a senhora não acha?
O cara matou o meu irmão.

MÁRCIA: Eu acho que vocês deviam conversar na sub-prefeitura,
que é um território neutro.

JUVENAL: Ah, neutro porra nenhuma. Esse sub-prefeito tá aí, do
lado dos posseiros. O Teodoro vem aqui, conversar aqui, comigo
aqui!

MÁRCIA: O senhor garante a segurança dele?

JUVENAL: E a senhora garante a minha segurança?

MÁRCIA: Olha, eu vou lhe dar um conselho: só vai haver
segurança quando o conflito acabar. O Teodoro tá disposto a
provar que é filho do seu pai, e o senhor sabe que ele é. Mas
um processo agora só vai piorar a situação. É muito melhor
reconhecer o direito dele e das outras famílias por usucapião.
Tudo somado, doutor Juvenal, é apenas cinco por cento da sua
fazenda.

JUVENAL: Sabe o que o Orestes dizia? Que terra de família não
se negocia. Se defende.

MÁRCIA: Teu irmão está morto por pensar assim. O senhor não
disse que era diferente dele?

GUIDA: Pai!

JÚLIO: Hum... Parabéns, filha!

GUIDA: Ahn... Pensei que tu não vinha mais. A gente já cantou
o parabéns. Daqui a pouquinho a gente vai tocar.

JÚLIO: Oi. Oi. Oba.

ANAMARIA: Oi.

JÚLIO: Anamaria... Me atrasei por causa do teu presente.
Espero que tu goste. É um álbum.

ANAMARIA: De que banda é?

JÚLIO: Não, é um... de fotografias. Desses de família. Vai,
coloca no computador e assiste. Tem umas fotos, uns vídeos
antigos... É um álbum.

GUIDA: Legal!

JÚLIO: O CD é meu presente. Agora tem também o da tua mãe. Tu
vai precisar pra assistir.

GUIDA: Hum... Ai, que maravillha!

GUIDA: Legal! Ah, ah... Ai, adorei!

ROADIE: Som, som... Teste, teste...

JÚLIO: Ó.

ANAMARIA: Guida, tá na hora. Vamos lá, gente?

GUIDA: Pai, me deseja sorte.

JÚLIO: Merda pra ti.

GUIDA: Merda?

JÚLIO: É, no meu tempo era... Quer dizer, no teatro... Ah,
Guida! V, vai lá e manda ver! Eu te adoro. Rock'n'roll! Uh!

GUIDA: Uh! Uh!

CIRO: Ôi. A Guida me falou que o senhor trabalha na área de
informática.

JÚLIO: Mais ou menos.

CIRO: Eu me formei em computação. Sou especialista em
Internet.

JÚLIO: A-hã.

CIRO: Eu sou bom nesse negócio. Muito bom. Mas eu tou
desempregado. Sabe como é que é, né? Preciso trabalhar.

JÚLIO: Todo mundo precisa, não é?

CIRO: A Guida me falou que o senhor talvez possa me ajudar. Eu
também entendo um pouco de fotografia digital. Quem sabe um
estágio na revista?

JÚLIO: Faz o seguinte. Me manda o teu currículo. Pode deixar
lá no estúdio.

CIRO: Tá. Tá bom. Valeu.

TEODORO: Eu não posso ir lá.

MÁRCIA: Por quê?

MÁRCIA: Tu não corre perigo, eu falei com o Secretário de
Segurança outra vez. Me garantiu que, a partir de amanhã, vai
ter um brigadiano aqui, vinte e quatro horas por dia. Muito
mais perigoso é a gente deixar essa situação assim como está,
indefinida. Ele só quer conversar, Teodoro, tu tem que ir.

TEODORO: Eu vou pensar. Agora, lá na fazenda eu não vou,
porque eu não quero morrer naquela casa.

MÁRCIA: Tu não vai morrer. Quem sabe a gente marca em Porto
Alegre então?

