VENTRE LIVRE - pré-roteiro

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                   VENTRE LIVRE
                   PRÉ-ROTEIRO
                   VERSÃO 7 - 02/11/1993

                   de Ana Luiza Azevedo,
                   Giba Assis Brasil
                   e Rosângela Cortinhas

                   produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
                   para John D. and Catherine T.
                   Macarthur Foundation

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CENA 1 - SALA DE AULA

Uma menina assistindo a uma aula de Geografia. A professora
mostra no quadro um mapa do Brasil. Uma aula só de meninas presta
atenção. No seu caderno, num mapa da América do Sul mimeografado,
a menina pinta o Brasil de verde e amarelo. Entre outras alunas,
a menina vê a professora girar um globo e localizar o Brasil.

                   LOCUÇÃO FEMININA
                   Desde crianças, no colégio, nós aprendemos que
                   o Brasil é um país grande: o 5§ do mundo em
                   território, o 6§ em população. Nós aprendemos
                   a ter orgulho de ser um país exportador, o
                   celeiro do mundo, uma indústria pujante: a 10¦
                   economia do planeta.

CENA 2 - SAÍDA DA ESCOLA

A menina saindo da escola com suas colegas. Atrás delas, outras
meninas saem, até que a escola fica vazia. Então, uma servente
velha e preta fecha a porta da escola. A imagem aos poucos vai
perdendo a cor. Fade out.

                   LOCUÇÃO FEMININA
                   Só muito tempo depois é que fomos descobrir o
                   outro lado: o Brasil é o 52§ país em renda per
                   capita, o 74§ em qualidade de educação, o
                   último dos últimos em distribuição de renda.

CENA 3 - VALE TUDO

Imagens rápidas (table-top) do Brasil e dos brasileiros:
riquezas, misérias, contrastes. Homens e mulheres.

                   LOCUÇÃO FEMININA
                   O Brasil, sabemos agora, é enormemente
                   pequeno. Em nenhum outro lugar os ricos são
                   tão diferentes dos pobres, os brancos dos
                   pretos, os instruídos dos ignorantes, os
                   homens das mulheres. (pausa) Se um país pode
                   ser definido por uma palavra, a do Brasil é
                   certamente esta: DESIGUALDADE.

CENA 4 - IMAGENS DO BRASIL

O Brasil visto de cima: baía da Guanabara, o corcovado, prédios
no centro de São Paulo, favela no Rio, favela no Recife, o
pantanal, uma aldeia indígena. Sobre estas imagens, créditos
iniciais do filme.

                   Música.

O Brasil visto de passagem: no eixo monumental de Brasília, numa
rua em Porto Alegre, na BR-101, numa estradinha do interior,
passando por um acampamento de colonos sem-terra.

                   LOCUÇÃO MASCULINA
                   Cento e cinqüenta milhões de habitantes. Cento
                   e cinqüenta bilhões de dólares de dívida
                   externa. Cento e cinqüenta mil crianças morrem
                   por ano em conseqüência da fome.

O Brasil visto de perto: homens e mulheres numa fábrica, homens
numa obra, mulheres na colheita, homens e mulheres sem teto,
homens e mulheres numa frente de emergência, mulher lavando
roupa. O rio.

                   LOCUÇÃO FEMININA
                   Mas é neste país de desiguais que nós vivemos,
                   onde buscamos nossa identidade, onde tentamos
                   encontrar as nossas respostas.

CENA 5 - O QUE É MEU?

Imagens de mulheres, em suas casas, locais de trabalho, etc,
dizendo trechos de frases. Quase todas são mulheres simples,
pobres, mas as imagens devem conter alguma forma de beleza, de
esperança. Os trechos são pinçados de frases mais longas, mas
cercados de pequenas hesitações, pausas para reflexão, compondo
um ritmo sem pressa.

                   E os trechos são mais ou menos os seguintes:
                   "A minha vida..." "Minha família." "...meus
                   filhos..." "Minha casa..." "Minha vida." "Meu
                   marido, meu pai, meu patrão." "...meu
                   trabalho?" "A minha carreira!" "Meu país, né?"
                   "A minha vida, a minha saúde!" "O meu
                   tesouro!" "(...) Meu corpo."

CENA 6 - APRENDENDO

Sargentelli cercado por quatro mulatas fantásticas, ou Fausto
Fawcett com as suas loiras, ou um terceiro com as suas morenas ou
ruivas, tanto faz.

