O COMPRADOR DE FAZENDAS episódio da série BRAVA GENTE original de Monteiro Lobato adaptação de Carlos Gerbase e Jorge Furtado oitavo tratamento (final) 21/03/2001 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para TV Globo ****************************************************** CENA 1 - FAZENDA DO ESPIGÃO/PISCINA - EXTERIOR - DIA (créditos iniciais superpostos) Uma paisagem bonita: a casa da fazenda ao fundo, céu azul, nuvens brancas, a piscina, duas roseiras em flor. Um bonito cavalo pasta perto de uma pequena laranjeira carregada. Duas galinhas ciscam. DAVI (OFF) Não é uma beleza? DAVI, 50 anos, de chapéu e roupas simples, e SALGADO, 30 anos, vestindo roupas urbanas, estão parados na estrada. Salgado leva um jornal dobrado em baixo do braço. SALGADO Bonito mesmo. DAVI O senhor não sabe o que é a lua cheia nascendo por trás da casa... SALGADO Eu imagino. Mas eu preciso da fazenda pra plantar. Qual é a produtividade por hectare? DAVI É enorme, doutor Salgado. Enorme. SALGADO O senhor produz o quê? DAVI De tudo. (aponta) Rosas. Laranjas. Galinhas. Cavalos. A lua. SALGADO Mas o senhor planta o quê? DAVI Ah, o senhor quer saber da plantação? SALGADO Isso. DAVI É pra lá. Davi põe a mão no ombro de Salgado, forçando-o a olhar para outro lado. Davi aponta. DAVI O senhor está vendo aquela árvore seca lá adiante? SALGADO Onde? Ao fundo, as duas roseiras saem correndo da paisagem. DAVI Lá onde está voando aquele quero-quero. SALGADO Qual? Ao fundo, ISAURA, 45, e ZILDA, 18, entram em cena tentando, sem fazer muito barulho, segurar as galinhas. DAVI O quero-quero macho. SALGADO Como o senhor sabe que é macho? Isaura e Zilda saem de cena com as galinhas. DAVI Ah, isso é difícil de explicar assim para um leigo. É mais pelo jeitão dele mesmo. SALGADO Seu Davi, eu não estou interessado em quero-quero, nem macho, nem fêmea. Ao fundo, Zilda e Isaura puxam um carrinho de mão onde está o vaso com a laranjeira. O cavalo, que está amarrado na laranjeira, também sai de cena. SALGADO (mostra o jornal) O senhor anunciou uma fazenda com excelente produtividade, mas não especificou qual a produtividade, nem o que o senhor planta. Eu quero ver a sua plantação. DAVI Ah, o senhor quer ver a plantação? SALGADO Foi o que eu lhe disse desde o início. O senhor é que resolveu me mostrar a piscina e... (faz menção de virar-se, mas Davi o detém). DAVI A piscina o senhor já viu, não precisa ver de novo. Eu vou lhe mostrar o que eu planto. Por aqui, por favor. CENA 2 - FAZENDA DO ESPIGÃO/FUNDOS - EXTERIOR - DIA Uma pequena horta perto dos fundos da casa. Duas galinhas ciscam. Ao fundo, duas roseiras em flor. Um bonito cavalo pasta à sombra de uma laranjeira carregada. DAVI Olha só. Não é uma beleza? SALGADO (impaciente) É. DAVI O senhor precisa ver o que é a lua nascendo por trás da (casa). SALGADO Mas, afinal, de que lado nasce a lua? DAVI Isso varia muito. Ela é de lua. Ah, ah, ah... SALGADO (sério, quase grosseiro) Olha, seu Davi. Afinal, onde está a plantação? Isso aqui é uma horta: tomates, alface, duas roseiras, (estranhando) um pé de laranja e um cavalo branco. Pára. Olha para o cavalo. SALGADO Esse cavalo não é aquele? DAVI Aquele qual? SALGADO Aquele outro. DAVI Que outro? SALGADO O outro cavalo. DAVI Ah, não senhor, esse é outro. SALGADO Pois esse outro é igualzinho ao outro. DAVI É verdade. A gente até pensou em fazer uma mancha para diferenciar os dois e acabar com essa confusão. SALGADO Por favor, eu quero ver aquele outro cavalo. DAVI Para que? O senhor não disse que este é igualzinho? Vê este! SALGADO Eu quero ver aquele. Isaura sai de trás da laranjeira. ISAURA Primeiro, o senhor vai tomar um cafezinho. DAVI Isaura, minha esposa. Isaura se posiciona de modo a forçar Salgado a olhar para o outro lado. SALGADO Muito prazer. Ao fundo, Zilda tira o cavalo da horta. ISAURA O prazer é todo meu. (pega uma garrafa térmica, serve café) O café tá fresquinho. Açúcar? SALGADO Um pouquinho. ISAURA Quantas colheres? Ao fundo, Zilda tira a laranjeira da horta. ISAURA O senhor quer que eu mexa, ou senhor mesmo gosta de mexer? Ao fundo, Zilda leva as galinhas. SALGADO (mais impaciente que nunca) Para mim é indiferente. ISAURA Então vou mexer do meu jeito que, pelo menos comigo, sempre dá certo. DAVI Isso é verdade. Quando a Isaura mexe um café, tá mexido. Ela mexe o açúcar com a colher de um jeito bastante peculiar e lento. SALGADO Está bom assim. Obrigado. Salgado pega a xícara e bebe de um gole. SALGADO Agora vamos ver aquele cavalo. DAVI Por aqui. (aponta para o lado) É um atalho. CENA 3 - FAZENDA DO