VENTRE LIVRE- roteiro de montagem

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                   VENTRE LIVRE
                   ROTEIRO DE MONTAGEM
                   VERSÃO 12 - 02/06/1994

                   de Ana Luiza Azevedo,
                   Giba Assis Brasil
                   e Rosângela Cortinhas

                   produção: Casa de Cinema de Porto Alegre
                   para John D. and Catherine T.
                   Macarthur Foundation

*******************************************************************

CENA 1 - SALA DE AULA

Uma menina assistindo a uma aula de Geografia. A professora
mostra no quadro um mapa do Brasil. Uma turma só de meninas
presta atenção. No seu caderno, num mapa da América do Sul
mimeografado, a menina pinta o Brasil de verde e amarelo. Entre
outras alunas, a menina vê a professora girar um globo e
localizar o Brasil. Toda a cena em leve slow.

                   Música leve, nostálgica.

                   TEXTO 1 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Desde criança, no colégio, eu aprendi que o
                   Brasil é um país grande: o quinto do mundo em
                   território, o sexto em população. Eu aprendi a
                   ter orgulho de viver no celeiro do mundo, o
                   país do futuro, o gigante adormecido: a décima
                   economia do planeta.

                   SOM DA SINETA

CENA 2 - SAÍDA DA ESCOLA

A menina saindo da escola com suas colegas. Atrás delas, outras
meninas saem, até que a escola fica vazia. Então, uma servente
velha e preta fecha a porta da escola.

                   TEXTO 2 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Só muito tempo depois é que eu fui descobrir
                   um outro lado: o Brasil é o qüinquagésimo-
                   segundo país em renda per capita, o
                   septuagésimo-quarto em qualidade de educação,
                   o último dos últimos em distribuição de renda.

CENA 3 - VALE TUDO

                   Música muda subitamente de ritmo.

120 imagens (table-top) do Brasil e dos brasileiros: riquezas,
misérias, contrastes. Homens e mulheres. Futebol, carnaval,
garimpo, indústria, soja, favela, praia, floresta, chacina,
negros, índios, Carandiru, rostos sorrindo, rostos olhando,
rostos desconfiados, um rosto jovem e expressivo de mulher com
uma palavra pintada: CHEGA!

                   TEXTO 3 - LOCUÇÃO FEMININA
                   O Brasil, agora eu sei, é enormemente pequeno.
                   Se um país pode ser definido por uma palavra,
                   a do Brasil é certamente esta: DESIGUALDADE.
                   Em nenhum outro lugar os ricos são tão
                   diferentes dos pobres, os brancos dos pretos,
                   os instruídos dos ignorantes... E os homens
                   das mulheres?

CENA 4 - IMAGENS DO BRASIL

O Brasil visto de cima: vista aérea da floresta Amazônica, vista
aérea dos prédios no centro de São Paulo.

                   Música grandiosa e repetitiva. Meio Wagner,
                   meio Philip Glass, meio Leo Henkin.

O Brasil visto de passagem: no centro de uma grande cidade, na
saída de Porto Alegre, numa favela em Recife, passando por um
acampamento de colonos sem-terra.

                   TEXTO 4 - LOCUÇÃO MASCULINA
                   Cento e cinqüenta milhões de habitantes. Cento
                   e quarenta bilhões de dólares de dívida
                   externa. Cento e cinqüenta mil crianças morrem
                   por ano em conseqüência da fome.

1° BLOCO DE NÚMEROS: Sobre a imagem, e em sicronia com o texto,
aparecem letreiros com os números citados. Quando um número
surge, o anterior permanece. Ao final do texto temos, sobre a
imagem, os seguintes letreiros:

                           150 000 000
                         140 000 000 000
                             150 000

O Brasil visto de perto: homens trabalhando - só homens. Numa
fábrica, numa obra, na colheita, num engenho. Uma dupla de
violeiros canta algo sobre a "beleza da mulher". Homens e
mulheres sem teto, brigando. Uma menina com olhar muito triste
ergue o rosto, percebendo a câmara.

                   TEXTO 5 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Neste país de desiguais onde eu vivo, qual é o
                   meu lugar? Qual é a minha identidade? Quais as
                   minhas respostas? As minhas desigualdades?
                   (pausa) O que é meu nesse país?

CENA 5 - O QUE É MEU?

Imagens de mulheres, em suas casas, locais de trabalho, etc,
dizendo trechos de frases. Quase todas são mulheres simples,
pobres, mas as imagens devem conter alguma forma de beleza, de
esperança. Os trechos são pinçados de frases mais longas, mas
cercados de pequenas hesitações, pausas para reflexão, compondo
um ritmo sem pressa.

SÔNIA
(M1) A minha vida...

CLÁUDIA
(M9) A minha profissão...

ZEZÉ
(M19) Pros meus filhos eu quero (diferente)

MARILDA
(M2) A minha família é/

HILDA
(M20) A minha casa, adoro a minha casa.

MARIA DO CARMO
(M21) Meu mesmo não tenho nada.

KARINA
(M6) O meu marido...

LUCI
(M16) Ah, o meu país/

HILDA
(M23) Porque dentro do meu próprio casamento,

MARLUCE
(M22) A minha vida é muito (problemática)

LUCIANA
(M24) (só que) era um desejo meu, muito

CARMEN
(M25) Ah, o meu maior sonho assim

ADRIANA
(M26) O meu sonho é ter um filho, de cuidar do meu filho...

MARLOVE
(M27) Sonho, sonho?

HILDA
(M29) Minha saúde.

MARGARETE
(M15) O meu corpo...

MARIA DO CARMO
(M28) Corpo? É, o corpo é meu.

MARISA
(M14) O corpo é o meu, eu é que sei o que eu sinto.

CENA 6 - CORPO

Uma dança sensual, executada por uma carnavalesca sobre um fundo
neutro. Intercalada com imagens de mulheres trabalhando,
carregando água na cabeça, lavando roupa, louça, cozinhando
grávida com filho no colo, carregando pedras numa frente de
emergência, pendurando roupa na cerca.

                   Música bem ritmada, meio samba, meio batucada,
                   meio Leo Henkin.

CENA 6-A - ESTERILIZAÇÃO: PRÉ

CARMEN (SILHUETA)
(G06) Às vezes quando acontecia um lance assim, eu achava: não
vai ser nesse dia que eu vou ficar grávida. Pode ser como também
não pode. (G07) Eu pensava sim, né, meu Deus, será que eu vou
engravidar? Mas aí eu botava na minha cabeça um positivo assim:
não, eu não vou engravidar.

HILDA
(E19) Todos os anos, assim, quando o meu corpo tava pe, querendo
pegar uma forma, sabe, eu entrava no desespero. Aí quando eu via
eu tava grávida.

MARISA
(E99) Quando um fazia um ano e um mês já... um outro neguinho já
vinha vindo. Quer dizer que eu não tinha descanso nunca. E o meu
corpo, como é que fica?

CENA 7 - ESTERILIZAÇÃO: VOLUME

Seqüência de imagens estáticas de mulheres numa escadaria não
identificada, vista apenas como um fundo de listas paralelas. Na
primeira imagem, apenas uma mulher no centro do quadro. A cada
nome citado mais uma mulher aparece. No final do texto a
escadaria deve estar completamente lotada de mulheres, o plano
mais aberto possível, sem espaços vazios. Locução dizendo nome,
idade, número de filhos e ESTERILIZADA.

                   TEXTO 6 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Rosineide, dezoito anos, dois filhos,
                   esterilizada. Vera, dezenove anos, dois
                   filhos, esterilizada. Josenita, dezessete
                   anos, nenhum filho, esterilizada. Maria Lúcia,
                   vinte e um anos, cinco filhos, esterilizada.
                   Hilda, quarenta anos, cinco filhas,
                   esterilizada. Lourdes, vinte e quatro anos,
                   três filhos, esterilizada. (BG) Carolina,
                   dezenove anos, três filhos, esterilizada.
                   Marina, trinta e cinco anos, quatro filhos,
                   esterilizada. Dejane, dezessete anos, três
                   filhos, esterilizada.
                  
