O BOCHECHA episódio da série CONTOS DE INVERNO 2002 argumento e roteiro de Beto Philomena Versão 27/03/2002 coordenação de texto da série Jorge Furtado e Giba Assis Brasil produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para RBS TV ******************************************************************* CENA 1 - INT/DIA - ESTUFA Uma grande estufa, plantas muito bonitas, de todos os tipos: orquídeas, bromélias, rosas, gérberas... tudo isso ao som de Mozart. CARMEM, 40 anos, está tocando violino dentro da estufa. EDGAR, 45, com um vaso de orquídeas, passa pela mulher. Ela pára de tocar. CARMEM Posso te ajudar, Edgar? EDGAR Não, obrigado. Continue tocando. Carmem recomeça a tocar. Edgar trabalha no vaso com a orquídea. NARRADOR (VS) No bairro, todos concordam: Carmem e Edgar formam um casal admirável. Foram feitos um para outro. Nem amigos se entendem tão bem. Edgar tem uma floricultura e Carmem é professora de violino. Carmem acredita que a música tem um poder mágico sobre as plantas. Edgar não tem por que duvidar. Carmem pára de tocar e observa Edgar. CARMEM É presente? EDGAR É, para o Chiquinho. Ele encomendou uma orquídea para dar de aniversário para a Carlota, amanhã. CARMEM Bom... então eu vou tocar Vivaldi. Mozart é bom para as rosas. Orquídeas adoram Vivaldi. Carmem ajeita o violino entre o queixo e ombro e começa a tocar a Primavera de Vivaldi. Edgar se aproxima, fica parado olhando para ela, sorrindo com suas grandes bochechas rosadas. Carmem se desconcentra, desafina feio. Edgar faz uma cara de "ui". Ela pára de tocar, ele sorri e volta ao trabalho. Carmem afina o violino, observa Edgar com o canto do olho. CARMEM Edgar, você não acha romântico um homem levar um bofetão de uma mulher? Edgar fica surpreso com a pergunta da mulher mas responde sem tirar os olhos das plantas. EDGAR Só em filme. Imagina, por exemplo, a Carlota, com aqueles 110 quilos enfiando a mão no Chiquinho. Coitado... iria parar num hospital. CARMEM Que sem graça, Edgar. Tanta situação mais glamourosa para imaginar e tu pensando no Chiquinho e na Carlota. EDGAR É que o Chiquinho é meu amigo. Eu me preocupo com ele. CARMEM Um tapinha não dói, Edgar. EDGAR Ah... um tapinha da Carlota deve doer. Mas por que tu estás me perguntando isso? CARMEM Esquece, Edgar. Esquece. Carmem volta a tocar. NARRADOR (VS) Carmem só não errou nenhum movimento por estar muito familiarizada com a obra de Vivaldi. Edgar jamais poderia imaginar o que estava se passando com a esposa. Naquela tarde, Carmem marcou hora no salão de beleza de sua melhor amiga. Carmem precisava contar o seu segredo para alguém. CENA 2 - INT/DIA - INSTITUTO DE BELEZA Carmem e Jurema, a cabeleireira, conversam. Carmem, com a cabeça embaixo do secador de cabelos, não percebe que está falando alto. CARMEM Tu já "destes" um tapa no teu marido? A pergunta de Carmem ecoa pelo salão, chamando a atenção de todas as clientes e cabeleireiros. Imediatamente, todas as mulheres balançam a cabeça positivamente, inclusive uma bichinha. JUREMA Hum, hum. CARMEM Assim na cara? JUREMA Arrã... Uma vez eu encontrei no bolso do paletó dele um papel com o nome Vanessa escrito e ele teve a coragem de dizer que era o nome de uma égua que um amigo do jockey tinha sugerido para uma aposta. CARMEM Tu "destes" um tapa no Fonseca só por causa de uma suspeita? JUREMA Não... O tapa eu dei um dia depois, quando a