FAUSTINA episódio da série CONTOS DE INVERNO 2002 argumento e roteiro de Carlos Gerbase coordenação de texto da série Jorge Furtado e Giba Assis Brasil Versão 27/03/2002 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para RBS TV ******************************************************************* CENA 1 - RUA DE PORTO ALEGRE - EXT/DIA FAUSTINA, 25 anos, uma garota bonita, mas de expressão muito séria, vestida como se estivesse na década de 50 e sem qualquer maquiagem - caminha por uma rua movimentada num belo dia de sol (apesar do frio). Pára na frente de um edifício comercial, abre a bolsa, pega uma agenda e abre numa página cheia de recortes de anúncios classificados, colados com capricho. Consulta um dos anúncios e guarda a agenda. Num gesto rápido, beija o escapulário que usa no pescoço. Entra no edifício. Sai do edifício, com expressão desanimada. Pega a agenda e dá uma olhada. CENA 2 - OUTRA RUA DE PORTO ALEGRE - EXT/DIA Faustina beija o escapulário e entra em outro edifício. Sai do edifício, com expressão desanimada. Pega a agenda e dá uma olhada. CENA 3 - MAIS UMA RUA DE PORTO ALEGRE - EXT/DIA Faustina beija - três vezes - o escapulário e entra num terceiro edifício. Sai do edifício, com expressão desanimada. Pega a agenda e dá uma olhada. FAUSTINA (murmurando) Que inferno! CENA 4 - UMA QUARTA RUA DE PORTO ALEGRE - EXT/DIA Faustina, com ar cansado, mais desanimada que nunca, caminha com a agenda na mão. Pára, arranca a folha dos classificados e a joga no lixo. Neste momento, ouve um trovão forte. Ela olha para o céu e estranha, pois o sol continua a brilhar. Novo trovão. Uma nuvem escura aparece de repente. Toca o celular. Ela pára, na frente de um edifício cujo número é 666, e ela atende. FAUSTINA Alô. DEMÓSTENES (OFF) Alô, Tina? Demóstenes. FAUSTINA Ôi, tio. DEMÓSTENES (OFF) A tua mãe me disse que tu tá procurando emprego. FAUSTINA (contendo o entusiasmo) É... Quer dizer. Eu tive várias propostas. Muitas propostas. Mas ainda não me decidi. DEMÓSTENES (OFF) Tem uma vaga para Relações Públicas aqui na companhia. Dá uma passada aqui. FAUSTINA Claro, tio. Eu passo, sim. DEMÓSTENES (OFF) Um beijo, Tina. FAUSTINA Um beijo, tio. Faustina desliga o celular. Ouve-se um trovão muito forte. Começa a chover. Faustina, surpresa, corre para se abrigar, mas está muito feliz. CENA 5 - SALA DE DEMÓSTENES - INT/DIA A sala é ultra moderna, com móveis ousados e decoração high-tech, mas não há um único computador à vista. Faustina está com um figurino diferente do das cenas anteriores, mas este é igualmente conservador e careta. DEMÓSTENES (50-60 anos) veste-se elegantemente, com terno e gravata de corte impecável. Eles estão sentados frente à frente, com a grande mesa de Demóstenes separando-os. Vê-se uma placa sobre a mesa, onde está escrito: "Demóstenes Ferluci. Vice-Presidente". DEMÓSTENES (sorridente) Eu quero que uma coisa fique bem clara: não estou te contratando porque tu é minha sobrinha. Eu tenho excelentes referências a teu respeito. Tina sorri, agradecida. DEMÓSTENES Eu sei que tu ainda não tem experiência profissional, mas conheço bem o teu "curriculo- vitae". FAUSTINA Tio, pode ter certeza, as minha intenções são as melhores possíveis. Demóstenes levanta-se e aproxima-se de Tina. DEMÓSTENES (melífluo, sedutor) Tina, querida, cuidado. Tu deve saber que, de boas intenções, o inferno está cheio. Faustina, sorrindo, pega o escapulário e mostra ao tio. FAUSTINA Eu sei, mas eu tenho muita fé e... Demóstenes imediatamente vira o rosto e afasta-se de Faustina. Fala sem olhar para ela. DEMÓSTENES (cortando) A fé, sem dúvida, é uma coisa extraordinária. Vamos visitar a firma? CENA 6 - EMPRESA DE SOFTWARE - INT/DIA Demóstenes mostra a empresa, que é formada, basicamente, por GENTE NA FRENTE DE COMPUTADORES, trabalhando