O AMANTE AMADOR episódio da série CONTOS DE INVERNO roteiro de Carlos Gerbase versão 4 - 14/05/2001 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para RBS TV ******************************************************************* CENA 0 - CRÉDITOS INICIAIS - ESTÚDIO Seqüência de imagens de alguns personagens do programa: Ewerardo, Mariela e as garotas ficcionais. CENA 1 - CASA DE EWERARDO/SALA - INTERIOR/DIA (créditos iniciais superpostos) Apartamento de classe média, com decoração discreta. É um almoço dominical, sem luxos, mas farto. EWERARDO, 40 anos, está na cabeceira, abrindo um vinho nacional. MARIELA, 35 anos, traz a comida da cozinha, distribuindo as travessas de metal sobre mesa. CARINE, 12 anos, e ROMEU, 8 anos, enchem seus pratos. EWERARDO (VS) Tu sabe como eu gosto da minha vida. Tudo certo. Tudo em ordem. Cada coisa em seu lugar. Minha família é tudo pra mim. TOMÁS (VS) Mas tem uma hora que enche o saco, eu sei como é. EWERARDO (VS) Não, não sabe. Eu nunca vou encher o saco. A mesa servida, todo mundo comendo... TOMÁS (VS) Sei. O patriarca, sua bela esposa, seus filhos. Todos na santa paz de Deus. CENA 2 - BAR - INTERIOR/NOITE Ewerardo, de camisa social e gravata (terno no espaldar da cadeira), conversa com TOMÁS, 40 anos. Estão numa mesa pequena, de canto, sobre a qual vemos três cervejas vazias. É um bar classe-média, de decoração despojada. EWERARDO Não bota Deus na história! TOMÁS Tudo bem. Mas então não bota família na história. Esquece a família. EWERARDO Impossível! Minha família é... TOMÁS Pára! Te concentra um pouco no xis da questão. Ewerardo toma um gole largo de cerveja e olha para Tomás. EWERARDO Vou tentar. CENA 3 - ESCRITÓRIO DE ENGENHARIA - INTERIOR/DIA Ewerardo caminha pelo corredor de um escritório. Passa por algumas portas abertas, distribuindo sorrisos e cumprimentos. EWERARDO (VS) Tu sabe como eu gosto do escritório... TOMÁS (VS) Sei. Tudo certo. Tudo em ordem. Cada coisa em seu lugar. A mesma chatice de casa. Ewerardo chega a uma sala ampla, dividida em dois ou três ambientes de trabalho. SETE PESSOAS estão em atividade, falando ao telefone, escrevendo no computador, revisando plantas de obras, etc. Uma dessas pessoas é RAFAELA, 20 anos, que está mascando chiclete e arrumando o conteúdo de uma gaveta. Sua mesa abriga uma pequena central telefônica. Rafaela olha para Ewerardo e sorri. Ewerardo sorri de volta, meio constrangido. EWERARDO (VS) Eu sempre tive uma sensação de segurança absoluta no escritório. Eu sempre achei que ali eu não corria perigo. TOMÁS (VS) Não enrola, Ewerardo. Desembucha de uma vez! EWERARDO (VS) Eu não sei o que ela viu em mim. Rafaela larga o que estava fazendo, pega um bloquinho de anotações e aproxima-se de Ewerardo, ainda muito sorridente. TOMÁS (VS) Quem viu, Ewerardo? EWERARDO (VS) Rafaela. Nossa nova telefonista. Rafaela pára na frente de Ewerardo, um pouco simpática demais para uma funcionária. RAFAELA Eu tenho um milhão de recados para o senhor. EWERARDO Certo. Na minha sala, por favor. Ewerardo caminha na direção de sua sala, seguido por Rafaela. TOMÁS (VS) Dá a ficha. EWERARDO (VS) Que ficha? Ela é telefonista, mas não usa ficha. TOMÁS (VS) A ficha da