égua ligou lá pra casa. Mas por que essa pergunta? O Edgar aprontou alguma? CARMEM Quem me dera! Se o Edgar me desse um motivo eu acabava logo com esta obsessão. JUREMA Que obsessão é essa? INSERT: Cena de filme, mocinha esbofeteia galã. Eles se beijam. Cena repete, mais em close. CARMEM (VS) Eu vi um filme em que a mocinha esbofeteou o galã e depois ele puxou ela contra o corpo e lascou um beijo de tirar o folêgo. Desde então eu não consigo tirar isso da cabeça. Carmem e Jurema no instituto de beleza. CARMEM Eu preciso ter esta experiência com o Edgar. Nosso casamento vai super bem. A gente se ama muito. Em 20 anos, nunca tivemos uma briguinha sequer. Mas eu sinto que está faltando alguma coisa mais forte entre a gente. JUREMA É... dizem que o melhor do casamento são as brigas. O resto é tudo mais ou menos. Uma briguinha de vez em quando até que esquenta a relação. CARMEM Tu não tá me entendendo. Eu não quero brigar com Edgar. Eu só quero dar um tapa na cara dele e receber um beijo depois, como no filme. JUREMA Se é só isso por que tu não propõe para o Edgar um jogo erótico? Sabe como é... no rala e rola. Um sexozinho selvagem tem o seu valor. Um cabelereiro suspira. CARMEM O Edgar jamais aceitaria uma proposta dessas. JUREMA Mas isso é tão comum entre casais! CARMEM Não para o Edgar. JUREMA Bom...se é assim porque tu não dá um tapa... acidental? CARMEM Eu já pensei nisso. Às vezes eu gosto de dançar enquanto os meus alunos tocam.... CENA 3 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA Carmem dança ao som do violino de um dos seus alunos. Edgar entra na sala. Carmem percebe e vai dançando em direção a ele, braços soltos. Ao chegar próximo a Edgar, levanta um braço, como que dançando, e dá-lhe um bofetão tão forte que ele cai desmaiado. Carmem fica olhando para o marido no chão preocupada com o resultado do tapa. CENA 4 - INT/DIA - INSTITUTO DE BELEZA Carmem e Jurema terminam a conversa. CARMEM Mas assim eu posso machucar o Edgar. JUREMA É... pode não ser uma boa idéia. CARMEM O ideal seria se o Edgar me desse um motivo. Jurema concorda em silêncio e volta a trabalhar no cabelo de Carmem, que fica pensando, absorta. NARRADOR (VS) Carmem bem que tentara entender os mecanismos psíquicos e processos inconscientes que a impeliam a dar uma sonora bofetada no marido. Tentou, mas não muito. Às vezes é mais cômodo pensar que algumas coisas são do jeito que são. E pronto. CENA 5 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: QUARTO Carmem no seu quarto assistindo televisão. INSERT: Cena de uma mocinha esbofeteando o galã em um filme. Carmem, nervosa, desliga a tevê bem no instante que Edgar sai do banheiro passando loção no rosto recém barbeado. EDGAR O que tem pra jantar? Carmem se levanta e dá um tapa na cara do marido. Carmem, que continuava sentada na cama em frente a tevê, acorda do seu breve sonho e responde. CARMEM Bife enrolado. EDGAR Que cara é esta, Carmem? CARMEM Eu acabei de ver uma cena emocionante na tevê. A mulher dá um tapa no marido, ele beija ela e acaba o filme. Não é lindo? EDGAR Sinceramente? Eu não consigo imaginar um final feliz para um bofetão. Edgar, enquanto veste o pijama, conta uma história triste para Carmem. EDGAR Quando eu tinha 10 anos eu era um dos melhores alunos da classe. Só tirava boas notas, era o presidente da turma e capitão do time do colégio. Os meus colegas me