                   SARGENTELLI
                   A mulher brasileira é a mais bonita (gostosa,
                   tesuda, extraordinária) do mundo. É corpo, é
                   rosto, é pele, é sensibilidade. No Brasil,
                   mulher é produto de exportação.

                   DEPOIMENTO 1
                   Eu aprendi a ser mulher.

Um padre sorridente, de batina, fazendo gestos largos.

                   PADRE
                   A mulher, do ponto de vista católico, é a
                   Rainha do Lar, a dona de casa, a suprema
                   educadora dos filhos, o bastião da família.
                   Sendo o Brasil o maior país católico do
                   mundo...

                   DEPOIMENTO 2
                   Eu aprendi a ser mãe.

Um advogado ou juiz togado, em seu ambiente de trabalho, cheio de
livros pesados sobre a mesa.

                   ADVOGADO
                   A Consituição brasileira dá às mulheres
                   algumas vantagens que elas não têm em nenhuma
                   parte do mundo, como por exemplo a licença-
                   maternidade...

                   DEPOIMENTO 3
                   Eu aprendi a me controlar, a não mostrar a
                   minha sensação, a ter prazer só pra mim.

Imagens de meninas brincando de boneca, de casinha, etc. Menina
de rua com uma boneca suja e quebrada. Imagens de meninos jogando
futebol, brincando de guerra. Menino de rua aponta um revólver
imaginário pra câmara e dá um tiro.

OBSERVAÇÃO: Falta uma passagem adequada para a próxima seqüência,
e estes depoimentos "aprendendo" devem ser retomados em outros
momentos do roteiro.

CENA 7 - GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA

                   LOCUÇÃO FEMININA
                   Brasil. Maior país católico do mundo. Na hora
                   de condenar a pílula e a camisinha. Mas não na
                   hora de .... (falta trabalhar este texto. A
                   idéia é falar da hipocrisia da igreja no
                   tratamento com adolescentes)

Rostos de adolescentes. Locução dando nome, idade, número de
filhos.
                   LOCUÇÃO MASCULINA - Leandra, 14 anos, 1 filho.
                   Susana, 17 anos, 2 filhos. Debora, 15 anos 2
                   filhos. Adriana, 15 anos, 1 filho, grávida de
                   5 meses...

Continua seqüência de rostos de adolescentes. No final a imagem
de uma grande enfermaria com muitas adolescentes grávidas
esperando para ir para a sala de parto.

                   LOCUÇÃO MASCULINA: Brasil. 33 milhões de
                   crianças. 7 milhões de crianças vivendo nas
                   ruas. 13 milhões de adolescentes em situação
                   de miséria. 1 milhão de adolescentes grávidas
                   todos os anos.

Como no primeiro bloco de números, os letreiros sobrepostos se
acumulam, em sincronia com o texto. Ao final do texto temos,
sobre a imagem, os seguintes letreiros:

                           33 000 000
                            7 000 000
                           13 000 000
                            1 000 000
                   

Depoimentos de meninos e meninas contando a sua história. Último
depoimento de menino que a namorada ficou grávida fez um aborto.

CENA 8 - TÚMULOS

Fotos P&B de rostos de mulheres. Locução OFF dando nome, idade,
número de filhos e número de abortos.

                   LOCUÇÃO MASCULINA
                   Maria do Carmo, 31 anos, 5 filhos, 3 abortos.
                   Carmem, 29 anos, 2 filhos, 5 abortos.
                   Anelise, 30 anos, 5 filhos, 3 abortos. Eva, 38
                   anos, 7 filhos, 2 abortos. Maria, 16 anos 1
                   filho, 1 aborto. Cláudia, nenhum filho, 1
                   aborto. Carla, 4 filhos, 5 abortos.

Segue seqüência de fotos. Últimas fotos são fotos de mulheres em
túmulos. Última imagem é um plano geral de um cemitério.

                   LOCUÇÃO MASCULINA
                   Brasil, 1993. Em um ano, 12 milhões de
                   mulheres grávidas. 3 milhões de abortos. 2 e
                   meio milhões de abortos praticados sem
                   assistência médica. 45 mil mulheres mortas em
                   conseqüência de aborto. Em um ano.

Sobre a imagem de túmulos, os números são sobrepostos e se
acumulam, em sincronia com o texto. No final do texto temos os
seguintes números:

                           12 000 000
                            3 000 000
                            2 500 000
                               45 000

CENA 9 - ABORTO

Aborto. Frases curtas. Formas de provocar. Justificativas, mesmo
das religiosas. As condiçÕes precárias em que é feita a maioria
dos abortos no Brasil.