moça, Ewerardo. Idade, tipo físico, cor dos cabelos, essas coisas. Ela é gostosa? CENA 4 - ESCRITÓRIO/SALA DE EWERARDO - INTERIOR/DIA Ewerardo senta em sua mesa. Rafaela começa a ler os recados. EWERARDO (VS) Ela é bonita... Muito bonita... CENA 5 - BAR - INTERIOR/NOITE Ewerardo e Tomás na mesa. EWERARDO Mas é jovem demais. Tomás sorri. TOMÁS Isso não existe. (pensa um pouco) Quer dizer... tem mais de doze? CENA 6 - ESCRITÓRIO/SALA DE EWERARDO - INTERIOR/DIA Rafaela termina de ler os recados. RAFAELA E a dona Henriqueta que falar com o senhor, urgente. TOMÁS (VS) Quem é a dona Henriqueta? A porta ao fundo abre e HENRIQUETA, 40 anos, bem vestida, entra. EWERARDO (VS) Minha sócia. Henriqueta, inamistosa, fala com Rafaela. HENRIQUETA Pode sair, minha filha. Rafaela sai. Henriqueta sorri para Ewerardo, também muito simpática. Simpática demais. HENRIQUETA Reservei uma mesa para as nove. EWERARDO Mas eu disse ontem que não podia! HENRIQUETA Não. Disse que seria difícil, que tinha combinado não sei o que com a Mariela. Tá resolvido. Eu liguei pra ela e disse que tínhamos um jantar com um cliente novo, que quer construir um edifício de quarenta andares. (pausa, olha nos olhos de Ewerardo) Tu não escapa. Hoje é a nossa noite... CENA 7 - BAR - INTERIOR/NOITE Ewerardo e Tomás na mesa. TOMÁS Entendi. Tua sócia também tá a fim. Que beleza, Ewerardo! Quem me dera... Como é a coroa? EWERARDO Bonita. (aproxima-se mais de Tomás e fala em voz baixa, já meio bêbado) Eu vou te contar uma coisa... Olha, confio em ti. (hesita) Eu já fui apaixonado pela Henriqueta, ele era minha colega na faculdade. Eu sofria por ela. E ela nunca me deu bola. TOMÁS Então... Agora te cobra. Tu foi no jantar? EWERARDO Não. Menti que o meu filho tinha ficado doente, com febre alta, e que a Mariela estava viajando. TOMÁS Perfeito. Aposto que ela ficou ainda mais a fim. E agora... Ela tá na boca da caçapa. Imagina... Primeiro a sócia, balzaquiana, amor antigo, reprimido, que agora explode como um vulcão. Depois a telefonista, uma gatinha, quase uma criança... Que beleza! EWERARDO Não. TOMÁS Não o quê? EWERARDO Não posso. Quer dizer... Não quero. TOMÁS Não pode, ou não quer? EWERARDO Não quero... Quer dizer, não posso. (muito desanimado) Não sei! Tomás pede alguma coisa para o garçom. Bota a mão no ombro de Ewerardo. TOMÁS Ewerardo, amigo velho, eu sei exatamente porque tu me chamou aqui, nesse bar, e me contou essas coisas todas. Ewerardo olha para ele, ansioso. TOMÁS Tu tá a fim das duas, mas não sabe como fazer. EWERARDO É um pouco isso... Ignorância, falta de costume nessas coisas... Mas tem uma coisa pior: a Mariela. TOMÁS Lá vem a família de novo! Se o teu negócio é culpa, medo do pecado, procura um padre. EWERARDO Não. É que eu tenho certeza que ela vai descobrir, que eu não vou saber fazer direito, que vai ser um inferno... TOMÁS Bobagem. São quinze de casamento, e tu nunca pulou a cerca. A Mariela confia em ti cegamente. Cegamente, entendeu? É só ela continuar cega. E a gente ainda bota uma vendinha, só de segurança. EWERARDO Eu não tenho coragem. Sou um covarde, Tomás. Tu sabe, tu me conhece. Eu nunca vou conseguir. TOMÁS Digamos que tu nunca foi exatamente um Don