ESPIGÃO/PISCINA - EXTERIOR - DIA Salgado, seguido de Davi e Isaura, chega suando na piscina, onde já estão as galinhas, a laranjeira e o cavalo. Salgado olha para o cavalo. SALGADO É igualzinho. DAVI Parece mesmo. ISAURA Cara de um, focinho de outro. SALGADO Onde estão as roseiras? Zilda levanta de trás da laranjeira, levando as mãos à cabeça. ZILDA Me esqueci das roseiras. CENA 4 - FAZENDA DO ESPIGÃO/FACHADA - EXTERIOR - DIA Salgado, furioso, é seguido por Davi até o seu carro. Isaura e Zilda acompanham. DAVI Eu faço um desconto no preço da fazenda. SALGADO De graça, é caro. DAVI Dou a laranjeira de brinde. Pode levar agora mesmo. Vendo os dois cavalos pelo preço de um. SALGADO Que dois cavalos? Só tem um. DAVI Então vendo um por preço de dois. É pegar ou largar. Salgado arranca com sua caminhonete, levantando uma grande nuvem de poeira sobre a infeliz família Moreira de Souza, ainda reunida na frente da fazenda. Os três olham, desesperançados, a caminhonete afastando-se. ISAURA Acho que ele largou. ZILDA E se a gente baixar mais o preço? DAVI Se baixar mais, vou ter que pagar pra me livrar dessa desgraça. Os três olham para a casa. ZILDA Quanto? Talvez valha a pena. DAVI Não fala bobagem. ZILDA Todos que vêm aqui fogem correndo. ISAURA São uns idiotas, insensíveis, não reconhecem o valor histórico da fazenda. Se este país fosse sério esta casa seria tombada. DAVI Pra quê? Já está tombando sozinha. ZILDA Se, pelo menos, a casa não parecesse tão velha. ISAURA Antiga, Zilda. A casa não é velha. É antiga! DAVI Tá bom... (abraça a mulher) Vamos pra dentro, minha antiga. ISAURA Antiga é a sua avó. Eu não tenho uma ruga. Davi pára e aponta para a casa DAVI É isso! ZILDA Isso o quê? DAVI Não adianta enfeitar só a horta e a piscina. A casa tá cheia de rugas. Temos que fazer uma maquiagem, dar um pinturinha, cobrir as rachaduras. O homem da imobiliária disse que o outro interessado vem na segunda-feira. (olha para as roupas das mulheres) E vocês precisam se arrumar melhor. ZILDA Com que dinheiro, pai? DAVI As tintas, a gente compra fiado. E as roupas, dá- se um jeito. Vamos começar de uma vez! CENA 5 - FAZENDA DO ESPIGÃO/VÁRIOS LOCAIS - EXT/INT - DIA Cena de montagem. Davi, Isaura e Zilda fazem uma operação de guerra para disfarçar os problemas da casa. Davi lava paredes com uma mangueira velha, furada, amarrada com arame; Zilda limpa a mesa do jardim (que está coberta de fungos); Davi corta o emaranhado de galhos da fachada; Isaura costura a forração de sofá; Davi pinta as paredes externas e o portão; Isaura coloca quadros em cima de todos os buracos e manchas nas paredes internas; Davi coloca vinho de garrafão numa garrafa de vinho importado; Isaura retira uma velha cortina da janela e experimenta o tecido sobre o corpo de Zilda; Zilda cobre o sofá com panos e colchas; Davi põe um tapete na escada escondendo os buracos dos cupins. Uma maquiagem executada com muito esforço e suor, mas evidentemente incapaz de resistir a um exame mais sério. CENA 6 - FAZENDA DO ESPIGÃO/FACHADA - EXTERIOR - DIA Fim de tarde. Os três apreciam o resultado do trabalho e começam a recolher o material. DAVI Ficou uma beleza. Acho que vou até subir o preço. ZILDA Paizinho, querido... Se... Por um acaso... A gente vender mesmo essa joça, o senhor me paga aquele... (teatral) curso de interpretação para cinema e TV? ISAURA Tu sonha demais, minha filha. DAVI E vê novela demais. Zilda olha para o pai, irritada. ZILDA Eu vou ser atriz! De cinema e TV. DAVI E eu vou ser pescador! De vara e carretilha. ISAURA Antes que vocês dois gastem tudo em bobagem, nós vamos comprar uma casinha na cidade. Já andei vendo os preços. CENA 7 - FAZENDA DO ESPIGÃO/COZINHA - INTERIOR - NOITE Numa mesa da cozinha, os três jantam. Isaura traz a comida de um fogão a lenha. ZILDA Uma atriz de novela ganha milhões, pode comprar muitas casas. DAVI O milho no pé, e já tá fervendo água pra polenta... Primeiro nós temos que enrolar o comprador. ISAURA Eu estou preparada. Fui até a venda. Isaura abre um armário e traz para a mesa uma coleção de "gulodices de hospedagem": um grande queijo colonial, biscoitos variados, rapadura, duas lingüiças, uma garrafa de pinga "da especial" e um pastelão de palmito. Davi e Zilda olham para tudo aquilo, gulosos. DAVI Este pastelão é de quê? ISAURA Palmito. ZILDA (teatral) O moço não há de querer tudo. DAVI Olha! Ela já está falando que nem novela das seis. ISAURA (guarda tudo no armário) Se sobrar, a gente come. Pra fazer vista tem que ficar inteiro. ZILDA (boceja) Espero que ele não venha muito cedo