em cubículos. A quantidade de cubículos é enorme (podemos multiplicá-los digitalmente num plano aberto inicial). Eles vão passando pelos cubículos e dando rápidas espiadas para dentro. O interior dos cubículos, com exceção das pessoas, é exatamente o mesmo. DEMÓSTENES Aqui é o setor de Pesquisa e Desenvolvimento. Dão mais alguns passos. DEMÓSTENES Aqui é a área de Integração de Sistemas. Mais alguns passos. DEMÓSTENES E aqui fica o Departamento de Tecnologia. FAUSTINA Tio, posso fazer um pergunta? DEMÓSTENES Claro. FAUSTINA Quis são os principais produtos da firma? DEMÓSTENES Nós criamos soluções para plataformas multiuso, programas para armazenamento de dados que fazem ponte entre redes tradicionais e de fibra ótica e ferramentas que aplicam processamento high-end em sistemas que trabalham com pacotes, filtrando, classificando e encriptando os dados de forma segura. FAUSTINA (sem entender nada) Ah... DEMÓSTENES Desculpe se usei termos muito técnicos, Tina. Resumindo: trabalhamos com tecnologia para dados e com firewalls. Eu, pessoalmente, adoro firewalls. Eu sonho com firewalls imensos, gigantescos. (vai ficando entusiasmado) Firewalls infinitos, que subam aos céus e acabem de uma vez por todas com... (ele se dá conta da própria excitação) Desculpe, Tina. Eu sempre me emociono quando falo dos meus sonhos. FAUSTINA Deve ser ótimo trabalhar com tanto entusiasmo. DEMÓSTENES (já mais calmo) É mesmo. E olha que eu estou nessa há séculos. Tina, querida, vamos conhecer a tua sala? CENA 7 - SALA DE FAUSTINA - INT/DIA Demóstenes e Faustina entram numa sala agradável, decorada com bom gosto. Sobre a mesa, ao lado de um computador de última geração, um vaso com flores. JOSIARA - 20 anos, garota bonita, provocante e cheia de vida - está de pé, simpática e sorridente, com um bloco de anotações na mão. A roupa de Josiara, pródiga em decotes, e sua maquiagem, de tons fortes, contrastam com a caretice de Faustina. DEMÓSTENES (apontando para Josiara) Essa é a Josiara. Ela vai ser tua secretária. Fala muitas línguas. Tantas que nem vale a pena contar. As duas garotas apertam as mãos. FAUSTINA Prazer, Faustina. JOSIARA O prazer é meu. DEMÓSTENES Agora eu vou pedir licença, porque vocês têm muita coisa pra conversar. (para Tina) Se precisar de alguma coisa, vem falar comigo. FAUSTINA Claro, tio. Muito obrigada por tudo. DEMÓSTENES Nada de "obrigado, tio". Aqui se faz, (aponta rapidamente para o chão) logo ali se paga. Eu tenho certeza que não vou me arrepender da minha escolha. Demóstenes sai da sala. Faustina senta em sua mesa e faz sinal para que Josiara sente numa cadeira à sua frente. FAUSTINA Tu trabalha há tempo na companhia? JOSIARA Muito tempo. Muito mesmo. FAUSTINA Que bom. Assim vai ficar bem mais fácil. Faustina abre um documento em branco no processador de textos do computador e escreve "NOME DA EMPRESA:" FAUSTINA Em primeiro lugar, qual é o nome da empresa? JOSIARA Como assim? FAUSTINA O nome, a razão social da firma. JOSIARA É que são vários. FAUSTINA Claro, eu entendo. É uma holding. Qual é a empresa líder? JOSIARA Como assim? FAUSTINA Qual é o nome da empresa que lidera o conglomerado? JOSIARA Isso é questão de ponto de vista. Recentemente as administrações da Ferluci S.A. ("Ferlucinet") e da Ferlucitel Participações S.A. em cumprimento ao disposto nas Instruções CVM no. 319/02, submeteram à apreciação e deliberação dos seus acionistas os termos, condições e justificativas de uma reestruturação societária e operacional envolvendo a Ferlucinet e sua controladora Ferlucitel, que é 100% controlada pela Tanassa Participações Ltda. ("Tanassapar"), que por sua vez é 100% controlada pela Ferluci Participações S.A. ("Ferlucipar"), através da qual a Ferlucinet incorporará o patrimônio da Ferlucitel, que