Juan, mas... (sorri e seus olhos começam a brilhar) Tive uma idéia. O garçom traz um copo pequeno e enche o copo com uísque. TOMÁS Toma aí. Quero ver se pelo menos isso tu é capaz de fazer. Ewerardo começa a tomar. TOMÁS Isso. Que nem macho! Ewerardo termina. Seus olhos estão cheios de lágrimas. Ewerardo pede mais uma dose. TOMÁS Sabe quando tu quer comprar um carro bacana, caro, desses importados? Mas tá em dúvida, porque... É muito caro, e o carro pode não ser exatamente o carro que tu quer. Pode ser grande demais, ou pequeno demais. CENA 8 - REVENDA DE CARROS IMPORTADOS - INTERIOR/DIA A VENDEDORA, 25 anos, faz Ewerardo entrar dentro do carrão importado e entrega a chave. TOMÁS (VS) Aí sabe o que a vendedora faz, se o cliente é um cidadão exemplar, como tu? Ela diz: fica com o carro por uns dias, uma semana. Anda com ele, experimenta. Sem compromisso. Tu não comprou. CENA 9 - AVENIDA - EXTERIOR/DIA Ewerardo, todo contente, dirige o carrão na avenida Goethe. TOMÁS (VS) O carro tem seguro total, dá pra destruir ele contra uma árvore que não tem problema. Mas tu tá ali, dirigindo o carrão, gozando a vida. Aí, depois de uma semana, não gostou, acha que não vale a pena, que é caro demais... Ewerardo, macambúzio, dirige um carro nacional. TOMÁS ...devolve o carro e fica com o antigão mesmo. CENA 10 - BAR - INTERIOR/NOITE TOMÁS Anda igual, não anda? Ewerardo está confuso. EWERARDO Mas eu não quero comprar um carro. TOMÁS Ô, pamonha. Eu tô falando de mulher, de adultério. Tu vai fazer um test-drive de traição. Chega a nova dose de Ewerardo. Ele vai bebê-la, mas Tomás o detém. TOMÁS Pára de beber! Tô falando sério. É genial. Tu vai vencer esse teu medo, Ewerardo. E sem pagar psiquiatra. Tu vai penetrar no mundo excitante da sacanagem e da mentira, mas com absoluta segurança, sem compromisso, sem riscos. Seguro total, meu amigo! EWERARDO Acho que tu bebeu demais. TOMÁS Antes da balzaquiana ardente e da ninfeta proibida, tu vai conhecer... a... a... Míriam. EWERARDO Que Míriam? TOMÁS Essa aí, do teu lado. Ewerardo olha para o lado e, onde antes estava uma cadeira vazia, está MÍRIAM, 23 anos, loira, linda. Míriam olha para Ewerardo, muito sedutora. TOMÁS (VS) Míriam é loira, tem 23 anos. É estudante de Psicologia, atriz e modelo e está com vontade de passar um fim de semana contigo em Quintão. EWERARDO (sorrindo) Loira? Ela nem é loira. Olha ali a raiz, pretinha... TOMÁS Não gostou da Míriam? Que tal a Valquíria? Ewerardo olha para o lado e vê VALQUÍRIA, uma outra loira insinuante, esta de 18 anos, que veste-se com certa vulgaridade e masca chicletes. TOMÁS (VS) Valquíria também é loira e tem 18 anos. Trabalha como representante de vendas de lingerie e é acompanhante de executivos de sucesso. Diz que é universitária, claro. EWERARDO Não é um pouco vulgar? TOMÁS Ah, claro. Tu gosta de mulheres de classe. Então, é a Carolina. CAROLINA, 20 anos, bem vestida, maquiada como se estivesse numa festa, pega o copo de Ewerardo e bebe. TOMÁS (VS) Carolina tem 20 anos e é descendente de Dom Pedro II. O pai e mãe não saem de casa há 10 anos, para não se misturarem com o populacho. Mas ela é rebelde, comprou um apartamento e prefere homens mais velhos. EWERARDO