amanhã. ISAURA Moço da cidade, deve acordar meio-dia. CENA 8 - FAZENDA DO ESPIGÃO/PORTÃO - EXTERIOR - DIA O primeiro sol da manhã ilumina a fachada da casa. Um táxi pára no portão. Buzina. montagem paralela com CENA 9 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA - INTERIOR - DIA Davi, Isaura e Zilda aparecem na sala, ainda com as roupas de dormir. Isaura olha pela janela. ISAURA É ele! ZILDA Quem? DAVI O comprador. Os três vão para a janela. PEDRO TRANCOSO, 30 anos, terno e gravata, carregando uma pasta e um tubo (estes de projeto arquitet"nicos) desce do táxi. Ponto de vista deles. Pedro coloca a mão no portão, recém- pintado, e, ao ver as mãos sujas de tinta, pragueja. ZILDA Bem apessoado. Bem vestido. ISAURA É moço. DAVI Tem jeito de quem tem muito dinheiro. Pedro tenta empurrar o portão. DAVI Vamos ver se é forte. O portão não abre. Pedro empurra com toda a força. O portão cede. Pedro cai no chão. ISAURA É forte. Não deve ter nem trinta anos. Pedro levanta-se, limpa a roupa, olha na direção da casa e sorri, um sorriso luminoso, de quem está de bem com a vida. Os dentes são perfeitos. ZILDA (derretendo-se) Ele é bonito! Tenho que me arrumar! Zilda sai correndo. ISAURA Eu também! Isaura sai. DAVI Eu também. Davi põe o pijama para dentro da calça e sai para receber o comprador. CENA 10 - FAZENDA DO ESPIGÃO/FACHADA - EXTERIOR - DIA Davi sai da casa, fechando a calça. Pedro estende a mão para Davi. PEDRO Pedro Trancoso de Carvalhais Fagundes. Ao seu inteiro dispor. DAVI Davi Moreira de Souza. Pedro percebe a mão suja de tinta e recolhe o braço. PEDRO O portão foi pintado? DAVI Estes dias. PEDRO (decepcionado) Que pena. DAVI A casa inteira foi reformada. PEDRO Que desgraça! DAVI Desculpe, mas eu não estou entendendo. PEDRO Estou procurando uma fazenda em ruínas. Um velho casarão decadente. Parecido com esse, mas sem a tinta. DAVI Eu imagino como seria. PEDRO Tenho receio que essa pintura tenha alterado a personalidade da casa. DAVI Quanto a isso, o senhor pode ficar tranqüilo. Nisso aí nós não mexemos, não. Nem na personalidade, nem no assoalho. Vão caminhando na direção da casa. PEDRO Seu Davi, se este país fosse sério esta casa seria tombada. DAVI É o que eu sempre digo. PEDRO Meu interesse na fazenda é cultural. Quanto mais intocada, melhor e mais valiosa. CENA 11 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA DE ESTAR - INTERIOR - DIA Os dois entram na casa. PEDRO Eu quero uma casa tomada por cupins. DAVI (chuta um tapete que encobria um buraco de cupim) Bem, procurando talvez o senhor ache algum por aí. PEDRO Paredes descascando, escadas em ruínas... DAVI (tira um quadro, revelando a parede rachada) Dá-se um jeito. Pedro caminha pela casa, examina a mobília. PEDRO Mobília capenga... DAVI (chuta o calço do pé da mesa) A gente encontra. Pedro olha para o teto, vai até a janela. PEDRO Reboco caindo, vidraças sem vidro. DAVI Pagando bem eu lhe consigo tudo isso. Pedro olha para os campos. PEDRO (recitando) "Os pastos ensapezados, formigantes de carrapatos". DAVI Que bonito! PEDRO É do Monteiro Lobato. DAVI Não entendi, mas eu lhe arranjo. Isaura entra na sala, muito arrumada, com roupas que parecem do início do século. DAVI Minha esposa, Isaura. PEDRO Pedro Trancoso, encantado. ISAURA (apertam-se as mãos) Desculpe não recebê-lo na porta, mas segunda é o dia de folga dos empregados. DAVI Eu estou mostrando nossos trastes ao doutor. ISAURA O senhor não sabe como me dói vender esta casa. Ainda mais agora, quando a fazenda vai tão bem. DAVI Exagero dela. ISAURA Os campos tratados, a casa como nova. DAVI É só aparência. ISAURA (Isaura traz o pastelão) Aceita um pastelão de palmito? DAVI É de ontem. (para Isaura) O doutor Trancoso está interessado na casa por motivos culturais. Disse que, se este país fosse sério, esta casa seria tombada. ISAURA Não me diga! DAVI Quem disse foi ele. PEDRO Um preciso de um velho casarão. Imponente, mas decadente. DAVI Parecido com esse, mas sem a pintura. E ele quer os campos carrapantes de formigas. PEDRO Formigantes de carrapatos. DAVI Isso. Quanto pior, melhor. ISAURA (sem entender nada) Ah... Entendi. Zilda, muito bonita, com o vestido feito com o tecido da cortina, entra na sala. DAVI Minha filha, Zilda. PEDRO (interessado) Muito prazer. ZILDA (cumprimentam-se) O prazer é meu. PEDRO (sem soltar a mão dela) Desculpe, mas eu faço questão. O prazer é todo meu. Davi separa a mão dos dois. DAVI Fica metade do prazer para cada um e não se fala mais nisso. PEDRO Por acaso a senhorita é atriz? ZILDA Não. Por quê? Pedro examina o rosto