Quando a primeira locução vai a BG, entra a segunda:

                   TEXTO 7 - LOCUÇÃO MASCULINA
                   Brasil. Cento e cinqüenta milhões de
                   habitantes. Setenta e seis milhões de
                   mulheres. Quarenta milhões de mulheres em
                   idade fértil. Onze milhões de mulheres em
                   idade fértil, mas esterilizadas.

2° BLOCO DE NÚMEROS: Como no primeiro, os letreiros sobrepostos
se acumulam, em sincronia com o texto. Ao final do texto, sobre a
imagem, os letreiros:

                           150 000 000
                            76 000 000
                            40 000 000
                            11 000 000

CENA 8 - VERA E IVONETE

IVONETE
(E01) Meu nome é Ivonete dos Santos Silva, tenho (OFF) três
filhos e a terceira eu tive com dezenove. (QUADRO) Aí foi quando
eu fiz a ligação, né, quando desliguei.

VERA
(E02) Meu nome é Vera Guedes, tenho trinta anos, tenho duas
filhas, né? Tive três gravidezes, me esterilizei com dezenove
anos.

Chicote 1.

IVONETE
(E03) Eu vivia muito opressada, o marido não era boa pessoa, né,
nós não se dava bem, não vivia bem. Aí eu desisti a fazer isso
aí, a ligação mesmo.

VERA
(E04) Fiquei muito chateada quando eu fiquei grávida da terceira
vez, tava, era a minha terceira gravidez, a minha filha mais nova
tava com um ano e meio, né? Aí eu optei pela ligação.

Chicote 2.

IVONETE
(E05) E hoje, pra vida de antes, dez anos atrás, faz dez anos já
que eu tou separada do meu ex-marido. Pra hoje eu tou feliz na
minha vida. Vivo muito bem com esse (OFF) meu segundo marido. Ele
dá muita atenção a mim e a meus filhos também.

VERA
(E06) Eu participo do grupo de mulheres. Não é? O grupo de
mulheres abre muito canal pra mim, pra mim conhecer várias
coisas. Então, por exemplo, eu conheço todos os métodos
contraceptivos e tenho acesso, não é, a eles, né?

IVONETE
(E07) Olha, me arrependi. (...) Me arrependi depois que fiz,
depois que fiz a ligação. Se voltasse de novo, eu preferia, eu
queria, eu preferia não, eu queria ter um filho dele, né. Um ou
dois ainda eu queria ainda.

VERA
(E08) Não me arrependo, não. Tem uma coisa que é: quando eu, com
dezenove anos, eu achava que eu tava fazendo a opção pela minha,
eu achava que era eu que tava fazendo a opção mesmo, né? Só que
eu não conseguia fazer a leitura que eu faço hoje, que nós somos
levadas a fazer a ligação. Não é, com dezenove anos ninguém tem
condição de tomar uma decisão que é pro resto da vida, né?

IVONETE
(E09) O problema é que eu não pensava nisso aí não, não que eu
separei do meu marido eu tava com dezenove anos, (-) não pensei
logo em arrumar outro marido, né, por isso que eu nem me liguei
nisso aí.

Chicote 3.

VERA
(E10) Recentemente, eu me lembro que uma amiga minha dizia assim:
Vera, mas você não fez a opção. E eu dizia: eu fiz, eu fiz, eu
fiz. Eu não (-) conseguia compreender (-) que não era uma opção
minha. (E12) Por que as mulheres se esterilizam? (E13) Porque os
filhos é só, é só a mãe que toma conta, né, elas têm que
trabalhar não têm com quem deixar, ganham pouco, não tem escola,
não tem creche. Então essas coisas faz com que a gente não queira
mais ter filho, né? Não é a dor, você, é difícil você encontrar
uma que diga assim: não, é a dor de parir que me fez eu ligar.
Não é? É a situação que faz você ligar, a situação em que você
cria os teus filhos.

Chicote 4.

IVONETE
(E11) Então? É, alguém me disse isso aí mesmo, lá no hospital
mesmo: ah, Ivonete, isso aí com o tempo você se quiser você pode
fazer novamente. Aí quando fui falar, voltei pro médico depois de
cinco anos - não podia nem falar isso aí mas vou falar -, eu
voltei pro médico que me ligou aí ele falou que não tinha mais
jeito. Ele falou: o que eu faço tá bem feito, não tem esse
negócio de eu fazer e desfazer novamente não, ele falou pra mim.

VERA
(E15) Se eu hoje não tivesse ligada, eu por exemplo eu poderia
usar o diafragma ou outro método que eu quisesse. Não é? Porque
eu tenho a informação e tenho poder aquisitivo de adquirir essas
coisas. Na época eu não tinha.

IVONETE
(E14) É, se eu não fosse ligada seria mais diferente na vida de
nós hoje. Porque a gente com um filho de um casal, né, casal meu
e dele, meu filho e dele é uma coisa mais... Fica mais legal
dentro de uma casa também né? (E102) (OFF) Aí nós conversando...
Um dia aí ele falou: (E16) Ai, amor, se tivesse um filho de nós,
se eu pudesse fazer um filho aí, meu deus, (QUADRO) era a minha
felicidade e a sua também, falou pra mim. Aí eu falei: é Edson,
também eu queria, queria ter uns dois, uns três se você quisesse.
(E09A) E agora... é tarde né?

PASSAGEM 1: Foto PB de Ivonete, com o letreiro TARDE / TOO LATE
se deslocando no quadro.

CENA 9 - FRENTE DE EMERGÊNCIA: INTRODUÇÃO

Um enorme buraco na terra seca do agreste nordestino. FRENTE DE
EMERGÊNCIA. Pás cavando a terra. Mulheres tirando a terra e
enchendo um carrinho de mão. Uma mulher carregando o carrinho
cheio de terra. Em todo o buraco, são só mulheres trabalhando.

                   TEXTO 8 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Pombos, agreste nordestino. Uma das muitas
                   Frentes de Emergência criadas pelo governo do
                   estado de Pernambuco. Vinte e cinco mulheres
                   cavam um enorme buraco na terra seca. Talvez
                   um dia, quando chover, o buraco se transforme
                   em um açude. Enquanto a chuva não vem, elas
                   continuam cavando. Saem de um buraco e entram
                   noutro. Dessas vinte e cinco mulheres, apenas
                   quatro não são esterilizadas. Vinte e uma
                   fizeram ligação de trompas.

CENA 9-A - FRENTE DE EMERGÊNCIA: DEPOIMENTOS

DEILDA
(E65) Eu fiz porque eu quis mesmo, não tinha condições de criar
muito filho. Pobre não tem condições de criar muito filho, não.

TERESINHA
(OFF) Eu fiz. (E66) (QUADRO) Eu fiz porque eu era muito doente,
né? Tive problema de hemorragia, tive nove filhos, foi nove
hemorragias que eu tive.

LAURITA
(E67) Porque eu sofria muito. Quando eu casei, o meu sonho era
ser mãe. Mas depois que, quando eu fui mãe pela primeira vez, eu
achei uma coisa ridícula, sabe? Horrorosa, sofri muito.

TERESA
(E70) (OFF) Queria que deus (QUADRO) me desse todo ano um filho,
porque se eu, deus só dá a quem tem condições de criar. E
qualquer um a gente cria. Não vê que os filhos dos pobres são
todos gordinhos. Minha mãe, minha irmã mesmo tem doze filhos.
Você chega lá é tudo gordo, tudo forte. Uns comem bem, (OFF)
outros comem mal, e resolve. (QUADRO) E deus só dá a quem tem
condições de criar.

MARIA
(E68) Eu me casei pra ser mãe, mas me arrependi. Se soubesse que
ter filho era tão ruim, que ser mãe sofria tanto, eu não tinha
tido, tinha casado não, tava sozinha no mundo.