Gostei dela. TOMÁS Podemos tentar outras. A Josiane, por exemplo. JOSIANE, 25 anos, sorri para Ewerardo. EWERARDO Não! Eu quero a Carolina de volta. TOMÁS Tudo bem. Carolina volta, mas com as roupas vulgares de Valquíria. Ewerardo estranha. TOMÁS Eu dou um jeito. Valquíria aparece, com as roupas de Carolina. TOMÁS Esse negócio é complicado. Alguns uns morphs e outros efeitos de edição bagaceiros, apresentando mais algumas garotas sorridentes e insinuantes. Ewerardo olha para os lados, constrangido. TOMÁS Tudo bem, vamos nos concentrar só na Carolina. Carolina volta para a mesa, vestida como em sua primeira aparição, mas com os cabelos louros falsos de Míriam. Ewerardo não fica satisfeito. TOMÁS O cabelo não importa, ela não existe. Nenhuma delas existe. Míriam e Valquíria também aparecem na mesa. TOMÁS Mas, a partir desse momento, elas são tuas amantes. As três. E eu vou te dizer exatamente o que fazer quando chegar em casa. Presta atenção! CENA 11 - AP. EWERARDO/ELEVADOR/CORREDOR - INTERIOR/NOITE Ewerardo, num elevador que sobe, pega um vidrinho de perfume vagabundo no bolso e o examina. O elevador pára e a porta abre. Míriam está à sua frente, sorridente e sedutora. FIM DO PRIMEIRO BLOCO CENA 11A - AP. EWERARDO/CORREDOR - INTERIOR/NOITE Ewerardo, ainda com o vidrinho de perfume na mão, em dúvida, não sai do elevador. Míriam entra no elevador, encosta-se em Ewerardo, abraça-o, acaricia seu rosto. Ewerardo não se entrega. Míriam puxa Ewerardo para fora do elevador. Ewerardo sai do elevador sozinho, ainda com o vidrinho de perfume na mão. Olha para a porta do apartamento. Respira fundo. Abre a tampa do perfume. Cheira. Acha ruim. Vai até a lixeira, como quem vai jogar fora o vidrinho. No último instante, a mão de Míriam o impede. Míriam, sempre sorridente, pega o vidrinho, molha a ponta do dedo e passa perfume no colarinho da camisa de Ewerardo. Míriam desaparece. Ewerardo, resignado, passa mais um pouco no rosto e na nuca. Respira fundo outra vez. Joga o vidrinho no lixo. Abre a porta do apartamento e entra, receoso. CENA 12 - AP. EWERARDO/QUARTO DE CASAL - INTERIOR/NOITE O quarto está na penumbra. Ewerardo entra, de pijama, e deita no lado vazio da cama. Mariela está dormindo. Ewerardo acende a luz de cabeceira e se ajeita, meio atabalhoado, mas Mariela continua dormindo. Ewerardo tira e bota o lençol, muda o travesseiro de lado. Mariela continua dormindo. Ewerardo levanta pega um sapato ao lado da cama e o deixa cair, fazendo um barulhão. Mariela acorda, sonâmbula, e olha para Ewerardo. MARIELA O que foi, amor? EWERARDO Nada. Cheguei agora. Mariela consulta o despertador, na mesa de cabeceira: três horas. MARIELA Que tarde... EWERARDO Muito trabalho. Mariela sorri. MARIELA Eu sei como é. Cliente novo. Quarenta andares. Mariela beija Ewerardo. MARIELA A Henriqueta me falou. Dorme bem, querido. Mariela sente o perfume e estranha. MARIELA Tu trocou de desodorante, amor? EWERARDO Não. Mariela cheira Ewerardo e sorri. MARIELA Esse perfume não é da Henriqueta. EWERARDO (inseguro) Esse cliente tem uma namorada, Míriam, acho. Mulher vulgar. Falsa loira. Deve usar litros desse perfume horrível. MARIELA (sempre sorridente) Deve ter