TEODORO: É melhor.

MÁRCIA: Então tu vai voltar amanhã, promete?

TEODORO: Prometo. A Jussara arrumou a tua cama lá na sala.

MÁRCIA: Obrigada. Não, eu... vou dar uma passada no hotel,
quero descansar um pouco. Mas quero tá bem cedo amanhã em
Porto Alegre, que é aniversário da minha filha.

TEODORO: Tu pode descansar aí também, né? Não tem perigo.

MÁRCIA: Boa noite, Teodoro. Fica tranqüilo, vai? Ninguém vai
matar ninguém.

JÚLIO: Alô? Oi, Márcia. Não, tou aqui, tou aqui no bar ainda.
Já, já tocou. Tá, vou chamar. Outro. Guida?

JÚLIO: Guida?

JÚLIO: Tua mãe. A ligação tá horrível.

GUIDA: Ah, eu vou atender lá atrás. É melhor.

JÚLIO: Tá bom.

GUIDA: Mãe? Só um pouquinho.

ANAMARIA: Não tá gostando da festa?

JÚLIO: Tou.

ANAMARIA: Pensei que tu ia me ligar.

JÚLIO: Eu não disse que ia ligar.

ANAMARIA: Mas eu fiquei esperando. Quer dançar? Tu é sempre
assim... reprimido?

JÚLIO: Eu acho que tu bebeu demais.

ANAMARIA: Posso imaginar como tu era antes.

JÚLIO: Antes de quê?

ANAMARIA: Antes de casar. Foi ela que te deixou assim?

JÚLIO: Tu não sabe de nada.

ANAMARIA: Sei que eu quero ir pra cama contigo. E tu também
quer... Ivanhoé.

JÚLIO: O quê?

ANAMARIA: Ah, ah, ah.

ANAMARIA: A Guida que me contou.

GUIDA: Te mandou um beijo.

JÚLIO: Guida, vamos embora?

GUIDA: Pai... A festa tá começando!

JÚLIO: São quase duas. Amanhã eu tenho que acordar cedo.

GUIDA: Ah, mas hoje é meu aniversário! O Ciro me leva em casa
depois. Tu gostou dele? Claro que não. Tu nunca gosta. Tchau.

MÁRCIA: Quando o Teodoro nasceu, o Orestes já tinha dez anos.
Agora, o Juvenal não, ele era pequeninho, os dois eram
crianças, brincavam juntos... O Orestes é que tinha ódio do,
do Teodoro, porque ele achava que a mãe do Teodoro era
responsável pela doença da mãe dele. O mais provável, é claro,
é que fosse o contrário, não é? Júlio, tá me ouvindo?

JÚLIO: Hum-hum.

MÁRCIA: Tava com uma saudade...

MÁRCIA: Quê que foi? Tu tá com algum problema?

JÚLIO: Tou um pouco nervoso. Não dormi bem.

MÁRCIA: Júlio... aquilo que aconteceu com o Teodoro...

JÚLIO: Márcia... Eu... conheci uma garota.

MÁRCIA: Eu conheço essa garota?

JÚLIO: Não. Foi... lá no estúdio. Uma modelo...

MÁRCIA: Uma modelo?
JÚLIO: É. Não aconteceu nada. Só um beijo.

MÁRCIA: Um beijo? Só um beijo? Que mais?

JÚLIO: Mais nada. Eu... fui uma vez na casa dela, mas... a
gente não transou.

MÁRCIA: Era nela que tu tava pensando?

JÚLIO: Era.

MÁRCIA: Por que tu não trepa com ela de uma vez? Não! O quê
que é isso, Júlio? É vingança? Tu não engoliu direito o quê
que eu fiz, então tá querendo te vingar? É isso, Júlio? Então
vai lá e trepa com ela de uma vez, trepa com ela. Eu não
preciso nem ficar sabendo quem é. Não, só tem uma coisa: seja
discreto e usa camisinha.