será extinta na data de sua incorporação à Ferlucinet, sendo que algumas etapas preparatórias para esta reestruturação já foram realizadas. FAUSTINA Vamos simplificar: quando os clientes ligam pra cá, o que a telefonista diz quando atende? JOSIARA Não sei. Nunca trabalhei perto da telefonista. FAUSTINA (impaciente) Tudo bem. Quando te perguntam onde tu trabalha, o que tu responde? JOSIARA (sorridente) Não respondo. É preciso tomar muito cuidado para não ferir suscetibilidades neste ramo. Faustina respira fundo e lança um sorriso condescendente para Josiara. FAUSTINA Tudo bem. Vamos deixar o nome da empresa pra depois. Volta a teclar. Em baixo da linha já digitada, escreve: "Direto residente:". Na linha seguinte, começa escrever: "Vice-presid..." FAUSTINA (teclando) Eu já sei o nome do vice-presidente, Demóstenes Ferluci. O nome do presidente é... JOSIARA É... FAUSTINA É... JOSIARA A senhora não vai dizer? FAUSTINA Não. Eu ainda não sei. Tô esperando tu dizer. JOSIARA O nome do presidente? FAUSTINA Não vem me dizer que são vários! JOSIARA Claro que não. Só há um presidente. FAUSTINA Que se chama... JOSIARA Todo mundo chama ele de... presidente. Faustina levanta, impaciente. FAUSTINA Olha, Josiara. Eu garanto que toda empresa tem razão social e todo presidente tem nome. JOSIARA Eu sei. FAUSTINA O Demóstenes me disse que havia uma outra RP trabalhando na companhia antes da minha contratação. Tu trabalhava com ela? JOSIARA Não. Ela tinha a sua própria secretária. As duas ficaram doentes juntas. FAUSTINA Mas aposto que elas sabiam o nome da firma e o nome do presidente. JOSIARA (confusa) A senhora quer apostar comigo? FAUSTINA Claro que não! Eu só quero entender como eu vou fazer um trabalho de Relações Públicas se eu não tenho a menor idéia do que a empresa produz, não sei a razão social, nem o nome do diretor- presidente. JOSIARA Deve ser difícil mesmo. FAUSTINA (perdendo definitivamente a paciência) Não perguntei a tua opinião! JOSIARA (humilde e submissa) Desculpa. Faustina olha para Josiara, que está com os olhos no chão, e respira fundo mais uma vez. FAUSTINA Eu é que peço desculpas. Josiara, eu estou um pouco estressada. Quem sabe a gente continua a nossa conversa mais tarde? Eu vou examinar alguns documentos e tentar descobrir algumas coisas no computador. Por falar nisso, tu sabe se eu tenho alguma senha para entrar na rede administrativa? JOSIARA (feliz, vitoriosa) Isso eu sei! A senha da senhora é meia, meia, meia. FAUSTINA Meia, meia, meia? JOSIARA Exatamente. Eu sei porque é igual à minha. FAUSTINA As nossas senhas são iguais? JOSIARA São. Eu também achava estranho, mas aí alguém me explicou: elas tem que ser iguais por causa do tipo de firewall. FAUSTINA Claro. Entendi. JOSIARA Eu estou logo ali, na ante-sala. Qualquer coisa, a senhora me chama. Josiara vai e fecha a porta. Faustina senta no computador, acessa a rede e, ao ser solicitada a digitar a senha, escreve "666" e dá enter. CENA 8 - EMPRESA DE SOFTWARE/SALA DE FAUSTINA - INT/DIA Seqüência de montagem. Trilha. Faustina com diversas roupas diferentes (mas sempre conservadoras), fala com Josiara, percorre a empresa, entra nos cubículos e conversa com FUNCIONÁRIOS (os mesmos que aparecerem nos cubículos), consulta arquivos, toma notas, mexe no seu computador, vai bisbilhotar salas mais afastadas da empresa etc. Finalmente entra em sua sala, com Josiara nos seus calcanhares. Faustina senta, exausta. FAUSTINA Vamos ter que desmarcar a festinha de confraternização. JOSIARA Por quê? FAUSTINA O Departamento de Tecnologia inteiro vai fazer hora-extra no sábado. Não podemos fazer uma confraternização sem um departamento inteiro. JOSIARA Por que não? FAUSTINA Má política de relações públicas. Eles podem se sentir discriminados. JOSIARA Então fazemos