                   "Eu enfiava talo de mamona pro menino sair."
                   "Quando tava grávida, eu pulava corda, me
                   atirava de cima da escada." "Eu tomei chá de
                   quebra-pedra e daquela outra erva, sim, mas
                   não era pra matar o meu filho: era pra vir as
                   regras." "Eu sou crente, o pastor diz que não
                   pode, mas como é que ia botar mais um menino
                   nesse mundo, meu Deus?" "Quem me tirou foi uma
                   curiosa lá da vila. Ela me enfiou a sonda e
                   disse que em dois dias ia sair tudo." "Eu fiz
                   numa clínica particular. Dormi. Não vi nada. E
                   em duas horas tava em casa de volta como se
                   nada tivesse acontecido." "Eu sabia do risco
                   que eu 'tava correndo, mas o que é que eu
                   podia fazer? Não tinha dinheiro pra pagar uma
                   clínica."

DEPOIMENTO do médico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre
falando da simplissidade cirúrgica do aborto, a causa de tantas
mortes e por que não é descriminalizado.

                   Dr. HEITOR
                   O aborto é uma intervenção cirúrgica
                   extremamente simples. Quem tem U$ 300 vai a
                   uma clínica particular, dessas luxuosíssimas,
                   faz o aborto, em algumas horas está em casa
                   sem complicação nenhuma. Quem não tem precisa
                   recorrer a formas precaríssimas de provocar o
                   aborto. Formas que dificilmente não trazem
                   complicações: hemorragias, infecções e até
                   esterilização provocando a morte de milhares
                   de mulheres.
                   
                   LOCUÇÃO FEMININA
                   No Brasil, o aborto é crime. Um crime
                   praticado pelo menos duas milhões de vezes por
                   ano. O Estado, a Igreja e a Justiça fingem que
                   não vêem. Porque o aborto é crime, ele também
                   é desigual. Noventa por cento dos abortos
                   praticados no Brasil são feitos sem as mínimas
                   condições de higiene. 45 mil mulheres morrem
                   por ano porque o aborto é crime.

Mulher com o corpo bem silhuetado para não ser identificada
descreve todas as tentativas de fazer um aborto: primeiro a
patroa lhe deu uma injeção. Como não desceu, tomou seis
comprimidos de citotec. Mesmo assim não veio, então colocou
sonda. Quando começaram as cólicas ficou com medo e tirou. Depois
de alguns dias começou uma febre muito alta. Quase morreu. Ficou
internada vários dias para tomar antibiótico. Agora tá grávida de
novo. Vai fazer uma cesária e ligar. O Adão não quer ter mais
filho de jeito nenhum. A crise tá muito forte.

CENA 10 - ESTERILIZAÇÃO

Seqüência de fotos de mulheres num estúdio com fundo preto. Na
primeira foto apenas o rosto de uma mulher. A cada nome citado
mais uma mulher aparece. No final do texto o estúdio deve estar
completamente lotado de mulheres o plano mais aberto possível sem
espaços vazios. Locução dizendo nome, idade, número de filhos e
ESTERILIZADA.
 
                   LOCUÇÃO MASCULINA - Rosineide, 18 anos, 2
                   filhos, esterilizada. Vera, 19 anos, 2 filhos,
                   esterilizada. Josenita, 17 anos, nenhum filho,
                   esterilizada. Maria Lúcia, 21 anos, cinco
                   filhos, esterilizada. Ilda, 40 anos, 5 filhas,
                   esterilizada. Carolina, 19 anos, 3 filhos,
                   esterilizada...

Primeira locução vai a BG.

                   LOCUÇÃO MASCULINA: Brasil. 150 milhões de
                   habitantes. 76 milhões de mulheres. 40 milhões
                   de mulheres em idade fértil. 18 milhões de
                   mulheres em idade fértil, mas esterilizadas.

Ao final do texto, sobre a imagem, os letreiros:

                           150 000 000
                            76 000 000
                            40 000 000
                            18 000 000

Bloco de depoimentos sobre as razões por que as mulheres fazem a
esterilização:

                   "Eu criei dez filhos, se pudesse não teria
                   tido nenhum, adoraria ter feito a ligação".
                   "Eu não queria ter mais filhos, liguei". Eu
                   queria que meu marido fizesse, mas ele não
                   quer"."Isto é coisa de mulher"."Eu precisava
                   de um emprego e na fábrica eles exigiam que as
                   mulheres fossem esterilizadas. Me pagaram a
                   esterilização. Eu fiz. Não tenho nenhum
                   filho"."Eu ajudo as mulheres a conseguir a
                   esterilização porque se elas não se ligarem
                   não param de ter filhos e depois não tem nem
                   como sustentar as crianças". "Eu sou grata a
                   Dona Maria do Zequinha, foi ela quem me
                   conseguiu a ligação. Depois fui eu que ajudei
                   ela. Consegui uns votos pra ela ser
                   vereadora".