JÚLIO: Tu não tá falando sério.

MÁRCIA: Eu tou falando sério. E eu não quero saber dos
detalhes.

JÚLIO: Isso é loucura, Márcia.

MÁRCIA: É loucura, sim. Mas é bem melhor assim.

JÚLIO: Tu pensa que é fácil assim, Márcia? Eu v, vou lá,
transo com ela e pronto. Tá louca?

MÁRCIA: E tu acha que eu vou dormir com um cara que brocha e
depois diz que tá pensando em outra? Resolve o teu caso, meu
filho. E depois a gente conversa.

JÚLIO: Meu amor...

MÁRCIA: Não toca em mim.

JÚLIO: Márcia, calma!

MÁRCIA: Não toca em mim!

JÚLIO: Ai. Ai!

JÚLIO: Tá maluca, Márcia? Que é isso?

MÁRCIA: Sai dessa casa!

JÚLIO: Escuta o que eu tenho pra falar? Calma!

MÁRCIA: Sai dessa casa!

JÚLIO: Márcia, calma!

MÁRCIA: Sai daqui! Sai! Sai daqui!

JÚLIO: Que é isso? Calma, Márcia!

MÁRCIA: Sai daqui! Sai! Sai daqui!

JÚLIO: Calma, Márcia! Calma, Márcia!

MÁRCIA: Sai daqui! Sai!

JÚLIO: Tá louca, Márcia?

MÁRCIA: Seja homem, Júlio!

MÁRCIA: Espera!

JÚLIO: Que é isso?

MÁRCIA: Toma! E agora sai daqui! Sai, Júlio, porque, se tu não
sair, saio eu. E eu te juro que eu não volto mais.

GUIDA: Quê que houve, mãe? Vocês tavam gritando por quê?

MÁRCIA: Não foi nada, não. O Júlio teve que sair.

ANAMARIA: A minha fantasia do homem misterioso acontecia de
madrugada, não às sete da manhã.

JÚLIO: Desculpa.

ANAMARIA: O que é isso?

JÚLIO: Nada.

ANAMARIA: Ai!

ANAMARIA: Deve estar doendo... Ela te machucou?

ANAMARIA: Tu não quer te vingar? Hein? Não quer bater em mim?

JÚLIO: Não.

ANAMARIA: Claro que quer. Vai, bate. Mas não bate muito
forte...

ANAMARIA: Não precisa sair correndo.

JÚLIO: Eu tenho que ir.

ANAMARIA: Dorme um pouco aqui comigo.

JÚLIO: Não posso. Eu vou contar pra Márcia. Contar... o que
aconteceu. Na verdade, ela já sabe.

ANAMARIA: Sabe que tu tá aqui?

JÚLIO: Não. Mas sabe que eu transei com alguém.

ANAMARIA: Quando?

JÚLIO: Hoje. Agora.

ANAMARIA: Não tou entendendo...

JÚLIO: Deixa assim.

ANAMARIA: Olha, Júlio, eu não sei o que tu tá pensando, mas
uma coisa eu sei: Se tu contar pra Márcia, essa história chega
na Guida. Ela vai me odiar. Tu tem que me prometer que não
conta nada.

ANAMARIA: Promete. Promete!

JÚLIO: Prometo.

JÚLIO: A tua chave. Não vou usar mais.

MÁRCIA: Resolveu teu problema?

JÚLIO: Foi estranho.

MÁRCIA: Eu não quero saber como foi. Tu usou camisinha?

JÚLIO: Usei.

MÁRCIA: Então assunto encerrado, não se fala mais nisso.

MÁRCIA: Tu usou o meu xampu? Guida?

GUIDA: Que foi?

MÁRCIA: Perguntei se tu usou o meu xampu.

GUIDA: Eu não!

MÁRCIA: A Anamaria foi no teu aniversário?