dela. Segura-a pelos ombros e a coloca em outra posição, perto da janela. PEDRO (examina-a de alto a baixo) Deveria ser. DAVI O doutor Trancoso está procurando um velho casarão decadente. ZILDA Para quê? ISAURA É, isso é uma pergunta muito boa. Para quê o senhor quer a fazenda? Pedro pega o tubo. PEDRO Deixa eu lhe mostrar o meu banner. Davi se coloca entre Pedro e as duas mulheres. DAVI Seu Pedro, a família é humilde mas é decente. PEDRO Banner é um cartaz. O senhor já vai entender. Pedro tira do tubo um banner onde se lê: Trancoso Produções apresenta "O Comprador de Fazendas". Da obra de Monteiro Lobato. Um casal se beija. Ao fundo, uma bela ilustração de uma fazenda. DAVI O que é isso? PEDRO Um filme. Mais uma super-produção do cinema nacional. ZILDA (interessada) O senhor fez um filme? PEDRO Vou fazer. Se Deus quiser, aqui, nesta fazenda. DAVI Filme? E isso dá dinheiro? PEDRO Depende do projeto. Pedro espalha sobre a mesa uma série de desenhos, story-board, figurinos, cenários. PEDRO O comprador de fazendas é um conto de Monteiro Lobato. É a história de uma família que disfarça uma fazenda decadente para tentar vender para um otário. Eu vou aceitar o pastelão. DAVI Interessante. Muito original. Isaura corta o pastelão e serve num prato. Estende o prato para Pedro. PEDRO Aí aparece um comprador interessado, passa o fim- de-semana na fazenda, comendo do bom e do melhor e vai embora. E a família descobre que ele é um tremendo picareta. Isaura afasta o prato da mão de Pedro. ISAURA (desconfiada) E aí? PEDRO Aí o picareta ganha na loteria e volta para comprar a fazenda de verdade. Davi tira o prato de Isaura e dá para Pedro. DAVI Sei. E depois? PEDRO A família, que não sabe do prêmio, expulsa o comprador e perde a grande chance de vender a fazenda. DAVI Que final triste. PEDRO Mas este final triste é só no conto. No meu roteiro eles transformam a fazenda num hotel temático e ganham muito dinheiro. Isso é exatamente o que pretendo fazer na vida real. DAVI Que ótimo! O senhor não quer um queijo? PEDRO Aceito. O meu plano é filmar a primeira parte com a fazenda em ruínas e depois reformar tudo. Pedro abre na mesa um projeto arquitet"nico do Hotel Fazenda Sétima Arte. PEDRO O público vai querer conhecer a fazenda onde o filme foi feito. O hotel vai ser um sucesso. Sabe quem fará o papel do comprador? DAVI Quem? PEDRO Ricardo André. ZILDA (impressionada) Ricardo André! ISAURA (emocionada) Não me diga! O Ricardo André aqui em casa? DAVI Quem é Ricardo André? ISAURA (para Pedro) Desculpe a ignorância. (para Davi) O Neco de "Alma em Chamas". INSERT - Plano curto de novela (arquivo), com o ator que faz Ricardo André. ZILDA O doutor Marcos de "A Ingrata". INSERT - Plano curto de outra novela (arquivo), com o ator que faz Ricardo André. Davi continua boiando. ISAURA (irritada) Aquele do comercial da barata bêbada. INSERT - Plano curto de Ricardo André usando um spray contra baratas. DAVI Ah, sei. PEDRO Ele está interessadíssimo no projeto. Me pediu para conhecer a locação. DAVI Que locação? PEDRO A casa. A fazenda. Zilda aproxima-se de uma cortina que tem a mesma padronagem do seu vestido. Isaura percebe e fica aflita. ISAURA Claro. A locação. Zilda, você não quer mostrar a locação para o doutor Pedro? ZILDA Será um prazer. DAVI (para Pedro) Dá uma olhada na piscina. Aposto que o senhor nunca viu tanto mosquito. Nem em Hollywood o senhor encontra mosquito mais feroz que os daqui. ZILDA (à parte, para a mãe) O vestido não tá curto demais, mãe? Isaura olha para as coxas da filha. ISAURA Tá. Ainda bem. Vai com tudo, minha filha (faz o sinal da cruz) Que Deus nos perdoe. CENA 12 - FAZENDA DO ESPIGÃO/JARDIM INTERNO - EXTERIOR - DIA Zilda e Pedro caminham pelo jardim em ruínas. PEDRO Pelo visto, tudo aqui é natural, saudável... Eu diria mais: tudo aqui parece ter um frescor... (respira fundo) Sinto no ar um cheiro de mata virgem. ZILDA (envergonhada) Mas também temos muita terra pronta para ser semeada. Pedro pega uma flor, murcha, de uma planta mal-cuidada. ZILDA (sem graça) Não tem quem cuide... PEDRO O ideal para o filme é um jardim sem plantas. É muito simbólico. ZILDA Eu adoro filmes simbólicos. Nesse filme não tem romance? PEDRO Claro que sim. A verdadeira motivação do comprador é a filha do dono da fazenda, uma menina tímida do interior. Ele se apaixona por ela à primeira vista. ZILDA Que bonito. E eles acabam juntos? PEDRO Acabam. ZILDA E quem vai fazer a mocinha? PEDRO Ainda não sei. Vou fazer uns testes. Quem sabe você aceita... ZILDA Eu? (teatral) Eu? Não, eu não poderia. Sou apenas