TERESA
(E70A) Eu tenho oito. (...) Oito. E queria ter todo ano um, só
que deus não me dá.

LISA (OFF)
(E103) Deus me livre de ter filho todo ano. A gente fica seca!

LAURITA
(E73) Ô xente, a felicidade maior da vida foi eu ter feito essa
ligação, porque, (E74) eu vivia assim muito preocupada no, no,
sei lá, assustada, sabe? E depois que eu liguei foi completamente
uma tranqüilidade.

DEILDA
(E75) Achei bom demais.

MARIA (OFF)
(E100) Eu mesma gostei.

DEILDA
(E75A) Porque brinca à vontade e não pega mais nada.

TODAS
(risadas, confusão)

CENA 9-B - FRENTE DE EMERGÊNCIA: CONCLUSÃO

Rostos das mulheres na frente de emergência, falação e risadas de
fundo.

                   TEXTO 9 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Mercado de trabalho: oito horas por dia
                   cavando a terra. Salário: Quatorze dólares e
                   meio - por mês! No Brasil, uma cartela de
                   pílula anticoncepcional custa em média cinco
                   dólares. A camisinha custa um dolar e meio
                   cada uma. O diafragma, oitenta dólares. A
                   colocação do DIU, duzentos e trinta dólares. E
                   a ligação das trompas pode ser de graça.

CENA 10 - ESTERILIZAÇÃO E VOTO

VERA
(E76) A gente sabe que a questão da ligação de trompas aqui no
Recife também é muita coisa de politicagem por troca de votos. Se
você chega aqui numa época de eleição, você vai encontrar
maciçamente as mulheres indo pra maternidade como boi vai pro
abate, né, assim. Muita gente em troca de votos.

CREUZA
(E77) Eu consegui fazer pedindo ordem à vereadora. (OFF) Maria de
Zequinha.

MARIA DE ZEQUINHA
(E78) No caso da esterilização, quando me procuram, às vezes, com
critério, né? Existe aquela determinada pessoa que realmente
precisa de uma esterilização.

CREUZA
(E77A) Eu pedi a ordem a ela pra ligar, que eu não tinha
condições de fazer uma ligação. Aí ela me deu.

MARIA DE ZEQUINHA
(E78) No caso, se o médico concordar, depois do dé, décimo filho
em diante.

CREUZA
(E80) Eu tenho dois, tenho um casal.

MARIA DE ZEQUINHA
(E101) Mas tem que haver um critério pra isso, né, pra ver, o
médico vai ver, vai examinar, vai conversar.

CREUZA
(E81) Não, só pediu o voto. Só isso.

DEILDA
(E86) Eu mesma consegui a minha ganhando também. Pedi à mulher do
prefeito e ela me deu uma ordem. Fui e fiz minha ligação. Quem
pagou tudo foi ela lá.

TERESINHA
(E85) (OFF) A minha eu consegui porque o prefeito me deu. (E91)
(QUADRO) A gente votemos mesmo porque a gente desejava votar
nele, mas que ele pedisse não, né?

FREDERICO
(E87) Vejamos bem. As mulheres que me procuram, normalmente,
(OFF) são mulheres de poder aquisitivo lá embaixo. São mulheres,
(E88) que me pedem (QUADRO) pra que seja feito uma ligação.
Logicamente, eu não sou médico, não posso fazer. Mas aconselho e
peço a pessoas ligadas, amigas, que as auxiliem, essas pessoas,
gratuitamente.

ZULEIDE
(OFF) (E82) Eu consegui isso com Roberto Lorena. (E83) Vereador
aqui de Pombos. (E89) Ele me deu o número da chapinha dele e
sempre que votei com ele e graças a deus, que deus olhou por ele
e ele ganhou.

FREDERICO
(E90) Uma mulher que tá com mais de seis filhos, essa mulher vai
ter mais filhos pra quê? Pra deixar no mundo, ser mais um menor
abandonado?

ADRIANA
(E56) Treze anos eu fiquei grávida. (E57) Chegou uma médica e o
médico pra mim perguntou: você ainda quer ter filho? Aí eu fiz:
quero não. Aí ele fez: então vamos fazer uma ligação? Eu nem tava
por dentro de o que era ligação. Aí eu fiz: como é? Ele fez: não,
a gente aproveita a sua cesária, que o seu parto não vai ser
normal, então a gente faz e você não vai ter mais filho. (E58)
você é uma menina que vivia na rua, então você vai ter muita
dificuldade. Eu fiz: não, quem sabe que daqui pra frente eu tenha
um futuro melhor, possa ter o meu lar, ter minhas coisas e ter
vontade de ter outro filho, porque quem tem um não tem nenhum.

FREDERICO
(E60) E para o próprio INAMPS, (E61) seria até barateado ao, ao,
ao INAMPS isso, ao Governo. Por quê? Porque quando você faz a
ligação de uma mulher, certo, essa mulher não vai ter mais
filhos, em primeiro lugar. Segundo lugar: não vai ter uma criança
pra ficar mais doente, ela não vai ter mais um parto, certo, e
tudo isso vai ser em certo ponto uma economia.

PASSAGEM 2: foto PB de Frederico, com o letreiro ECONOMIA /
ECONOMY se deslocando no quadro.

CENA 11 - ESTERILIZAÇÃO E EMPREGO (Eliminada)

CENA 12 - ESTERILIZAÇÃO E DESIGUALDADE

Imagens de maternidade: mãe dando banho no filho, amamentando,
levando filho na escola, caminhando na vila com muitos filhos em
volta... Travelling no corredor da Santa Casa, onde várias
grávidas esperam sua vez numa fila interminável.

                   TEXTO 10 - LOCUÇÃO FEMININA
                   De um lado um direito reprodutivo, a vontade
                   consciente de parar de ter filhos - arriscada,
                   porque definitiva, mas tomada por opção real,
                   radical, concreta. De outro lado, uma barganha
                   por votos: um serviço grátis para quem nunca
                   teve nada de graça, uma vantagem oferecida
                   como salvamento, a possibilidade de um
                   emprego. Para algumas um direito, para outras
                   uma obrigação. No Brasil, a esterilização é
                   desigual.

CENA 13 - VASECTOMIA: PRÉ

VERA
(E93) Na época que eu liguei era muito mais fácil. Você
encontrava três ou quatro médicos que topavam fazer a ligação
numa pessoa de dezenove, dezoito anos. (IMAGENS DE NOTÍCIAS DE
JORNAL SOBRE AS CPIs) (E94) Eles hoje têm um obstáculo me parece.
Porque houve uma CPI da esterilização aqui em Pernambuco, né?
(E95) Então, hoje se tem uns critérios. Eu sei de maternidade que
tem uns critérios de seleção pra se fazer uma ligação de trompas
nas mulheres, né?

CENA 13-A - VASECTOMIA: CRITÉRIOS

Pessoas na rua, homens e mulheres, caminhando, comprando,
vendendo, passando. Um ônibus passa e cobre a última imagem.

                   TEXTO 11 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Critérios de seleção. Critérios de classe.
                   Critérios de gênero. Vinte e sete por cento
                   das mulheres brasileiras em idade fértil já
                   estão esterilizadas. Dos homens, menos de  um
                   por cento.

CENA 13-B - VASECTOMIA: DEPOIMENTOS

VLADILSON
(E40) (OFF) É difícil, viu? Encontrar um homem que faça uma
vasectomia. (E41) (QUADRO) Não, eu, eu não faria, não. Faria não,
porque eu, eu levaria pro lado machista, sabe? Isso é mais coisa
pra mulher do que... Sei, não... De repente eu não posso nem
explicar a você, só pra mim mesmo, entendeu?

MARLOVE
(E38) Pra mim, eu acho que se a mulher não quer, o homem até
podia se cuidar, né? Mas aqui em casa não dá.

ARISTIDES
(E42) É que eu tenho medo até de agulha, de, de qualquer agulha,
então fazer vasectomia tá descartado pra mim.