GUIDA: Claro, né, mãe.

MÁRCIA: Onde é que ela mora?

GUIDA: Ah, mas que saco! Parece interrogatório. Mora na
Garibaldi.

PROMOTOR: De modo que, se a ilustre colega da defesa
concordar, poderemos ganhar muito tempo. Basta evitar esse
tipo de confronto. A promotoria dispensa o depoimento da
testemunha, e a defesa abre mão de apoiar-se em prova tão
facilmente contestável.

JUIZ: Doutora Márcia. Doutora Márcia! A senhora concorda com
essa mudança no andamento do processo?

ANAMARIA: Márcia!

MÁRCIA: Posso entrar?

ANAMARIA: Claro.

ANAMARIA: Olha, a Guida não tá aqui.

MÁRCIA: Eu sei. Vim falar contigo. Mas, antes, eu tenho que ir
no banheiro.

MÁRCIA: Adoro esse xampu. Onde é que tu compra?

ANAMARIA: Um amigo me trouxe de viagem.

MÁRCIA: Essa marca é muito boa. Mas eu prefiro da Clorane, tu
conhece?

ANAMARIA: Não. Não, acho que não.

MÁRCIA: Conhece. Claro que conhece. Se tu já até usou o meu lá
em casa...

ANAMARIA: Eu não sei do que tu tá falando. Eu nunca tive na
tua casa.

MÁRCIA: Não precisa mentir que eu sei de tudo. Tu não só usou
o meu xampu, como usou o meu marido.

ANAMARIA: Eu não usei o teu marido. É diferente: eu trepei com
ele!

MÁRCIA: Porque eu deixei. Tá entendendo, ô sua puta?

ANAMARIA: Tu é louca!

MÁRCIA: Fui eu que mandei ele aqui. Ele queria dar uma
trepadinha contigo e eu deixei.

ANAMARIA: Mas a minha relação com o Júlio não é só sexo, não.
A gente gosta um do outro.

ANAMARIA: Eu tou apaixonada por ele. E ele por mim.

ANAMARIA: E não foi a primeira vez que a gente transou.

MÁRCIA: Tu tá mentindo. De novo!

ANAMARIA: Não! Tu quer ver?

ANAMARIA: Conhece esse lugar? Tu não sabia disso, não é? Faz
tempo que a gente conversa na Internet. Ivanhoé! Não é esse o
nome que ele usa? E agora, o que é que tu vai fazer?

TEODORO: Márcia! Tu aqui?

TEODORO: Quê que houve? Tu já falou com o Juvenal?

MÁRCIA: Não. Tu tá sozinho?

TEODORO: Claro, acabei de chegar, mas... Aconteceu alguma...
coisa?

MÁRCIA: Não. Eu vim trepar contigo.

TEODORO: Essa é boa, né? Tu fica te fazendo de difícil, e
agora...

MÁRCIA: Agora é diferente. Agora eu quero.

MÁRCIA: Tu tem camisinha?

TEODORO: Não tenho.

MÁRCIA: Eu tenho. Comprei.

TEODORO: Tu viu o que falaram no rádio? Que eu tou me tornando
um líder dos sem-terra. Sem-terra é a puta que pariu! Enquanto
isso, o Juvenal contratou de peão um sujeito que tem mais de
seis mortes nas costas.

MÁRCIA: Tu tá totalmente paranóico, o Juvenal...

TEODORO: Tu sabe por que é que eu atirei no Orestes? Sabe?

MÁRCIA: Sei.

TEODORO: Não. Tu não entendeu direito. Tu acha que foi por
causa da cerca, da terra. Quer saber por quê que foi mesmo?

ORESTES: Tu acha que eu vou entregar a terra do meu pai pro
filho duma prostituta?