respeitavam e as gurias todas queriam me namorar. Mas eu só tinha olhos para uma delas, a Hortência. Uma menina que sentava na primeira fila. CENA 6 - EXT/DIA - PÁTIO DO COLÉGIO Crianças no pátio de uma escola. O menino Edgar, 10 anos, e um amigo da mesma idade procuram HORTÊNCIA entre as meninas. Encontram. Edgar prende o espelhinho no sapato. Se aproxima por trás de Hortência. EDGAR (VS) A brincadeira preferida dos guris era colocar um espelhinho amarrado no sapato para olhar as calcinhas das gurias. O meu melhor amigo apostou que eu não teria coragem de ver qual a cor das calcinhas da Hortência. Para manter a minha fama, eu aceitei a aposta. Só que deu tudo errado. Hortência deixa cair o lápis, vê o espelhinho, encara Edgar e dá- lhe um tabefe na cara. Todos ficam rindo. Hortência encara Edgar. EDGAR (OFF) Eu não tive nenhuma reação. Fiquei lá imóvel, pensando na grande bobagem que tinha feito. Eu nunca consegui esquecer o som das gargalhadas dos meus colegas e, principalmente, o olhar da Hortência. Edgar termina de vestir o pijama, senta na cama ao lado de Carmem. EDGAR Eu nunca mais fui o mesmo. Comecei a tirar notas baixas, perdi a reeleição para presidente da turma e a faixa de capitão do time. Como eu poderia peitar um juiz se apanhava de menina na cara? Mas o pior foi o apelido que tive que carregar até trocar de colégio: bochecha. CARMEM Bochecha, Edgar! Que apelido engraçado! EDGAR Eu não acho nada engraçado. CARMEM Mas já faz tanto tempo! EDGAR Pra mim parece que foi ontem. CENA 7 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA Carmem e DAIANI, a empregada, 25 anos, arrumam a mesa de jantar. Carmem observa o corpo de Daiani: ela é muito bonita, corpo perfeito. NARRADOR (VS) O trauma de Edgar certamente atrapalharia os planos de Carmem. Mas, mesmo assim, ela não desistiria. O desejo de esbofetear o seu marido era mais forte que a razão. Naquela noite, durante o jantar, Carmem teve uma idéia. CARMEM Daiani, vai servindo o jantar que eu preciso ligar para a Jurema. CENA 8 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: QUARTO Carmem, ao telefone. CARMEM Jurema, tive uma idéia para dar um tapa no Edgar. Sabe a Daiani, a minha cozinheira? CENA 9 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: COZINHA Daiani experimenta um uniforme novo. DAIANI Dona Carmem, a senhora não acha que este uniforme novo é muito curto? CARMEM Está ótimo, Daiani. É a última moda. CENA 10 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA E COZINHA Daiani serve o almoço. Carmem se retira da mesa e vai até a cozinha, de onde fica ouvindo a conversa de Edgar e Daiani. EDGAR (FQ) Hum... que maravilha! De quem foi a idéia? DAIANI (FQ) Da dona Carmem. EDGAR (FQ) A aparência tá ótima. DAIANI (FQ) Tira a mão, seu Edgar. A dona Carmem não vai gostar. EDGAR (FQ) É só tu não contar pra ela. DAIANI (FQ) Espera, seu Edgar! EDGAR (FQ) E sempre achei as suas bem mais gostosas que as da Carmem. DAIANI (FQ) É que as da dona Carmem têm muita gordura. EDGAR (FQ) Ah, deixa, a Carmem vai demorar lá dentro. Só vou tirar uma lasquinha. DAIANI (FQ) E senhor promete? Carmem invade a sala, furiosa. CARMEM O que é isso, Edgar! EDGAR (de boca cheia) Coxinha de galinha frita. Tá uma delícia! Experimenta. Edgar está sentado comendo uma coxinha de galinha frita. DAIANI Eu falei que era pra esperar a senhora. EDGAR (falando de boca cheia) Não