MARLOVE
(E38A) (risadas) Então, tá, então tem que ser eu mesma.

VERA
(E43) Tem a questão de achar que quem se esteriliza não é mais
homem. Aqui no Nordeste tem muito esta coisa, né?

LECO
(E44) É, o, eu penso que pode diminuir a potência sexual. Isso aí
eu tenho muito medo.

AMARO
(E48) Não, não... esse negócio de eu fazer ligação e a mulher
ficar - não, quem faz é ela. Eu não, né? (-) Bom, eu não sei, né,
acredito que ela... Ela tem mais capacidade de fazer, né, ela já
é mais acostumada, né? (-) Não, homem não é pra ser cortado não,
né?

ALEMÃO
(E50) Eu acho que sim, eu até, eu fa, eu faria vasectomia, desde
que a relação da gente fosse uma relação assim, que tivesse
mais... como é que eu vou te dizer...

TACIANA E VLADILSON
(E51) Olhe, se o homem, ele procurasse direitinho olhar o lado da
mulher, o quanto a mulher sofre... (VLADILSON: Hum...) ... eu
acho que ele faria, sim. (VLADILSON: Não sei...) Eu acho que se,
realmente, um homem que ele vê o sofrimento da mulher, acompanha
as gravidez, vendo os meus problemas, acho que ele tinha tomado,
né, a iniciativa.

VERA
(E52) Mas também por que esterilizar os homens, né? Eu acho que
não deveria esterilizar nenhum dos dois, deveria ter meios de se
evitar, tanto pra um como pra outro. Porque é uma maneira radical
também, né, a esterilização do homem. Ele também pode ser que
daqui a dois anos ele queira ser pai. E daí? Não vai ser, né? Por
conta dessa, dessa ligação, dessa esterilização dele. Eu acho que
a esterilização não é, não é caminho pra nenhum, nem pro homem
nem pra mulher.

PASSAGEM 3: foto PB de Vera, com o letreiro CAMINHOS / WAYS se
deslocando no quadro.

CENA 14 - EMERGÊNCIA

Imagem em movimento, a princípio desfocada, depois nítida: o teto
de um corredor de hospital, as luzes passando, do ponto de vista
de uma paciente sendo carregada em uma maca. Em primeiro plano,
um vidro de soro pendurado e balançando. Quando o corredor está
terminando, câmara corrige para baixo, enquadrando a parte
superior da porta de EMERGÊNCIA. As duas folhas da porta se abrem
bruscamente e dois enfermeiros se aproximam. Dentro da sala de
emergência, os enfermeiros retiram a paciente da maca e a colocam
numa cama ginecológica.

Os olhos da paciente se fecham.

Fade out.

O médico se aproxima da paciente e começa a agir com muita
rapidez, demonstrando a gravidade da situação. Uma equipe médica
realiza um procedimento de curetagem.

MÉDICO (OFF)
(A91) Só aqui nesse hospital nós atendemos cerca de mil casos por
ano de complicações de aborto. Porque grande parte desses abortos
são feitos por pessoas desqualificadas, e é por isso que
acontecem tantas complicações: pela imperícia e pela negligência
dos aborteiros. As complicações mais comuns são a infecção, a
hemorragia e a perfuração uterina, que pode levar inclusive à
esterectomia, às vezes em tenra idade. Já a infecção pode ser
desde leve até muito grave, em casos extremos levando ao choque e
à morte. (pausa) Seja qual for a complicação, e mesmo quando a
intervenção é evidente, a grande maioria das mulheres não admite
ter provocado o aborto.

Os olhos da paciente, fechados. Depois de um tempo, abrem-se. Ela
olha em volta.

CENA 15 - JULGAMENTO: ACUSAÇÃO

Uma sala de tribunal, vazia. A voz do juiz ecoa pela sala.

JUIZ (OFF)
(A00) Maria Aparecida Ferreira e Marlene Pereira da Silva foram
pronunciadas, respectivamente, como incursas nas penas dos
artigos cento e vinte quatro e cento e vinte seis do Código
Penal. É que a primeira acusada consentiu em que a segunda lhe
provocasse o aborto, fato que ocorreu no dia dois de novembro de
mil novecentos e oitenta e nove, nesta cidade do Recife.

ADVOGADO BARBA
(A01) (OFF) Olhe, eu diria que esse processo (QUADRO) tem todas
as características de, de um processo assim que exala um forte
cheiro de hipocrisia. Porque o aborto, apesar de estar
formalmente referido no Código Penal como, como sendo uma figura
típica, ou seja, como, como sendo um crime do ponto de vista
jurídico, do ponto de vista formal, mas na sua essência, o
aborto, na verdade, ele não é uma figura criminosa.

CARMEN (SILHUETA)
(A26) Bá, daí eu tentei fazer de tudo, só não tomei a injeção.
Mas eu tomei um monte de remédio que eu nunca vi, que eu nunca
conheci, que eu achei na casa dessa senhora onde eu trabalhava.
Aí eu tomei... ah, tomei tanta coisa, tomei chá.

DENISE
(A02) Quando eu era estudante na Universidade, eu participava de
um grupo de mulheres. E em função disso, muitas mulheres
estudantes, de classe média, algumas de classe média alta, ricas,
procuravam o grupo pra contar as suas experiências de aborto.
(A03) E por esse motivo, em seguida assim a gente foi sabendo,
tendo conhecimento do, de como eram as clínicas em Porto Alegre,
onde elas se localizavam, quem eram os médicos que faziam... que
tipo de aborto faziam, se era por sucção, se era por curetagem...
(A04) Inclusive se era mais barata ou mais cara, mais popular ou
mais sofisticada, como é que era. E era completamente sabido, né,
acessível como informação para a maioria das mulheres. Até hoje é
assim... As mulheres de classe média (A05) que têm acesso a um
pouco de informação, de dinheiro, de cultura, sabem onde fazer
aborto, por quanto e de que forma.

CENA 16 - ABORTO: VOLUME

Fotos de rostos de mulheres. Locução OFF dando nome, número de
filhos e número de abortos.

                   TEXTO 12 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Maria do Carmo, cinco filhos, quatro abortos.
                   Luci, três filhos, cinco abortos. Cláudia,
                   nenhum filho, um aborto. Marlove, cinco
                   filhos, três abortos. Margarete, cinco filhos,
                   nove abortos. Fábia, nenhum filho, um aborto.

Segue seqüência de fotos. Últimas fotos são fotos de mulheres em
túmulos. Última imagem é um plano geral de um cemitério.

                   TEXTO 13 - LOCUÇÃO MASCULINA
                   Brasil, mil novecentos e noventa e três. Em um
                   ano, seis milhões de mulheres grávidas. Talvez
                   dois milhões de abortos. Possivelmente um
                   milhão e meio de abortos praticados sem
                   assistência médica. Provavelmente cinqüenta
                   mil mulheres mortas em conseqüência de aborto.
                   Em um ano.

3° BLOCO DE NÚMEROS: Sobre a imagem dos túmulos, os números são
sobrepostos e se acumulam, em sincronia com o texto. No final do
texto temos os seguintes números:

                            6 000 000
                            2 000 000
                            1 500 000
                               50 000

CENA 16-A - NÚMEROS CONTESTADOS

IRMÃ IVONE
(A74) Só no ano passado nós temos estatísticas de mais de cinco
milhões de mulheres que fizeram aborto clandestino com dez por
cento de mortalidade materna.

LÍCIA PERES (FILMAR)
(A72) Fala-se de um a quatro milhões de abortos por ano. Mas
esses dados muitas vezes são inclusive subestimados, porque não
se tem o número exato pelo fato de o aborto ser crime no Brasil.

AYUB
(A73) E a mortalidade, ahn, devida a eles não tem forma de ser
calculada. Mas estima-se alguma coisa entre cinqüenta mil a cem
mil mortes anuais. Talvez essa cifra seja um pouco exagerada mas,
de qualquer maneira, ainda se ficasse mais pro lado dos cinqüenta
mil, seriam mortes absolutamente desnecessárias.