domingo. FAUSTINA Domingo não seria festa, seria castigo. Conseguimos localizar algum exemplar daquele jornalzinho da companhia que saiu no ano passado? JOSIARA Claro. Faustina fica agradavelmente espantada. FAUSTINA Onde está? JOSIARA Aqui mesmo. Josiara vai até uma estante, pega um jornalzinho - bem bacana, a cores, papel couchê - e o estende para Faustina, que imediatamente começa a folheá-lo. São apenas oito páginas, com fotos de Diógenes e de funcionários nos seus cubículos FAUSTINA (lendo baixinho) Direção prevê crescimento recorde. Nova política de RH será implantada em dezembro. Exportações de software ajudam na balança comercial brasileira. Não é possível! Não tem foto do diretor-presidente! Não tem o nome da empresa! Não tem o nome de nenhum cliente! Pra mim chega! Faustina sai da sala, quase correndo. Josiara fica preocupada. JOSIARA Calma, Dona Faustina! Calma! CENA 9 - SALA DE DEMÓSTENES - INT/DIA Faustina, transtornada, invade a sala de Demóstenes, que está fumando um charuto, com toda a tranqüilidade do mundo. FAUSTINA Tio, eu não agüento mais. DEMÓSTENES O que foi, Tina? FAUSTINA Se eu ficar mais um dia sem produzir nada de útil, enlouqueço. Eu sei o que fazer para essa empresa ter maior visibilidade, para melhorar as relações internas, para crescer no conceito dos nossos clientes. DEMÓSTENES Ótimo! É isso que estamos precisando. FAUSTINA Mas eu não consigo executar nada! Absolutamente nada! DEMÓSTENES Então tem alguma coisa errada, minha filha. FAUSTINA Muito errada. Por exemplo: o senhor pode me dizer, agora, qual é o nome dessa empresa? DEMÓSTENES É que... FAUSTINA É que são muitos, já sei. Então uma pergunta mais fácil: como se chama o nosso patrão, o big-boss, o diretor-presidente? DEMÓSTENES (sorrindo) Isso não é problema. O patrão sou eu. Quem é que te contratou? Quem é que está sempre aqui? Sou eu: Demóstenes Ferluci. FAUSTINA Eu não posso usar o nome do vice-presidente sem citar o presidente. É contra todas as normas. DEMÓSTENES Ele é um velho idiota, que não manda nada. Mais dia, menos dia, ele vai ser definitivamente afastado da firma. Esse cargo de diretor- presidente é... (pensa um pouco) Honorífico. Não precisamos desse inútil para nada. Ele tem mania de grandeza, mas na verdade é a mais ridícula das criaturas. FAUSTINA Então, por favor, me diz o nome de um cliente, um só cliente, da nossa empresa. Aí eu terei um endereço para mandar uma mala-direta. Eu sonho todas as noite em mandar uma mala-direta. (quase gritando) Pelo amor de Deus, tio! Demóstenes, pela primeira vez, sente-se atingido pelas reclamações de Tina. Levanta e aproxima-se dela. DEMÓSTENES Calma, Tina. Não vamos baixar o nível. Nós temos muitos clientes. Quem não está envolvido com as grandes redes de informação? Ninguém? Todos são nossos clientes em potencial. FAUSTINA Mas eu não posso mandar uma mala-direta para toda a humanidade. DEMÓSTENES Claro que não. Nós temos que selecionar. Demóstenes ajoelha-se na frente da sobrinha e paternalmente pega suas mãos. DEMÓSTENES Eu já esperava que esse momento fosse chegar. Até pensei que chegaria antes. Mas, tudo bem, chegou a hora. Eu sei de algumas coisas que tu não sabe sobre Relações Públicas. E eu sei, não porque sou vice-presidente, mas porque sou velho. FAUSTINA Tu nem é tão velho, tio. DEMÓSTENES Sou. Eu já comi o pão que eu mesmo amassei. Tina, querida, eu sei do teu esforço. Mas... Às vezes, fazer tudo pela cartilha não é a melhor opção. Eu sempre dizia isso para o teu finado pai. FAUSTINA Eu nem ligo mais pra cartilha, tio. Ela não me ajudou em nada. Demóstenes levanta, vai para as costas de Faustina e faz uma massagem em suas costas. DEMÓSTENES Em primeiro lugar, vamos relaxar. E vamos lembrar de algumas verdades básicas da vida. Tina, com todo o respeito, tu