deu pra esperar, Carmem. Tá bom demais. Carmem fica desconcertada com a cena. Senta à mesa e se desarma. CENA 11 - INT/DIA - ESTUFA Edgar e Carmem conversam. Ele está mexendo num vasos de flores do campo. Ela está lendo algumas partituras. EDGAR Carmem, será que as flores também gostam de música popular? CARMEM Claro, as plantas gostam de música. Clássica, popular... tanto faz. Por quê? EDGAR É que eu estive pensando que flores do campo devem gostar de música sertaneja. Tu sabes tocar alguma? Carmem olha para Edgar e começa a tocar "Entre tapas e beijos" no violino. Neste momento, Jurema entra na estufa. Carmem pára de tocar e vai até a amiga, arrastando-a pelo braço para um canto longe do marido. JUREMA E aí? CARMEM Não funcionou. O Edgar é muito distraído. Mas eu não vou desistir assim tão fácil. Vou embebedar o Edgar. Um marido bêbado certamente vai se tornar inconveniente ao ponto de merecer uma bofetada. JUREMA Só tem um problema: o Edgar não bebe. CARMEM Hoje ele vai beber... CENA 12 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: COZINHA Carmem, na cozinha, consulta um livro de receitas e prepara um jantar, cheio de ingredientes. CARMEM (FQ) ... Vou preparar um jantar especial para ele. Edgar entra na cozinha. EDGAR E a Daiani? CARMEM Dei folga. EDGAR O que nós vamos jantar? CARMEM Pato ao rum, batatas assadas na cerveja, arroz selvagem ao conhaque e pêras ao vinho de sobremesa. E, excepcionalmente, esta noite tu vais me acompanhar na champagne. EDGAR Champagne? CARMEM Uma tacinha não vai te fazer mal. CENA 12A - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA Mesa de jantar com flores e velas, os pratos. Carmem está bêbada, Edgar não. EDGAR Que champagne bem forte esta. A última vez que eu fiquei tão tonto assim foi no casamento da tua prima que eu misturei champagne, cerveja e vinho. Edgar enfia mais uma pêra na boca e fica com a bochecha saliente. CARMEM (bêbada) Sabe que tu tens uma bochechinha muito gostosinha, Edgar. Dá vontade de apertar. EDGAR Ihh... eu acho que tu já bebeu muito desta champagne. É melhor parar. Tu é muito fraca pra bebida. CARMEM Agora deu pra me controlar, bochecha! EDGAR Pô, Carmem! Tu sabe que eu não gosto deste apelido! CARMEM Ah, não fica assim, bochecha. Vem cá que eu vou te dar uma beijoca nesta bochecha gostosa. Edgar, meio contrariado, aproxima o rosto na direção da esposa e fecha os olhos para ganhar o beijo. Carmem, vendo aquela bochecha vermelha bem ali na sua frente, não se controla e prepara-se para desferir o tabefe dos seus sonhos. Mas a bebedeira é tanta que o movimento do braço para trás faz com que ela caia da cadeira, capotando de vez. Edgar abre os olhos, procura Carmem. EDGAR Carmem? Carmem está estirada no chão, inconsciente. Edgar, inclinado ao seu lado, dá-lhe delicados tapinhas no rosto para reanimá-la. Aos poucos, Carmem vai acordando. EDGAR Carmem... Carmem... CARMEM (ainda bêbada) O que é isso, Edgar? Pára de dar tapa na minha cara e me levanta daqui. O que aconteceu? EDGAR Tu apagou. Vamos dormir, vamos... CENA 13 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA Carmem (de ressaca) entra na sala. Edgar está lendo jornal e tomando o café da manhã. EDGAR Bom dia. CARMEM Tô com uma bruta dor de cabeça. Carmem senta e observa a contra-capa do jornal que Edgar tem na mão. Na contra-capa, a manchete: COMEÇAM OS PREPARATIVOS PARA O PORTO