sido uma noite e tanto. Boa noite, amor. (deita, mas logo olha para Ewerardo outra vez, carinhosa) Dorme mais um pouco amanhã. Eu vou de táxi, ligo pro escritório e dou uma desculpa qualquer. EWERARDO (mais inseguro) Não. Não posso. Eu te levo, normal. MARIELA Tu é muito caxias, Ewerardo. Mas eu te amo. Mariela deita e dorme. Ewerardo fica se cheirando, indignado. CENA 13 - AP. EWERARDO/BANHEIRO - INTERIOR/DIA Ewerardo, já de terno, fala ao celular, perto do box. O chuveiro está ligado. EWERARDO (em voz baixa) Não sei se vou conseguir. (...) Deu... Deu certo, Tomás. Ela até ajudou, falou da Henriqueta, do cliente. Mas essa história do baton no carro... É demais. Ela vai me matar. (...) Não! Não vou fazer. Batidas na porta. EWERARDO Depois a gente se fala. Ewerardo desliga o celular, pega um batom no bolso do terno e joga pela janela. Abre a porta. Mariela entra e coloca pasta de dente na escova. MARIELA Por quê o chuveiro tá ligado? Ewerardo desliga o chuveiro, molhando-se um pouco. EWERARDO Esqueci. MARIELA Cada dia mais pateta! CENA 14 - GARAGEM - INTERIOR/DIA Ewerardo e Mariela aproximam-se do carro. Ewerardo leva um susto: Carolina está sentada no carro, passando baton. Termina de passar, olha sensualmente para Ewerardo e coloca o baton sobre o vidro dianteiro, preso no limpador. Ewerardo e Mariela chegam no carro. Carolina desapareceu. Mariela pega o batom, examina-o e mostra-o para Ewerardo. MARIELA Importado. Muito chique. Aposto que é da Henriqueta. Ewerardo pensa por um momento. EWERARDO Mas não é. É da Carolina, a sócia do nosso cliente. Deve ter caído no chão, no estacionamento do restaurante, quando ela saiu do carro, e o manobrista botou ali. Na volta, como tava escuro, a gente não viu. (pega o celular) Vou ligar pro Dr. Rubens avisando. MARIELA (séria) Não, Ewerardo! Não! Ewerardo olha para Mariela, apavorado, esperando o pior. Mariela abre o sorriso. Entrando no carro. MARIELA Não conta que a gente achou o baton. Adorei a cor. Mariela pega um espelho na bolsa e passa o batom. MARIELA Uma mentirinha não faz mal, faz? CENA 15 - CARRO/RUA - EXTERIOR/DIA Frente de um colégio. Mariela beija Ewerardo e sai do carro. Assim que ela entra, Ewerardo pega o celular. EWERARDO Eu te mato! (...) Enlouqueceu, Tomás? (...) E como tu entrou na garagem? (...) Muito esperto. Eu quase me ferrei. A desculpa era para um batom no banco do carro, e não no pára-brisa! (...) Eu inventei... Ela deixou cair no chão, aí um manobrista pegou... (...) Parabéns coisa nenhuma! Eu quase tive um ataque do coração! Não, acho que ela não desconfiou. Ela confia em mim. Confia mesmo, e eu tô me sentindo péssimo. (...) Chega! Acabou! (...) Que Carolina coisa nenhuma. (...) Eu não imagino nada. Nada! Vai pro inferno! Ewerardo desliga o celular. Ao seu lado, Carolina, com o mesmo vestido decotado, sorri para Ewerardo. CAROLINA Achou meu batom? Onde a gente vai? O seu apartamento, ou o meu? CENA 16 - BAR - INTERIOR/NOITE Ewerardo e Tomás conversam. TOMÁS Viu? Eu não te disse? É moleza. EWERARDO Moleza pra ti, que fica inventando. Eu tenho que ir lá, mentir, enganar, fazer de conta. Ewerardo bebe um longo gole do copo de uísque. TOMÁS E a Valquíria? Valquíria