deve saber que tu é uma garota muito bonita. FAUSTINA (frágil, sincera) A beleza também nunca me ajudou em nada. DEMÓSTENES Mas deveria. Toda mulher bonita tem uma arma poderosa em suas mãos. Eu diria que tu, minha querida, tem um verdadeiro arsenal. FAUSTINA Eu não estou entendendo. DEMÓSTENES Há milhares de anos, quando a primeira mulher teve que fazer o primeiro trabalho de relações públicas da história, que estava relacionado com a imagem de um certa fruta, ainda pouco conhecida, ela usou a mais poderosa das armas femininas. Demóstenes interrompe a massagem, puxa uma cadeira e senta bem na frente de Tina. DEMÓSTENES E deu certo. FAUSTINA Que arma é essa? DEMÓSTENES A sedução. FAUSTINA Mas eu não sou sedutora. DEMÓSTENES Relações-públicas sem sedução é como sorvete sem açúcar, como bolo de aniversário sem velinhas, como homem sem pecado. Tina, tu tem certeza, certeza absoluta, que quer alcança o sucesso na vida profissional? FAUSTINA Tenho. DEMÓSTENES Então é bem simples, querida. Eu vou te explicar tudinho, como se vestir, como se maquiar, para que os clientes olhem para você como um diabético olha para um pudim de leite condensado. Eu diria que chegou a hora de fazer um ótimo negócio: (pausa dramática exagerada) vender a tua alma para o diabo. Faustina olha para Demóstenes, surpresa. CENA 10 - RUA DE PORTO ALEGRE - EXT/DIA Faustina, vestida com a caretice de sempre, está na rua, estendendo uma maçã para um BANDO DE EMPRESÁRIOS, de terno e gravata, que passam direto, sem olhar para ela. O brilho de um raio, associado ao ribombar de um trovão, faz a passagem para a próxima imagem. CENA 11 - PARAÍSO - EXT/DIA Faustina, em local paradisíaco, ao abrigo de uma grande árvore, é uma Eva pós-moderna, vestida com ousadia e muito maquiada, oferecendo todo tipo de fruta (a última é um melancia imensa) para os empresários, que se lambuzam completamente ao comer e depois beijam seus pés. CENA 12 - APTO. DE FAUSTINA - INT/DIA Faustina acorda, assustada, já de manhã. Toma banho, coloca suas roupas de sempre e se olha no espelho do banheiro. De repente, arranca o escapulário do pescoço. CENA 13 - EMPRESA DE SOFTWARE - INT/DIA Faustina caminha entre os cubículos. Ela está radicalmente transformada: vestido sensual, maquiagem, saltos altos e um sorriso sedutor. Por onde passa, arranca olhares de desejo e admiração. CENA 14 - SALA DE FAUSTINA - INT/DIA Faustina, em sua mesa, fala com Josiara, que vai anotando tudo no seu caderninho: FAUSTINA Vamos marcar algumas visitas: jornais, TVs, rádios. E também em algumas empresas. Diz que temos uma proposta irrecusável a fazer. Se te perguntarem qual é, diz que não sabe. Eu também não sei. Na hora eu resolvo. Faustina levanta e caminha enquanto fala: FAUSTINA Vamos organizar uma festa-surpresa para o tio. Quero o melhor serviço de bufê da cidade, que vamos colocar como despesas culturais. E os brindes! Não podemos esquecer os brindes: esquece aquele negócio de calendário e agenda. (pensa um pouco) Vamos fazer um brinde bem diferente. Faustina chega bem perto de Josiara e fala em voz mais baixa: FAUSTINA Sexta tem um coquetel na Fiergs. Os figurões vão estar todos lá. Não recebemos convite, mas eu tenho que ir nesse coquetel. Dá um jeito de conseguir o convite. Se for preciso, suborna alguém. Tá entendido? JOSIARA (bem feliz e entusiasmada) Perfeitamente. É só isso, Tina? FAUSTINA Só. Vou sair pra comprar um vestido pra essa coquetel. Faustina olha para Josiara. FAUSTINA Ou melhor, NÓS vamos sair. Esse teu decote já saiu da moda faz séculos. CENA 15 - CENÁRIO DE PROGRAMA DE ENTREVISTAS NA TV - INT/DIA Faustina é entrevistada por APRSENTADOR(A) de TV. APRESENTADOR(A) Nossa convidada de hoje é uma jovem profissional de relações-públicas que fez uma verdadeira revolução numa empresa