ALEGRE EM CENA CARMEM Edgar, a Jurema me convidou para fazer um curso de teatro amador. Quem sabe eu não dou para ser atriz. EDGAR Arrã...! Me dá uma bolacha! Carmem imagina a cena: se vira e tasca uma bolacha em Edgar. Edgar continua lendo o jornal. EDGAR Não... essa não. A recheada. Carmem larga o vidro de bolachas cream cracker e pega as bolachas recheadas. Entrega para Edgar. CENA 14 - INT/DIA - INSTITUTO DE BELEZA Carmem e Jurema, no instituto. CARMEM Um desastre. Quem levou tapa fui eu. Mas eu tive outra idéia. JUREMA O tu vai fazer? CARMEM Teatro. CENA 15 - INT/DIA - CASA DE CARMEM E EDGAR: SALA Carmem entrega a Edgar um texto encadernado. Ele lê. EDGAR O teste é amanhã? Já? CARMEM Teatro amador é assim. Nós vamos encenar "A Megera Domada", de Shakespeare. Me ajuda? EDGAR O que eu tenho que fazer? CARMEM Tu vais fazer o papel do Petrúquio e vou ser a Catarina. EDGAR Arrã... Aqui, no fim da folha, está escrito: "Catarina esbofeteia Petrúquio". CARMEM Sim, é uma cena em que eles discutem. No final, a Megera Domada dá um tapa no Petrúquio. Petrúquio puxa ela pelo braço e beija-a com muito ardor. EDGAR Muito ardor é? Como é que tu pretendes fazer esta cena? CARMEM O mais real possível, Edgar. Eu preciso incorporar a fúria shakespeariana. EDGAR Fúria, é?! Que tal se a gente trocasse o tapa por um beliscão no braço? CARMEM Um beliscão, Edgar? Isso aqui é Shakespeare! EDGAR Pois é, um beliscão shakespeariano. CARMEM Não complica, Edgar! EDGAR Não é tu que vais levar um bofetão. CARMEM Edgar, tu não tá entendendo qual é o verdadeiro significado de um tapa. Um tapa não é apenas um tapa. É o mais transcendente, o mais importante de todos os atos humanos. EDGAR Eu pensava que o mais importante dos atos humanos era estender a mão ao próximo. CARMEM Tá bem, Edgar. Eu só vou estender a mão próximo da tua cara! Não esquece: na hora em tu disseres "Não, volte aqui, boa Catarina, e veja que sou um cavalheiro", tu me pegas pelo braço, eu te dou um tapa, de mentirinha, e depois tu me beija. Combinado? EDGAR Deixa comigo. Eu sou um ótimo ator. Edgar faz um gesto dramático de quem levou um tapa na cara. CARMEM Vamos começar! A primeira fala é tua. Vai... EDGAR (lendo o texto) Catarina, não maltrate aquele que a corteja. CARMEM Corteja ou corveja? EDGAR (perdendo o personagem) O que quer dizer corveja? CARMEM Corvejar é fazer mau agouro, Edgar, como um corvo. Apenas lê o texto e não faz mais perguntas. EDGAR É que eu preciso entender bem a trama. Eu preciso entrar no personagem. CARMEM Edgar, sou eu quem vai fazer o teste. EDGAR Ah, é! CARMEM Começa de novo! Edgar retoma sua posição, lê o texto. Através da janela da sala, ao fundo e sem que eles percebam, lentamente começa a nevar. EDGAR Catarina, não maltrate aquele que a corteja. CARMEM Corteja ou corveja? EDGAR Oh, pombinha delicada, um corvo te agradaria? CARMEM Um corvo é melhor que um abutre! EDGAR Vejo-a agora irritada demais; a pombinha virou vespa. CARMEM Se virei, cuidado com o meu ferrão. EDGAR Só me resta um remédio: arrancá-lo. CARMEM Sim, se o imbecil soubesse onde fica o ferrão. EDGAR Mas quem não sabe onde é o ferrão da vespa? No rabo. CARMEM Na língua, seu estúpido. EDGAR De quem? CARMEM Na sua, que fala de maneira tão grosseira! E agora, adeus! Carmem se afasta, passando próximo da janela. EDGAR Não, volta aqui, Catarina, e veja... (apontando) está nevando! CARMEM