Voltam os túmulos da cena anterior, sem os números, mas iguais,
como se não se importassem com a discussão.

FIM DO ROLO 1

CENA 17 - JULGAMENTO: DEFESA

ADVOGADO BIGODE
(A06) Minhas senhoras e senhores. Seleto corpo de sentença. Aos
senhores cabe hoje a função (OFF) não de julgar Dona Maria
Aparecida ou não de julgar Dona Marlene. Os senhores não estão
aqui hoje julgando essas duas senhoras. Os senhores estão aqui
hoje julgando o aborto.

O advogado. As rés, cobrindo os rostos com as mãos. Travelling
nos rostos atentos dos jurados. A sala do tribunal.

CENA 17-A - ABORTO: CONTRA E A FAVOR

ANA CRISTINA
(A07) Eu sou contra o aborto.

MARGARETE
(A57) Por eu fazer o aborto, eu sou contra o aborto, eu acho
assim:

LUCI
(A58) Eu sou a favor.

MARISA
(A60) Eu agora sou contra.

REGINA
(A61) Melhor tirar do que deixar passar fome, né?

ANA LUIZA
(A59) Então eu sou contra o aborto, eu acho que o aborto...

BETÂNIA
(A09) O aborto deveria ser lega, legalizado, né?

JOSÉ
(A10) Eu acho que é contra a lei de deus.

LECO
(A11) Saber que vai vir um anjo depois, vai ter que matar o anjo.
Bá, isso aí eu sou completamente contra.

ALEMÃO
(A12) Sou a favor, porque eu entendo que mesmo tu sendo contra
eles não tão deixando de existir.

IRMÃ IVONE
(A13) Eu vivo em bairros populares já há mais ou menos vinte
anos, né? E trabalhando diretamente com mulheres eu tenho mais ou
menos oito, nove anos assim com diferentes grupos de mulheres. E
o que me leva a tomar posição pela legalização do aborto é
perceber que o aborto é uma prática que está sendo feita no
Brasil e está provocando a morte de milhares e milhares de
mulheres. (A14) E isto de maneira muito particular nas periferias
das cidades brasileiras, né? Então, pra mim lutar pela
legalização do aborto é lutar por uma, uma forma de vencer esta
violência contra as mulheres.

PASSAGEM 4: foto PB da Irmã Ivone, com o letreiro VIOLÊNCIA /
VIOLENCE se deslocando no quadro.

CENA 18 - ABORTO: QUANTOS FIZ? (Eliminada)

CENA 18-A - ABORTO: POR QUE FIZ?

MARIA DO CARMO
(A15) Por causa que eu tava sozinha e não me achava em condições
de criar um filho. Botar um filho no mundo pra passar trabalho.
Então, eu preferi optar pelo aborto, né?

ZEZÉ
(A20) Como que eu vou? Se eu não tenho condições de sustentar
esses dois aqui, vou botar mais um filho no mundo? (A21) Mas eu
até hoje eu me condeno por isso. Eu sou contra o aborto em certas
con, certa parte. Eu acho isso: o que eu fiz, pra m, pra mim, na
minha cabeça, é um assassinato.

MARGARETE
(A66) Fazer o quê? Se deixa vir no mundo, mata cinco. Ou atira.
Pra turma, pra... virar trombadinha aí na rua, né? Porque o quê
que uma criança sabe de defesa com cinco, com dez, oito anos de
idade aí na rua se virando. O quê que vai aprender de bom? Nada,
né? E aí nove meses eu vou levar a gravidez, e eles os nove meses
como é que vão passar?

MARLOVE
(A19) E a carestia e tudo, né? Não podia trabalhar, e eu tava
trabalhando, eu dizia: como é que eu vou trabalhar agora, com
mais uma criança pequena?

DENISE
(A22) Foi porque eu engravidei e eu recém tinha tido um filho. Eu
tinha tido um filho em fevereiro, engravidei era finalzinho de
abril, maio. Primeiro eu fiquei perplexa que eu tivesse
engravidado de novo, assim, foi aquelas coisas que a gente não
controla. E na época eu avaliei que eu não tinha como ter outro
filho. Primeiro porque eu sou profissional liberal, não tenho
licença-maternidade, (-) (OFF) eu tava me sentindo assim,
sobrecarregada mesmo por estar trabalhando, com uma criança muito
pequena, amamentando. E segundo que eu achei que com ele, com o
meu filho, (QUADRO) era uma certa traição. Ele tinha sido tão
planejado, desejado, esperado. E eu imediatamente assim, começar
a me envolver, sabe, amorosamente, afetivamente com um outro
projeto, um outro nenê. Eu achei que significava tirar dele
aquelas coisas que eu tinha planejado dar. E resolvi fazer.

PASSAGEM 5: foto PB de Denise, com o letreiro FAZENDO / DOING se
deslocando no quadro.

CENA 19 - ABORTO: COMO FIZ?

MARLOVE
(A32) Aí tomei remédio, nada. Aí tomei outro remédio, não veio;
tomei outro remédio, não veio. (...) Tomava qualquer remédio que
me ensinavam, tomava chá, tomava de tudo.

HELENA
(A27) Essa planta aqui se chama quebra-pedra. Então ela serve
para os rins em pequena quantidade. E ela bem forte, botando
muito, então ela serve para abortar.

MARGARETE
(A75) Desde o começo, eu me vi grávida, eu que, eu sabia, assim
de cor que eu não posso ter, né? Aí eu comecei a tomar remédios,
eu... Eu tomei Cytotec, eu tomei quinino, eu tomei um monte de
coisa pra vir.

HELENA
(A29) Esse aqui chama-se saiva, é um mato chamado saiva. Ele
serve para gordura no sangue. Em pequenas quantidades, né?
Pouquinho, então ele serve. Mas se fazer o chá forte, então ele
serve para o aborto. Muito bom, muito bom mesmo para o aborto.

MARIA DO CARMO
(A24) O primeiro que eu fiz foi com uma sonda. Colocaram uma
sonda, lá em Gravataí.

JUREMA
(OFF) (A68) A sonda é esse aparelhinho assim. (A91) A gente
coloca essa pontinha aqui direto na boca do útero, e deixa essa
parte pra fora. (A70) Aí o ar entra aqui e provoca a secreção da
mulher. (A69) (QUADRO) Quando tá recente, com uns três ou quatro
meses de gravidez geralmente é que elas provocam com a sonda
porque a criança já tem força pra descer também.

LUCI
(A77) Tinha sete meses já. (-) Só que a pessoa que tirava cobrava
bem. E aí eu tinha que juntar dinheiro. (-) Aí eu demorei, fui
trabalhar, né, juntei dinheiro. Aí eu fui na senhora que fazia,
que botava, e... (-) ela me disse: ó, tu já tá de seis meses pra
sete. Eu digo: não, mas mesmo assim...

HELENA
(A33) Esse coco chama coco anão. Então a gente chama coquinho, é
o chá do coquinho. Então, o coquinho elas partem... em quatro
quartos... Um joga fora... e os três quartinhos, elas fazem o
chá... os três quartinhos, é como se fosse uma simpatia. E o
coquinho vale até oito dias. Dentro de oito dias é válido o chá
para o aborto.

MARLOVE
(A34) Aí eu fui ao médico, né, aí eu contei pro médico que eu
tava tomando certos remédios. Aí o médico disse pra mim, disse:
olha, Marlove, tu nem sabe como isso aí é perigoso. Porque tu
pode até ter uma criança doente de estar tomando remédio, sem
saber, e a criança não vir, depois amanhã ou depois tu pode ter
um filho doente. (A35) A única coisa que eu posso te dizer, já
que tu tá tomando tanta porqueira, que o único remédio que pode
vir é o Cytotec.

MARGARETE
(A67) (OFF) O Cytotec é um comprimido que eles usam pra ursa.
(QUADRO) Eu não sei que química ele tem, ele vem a delatar o
útero. E daí, a gente faz o aborto com ele.