TEODORO: Ele não me chamou de filho da puta. Se tivesse
chamado, ainda tava vivo. Ele falou "filho de uma prostituta".
Tava falando da minha mãe, entende? Tá estranha hoje, hein?
MÁRCIA: Tu pega um pouco de papel higiênico pra mim?

TEODORO: Ué? Tu já vai embora?

MÁRCIA: É. Eu tou com um pouquinho de pressa, tenho que ir
embora.

TEODORO: Eu pensei que a gente podia sair pra, pra jantar e...

MÁRCIA: Te cuida.

JÚLIO: Não posso te prometer nada, viu, é? A revista tá
cortando todas as verbas.

CIRO: Ahn, no começo pode até ser sem grana. Depois, se vocês
gostarem de mim...

EMANUEL: Sabe o quê de fotografia?

CIRO: Fotografia digital?

EMANUEL: Ai, meu saco... Mais um taradinho de computador.

EMANUEL: Caralho, Júlio! Convidou mais alguém?

JÚLIO: Eu trabalho sozinho com a edição das fotos, em casa.

JÚLIO: Sinceramente, eu acho que tu vai ter que procurar
trabalho em outro lugar. O Emanuel também não...

MÁRCIA: Tu pode me explicar o que significa isso?

JÚLIO: É falsa. Só pode ser uma brincadeira.

MÁRCIA: Não mente pra mim.

JÚLIO: Não é mentira, Márcia. Essa foto foi manipulada... Dá
pra perceber. Qualquer pessoa mais experiente pode perceber.
Pergunta pro Emanuel.

MÁRCIA: Por favor.

EMANUEL: Não me mete em bronca aqui.

MÁRCIA: Não, examina aí e me diz. É falsa ou não é falsa?

EMANUEL: Olha, olhando assim, não dá pra dizer.

JÚLIO: Porra, Emanuel! Claro que foi manipulada, olha o
retoque nos seios.

EMANUEL: Ah, tá aqui, ó! Ô, Márcia, retoque brabo...

MÁRCIA: Tu tá mentindo, pra proteger o teu amiguinho. Chega de
mentira, Júlio. Tu tá de caso com essa garota. Aproveitou que
eu tinha viajado. No nosso sítio, Júlio? Na nossa casa!

JÚLIO: Pára com isso, Márcia. Coisa ridícula!

MÁRCIA: Confessa logo. Há quanto tempo tu te encontra com essa
piranha?

JÚLIO: Não faz escândalo. Vamos sair daqui?

MÁRCIA: Não toca em mim! Eu quero saber.

MÁRCIA: Há quanto tempo vocês se conhecem? É com ela que tu
fica namorando na Internet? É?

JÚLIO: Tá louca, cara.

MÁRCIA: Eu tou louca?

JÚLIO: Vamos pra casa.

MÁRCIA: Eu não quero ir pra casa. Aliás, minha casa, porque
tua ela não é mais. Covarde!

Mentiroso que tu é! Fica logo com ela, vai, fica logo com ela
e some da minha vida. So-me!

JÚLIO: Essa putinha me paga. Eu vou matar ela!

EMANUEL: Ô, Júlio!

JÚLIO: Eu toquei a campainha duas, três vezes. Mas a porta
tava aberta. Tava tudo escuro. Derrubei alguma coisa. Era uma
estátua pequena. Só vi o corpo quando acendi a luz. Tava no
meio da sala, com uma ferida na cabeça. Eu logo vi que ela
tava morta. Foi horrível. E então eles chegaram.

CIRO: Eu vou chamar a polícia.

JÚLIO: Foi assim que aconteceu. Eu não matei ela. Eu transei
com ela. Uma vez. Tu sabe quando. Não tive coragem de te
contar... não sei por quê... Não matei ninguém. Tu acredita em
mim?

MÁRCIA: Eu não sei. Tá difícil. Mas eu posso tentar.

JÚLIO: Eles queriam que eu confessasse.