Como assim: está nevando? EDGAR Está nevando em Porto Alegre, Carmem. Olha pra janela! Os dois observam, pela janela, a neve caindo lá fora. CARMEM Não acredito que está nevando justamente agora. Na minha vez. EDGAR Pode acreditar, Carmem. É neve mesmo! Edgar larga o texto no chão, veste o casaco e sai, apressado. Carmem senta no sofá, inconformada, ao fundo a janela e a neve caindo. CENA 16 - INT/DIA - INSTITUTO DE BELEZA Carmem e Jurema no instituto. CARMEM Há vinte anos que não nevava em Porto Alegre. Eu ouvi dizer que, quando a gente quer muito uma coisa, o universo conspira a nosso favor. Pois eu acho que o universo não vai com a minha cara... VASCO (FQ) Bom dia! Neste momento, Jurema liga um secador de cabelos que faz um barulho infernal. Carmem e Jurema viram-se para a porta, onde aparece VASCO (de "O Último desejo do Dr. Genarinho"), com meio corpo para dentro do Instituto. JUREMA (falando alto) Sim? VASCO Sabe se eu posso deixar a perua ali na esquina? Jurema e Carmem se olham, como que confirmando o que ouviram. Em seguida Jurema responde. JUREMA Não, mas tem uma garagem aqui na frente. VASCO (sem entender direito) Ah, obrigado. Vasco sai, batendo a porta. Jurema desliga a máquina. CARMEM Olha, Jurema, eu vou esquecer esta maluquice de tapa e voltar pra minha vidinha tranqüila. JUREMA Carmem, escuta o que eu te digo: se tu não fizer isso tu vais ser, para o resto da vida, uma mulher frustrada. CARMEM Pior: uma velha frustrada. Fazer o quê? Já tentei de tudo... Não há nada nesse mundo que faça eu dar um tapa na cara do Edgar. JUREMA E no outro? CARMEM Outro o quê? JUREMA No outro mundo. CENA 17 - INT/NOITE - TERREIRO DE UMBANDA Terreiro de umbanda, tambores, cantos. Máscaras africanas, estátuas de santos e orixás. Edgar leva uma baforada de um charuto e esfrega o nariz. Carmem e Jurema procuram um lugar para sentar, Edgar as segue, fala baixo com Carmem. EDGAR Não sei onde eu estava com a cabeça. Eu não gosto de mexer com estas coisas, Carmem. Espiritismo, magia negra... sei não... JUREMA É magia branca, Edgar. EDGAR Não é a cor que me incomoda, Jurema. JUREMA Tu vais gostar, Edgar. Estas cerimônias são bem exóticas. Me disseram que pessoas muito sensíveis, mesmo não acreditando nestas coisas, às vezes incorporam espíritos de gente que já morreu, entram em transe, chegam a falar outras línguas. EDGAR Ih!!! Quem sabe a gente vai numa pizzaria? JUREMA Vamos alimentar o espiríto, Edgar. Ampliar os nossos horizontes, conhecer as ciências ocultas, as forças sobrenaturais, os gênios e os demônios que nos habitam. EDGAR Eu ainda prefiro uma pizza! (para Carmem) Vamos embora daqui, Carmem. A gente deixa a Jurema e vai para casa assistir um vídeo e comer uma pizza. CARMEM Relaxa, Edgar. Faz alguma coisa para te distrair. Olha só quantas flores. Por que tu não conversa com o pessoal do terreiro e te oferece para fornecer as flores para as cerimônias? Edgar senta em uma das cadeiras reservadas para os fiéis e fica examinando as plantas. EDGAR Clerodendron thomsonae, Rhododendron indicum, anthirrhinum majus, helianthus annus, saintpaulia ionantha, portulaca grandiflora, celosia argentea cristata, altroemerias pelegrina... Antigonon leptopus. Próximo a ele, um outro casal de CURIOSOS, vestidos com roupas estranhas ao ambiente, observam Edgar. A mulher fala ao ouvido do homem. MULHER Aquele ali já incorporou. Os