ZEZÉ
(A36) Eu tomei Cytotec, né, tomei acho que uns quatro, cinco
Cytotec.

MARGARETE
(A80) Eu mesma tomei assim de uma em uma hora, tomei doze
comprimidos, tomei oito comprimidos na outra vez.

MARLOVE
(A38) Tomei quatorze, (A39) um atrás do outro. Tomei os quatorze
de vez.

MARIA DO CARMO
(A46) Que se tava, a bem dizer, se entregando pruns carneadores,
né, que não entendiam nada, né? Quer dizer que eu tava arriscando
a minha vida, né?

MARGARETE
(A83) É, eu tinha medo de, claro, ir presa, que a gente sabe que
o aborto não é legalizado, que não é normal, né? É um crime a
gente fazer um aborto.

MARIA DO CARMO
(A46A) Tinha medo sim de ficar deitada na mesa e não levantar
mais, né? Mas eu arrisquei. (A40) Porque a clínica tava cobrando
muito caro, né?

MARGARETE
(A84) Mas horrível de caro! Horrível. Uma clínica aí... eu acho
que hoje está numa base de uns trinta, quarenta mil.

PASSAGEM 6: Foto PB de Margarete, com o letreiro CARO / EXPENSIVE
se deslocando no quadro.

CENA 19-A - ABORTO: LIMPO E SUJO

DENISE
(A41) Eu fiz aborto numa clínica, num bairro de classe média de
Porto Alegre. Na época custou uns seiscentos, setecentos dólares,
talvez. Era uma clínica luxuosa, assim... sofisticada.

CLÁUDIA
(A42) Uma mulher que trabalha de, na noite também, ali na
Voluntários da Pátria, faz abortos com sonda. Ela me falou o
preço e coisa e tal e disse o risco que eu tinha de fazer, porque
já tava com quatro meses. Eu disse: não, eu não tou interessada
em saber de risco, eu quero fazer. Aí ela fez.

DENISE
(A43) Eu entrei, primeiro fui atendida por um médico, era um
consultório bonito, obras de arte na parede, ele perguntou sobre
a minha história pregressa, se eu era alérgica a algum tipo de
anestésico, se eu já tinha feito aborto, se eu já tinha tido
filhos. Me mediu, me pesou. Ahn, depois passou para uma parte que
era (OFF) como um bloco cirúrgico, assim, (A44) tinha uma
enfermeira e então ali a gente tirava a roupa, botava uma túnica.
Como pra uma operação mesmo. E passava pra mesa de, (QUADRO) onde
seria feita a curetagem. Veio o médico, ele tava acompanhado das
enfermeiras, eles mediram o anestésico, eu dormi...

MARLUCE
(A45) Foi num hospital, digo, não foi bem hospital, mas é um
senhor que, ele trabalha lá com... Entende, né, da medicina, e lá
ele aplica um remédio, eu não sei lhe explicar o que é, só sei
que a gente perde.

CLÁUDIA
(A47) Ela foi na minha casa, colocou, é uma... sonda, lá dentro
toda. (-) Comecei a sangrar, sangrar, sangrar, sangrar, tinha um
balde do lado, comecei a sangrar, sangrar, sangrar. Tá. E ela
metia o dedo e dizia assim, botava o ouvido, que ela já foi
enfermeira, botava o ouvido: não, não tá, não tá, friamente
falando: não tá morta ainda.

DENISE
(A49) E eu fui para casa com uma receita com antibióticos que eu
deveria tomar durante determinado período para evitar qualquer
infecção. De qualquer forma, não tive sangramento, não tive dor,
não tive infecção. Tomei os remédios só por precaução.

MARGARETE
(A71) A última, agora, eu quase morri. Eh, eu botei a sonda por
duas vezes, ela pegou em canal errado, ela pegou. E aí então a
infecção, dá infecção, eu levei dez dias induzindo pra vir.

DENISE
(A49A) Duas ou três horas depois eu tava em casa. Senti um pouco
de sono, dormi, mas não tive nenhuma seqüela física que eu
pudesse notar, como sentir dor, enjôo, sangramento, nada, nada,
normal.

Imagem de Denise permanece, como se ela estivesse ouvindo uma
pergunta. Depois, é substituída pela foto de Rosa.

                   TEXTO 14 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Denise, um filho, um acidente, uma opção.
                   Rosa, dois filhos, três abortos e uma última
                   tentativa.

REGINA (ROSA)
(A86) E ela sentava aqui na minha área, ela só queria comer só
coisa gelada, gelada, gelada. Eu dizia: pai, essa tua irmã tá com
algum problema. E eu dizia: Rosa, o quê que tu tem, cunhada?
Vamos, me conta. E ela não me dizia.

CLÁUDIA
(A88) Meu corpo dava pulos dessa altura e a língua começou a
enrolar.

MARIA DO CARMO
(A25A) Eu tive hemorragia, né?

REGINA
(A87) E eu levei ela. Ela bateu na minha casa, e o nenê tava pela
metade pra fora e metade pra dentro. Quando eu cheguei no
hospital tava em miséria.

BETH
(A23A) Comecei a sentir muitas dores, né?

LUCI
(A85) Passei muito mal. Fiquei até azul.

HÉLIO
(A89) Então era preferível que ela morresse com o nenê e tudo que
era mais fácil. Então ela morreu com cinco meses de gravidez. Ela
e o nenê morreram tudo.

Volta a imagem da cruz no cemitério.

MARGARETE
(A90) Dói, né? É certo? Ninguém responde, ninguém diz nada. Tá
certo assim...

CENA 20 - ABORTO E DESIGUALDADE

Imagens de jornais com manchetes que mostrem que o aborto é tema
polêmico e em discussão no Brasil intercaladas com imagens de
protestos, imagens de aborto em fotos.

                   TEXTO 15 - LOCUÇÃO FEMININA
                   No Brasil, o aborto é crime. Um crime cometido
                   pelo menos dois milhões de vezes todo ano. O
                   Estado, a Igreja e a Justiça fingem que não
                   vêem. Porque o aborto é crime, ele também é
                   desigual. De um lado uma intervenção cirúrgica
                   rápida, sem riscos, fora do alcance da Lei. De
                   outro lado, a grande maioria dos casos,
                   abortos praticados sem as mínimas condições de
                   higiene. Hemorragias, dilacerações, culpas.
                   Pelo menos cinqüenta mil mulheres morrem por
                   ano no Brasil porque o aborto é crime.

CENA 20-A - ABORTO E VIDA

IRMÃ IVONE
(A51) Então, em relação ao aborto o pessoal diz assim: não, a
Igreja não pode defender a morte de um inocente. E eu digo: (OFF)
independente de mim, as mulheres estão fazendo aborto. (QUADRO)
(A53) E a legalização é em defesa da vida, e da vida de todas as
pessoas, não é, da vida da mulher também. Por quê que eu posso
falar que a gente tem que defender apenas a vida do inocente? A
minha pergunta é: e a vida da mulher? E a vida dos outros filhos?
São vidas também, portanto a legalização é uma postura em defesa
da vida.

CENA 21 - JULGAMENTO: SENTENÇA

A sala do tribunal, vazia. A voz do juiz ecoa pela sala.

                   Entra música triunfal quando o juiz diz a
                   palavra "absolvo".

JUIZ (OFF)
(A54) Isto posto, cumpridas as formalidades legais, com suporte
na decisão do egrégio conselho de sentença, ABSOLVO, como
absolvido tenho, as acusadas Maria Aparecida Ferreira e Marlene
Pereira da Silva, sem custas, publicado em plenário e as partes
intimadas, registre-se: Tribunal do Júri da comarca do Recife,
Roberto Ferreira Lins, juiz, presidente do Tribunal do Júri.

Imagens rápidas de outras mulheres que deram depoimento sobre
seus próprios abortos, todas sorrindo. As rés se levantam. Uma
das mulheres chora. Advogado cumprimenta as rés. Juiz bate o
martelo.