MÁRCIA: A polícia teve lá em casa. Foram examinar o
computador, atrás daquela foto que tu diz que foi editada.

JÚLIO: Acharam a original?

MÁRCIA: Não. Mas eles levaram o computador, tu fez uma cópia?

JÚLIO: Não. Só tinha aquela.

MÁRCIA: As tuas impressões digitais estão na arma do crime. As
testemunhas, o que tu disse lá no estúdio... Tá tudo contra
ti.

JÚLIO: Mas tu tem que acreditar em mim, Márcia. Eu sou
inocente. Isso tudo é um absurdo!

MÁRCIA: Tenho outra má notícia.

DELEGADO: Já entendi quase tudo. A menina passou da conta e tu
não agüentou. Mas essa foto como é que foi parar no jornal?

JÚLIO: Não foram vocês que entregaram?

DELEGADO: Não.

JÚLIO: O senhor tá querendo se promover. Tá aí o seu nome na
primeira página. Aposto como não só mandou a foto pro jornal,
como também apagou a original do meu computador.

DELEGADO: Cuidado com o que tu diz.

DELEGADO: Como é que tu pode provar que a foto foi adultera?

JÚLIO: Não é difícil. É só falar com alguém que use computador
para retocar fotografia.

DELEGADO: Mas temos outras evidências, mais importantes até. E
tu freqüentava bastante o apartamento dela?

JÚLIO: Claro que não. Eu sabia onde ela morava porque já tinha
levado minha filha lá. Isso é um engano, um mal-entendido.
Vocês tem que achar quem matou essa menina!

DELEGADO: Tu nega que matou a vítima. E nega também que
mantinha relações sexuais com ela.

JÚLIO: Eu nunca toquei nessa menina! Ela é uma desequilibrada.
Essa foto é uma farsa, uma brincadeira, tá na cara!

DELEGADO: E isso aqui... também é uma farsa? A mim, parece
mais uma camisinha. Usada. E foi encontrada no lixo do
banheiro. É tua? É melhor não mentir outra vez. O laboratório
já levou a amostra do sêmen.

MÁRCIA: Tu tá horrível. Não te deixaram tomar banho?

JÚLIO: Que é que tu acha?

MÁRCIA: Trouxe umas coisas pra ti.

JÚLIO: E a Guida? Eu queria falar com ela, explicar tudo que
aconteceu...

MÁRCIA: Não. Eu acho melhor não. A Guida ainda tá muito
abalada, ela vai ficar fora de circulação por um tempo.

JÚLIO: Tu conseguiu um advogado?

MÁRCIA: Nós não precisamos de advogado. Eu vou assumir a
defesa.

JÚLIO: Não acho uma boa idéia.

MÁRCIA: Eu sei que tu é inocente.

JÚLIO: Assim, de uma hora para outra? A troco de quê?

MÁRCIA: A estratégia já tá pronta. A perícia concluiu que
aquela foto muito provavelmente foi editada. Muito
provavelmente! É um ponto a nosso favor. E agora nós estamos
esperando o resultado do exame do sêmen.

JÚLIO: O exame vai mostrar que é meu.

MÁRCIA: Vamos ver. Eu quero que tu saiba uma coisa: eu tou
fazendo tudo isso pela Guida.

POLICIAL: Júlio Ribonacci. Me acompanhe.

DELEGADO: As tuas coisas. O senhor está livre, por enquanto.
Saiu o resultado do exame de sêmen. Não é teu. E o legista
afirma que ela morreu duas horas antes. A tua senhora é
competente, conseguiu um habeas-corpus.

DELEGADO: Quem é que entende mulher?

JÚLIO: Alô? Não. Não, não está. Tenho, tenho certeza, sim.
Tudo bem. Eu dou.

MÁRCIA: Quem era?

JÚLIO: Era o Teodoro.

MÁRCIA: Por que tu não me chamou?

JÚLIO: Tu disse que precisava se concentrar.