uma menina tímida do interior. PEDRO Mas é perfeita! Você precisa fazer um teste! ZILDA Imagine, fazer um filme com Ricardo André. Tem cena de beijo? PEDRO Duas. ZILDA E como seria o teste? PEDRO Uma cena. Romântica. Você faz? ZILDA Vou pensar. CENA 13 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA - INTERIOR - NOITE Zilda e Pedro chegam. Davi e Isaura aproximam-se, ansiosos. DAVI E então? Gostou? PEDRO (olhando para Zilda) Muito. ISAURA Viram o campo? ZILDA Vimos, ele achou horrível, perfeito. DAVI O senhor precisa ver o pântano, é uma beleza, uma desolação. Além dos carrapatos, nós temos umas sangue-sugas bonitas aqui! Uns bichos gordos, bem tratados... PEDRO Quem sabe amanhã. DAVI (surpreso) Amanhã? PEDRO Meu vôo é amanhã às duas da tarde. Já reservei um quarto no hotel da cidade. DAVI Nem pensar. O senhor dorme aqui. Não temos luxo, mas uma cama limpa e macia eu lhe garanto! Fique à vontade. PEDRO Se o senhor insiste... Aproveito a noite para fazer um pequeno teste com sua filha. DAVI Também não precisa ficar à vontade demais. PEDRO Um teste cinematográfico. Sua filha é perfeita para o filme. ISAURA Então o senhor janta conosco. É comida simples. PEDRO Meu prato preferido. DAVI (para Isaura) Isaura, o aperitivo. CENA 14 - FAZENDA DO ESPIGÃO/VARANDA - EXTERIOR - NOITE Davi e Pedro tomam cachaça em pequenos copos. Pedro termina uma dose. PEDRO Maravilhosa. DAVI Feita aqui, num alambique decadente. Então o senhor está gostando? PEDRO Tanto que tenho receio do que pode acontecer agora. DAVI Receio do quê? PEDRO De ouvir o preço. Eu sei que há coisas que não tem preço, e que não podem ser compradas, por maior que seja o desejo do comprador. (olha para Davi, ainda muito sério). Qual é o preço? Davi engole em seco e dispara. DAVI Seiscentos e cinqüenta! PEDRO (voltando a sorrir) Pois não é caro. Está bem mais razoável do que imaginei. Davi morde os lábios e tenta emendar. DAVI Seiscentos e cinqüenta, sim, mas... o cavalo fora. PEDRO É justo. DAVI ...e fora também as galinhas. PEDRO Perfeitamente. DAVI E a mobília. PEDRO É natural. Para isso, teremos um cenógrafo. Davi arremata. DAVI À vista! PEDRO Com toda certeza! (abre os braços) Davi, dá cá um abraço! CENA 15 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA DE JANTAR - INTERIOR - NOITE Os quatro terminam de jantar. ISAURA (serve água de uma moringa) O senhor vai experimentar a água do nosso poço. Pedro toma a água, cerimoniosamente. Toma todo copo, aperta os lábios, passa a ponta da língua sobre eles. PEDRO Na cidade, dona Isaura, uma água assim, pura, cristalina, vale o melhor dos vinhos. Felizes os que podem bebê-la! Zilda e Isaura também tomam um pouco de água, saboreando-a com certo exagero. PEDRO (examina a moringa) E esta moringa? Simples, singela, perfeita. DAVI Está até rachada. Pedro cruza os talheres, afasta o prato. PEDRO Que delícia! (para Isaura) A senhora poderia abrir um restaurante! ISAURA Bondade sua. PEDRO Se a senhora abre um bolicho com essa comida campeira, em São Paulo ou Paris... (para Davi) Mas não quero lhe roubar a esposa... Pedro olha para Zilda. PEDRO Já a filha... Mas ela já deve ter mil pretendentes. Zilda enrubesce. ISAURA Aqui fora, só aparece gente grossa. ZILDA Aceita um licor? PEDRO Não, obrigado, álcool depois das refeições me dá cefalalgia. E ainda temos trabalho hoje. Decorou as falas? ZILDA Acho que sim. PEDRO Então vamos. Prefiro fazer o teste ao ar livre. CENA 16 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA - INTERIOR - NOITE Isaura e Davi folheiam um dicionário. DAVI Sefardim, sefardita, sega. Não é com "s". ISAURA Vê com "c". Davi encontra "cefalalgia" e lê. DAVI Aqui, cefalalgia. Dor de cabeça. Ora! Uma coisa tão simples! ISAURA E você acha que um homem desses vai ter uma simples dor de cabeça? CENA 17 - FAZENDA DO ESPIGÃO/JARDIM INTERNO - EXTERIOR - NOITE Estrelas no céu, grilos, sapos, trilha romântica. PEDRO Esse cri-cri dos grilos, é encantador! ZILDA Mas é muito triste. Prefiro o canto estridente das cigarras, fazendo melodias em plena luz. PEDRO (pausa, olha Zilda no fundo dos olhos) É que no seu coração há qualquer nuvem a sombreá-lo. ZILDA O senhor é um poeta! PEDRO Quem não é, debaixo das estrelas do céu, ao lado duma estrela da terra? ZILDA (palpitante) Pobre de mim. Pedro olha para o céu estrelado. À medida em que fala, levanta-se e aproxima-se de Zilda. Ficam lado a lado, quase encostados. PEDRO O amor... A Via Láctea da vida! (dá uma conferida no roteiro) Amar, ouvir estrelas... Amai, pois só quem ama entende o que elas dizem. ZILDA Que belas