CENA 21-A - ABORTO: CONCLUSÃO

IRMÃ IVONE
(A55) O aborto não pode ser uma solução isolada, mas o aborto, a
legalização do aborto deve entrar como algo num conjunto maior,
que é a preocupação com a limitação da natalidade, com a educação
sexual, ahn, infantil, juvenil, uma programação mais apurada da
saúde da mulher. E que eu tenho muita consciência de que com a
política falida do Brasil isso não tá sendo possível. Mas nós
temos que lutar, isso é uma questão social, isso é uma questão
política, nós temos que lutar pelas, pela melhoria de condições
para a vida da população e de maneira particular para a vida da
mulher marginalizada.

CENA 22 - PAÍS DO FUTURO

Bandeira brasileira tremulando em slow.

                   Música estilo "aquarela do Brasil".

                   TEXTO 16 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Brasil. O país do futuro. Um país jovem.

Caras pintadas, jovens bonitos dançando, caminhando, namorando,
na praia, na escola, sempre em grupos, em bandos. Última imagem é
de uma adolescente grávida andando sozinha por uma rua sem
calçamento.

                   TEXTO 17 - LOCUÇÃO MASCULINA
                   Trinta e dois milhões de adolescentes. Treze
                   milhões de adolescentes fora da escola. Onze
                   milhões de adolescentes subempregados. Um
                   milhão de adolescentes grávidas a cada ano.

4° BLOCO DE NÚMEROS: Ao final do texto temos, sobre a imagem, os
seguintes letreiros:

                           32 000 000
                           13 000 000
                           11 000 000
                            1 000 000

CENA 23 - GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA: VOLUME (Eliminada)

CENA 23-A - GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA: INTRODUÇÃO

CARMEN (SILHUETA)
(G12) Depois que eu parei de fazer aquelas bobagens de tirar o
nenê eu fiquei feliz da vida, né? Eu disse: não, agora eu vou ter
o meu filho, eu nunca mais eu vou ser sozinha. Pelo menos uma
companhia eu (-) vou ter. Eu posso perder os estudos, eu posso
perder aquela vontade de um dia, de ser um dia alguém assim, né,
pelo menos eu ia ter alguém comigo.

CENA 24 - GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA E DESIGUALDADE

*a Crianças brincando na vila. Meninas brincam de boneca, de
casinha. Meninos andam de moto, jogam futebol.

*b Crianças ricas brincam com brinquedos sofisticados.

*c Meninos simulam uma guerra, com muitos tiros. No final, um
deles é metralhado por um bando de outros. Os sons são de tiros
"reais", de revólver, de arma-laser, de bazuca e de metralhadora.

                   TEXTO 19 - LOCUÇÃO FEMININA
                   (a) País jovem, país do futuro. Sempre, sempre
                   de um futuro que nunca chega. Futuro que é
                   sempre dos outros, da próxima geração, dos
                   nossos filhos. Filhos que também serão
                   desiguais, porque gerados de vontades
                   desiguais de mães desiguais. (b) De um lado,
                   continuação, coroamento de vida, felicidade
                   compartilhada. (c) De outro lado, renúncia,
                   desistência, possibilidades transferidas. No
                   Brasil, enquanto o futuro não chega, a
                   gravidez é desigual, a adolescência é
                   desigual, a vida é desigual.

CENA 25 - A HISTÓRIA DE CARMEN: INTRODUÇÃO

CARMEN
(G46) O meu nome é Carmen. (-) A minha idade é dezessete anos.
(-) Eu tinha quinze anos na minha primeira gravidez.

                   Música: tema de Carmen.

PASSAGEM 7: foto PB de Carmen, com o letreiro A HISTÓRIA DE
CARMEN / CARMEN'S STORY se deslocando no quadro.

CENA 26 - A HISTÓRIA DE CARMEN: INFÂNCIA

Criança pequena sendo entregue, com cuidado, de um colo para
outro.

CARMEN
(OFF) (G54) Quando a minha mãe me entregou, eu lembro assim que
ela me deixou naquela casa lá daquela senhora. E que toda hora
assim depois que ela saiu eu perguntava assim: ah, onde é que tá
a mãe? (G54A) (QUADRO) Dizia: não, a tua mãe foi tchau-tchau, ela
já vem, ela já volta, né? E com aquilo ali foi me enrolando,
semanas, meses, anos, e eu sempre fui sabendo que aquela ali não
era a minha mãe.

Uma criança de dez anos sai de uma casa humilde, passa o portão e
afasta-se pela estradinha.

CARMEN (OFF)
(G01) Eu saí de casa porque os meus pais de adoção bebiam. Meu
pai era querido, mas a minha mãe bebia muito. Então, eu fugia
muito de casa e eu pedia muito auxílio à minha madrinha que
morava do lado, ela me ajudava muito. Só que com dez anos eu
decidi sair de vez.

Travelling em uma rua de casas bonitas de classe média.

CARMEN (OFF)
(G01A) Daí eu comecei a bater de porta em porta. Em cada uma
dessas casas bonitas assim, eu batia de porta em porta assim,
(G55) não, agora eu vou trabalhar, eu vou ganhar o meu
dinheiro... (G45) Fui pra uma casa de família, onde eu fiquei até
os quinze anos. Depois dos quinze, eu saí dessa casa de novo e
fui morar num circo.

Imagens do cotidiano de um circo pobre. Uma criança brinca entre
os trailers e a lona. Uma bailarina entra no picadeiro e se
apresenta para a câmara, meio sem graça. O ônibus onde o circo
viaja. A estrada passando.

CARMEN (OFF)
(G47) Eu escolhi o circo porque era, é a maneira mais fácil que
eu tinha pra viajar. (-) Daí eu fugi daquela casa, fui com o
circo e aproveitei a carona dele de viagem, assim.

Uma mulher passa a ferro uma roupa de artista circense. Uma outra
varre o picadeiro. Um homem mais velho faz a barba, tendo
elementos do circo ao fundo. Uma mulher mais velha limpa a pia do
trailer. Um jovem bonito faz malabarismo com três garrafas.

(G48) Conheci um monte de gente diferente. É, lá eu trabalhava
assim com o diretor do circo, cuidava do nenê dele, cuidava do
trailer dele pra mulher. Só que eu me dei mal, né, acabei
engravidando de um rapaz... (G56) Com quinze anos. (G03) Então,
eu peguei, arrumei as minhas coisas e saí.

CENA 27 - A HISTÓRIA DE CARMEN: MÃE

CARMEN
(G49) Daí... Foi tudo por água abaixo assim quando eu descobri
que eu tava grávida, assim. Não, não tinha como trabalhar, a
gente não consegue emprego grávida. E estudar, então, muito
menos, porque tinha que pagar os estudos e os materiais, e pra
isso precisava de dinheiro.

                   Música: tema do parto.

Uma maca entra na sala de parto, conduzida por enfermeiros
apressados. Rosto da mãe adolescente, nervosa. Médicos
trabalhando, rotina. Força. Gemidos. Impaciência. Mais força. O
milagre. Choro da criança. Choro da mãe. A criança é colocada nos
braços da mãe. A mãe olha emocionada para a criança.

CARMEN (OFF)
(G60) Era uma menina. A nenezinha. (G50) É, quando nasceu foi...
aquela emoção assim... (G61) A gente não sabe se chora, se ri, eu
fazia as duas coisas ao mesmo tempo assim, (G50) Eu às vezes
olhava pra aquele nenê, assim, e achava: não, eu não sou mãe
desse nenê, eu sou irmã... Bom, eu não conseguia acreditar assim
que eu era mãe.

CARMEN
(G51) Eu fiquei com ela até os quatro meses, daí eu comecei a
passar necessidade com ela, né? E ela não mamava no peito, assim,
eu tinha que tá toda hora comprando leite pra ela, daí eu não
vencia comprar leite, ela ficava doente, tinha que estar no
médico.