aparece na mesa do bar, abraçada em Ewerardo, com ar apaixonado. EWERARDO Não quero nada com a Valquíria. TOMÁS Mas a Valquíria vai ser tua última prova. Chega de perfumezinho, batonzinho... Se tu passar incólume pela Valquíria, te dou o diploma de amante profissional e não se fala mais nisso. EWERARDO Promete? TOMÁS Prometo. Tu acaba de levar a Valquíria num motel. E claro que fez tudo errado. CENA 17 - BANHEIRO DE MOTEL - INTERIOR/DIA Ewerardo tira nervosamente a camisa e entra na jacuzzi cheia de espuma. Sorri, meio tímido, para Valquíria, que já está na banheira, nua (mas debaixo da espuma) rindo da atrapalhação de Ewerardo. TOMÁS (VS) Primeiro, entrou na banheira de cueca. CENA 18 - BAR - INTERIOR/NOITE Ewerardo está indignado. EWERARDO Tá pensando que eu sou idiota? Eu nunca faria uma bobagem dessas. Tomás abre sua pasta 007 e pega um saquinho de plástico transparente (desses de super-mercado), com uma cueca molhada dentro. TOMÁS Faria. Claro que faria. Tomás estende o saquinho para Ewerardo. TOMÁS Cuidado que tá molhado. Coloca dentro da tua pasta. EWERARDO (convicto) Não. TOMÁS É a tua última prova, meu amigo. Depois tu tá livre pra levar a vida como quiser. Ou será que a coroa e a telefonista já desistiram? CENA 19 - ESCRITÓRIO - INTERIOR/DIA Olhar insinuante de Henriqueta para Ewerardo. Olhar insinuante de Rafaela para Ewerardo. CENA 20 - BAR - INTERIOR/NOITE EWERARDO Não. TOMÁS Enquanto tu não for homem aqui, no faz-de-conta, como vai ser homem na vida real? Pega logo isso aqui. Ewerardo hesita um pouco, mas pega o saquinho e coloca na pasta. Vai fechá-la, mas Tomás segura seu braço. TOMÁS Não fecha. Pega teu talão de cheques. Ewerardo olha para Tomás, confuso. CENA 21 - SAÍDA DE MOTEL - INTERIOR/DIA O carro de Ewerardo, com o próprio e Valquíria em seu interior, está na porta de saída do motel. A atendente mostra a conta: noventa reais. Ewerardo olha a carteira e vê que tem apenas três notas de dez reais. TOMÁS (VS) Preenche aí: noventa reais. EWERARDO (VS) Não! TOMÁS (VS) Preenche logo. Quem entra na banheira de cueca também paga motel com cheque. Ewerardo pega o talão e começa a preenchê-lo. CENA 22 - BAR - INTERIOR/NOITE Ewerardo está preenchendo o talão. EWERARDO (irônico) Não vai querer que eu coloque no canhoto: Motel Delícia? TOMÁS Não. Um amante amador como tu faria coisa pior. Coloca o dia de hoje... Muito bem. Agora escreve aí, sei lá... Livraria Andradas. Ewerardo escreve no canhoto. TOMÁS Agora me dá o cheque. Ewerardo destaca o cheque e entrega-o para Tomás. CENA 23 - SAÍDA DE MOTEL - INTERIOR/DIA Ewerardo entrega o cheque para a atendente e arranca com o carro, meio confuso. EWERARDO (VS) O que eu fiz de errado? CENA 24 - BAR - INTERIOR/NOITE Tomás guarda o cheque de Ewerardo. EWERARDO Eu costumo comprar mesmo na Livraria Andradas. A Mariela sabe disso. É uma desculpa perfeita. TOMÁS Sabe duma coisa, meu amigo? A gente se ferra por fazer as coisas certas, e não as coisas erradas. Pior ainda: a gente se ferra porque é bom. E tu é um cara muito bom. Lembra disso. EWERARDO Tudo bem. Uma garotinha de cara suja e ar muito triste aproxima-se da mesa dos dois, vendendo aquelas rosas "para namorados". GAROTINHA (para Ewerardo) Moço, compra uma rosa. TOMÁS Obrigado. Nós não queremos. GAROTINHA (ainda mais triste) É só pra me ajudar. O moço não tem namorada? Ela vai gostar. EWERARDO Quanto é? GAROTINHA Dois reais. Ewerardo abre a pasta, pega a carteira e paga garotinha, que vai embora. Tomás ergue a mão e "assina" no ar, pedindo a conta. Ewerardo vai colocar a rosa dentro da pasta, mas Tomás o detém. TOMÁS (sorrindo) Quem vai ganhar? A sócia, ou a telefonista? Ewerardo examina a rosa. EWERARDO E tu acha que eu teria coragem de dar uma flor? É a maior bandeira da face da terra. TOMÁS Tá ficando esperto... Mas tu comprou por pena da garotinha, né? Tu é um cara bom, Ewerardo. Tão bom que vai pagar a nossa conta. O garçom chega com a conta. Ewerardo coloca a rosa sobre a mesa e pega o talão de cheques. Abre o talão. De repente, Tomás olha por cima do ombro de Ewerardo e fica muito assustado. TOMÁS Agora, fica calmo. EWERARDO Por quê? Mariela está bem atrás de Ewerardo. MARIELA Que coincidência! Posso me sentar? Ewerardo vira-se e olha para Mariela. FIM DO SEGUNDO BLOCO CENA 25 - BAR - INTERIOR/NOITE Mariela beija o marido e senta ao seu lado, sorridente. A pasta de Ewerardo está aberta, sobre a mesa, com o saquinho de plástico bem visível. A rosa ao seu lado. O talão à sua frente. MARIELA Ôi, Tomás. (para Ewerardo) Para quem é a flor? SÍLVIA: EWERARDO É... TOMÁS É pra ti, Mariela. MARIELA Duvido. Ele nunca me deu uma flor em quinze anos de casamento. (sorri) Deve ser para alguma amante. EWERARDO Eu comprei porque fiquei com pena da garotinha. MARIELA Que garotinha? TOMÁS Tinha uma garotinha aqui, agora mesmo, com a cara bem triste, vendendo essas rosas. Mariela olha em volta. MARIELA Não tô vendo garotinha nenhuma. Mariela fica muito séria e olha para Ewerardo. MARIELA Para quem tu comprou essa rosa? EWERARDO (nervoso) Pra ninguém, Mariela. Olha, eu já estava pagando a conta. Vamos pra casa? Mariela olha para o talão de Ewerardo. MARIELA Livraria Andradas? EWERARDO (sem se abalar) Chegaram aqueles livros que eu tinha encomendado. MARIELA Sei. Engenharia Vencedora e Reengenharia da Engenharia. Mariela pega um pacote na bolsa e rasga o papel. São os dois livros, mais um pequeninho, de contos. MARIELA Passei na livraria agora mesmo. O Gutierrez me falou dos livros e eu peguei eles pra ti. EWERARDO (mantendo o sangue-frio) Eu devo ter passado depois... Foi há pouco. O Gutierrez não estava. O outro atendente não sabia que tu tinha passado lá. Aí eu comprei de novo. Amanhã eu resolvo. Mariela olha para a sacola de plástico na pasta de Ewerardo. MARIELA Aquilo ali são os livros? Ewerardo entra em pânico. EWERARDO Não! Deixei os livros no escritório. Mariela estende a mão e pega a sacola, num movimento rápido. EWERARDO Mariela, eu posso explicar tudo. Mariela tira a cueca molhada da sacola. Olha para Ewerardo, furiosa. EWERARDO Tudo bem. Acabou. Me ouve, com calma. O cheque não foi pros livros. O cheque é uma brincadeira. E essa cueca nem é minha. Foi o Tompás que trouxe. Foi tudo invenção do Tomás. (olha para Tomás) Tomás, me dá o cheque. TOMÁS Que cheque? Ewerardo olha para Tomás, estupefacto. Mariela olha para a cueca. MARIELA (para Ewerardo) A