palavras... Pena que sejam falsas. PEDRO Não estou entendendo. ZILDA Eu descobri que o senhor é um farsante. Pensei que nunca voltaria a vê-lo. PEDRO Eu disse que voltaria. ZILDA O que o senhor diz vale tanto como o canto da cigarra. Se perde ao vento. PEDRO Diga que desconfia do meu amor e eu partirei para sempre. Zilda segura-o pelo braço. ZILDA Ainda não. Não deixarei que parta sem que... sem que... Pedro dá uma olhada no roteiro. PEDRO Sem que me pague... ZILDA Sem que me pague uma última promessa. Os dois ficam parados, muito próximos, olho no olho. ZILDA E agora? PEDRO Eles se beijam. Zilda desarma o personagem. ZILDA Que tal? PEDRO Muito bom. ZILDA Fiquei um pouco nervosa. PEDRO Não pareceu. ZILDA Faltou alguma coisa? PEDRO Faltou. O beijo. Pedro segura Zilda pelos ombros e dá-lhe um beijo. ZILDA Humm... É assim que os atores beijam no cinema? PEDRO Não sei. Quando era ator nunca dei um beijo assim, apaixonado. ZILDA Você já foi ator? Que filme? PEDRO Você não deve ter visto. "Uma Fazenda Muito Louca". ZILDA Infantil? PEDRO Não muito. ZILDA Tinha cenas de beijos? PEDRO De vários tipos. ZILDA Qual o seu tipo preferido? Me ensina? Pedro olha para ela, completamente apaixonado. PEDRO Ensino. Beijam-se apaixonadamente. CENA 18 - FAZENDA DO ESPIGÃO/QUARTO - INTERIOR - NOITE eliminada CENA 19 - FAZENDA DO ESPIGÃO/FACHADA - EXTERIOR - DIA Pedro, com a pasta e o tubo na mão, na frente da casa da fazenda. O táxi chega. PEDRO Tenho que ir, ou perco o avião. ISAURA Espera só um instantinho. Isaura corre na direção da casa. DAVI (inseguro) E... Pedro... Como nós vamos fazer para... oficializar o negócio? PEDRO Já está tudo OK no Ministério. Semana que vem, vamos até o cartório e assinamos tudo. Posso mandar o contrato por fax. O senhor tem fax aqui na fazenda, não tem? DAVI Tenho, claro. Mas não se preocupe com papelório. O pagamento é à vista, não é? PEDRO À vista. Pedro olha para Zilda. Zilda sorri. Isaura chega com um pacote nas mãos e entrega-o para Pedro. ISAURA Um queijo. E ovos das nossas galinhas. Quer dizer, das suas galinhas, para o senhor ir se acostumando. Davi entrega a ele a moringa. DAVI E a moringa que o senhor gostou. PEDRO Não posso aceitar. DAVI Se não aceitar nos ofende. PEDRO Eu levo... Como uma prova de que ainda existe gente maravilhosa como vocês, que entregam o que tem de mais precioso por acreditarem num homem simples - e sincero - como eu. E, é claro, por acreditarem no cinema brasileiro. Pedro entra no táxi e dá um último adeusinho. O táxi arranca, bem devagar. Zilda enxuga uma lágrima. Davi percebe e coloca carinhosamente a mão no ombro da filha. DAVI Foi um milagre aparecer um comprador como esse. ISAURA Nem dá para acreditar. CENA 20 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA DE JANTAR - INTERIOR - NOITE CARTÃO - "DUAS SEMANAS DEPOIS" Davi, Isaura e Zilda estão na sala. Toca o telefone, que agora está acoplado a um aparelho de fax. Davi levanta-se e atende. Isaura e Zilda olham para ele, ansiosos. Davi ouve por alguns instantes, depois desliga. ISAURA Era ele? DAVI Não. Era o seu Ernesto querendo receber o que estamos devendo. O queijo, a torta, os ovos, os biscoitos... Isso sem falar no fax, que eu prometi devolver semana passada. ISAURA Esse sujeito nos enganou. ZILDA Talvez ele esteja com algum problema com o patrocinador. CENA 21 - HALL DA PENSÃO - INTERIOR - DIA Pedro está passando rapidamente pelo hall da pensão, carregando uma sacola e o canudo com o banner. OSMAR, o dono da pensão (40 anos), de repente, aparece na sua frente, cortando-lhe o caminho. OSMAR Seu Pedro! PEDRO Seu Osmar, que prazer em vê-lo. OSMAR São dois meses atrasados, seu Pedro, isso sem contar a conta do telefone. Sinto muito, mas vou ter que despejar o senhor. PEDRO (ofendido) Me despejar? Mas por quê? Eu já lhe expliquei que... OSMAR Não pense que o senhor vai me enrolar com essa história de cinema. PEDRO O contrato já foi redigido. O dinheiro deve estar entrando no banco hoje mesmo. Só falta uma assinatura. OSMAR Foi o que o senhor me disse na semana passada. Toca o telefone. Osmar vira-se para atender. Pedro aproveita e sai. OSMAR Alô. Só um minuto. (para Pedro) Ei! Ei! De hoje isso não passa! (ao telefone) Alô? (...) Sim? (irritado) Acabou de sair. Coloca o fone no gancho. Davi entra na pensão. DAVI Boa tarde. Eu quero falar com Pedro Trancoso. OSMAR E eu também! Quando eu pegar esse desgraçado, vou acabar com ele. DAVI Pois justamente é o que eu gostaria de fazer. Meu nome é Davi Moreira de Souza e eu... OSMAR Olha... Seu Davi. Eu vou poupar o senhor da