O bloco termina com depoimento de Vera do Morro falando que fez a
esterilização quando tinha dezenove anos e era convicta. Mas se
naquela época tivesse a informação que tem hoje sobre as formas
de evitar não teria feito. "Pobre é levado a ter convicção de que
não quer ter mais filhos.... E o pior é que a gente vai atrás:
vai atrás dos políticos que querem acabar com os pobres e ganhar
voto a nossas custa, vai atrás dos médicos que dizem que a gente
não tem mais condições de ter filhos e vai atrás dos maridos que
dizem que é a gente que tem que evitar os filhos. E eles por que
é que não se esterilizam?"

                   LOCUÇÃO MASCULINA: No Brasil 45% das mulheres
                   em idade fértil são esterilizadas, enquanto
                   dos homens apenas 3% (este número não foi
                   checado).

Bloco de homens falando por que não querem se esterilizar:

                   "Isto é coisa de mulher." "A mulher é que fica
                   grávida, ela é que tem que evitar a gravidez."
                   "Eu não fiz vasectomia porque eu posso querer
                   ter mais filhos depois, com outra mulher. A
                   mulher se se separa fica com os filhos. Por
                   que vai querer ter mais com outro homem?" "Eu
                   não quis fazer porque dizem que o homem fica
                   brocha."

CENA 11 - PAPÉIS
 
Depoimentos curtos de homens e mulheres sobre a diferença entre
ser homem e ser mulher. Como no roteiro anterior, aqui deve ser
trabalhada as diferenças biológicas e culturais. Tenho ainda que
desenvolver textos, imagens e tipos de depoimentos  sempre
lembrando que no Brasil o homem é dono do campinho.

CENA 12 - CONCLUSÃO

Imagens de mulheres grávidas, mulheres com filhos, adolescentes.

                   Ela veio da barriga de sua mãe para o país dos
                   desiguais. Aprendeu a se fazer desejada, e até
                   desejou. Foi amada, comida, assediada ou
                   estuprada - não importa muito. Pegou barriga,
                   e se viu mãe quando ainda era filha, irmã,
                   quase namorada, quase sempre abandonada. Tirou
                   o que tinha na barriga do jeito que deu, do
                   jeito que encontrou, do jeito que soube. Na
                   luta, no caminho, na vida se fez mulher,
                   talvez amante, quase sempre mãe. Mãe de muitos
                   filhos e filhas que nasceram, como ela, no
                   país dos desiguais. Então ela tirou a própria
                   barriga, sua possibilidade de vida, sua
                   diferença. O país não ficou menos desigual do
                   que era. Ela não ficou mais igual do que era.
                   Mas seus filhos e filhas talvez descubram um
                   dia que diferença e desigualdade não são a
                   mesma coisa. Que o país dos desiguais é só a
                   caricatura do mundo dos desiguais. E que, para
                   este mundo ser mais feliz, não se precisa de
                   menos filhos e filhas, ou menos barrigas
                   geradoras de filhos e filhas, mas de encher as
                   barrigas, todas as barrigas, com mais
                   igualdade.

*** APENAS UMA REFLEXÃO QUE DEVE ESTAR NO ROTEIRO:
A lógica que criminaliza o aborto é a mesma que comanda a
esterilização em massa. As mulheres, e especialmente as mulheres
pobres, devem ser convencidas a não ter filhos, e em último caso
devem ser impedidas de ter filhos. As mulheres não podem optar
pela possibilidade de ter ou não cada filho, em cada momento, em
cada circunstância. Assim como a laqueadura é uma garantia, o
direito de opção é um perigo: pode fazer as pessoas pensarem que
são donas de seu próprio corpo; pode questionar a "verdade
absoluta e intocável" de que, para melhorar o mundo, deve-se
diminuir o número de pessoas, e especialmente o de pessoas
pobres; pode sugerir que existem outras formas de diminuir a
pobreza - por exemplo, distribuindo melhor a riqueza; pode
colocar em risco a "nova ordem mundial", a ordem de um mundo
desigual do qual o país dos desiguais é apenas uma caricatura mal
feita.

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(c) Ana Luiza Azevedo, Giba Assis Brasil e Rosângela Cortinhas,
1993-94.
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

02/11/1993

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