MÁRCIA: Mas ele é meu cliente, Júlio!

JÚLIO: Deixou recado. Disse que o Juvenal já tá em Porto
Alegre e que tá atrás dele.

MÁRCIA: Teodoro Schmidt, por favor?

JÚLIO: Quando é que a polícia vai devolver o meu computador?

MÁRCIA: Não sei. Usa o meu, por enquanto.

JÚLIO: Não presta pro meu serviço.

MÁRCIA: Alô, alô? Não. Eu, eu tou indo pra aí. Me espera.
Calma! Me espera. Olha aqui. Eu vou ter que sair. Quando a
imprensa descobrir que tu tá aqui, isso aqui vai virar um
inferno. Então presta atenção no que eu vou te dizer. Nada de
entrevistas, fica quieto. Entendeu?

MÁRCIA: De repente vai pro sítio, fica lá uns dois dias. Tu
que sabe.

TEODORO: Ele sabe onde é que eu tou. Telefonou pra cá.

TEODORO: Foi tu que contou?

MÁRCIA: Não, Teodoro! Tu precisa ficar calmo, viu? É só uma
conversa. Tu vai ouvir o que ele tem a dizer e pronto.

MÁRCIA: Não precisa ficar assim.

TEODORO: Eu acho que tem alguém me seguindo desde que eu saí
de Cruz Alta.

MÁRCIA: Ah, tu tá totalmente paranóico.

TEODORO: Ele disse que quer conversar comigo sozinho, porque é
assunto de família.

MÁRCIA: Pois então, tá vendo? Assunto de família. Ele é
diferente do Orestes, eu te disse já. E depois tu não precisa
ir sozinho, eu posso ir junto.

TEODORO: No final da conversa, ele... me chamou de irmão.

MÁRCIA: Então. Tá vendo? Ele sabe que precisa negociar, vai
dar tudo certo.

TEODORO: Acontece que eu tou com medo, Márcia.

MÁRCIA: Mas a melhor maneira de acabar com esse medo é
enfrentando a situação. Vem cá. Tu tá louco?

MÁRCIA: O quê que há de tão urgente?

JÚLIO: Eu descobri a verdade.

MÁRCIA: Que verdade?

JÚLIO: Foi tu que matou a Anamaria. Tentou me incriminar.

JÚLIO: Tu queria que eu ficasse trinta anos na cadeia. Depois
se arrependeu, não sei por quê, e resolveu me defender.

JÚLIO: Se não fosse aquela camisinha, eu tava perdido. Mas
nisso tu não pensou, né?

MÁRCIA: E o que é que tu pretende fazer?

JÚLIO: Não sei. Ainda tou pensando.

MÁRCIA: Quer saber?

MÁRCIA: Tu tá enganado, muito enganado. Mas não faz mal.

ANAMARIA: Ivanhoé. Não é esse o nome que ele usa? E agora, o
que é que tu vai fazer?

JUVENAL: Eu sou um homem diferente dele. Sou mais tolerante.

MÁRCIA: Ninguém vai matar ninguém.

GUIDA: Mãe!

ANAMARIA: Guida, a tua mãe é completamente louca.

MÁRCIA: Sua vagabunda!

MÁRCIA: Se fazendo de sonsa, de amiguinha da Guida!

GUIDA: O quê que é isso?

MÁRCIA: Sabe o quê que essa puta anda fazendo com o teu pai?

ANAMARIA: Não acredita nela, Guida!

MÁRCIA: Olha aqui. Olha quem tu botou dentro da nossa casa.
Ela é que é a mulher que o teu pai fica falando na Internet
todas as noites. Sabrina! Sabrina é Anamaria! Sempre foi!

ANAMARIA: Guida, No início era uma brincadeira, mas depois eu
me apaixonei, eu não tenho culpa.

MÁRCIA: Mentira...