explicação. O senhor tem uma fazenda? DAVI Tenho. Como tu sabe? OSMAR E o Pedro Trancoso esteve lá na sua propriedade, não é? Disse que queria fazer um filme. Ele foi muito simpático. Tão simpático que o senhor convidou ele pra jantar. DAVI (confuso) E pra dormir. OSMAR E o grande produtor cinematográfico dormiu e comeu do bom e do melhor. Eu já ouvi essa história antes... Por acaso, o senhor lhe deu algum presente? DAVI Por quê? Osmar abre um armário e retira dali um pelego, uma garrafa de pinga, duas rapaduras, a moringa. OSMAR Ele usa os presentes para aliviar a dívida aqui na pensão. Davi reconhece a moringa. DAVI Minha moringa. OSMAR O senhor já viu o filme que ele fez, quando era ator? DAVI Não. OSMAR "Uma fazenda muito louca". Dá uma olhada que vale a pena, têm em vídeo. Mas não deixe a sua mulher ver junto. (compadecido) E pode levar a sua moringa. Davi sai, cabisbaixo. RICARDO ANDRÉ, o galã, cruza com ele e vai falar com Osmar, que está fazendo contas no balcão. RICARDO ANDRÉ Eu quero falar com o Trancoso. OSMAR (sem olhar para Ricardo André) O senhor e a torcida do Flamengo. RICARDO ANDRÉ É importante. Onde ele está? Osmar levanta os olhos e fica muito surpreso. OSMAR Eu conheço o senhor, o senhor é Ricardo André, O Doutor Marcos, de "A Ingrata"! E o idiota do comercial da barata bêbada. Sensacional! RICARDO ANDRÉ (brabo) Em breve, serei conhecido como o astro de "O comprador de fazendas". Saiu o patrocínio. Quase dois milhões. Onde está o Trancoso? CENA 22 - ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA Eliminada CENA 23 - LOCADORA DE VÍDEO - INTERIOR - NOITE A ATENDENTE aponta para uma das prateleiras. Zilda olha na direção apontada. Zilda passeia num dos corredores, olhando os títulos. A porta da locaora abre e fecha às suas costas. Alguém entra. A mão de Zilda passa pelas lombadas das fitas: "Como consolar viúvas", "As desquitadas em lua de mel", "As cangaceiras eróticas", "O bem dotado", "Aventuras de um jumento tarado", "O filho do jumento tarado", "Uma fazenda muito louca". Sua mão pára sobre a fita "Uma fazenda muito louca". Zilda tira a fita da prateleira. Olha a capa. Há uma garota bonita, de biquini, em primeiro plano e um jumento ao fundo. Pedro, ao lado da garota, nu, tem o sexo coberto por uma tarja preta. DAVI (OFF) Eu também quero ver esse filme. Zilda leva um susto. Vira-se. É seu pai, com a moringa na mão. CENA 24 - HALL DA PENSÃO - INTERIOR - NOITE Pedro assina um cheque e entrega para Osmar. Ricardo André está ao lado de Pedro. PEDRO Está pago. E mais um mês adiantado. OSMAR Tem certeza que tem fundo? PEDRO Tem e sobra. Quase dois milhões. OSMAR E o que tu vai fazer com todo esse dinheiro. Pedro? PEDRO O que o senhor acha? Vou fazer o filme. Já tenho o ator (bate no ombro de Ricardo André) e a atriz. E que atriz.... (para Ricardo André) A fazenda é perfeita. Uma ruína. Mas o melhor é a moça. Você vai ver amanhã. RICARDO ANDRÉ À noite tenho um compromisso na cidade. Baile de debutantes. Vinte mil, sem nota. PEDRO É só para conhecer a moça. E a casa. A família é gente simples, me tratam como um filho. Você vai ver. Eles me adoram. (para Osmar) O senhor já esteve apaixonado de verdade, seu Osmar? De verdade mesmo? Então deve saber como é. Dói. Dói muito. CENA 25 - LOCADORA DE VÍDEO - INTERIOR - NOITE (com insert de FILME PORNÔ) INSERT (cena de filme pornô - campo) Pedro Trancoso, de cabelos compridos e com calça boca de sino, beija a garota bonita. De repente, a garota interrompe o beijo, olha para o lado e abandona Pedro. A garota corre até um jumento e o abraça. Zilda e Davi, ambos de boca aberta, nas proximidades do balcão da locadora, assistem ao filme num monitor preso a um rack na parede. Estão muito constrangidos. O jumento zurra. DAVI Isso deve doer. Doer muito. INSERT (cena do filme - campo) Pedro tenta fazer uma cara de desalento, demonstrando toda a sua falta de talento. Davi e Zilda olham-se, ainda mais constrangidos. CENA 26 - CARRO - EXTERIOR - NOITE eliminada CENA 27 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA DE JANTAR - INTERIOR - DIA A família reunida. Clima de enterro. ISAURA Um moço que parecia tão educado... DAVI (para Isaura) Ele é um cachorro. (dá uma olhada para Zilda) O único filme que fez na vida é... É... É uma pouca vergonha! Eu vou matar esse desgraçado! ISAURA Deus me livre, Davi. Quer acabar preso? DAVI Matar é jeito de falar. Vou só tirar o couro. ISAURA Quem manda ser bobo? Ele não cometeu nenhum crime, não roubou nada. Tudo que ele pegou nós demos de presente. De mão beijada. Olha para Zilda. Zilda