atabaques começam a tocar e Edgar gela. Jurema e Carmem trocam sinais. Jurema dá a entender que ainda não está na hora. O pai de santo e as mulheres começam a dançar. O clima começa a ficar tenso quando um homem se prepara para degolar um galo. Uma mulher entra em transe. Edgar quer se levantar e Jurema segura-o pelo braço. EDGAR Eu vou lá no carro ouvir o jogo do Grêmio e depois eu volto. Carmem segura Edgar. JUREMA Senta, Edgar. Agora é que vai começar a ficar bom. EDGAR Pra quem? Para os espíritos! Jurema dá o sinal de OK para a amiga. Carmem começa a encenação. Inicia com uns calafrios. Depois o corpo todo treme como se estivesse levando um choque, culminado com um revirar de olhos assustador. Edgar vê a cena em pânico. Quer tirar sua mulher do transe e lhe dirige a palavra. EDGAR O que está acontecendo? Tá te sentindo bem, Carmem? As mulheres do terreiro se aproximam de Carmem para recepcionar o espiríto que está baixando. Edgar tenta chegar perto da esposa mas é impedido pelo pai-de-santo que faz um sinal para ele sentar e ficar quieto. Edgar olha para Jurema, pedindo ajuda. Jurema pede para ele se acalmar. Carmem levanta da cadeira e começa a dançar no ritmo dos tambores. Vai dançando até ficar em frente ao marido, que se levanta e pega-a pelo braço. CARMEM (com voz grossa) Me solta, Clóvis! EDGAR Clóvis?!!! CARMEM Eu estou me divertindo, com os meus amigos. EDGAR Amigos?!!! Que amigos? Vamos embora daqui, Carmem. O pai-de-santo interfere e fala com Edgar. PAI-DE-SANTO É melhor o misifio não contrariar o espírito, senão ele não desencarna da sua muié! EDGAR A muié é minha e eu faço o que bem entender. Edgar pega novamente a mulher pelo braço e tenta arrastá-la para fora do terreiro. EDGAR Tá bem, eu sou o Clóvis. Mas agora vamos embora desta festa que já está tarde. CARMEM Não mesmo! Eu vou dançar até o sol raiar. EDGAR Ah, não vai mesmo. Nem que eu tenha que te levar a força. Edgar dá um puxão na mulher. Carmem se desvencilha do marido e, finalmente, dá o tão desejado tapa na cara de Edgar. Edgar fica atônito por um instante. CENA 18 - EXT/DIA - PÁTIO DO COLÉGIO De novo a cena dos meninos no pátio. Hortência dá um tabefe no menino Edgar. Mas, desta vez, o menino Edgar puxa Hortência pelo braço e beija-a. CONT. CENA 17 - INT/NOITE - TERREIRO DE UMBANDA De volta ao terreiro, Edgar adulto faz a mesma coisa com a sua esposa: dá um grande beijo em Carmem, que desmaia de emoção. CENA 19 - INT/NOITE - CASA DE CARMEM E EDGAR: QUARTO Carmem em casa, na cama. CARMEM Jura? EDGAR Pergunta para a Jurema. CARMEM Não acredito que isso aconteceu comigo. Eu não me lembro de absolutamente nada. EDGAR Pois eu nunca mais vou esquecer desta noite. Minha bochecha está doendo até agora. CARMEM Não exagera, Edgar! Eu nem bati tão forte assim. Quer dizer... a Jurema disse que foi só um tapinha de amor. Por sinal, ela disse que foi uma cena linda, como nos filmes. Um tapa e depois um beijo. Vem aqui, Edgar. Me dá outro beijo igual aquele. Os dois começam a transar. Edgar apaga a luz de cabeceira. CARMEM Ai, Edgar, vai devagar! Ai, Edgar, tô toda arrepiada. Ai, Edgar! EDGAR Me chama de bochecha. CARMEM Ai, bochecha, que loucura! Entra música "Entre Tapas e Beijos" (versão com letra). FIM ******************************************************************* (c) Beto Philomena, 2002 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br