cueca é tua, Ewerardo. Fui eu que te dei, no Natal. Eu quero o divórcio. Ewerardo olha para a cueca, ainda mais estupefacto. CENA 26 - BANHEIRO DO MOTEL - INTERIOR/DIA Mariela e Tomás estão na jacuzi do motel, tomando champanhe. MARIELA Gênio. TOMÁS Não... MARIELA Tu é um gênio, Tomás. E eu te amo. TOMÁS Digamos que a gente soube conduzir bem a situação e aproveitar as fragilidades do adversário. MARIELA E essas mulheres que tu inventou? Que imaginação! Eu praticamente posso vê-las... Míriam, Valquíria, Carolina... Míriam, Valquíria, Carolina aparecem dentro da jacuzi, sorridentes. TOMÁS Digamos que eu sou um ficcionista amador. MARIELA Eu não agüentava mais ficar te encontrando escondido, vindo em motel. Hoje é a nossa despedida de motel. O Ewerardo disse que vai assinar o acordo: eu fico com o apartamento e a casa na praia. TOMÁS E ele fica com quê? MARIELA Ele fica com dor de barriga. Tomás sorri. Batidas na porta. TOMÁS Que estranho... Tomás aparece na porta, de roupão. TOMÁS O que é? RAFAELA (OFF) Sinto muito, senhor. Mas temos um alarme de incêndio. TOMÁS (nervoso) Mariela, vamos embora, rápido. CENA 27 - SAÍDA DE MOTEL - INTERIOR/DIA Um carro com Tomás e Mariela no banco da frente, mais as três garotas ficcionais atrás, sai rapidamente do motel. CENA 28 - BANHEIRO DO MOTEL - INTERIOR/DIA Rafaela entra no banheiro, vai até uma luminária e tira dali um pequeno gravador. CENA 29 - OUTRO BANHEIRO DO MOTEL - INTERIOR/DIA Ewerardo e Henriqueta já estão na jacuzi. Rafaela entra no banheiro, mostra o gravador para os dois e faz sinal de OK. Rafaela entra na banheira. Os três brindam com champanhe. HENRIQUETA Achei uma maldade esse negócio de incêndio. Não precisava. RAFAELA Eu vi eles correndo, coitados. EWERARDO Eles merecem. Bota a fita pra gente, Rafaela. MARIELA (VS) E essas mulheres que tu inventou? Que imaginação! Eu praticamente posso vê-las... Míriam, Valquíria, Carolina... TOMÁS (VS) Digamos que eu sou um ficcionista amador. Ewerardo sorri e desliga o gravador. EWERARDO Totalmente amador. HENRIQUETA Só me diz uma coisa, Ewerardo. Como tu teve certeza que era uma armação pra cima de ti? EWERARDO Pela cueca. Eu vi que a Mariela estava falando a verdade, que a cueca era mesmo minha. Ela tinha uma mancha que eu lembrava bem. E só ela podia ter dado a cueca para o Tomás. Eles tinham que estar juntos na sacanagem. RAFAELA Mas por quê eles não usaram uma cueca qualquer? EWERARDO Aí não seria minha. Não valeria como prova de que eu fui a um motel. O roteiro da ficção deles tinha um erro de estrutura, que eles não perceberam. Estavam se divertindo tanto com a trama, com a minha desgraça, que se acharam onipotentes, que podiam fazer qualquer coisa. O poder inebria as pessoas. HENRIQUETA Então... Eles usaram uma prova contra ti que, ao ser mostrada, virou uma prova contra eles. EWERARDO Exatamente. RAFAELA Moral da história? EWERARDO Pior que um amante amador, só um roteirista amador. E pior que um roteirista amador, só senador da República. Quem vai esfregar minhas costas hoje? FIM ******************************************************************* (c) Carlos Gerbase, 2001 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br