CARMEN (OFF)
(G16) (a) Até na hora de, que eu fiquei na frente do juizado,
assim, assinando aqueles papéis, eu não sabia se eu assinava ou
não assinava. (b) Mas como eu sou muito assim - eu faço muita
loucura por aí, né, mas ao mesmo tempo eu sou muito encabulada na
frente de certas coisas - então, eu não tive coragem de dizer
assim: não, eu não quero dar mais a minha filha. Mas ao mesmo
tempo eu pensei, eu pensava assim: (c) meu Deus do céu, eu vou
voltar pra Porto Alegre e não sei nem aonde é que eu vou ficar.
Porque quando eu voltei pra cá eu fiquei na rua. Então, eu ficava
pensando, né: não sei nem se eu vou arranjar um lugar assim no
mesmo dia. Minha filha vai ficar comigo na rua, assim. Alguém
pode ver e querer tirar a minha filha de mim e eu nunca mais ver.
Então, eu pensava tudo isso ao mesmo tempo. (d) Então eu peguei e
dei assim de vez, né, assim. (e)

*a O prédio do juizado de menores. A porta da sala do juiz, com a
inscrição correspondente, se abre. Um livro pesado é aberto. Uma
pequena mão pega uma caneta e prepara-se para assinar.

*b Imagens de Carmen na instituição, mas sem revelar a barriga.

*c Mãe com filho no colo pedindo esmola na sinaleira. Mãe e filha
sem-teto, sentadas no meio de uma pilha de papelões. Crianças de
rua pedindo esmola, cheirando cola, vagabundeando. Miséria.

*d Novamente a criança pequena é entregue, de um colo para outro.

*e O livro é fechado.

Capas de revistas "de amor": Sabrinas, Júlias, Barbaras Cartland.
Mulheres apaixonadas sendo abraçadas por homens maravilhosos.
Títulos correspondentes.

CARMEN
(G52) (OFF) Eu conheci um, um rapaz em, em Porto Alegre, né, num
hospital, (QUADRO) e eu fiz amizade com ele, mas eu nunca
desconfiei assim no começo que a, daquela amizade ia sair alguma
coisa assim.

Mais imagens de namoro, falsas, de capas de revista.

CARMEN (OFF)
(G20) Daí, sei lá. A gente começou a namorar, namorar, e quando
eu vi aconteceu de novo e eu engravidei de novo.

Carmen abre a janela de seu quarto na instituição. Agora, pela
primeira vez, vemos que ela está grávida.

CENA 28 - A HISTÓRIA DE CARMEN: FIM

PASSAGEM 8: foto PB de Carmen, visivelmente grávida, com o
letreiro O FIM DA HISTÓRIA / THE END OF THE STORY se deslocando
no quadro.

CARMEN (SILHUETA)
(G28) Ah, hoje eu... sei lá. Por um lado eu gostaria que não
tivesse acontecido nada disso.

Juiz bate o martelo de novo.

Placa com a inscrição "Lar de São José". Fachada do prédio. Uma
mulher entra caminhando na casa. Carmen aparece em silhueta,
falando.

                   TEXTO 24 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Condenada a ser desigual. Em novembro de
                   noventa e três, Carmen estava internada num
                   asilo para mães solteiras, sob a guarda de um
                   juiz que não permitiu que seu rosto fosse
                   mostrado. Com três meses de gravidez, Carmen
                   ainda pensava em procurar o pai de seu filho.

CARMEN (SILHUETA)
(G26) Ele sabe que eu tou grávida. Só que... ele é casado, então
ele tá me enrolando muito, né? Ele diz que quando o nenê, nenê
nascer ele quer me ajudar. Mas ao mesmo tempo ele quer o nenê pra
ele, criar com a mulher dele. Daí, daqui a um pouco ele muda de
conversa, né, que: "não, eu vou te ajudar, né, eu vou ajudar tu,
o meu filho", não sei o quê. Eu não sei, ele tá me enrolando
muito, assim. Às vezes, já tou pensando em decidir por mim e por
ele. Eu ter o meu filho sozinha.

Juiz bate o martelo pela terceira vez.

Imagens do cotidiano de Carmen na instituição: estendendo o
lençol da cama, servindo pão na mesa de café, recolhendo roupa
num varal, tricotando com um grupo de outras meninas grávidas.

                   TEXTO 25 - LOCUÇÃO FEMININA
                   Condenada a tentar de novo. Em março de
                   noventa e quatro, Carmen havia fugido para
                   outra instituição, em uma cidade vizinha.
                   Faltava um mês para nascer o seu segundo
                   filho. Dois meses para terminar o seu período
                   de asilo. Dois meses para voltar pra casa.
                   Qualquer casa.

Carmen e outras meninas, de pé, em volta da mesa. A oração
termina e elas sentam. Carmen toma o seu café.

CARMEN (OFF)
(G62) Ai, quando eu sair daqui eu pretendo arrumar um emprego,
que eu possa ficar com o meu nenê. A única coisa que me resta
fazer é isso.

CARMEN
(G53) Às vezes eu tenho medo assim que tudo aconteça de novo
assim, né, e, de dar, ahn, de sofrer de novo, de ter que dar o
nenê. Às vezes eu fico pensando assim, às vezes eu fico meio
braba comigo mesma, meio revoltada, e eu começo a pensar: não, eu
vou dar esse nenê antes, né, daí eu não vou nem querer conhecer
pra não ficar lembrando do rostinho do nenê. Mas... ah, quando eu
vejo as roupinhas assim eu fico pensando: não, mas vale a pena
lutar de novo, né? Que se eu vou ter esse nenê talvez seja pra
mim tentar mudar, né? Lutar. Fazer de tudo aqui, fazer tudo
aquilo que eu não consegui fazer antes. Talvez seja essa a
chance, e eu não posso botar fora.

                   Música.

CENA 29 - CARMEN E AS OUTRAS

*a Rosto de Carmen se movimenta em slow. Carmen se levanta.
Caminha em direção à câmara.

                   TEXTO 20 - LOCUÇÃO FEMININA
                   (a) Que lógica condenou Carmen a tantos
                   abandonos, tantos confinamentos, tantas fugas,
                   tão poucas chances? (b) A mesma lógica que
                   sempre projeta soluções no futuro: as pessoas
                   depois do país, (c) a igualdade depois do
                   crescimento, a quitação da dívida só depois
                   dos juros, a salvação depois da morte. Que
                   lógica é essa que faz do aborto um crime e da
                   esterilização uma bênção? Que país é esse cuja
                   única lógica, há quase cinco séculos, é a da
                   desigualdade?

*b O globo girando na sala de aula. A menina do início do filme
presta atenção.

*c Voltam imagens das mulheres que já apareceram no filme, todas
refletindo, pensando, concordando ou discordando com a cabeça.

*d Numa sala de projeção, várias mulheres que apareceram no filme
assistem ao próprio filme. Conversam, comentam, discutem,
emocionam-se, riem.

                   TEXTO 21 - LOCUÇÃO FEMININA
                   (d) Desde crianças, no colégio, nós sabemos
                   que existem outras lógicas. Que desigualdade e
                   diferença não são a mesma coisa. E que o país
                   dos desiguais é só a caricatura do mundo dos
                   desiguais. Mas que é possível levar igualdade
                   para onde nos querem desiguais, e instaurar a
                   diferença onde nos querem sempre indiferentes.
                   Nesse país. Nesse mundo.

CENA 30 - NOSSA HISTÓRIA

No ambiente da sala de projeção, as mulheres que já apareceram no
filme dizem trechos de frases.

MARLOVE
(N1) Esse é o nosso mundo.

HILDA
(N2) ...somos nós.

MARIA DO CARMO
(N3) ...é a nossa vida.

DENISE
(N4) E essa é a nossa história.

FIM

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(c) Ana Luiza Azevedo, Giba Assis Brasil e Rosângela Cortinhas, 1994.
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

02/06/1994

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