sai da sala, chorando. CENA 28 - FAZENDA DO ESPIGÃO - FRENTE - EXTERIOR - DIA Pedro e Ricardo André descem do carro na frente da fazenda. PEDRO Não é uma beleza? RICARDO ANDRÉ Ótima. Está caindo aos pedaços. PEDRO Eu não falei? Dá uma olhada no jardim, é um desastre. Eu vou avisar que nós chegamos. CENA 29 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA DE JANTAR - INTERIOR - DIA Davi serve um copo de água da moringa. Olha para um santo Expedito na parede. DAVI Santo Expedito há de cruzar o meu caminho com esse cachorro. A porta se abre. Pedro entra, sorridente, o canudo do banner na mão. PEDRO Bom dia. Davi e Isaura olham para ele, pasmos. Isaura olha para o santo e faz o sinal da cruz. Davi pega a moringa e olha para o santo. DAVI Obrigado, meu santo. CENA 30 - FAZENDA DO ESPIGÃO/JARDIM INTERNO - EXTERIOR - DIA Ricardo André passeia entre as árvores. Zilda chega, chorando. Ricardo André se vira. Ela olha para ele, boquiaberta. RICARDO ANDRÉ Bom dia. Ela continua paralisada. RICARDO ANDRÉ (constrangido) Muito bonito aqui. As plantas, os musgos... ZILDA (nervosa) Que belas palavras... Pena que sejam falsas. RICARDO ANDRÉ Não estou entendendo. ZILDA Eu descobri que o senhor é um farsante. Pensei que nunca voltaria a vê-lo. RICARDO ANDRÉ Por acaso eu lhe conheço? Eu nunca estive aqui. ZILDA O que o senhor diz vale tanto como o canto da cigarra. Se perde ao vento. RICARDO ANDRÉ A senhora me desculpe, mas eu tenho um compromisso... Zilda segura-o pelo braço. ZILDA Ainda não. Não deixarei que parta sem que me pague uma última promessa. Zilda agarra Ricardo André pelos ombros e tasca-lhe um beijo na boca. Som de uma moringa sendo quebrada na cabeça de alguém. CENA 31 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA DE ESTAR - INTERIOR - DIA Pedro ergue-se, confuso. Cacos de moringa pelo chão. PEDRO Eu já expliquei. Davi pega uma vassoura e começa a bater em Pedro. DAVI Eu vi o seu filme, cachorro. Fazer aquilo com a pobre garota! Pedro protege-se das vassouradas com o canudo do banner. PEDRO Jumento tava na moda. E a garota gostava dele. DAVI Ah, desgraçado. Cadê a espingarda? ISAURA Calma, Davi! PEDRO As cenas de sexo foram feitas por um dublê, eu sou bem diferente. (desesperado) Pergunta pra Zilda. DAVI O quê? Eu te mato! Cadê a espingarda? Pedro larga o banner e sai correndo para fora da casa. DAVI Solta os cachorros, Isaura! ISAURA Pega, Brinquinho! Isca, Joli! CENA 32 - FAZENDA DO ESPIGÃO/FRENTE - EXTERIOR - DIA Pedro sai correndo da casa, seguido pelos cachorros. Encontra-se com Ricardo André, que vem do jardim. PEDRO Eles são loucos! RICARDO ANDRÉ Já percebi! Os dois cachorros avançam. Pedro e Ricardo André entram no carro. Os cachorros latem no vidro. Davi e Isaura aproximam-se. DAVI (carregando a espingarda) Volta aqui, desgraçado, eu te mato! RICARDO ANDRÉ Vamos embora! O carro arranca, os cachorros atrás. Zilda vem correndo. Davi aponta a arma, mas Zilda empurra o cano para cima. Davi dispara. A caminhonete de Pedro some depois do portão. ZILDA Aquele é o Ricardo André! Você tentou matar o Ricardo André! ISAURA Ricardo André? Meu Deus! DAVI Quem é Ricardo André? CENA 33 - FAZENDA DO ESPIGÃO/SALA DE ESTAR - INTERIOR - NOITE (com inserts na TV de ENTREVISTA e FILME) A fazenda continua na mesma penúria, até pior. Davi, Isaura e Zilda assistem televisão, em silêncio. INSERT/TV Na TV, Ricardo André dá uma entrevista. RICARDO ANDRÉ Eu acreditei no projeto desde o início. O texto do Monteiro Lobato é uma maravilha, o roteiro, as locações, tudo perfeito. Estou muito feliz. Claro que o principal mérito é do Pedro. Repórter vira-se para Pedro Trancoso. REPÓRTER O quê a indicação para o Oscar representa para o filme? PEDRO Toda esta divulgação deve aumentar ainda mais o interesse do público pelo filme. REPÓRTER (OFF) Mais bilheteria... PEDRO Dinheiro para mim é o de menos. O importante é a gente ter um sonho e acreditar nele. INSERT/FILME Na TV, passa uma cena do filme, a cena do jardim, com Ricardo André e PATRÍCIA MASCARENHAS, 20 anos. Zilda e família assistem e choram. Sobem os créditos. PATRÍCIA MASCARENHAS O senhor é um poeta! RICARDO ANDRÉ Quem não é, debaixo das estrelas do céu, ao lado duma estrela da terra? PATRÍCIA MASCARENHAS (palpitante) Pobre de mim. RICARDO ANDRÉ O amor... A Via Láctea da vida! Amar, ouvir estrelas... Amai, pois só quem ama entende o que elas dizem. Beijam-se. A família chora. As estrelas e uma linda lua emolduram a Fazenda do Espigão. FIM (c) Carlos Gerbase e Jorge Furtado, 2001 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br