MÁRCIA: ... dela, mentira! Ela tá te usando pra se aproximar
do Júlio. Tá fingindo que é tua amiguinha. Eu conheço o teu
tipo, sua ordinária!

MÁRCIA: Eu conheço o teu tipo, sua ordinária!

ANAMARIA: Sai! Cai fora, sua ridícula. Sai da minha casa!

MÁRCIA: Eu ainda tenho umas coisas pra te dizer, e tu vai ter
que ouvir, sua piranha!

ANAMARIA: Vai embora, sua velha!

MÁRCIA: Piranha! Sua piranha!

ANAMARIA: Eu não tenho culpa se ele não gosta mais de ti.

MÁRCIA: Puta! Puta!

GUIDA: Parem!

GUIDA: Parem! Parem! Pára de brigar, pelo amor de deus, pára,
manhê! Anamaria, larga a minha mãe, pára!

GUIDA: Pára!

GUIDA: Pára! Solta a minha mãe...

ANAMARIA: Sai!

GUIDA: Pára! Solta a minha mãe.

GUIDA: Pára!

MÁRCIA: Não, Guida!

ASSASSINO: Passa a carteira!

MÁRCIA: Teodoro!

JUVENAL: Parece que foi uma tentativa de assalto. Queriam a
carteira dele, ele reagiu. Dois homens. Atiraram, fugiram.
Tsk... E eu me atrasei um pouco. Foi isso que aconteceu.

GUIDA: Eu tava lá.

MÁRCIA: Vai dar tudo certo. Vai dar tudo certo.

MÁRCIA: Vai dar tudo certo.

MÁRCIA: Vem aqui.

MÁRCIA: Não vou demorar mais que meia hora. Tu me espera aqui.

TEODORO: Márcia! Tu aqui?

MÁRCIA: Tu tá sozinho?

TEODORO: Claro, acabei de chegar, mas... Aconteceu alguma...
coisa?

MÁRCIA: Não. Eu vim trepar contigo.

MÁRCIA: Tu vai pra cadeia.

JÚLIO: Quando eu tinha dezoito anos, achava que as paredes da
casa da minha mãe eram brancas demais, e que, pra mudar o
mundo, a gente tinha que começar pelo lado de fora. Agora, que
tu tem dezoito anos, talvez ache as paredes do teu quarto
brancas demais, ou talvez esteja pensando em sair de casa. Não
sei. O teu futuro, o nosso futuro, provavelmente vai ser bem
diferente do que eu e a Márcia um dia imginamos. Mas Guida,
qualquer que seja o teu futuro, pode ter certeza: quando
quiser, volta pra casa e suja as paredes. A gente te ajuda.

CIRO: A gente não vai descer?

MÁRCIA: Nossa, tava com a cabeça longe. Vamos, claro

JÚLIO: Acho que a gente teve sorte. Tá um dia lindo.

GUIDA: É. E olha só que sol, hein!

JÚLIO: Sabe o que eu tava pensando? Pintar a casa.

CIRO: Iiih... sobrou.

MÁRCIA: Tu acha?

JÚLIO: An-hã. Tá vendo ali? Tá feia a pintura.

MÁRCIA: É, não tinha reparado, não... Ciro, vem cá, me ajuda
aqui com as malas...

CIRO: Quê? Claro.

JÚLIO: Guida... é sua? Peraí, ó. Voltem aí vocês dois. Tirar
uma foto.

GUIDA: Ah, legal. Vem, mãe.

JÚLIO: Aqui na frente, na frente da varanda. Aí.

MÁRCIA: Vem cá, Ciro. Do meu ladinho.

JÚLIO: Segura, hein. Já vai.

CIRO: Vamo, vamo, vamo.

MÁRCIA: Corre, corre, corre, corre, vai. Agora.

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(c) Carlos Gerbase, Alvaro Teixeira, Jorge Furtado e Giba
Assis Brasil, 2002-2003
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

01/06/2000

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