gaúcha de programas para computadores: Faustina Ferluci. Acho que todos vocês já devem conhecer a Faustina, de tanto que ela apareceu nas colunas sociais, nas páginas de economia, nas revistas de gente famosa. Tudo bom, Faustina? FAUSTINA (sorridente) Tudo. APRESENTADOR(A) A Faustina não aparece na mídia por vaidade. De jeito nenhum. Ela tinha uma missão a cumprir. E quem vai falar sobre essa missão é o empresário Demóstenes Ferluci. Esse é o seu depoimento, que gravamos esta manhã: Entra a imagem de Demóstenes no monitor do estúdio. DEMÓSTENES A Faustina, em curtíssimo espaço de tempo, conseguiu transformar a imagem da nossa empresa, que hoje é conhecida em todo o país e no exterior. Ela é uma profissional excepcional, que... CENA 16 - SALA DE FAUSTINA - INT/DIA A mão de Faustina desliga a TV. Ela e Josiara estão na frente do aparelho. JOSIARA Por quê desligou? FAUSTINA Porque não podemos perder tempo. Agora é o momento de consolidar a imagem da companhia. E sabe o que tá faltando? Alguma coisa concreta, uma prova de que essa empresa não é virtual, que ela gera empregos, que é sólida e tem futuro. Isso não se conquista com textos. Precisamos de um comercial para a TV com imagens da companhia. JOSIARA Já sei! Vamos mostrar nosso pessoal trabalhando nos computadores. FAUSTINA Naqueles cubículos? De jeito nenhum. Precisamos de algo grande, de algo realmente cinematográfico! JOSIARA Será que isso não é muito caro? FAUSTINA (sorrindo) Depende. CENA 17 - HELICÓPTERO OU TECO-TECO - EXT/DIA (Observação: vamos filmar com a aeronave no chão. Precisaremos de dois ventiladores industriais, dos grandes) Faustina está com uma câmara DV em punho, gravando as imagens enquanto o helicóptero/teco-teco cruza os céus. Além dela, apenas o PILOTO está na aeronave.. FAUSTINA Dá mais uma volta no prédio, por favor. De repente, começa a nevar (se a neve não entrar na cena 4). FAUSTINA Que lindo! Eu nunca tinha visto neve. Mas não é perigoso? PILOTO - Não sei. Eu nunca voei com neve. FAUSTINA As imagens vão ficar lindas! Faustina se concentra na câmara. O piloto leva a mão ao peito, geme baixinho e desmaia, como se tivesse um enfarte. O aparelho começa a perder altura. Faustina vira-se e grita: FAUSTINA O que aconteceu? Em vez do piloto, é Demóstenes que está sentado no assento ao lado de Faustina. Ele está tranqüilo e sorridente. Não segura o manche. A aeronave está caindo. FAUSTINA Tio? Cadê o piloto? DEMÓSTENES Já foi. FAUSTINA Tu sabe pilotar? DEMÓSTENES Eu sei tudo. FAUSTINA Então segura esse negócio, pelo amor de Deus! DEMÓSTENES (com cara de nojo) De jeito nenhum. FAUSTINA (apavorada) Tio, o que tu tá fazendo? DEMÓSTENES Estou cobrando uma dívida, querida. FAUSTINA Que dívida? DEMÓSTENES A tua. Lembra do nosso acordo? A tua alma me pertence. Por enquanto, ainda está presa no teu corpo, mas, considerando nossa atual situação, não vai demorar muito para que esteja livre. FAUSTINA Eu não vendi minha alma! DEMÓSTENES Claro que vendeu, Tina. Ou tu acha que virou a melhor Relações Públicas da Terra só porque arrancou o escapulário do pescoço e passou a usar batom? FAUSTINA (horrorizada) Mas eu não tive tempo para fazer tudo o que queria! Pensa na companhia! DEMÓSTENES Acho que a Josiara vai dar conta do recado. Querida sobrinha, trato é trato. FAUSTINA Mas eu fui enganada! Que história é essa de neve em Porto Alegre? Justo quando eu tava voando! Foi tu quem mandou a neve! DEMÓSTENES (rindo) Eu? Tu conhece bem a firma. Não temos esse departamento por lá. Desde pequenininha, tu sabe quem é o incompetente que controla o tempo. Faustina está apavorada. Mas, de repente, seu rosto se ilumina. FAUSTINA Eu sei quem controla o tempo, tio. E agora eu também sei quem é o diretor-presidente da companhia. DEMÓSTENES (apreensivo) Não sabe nada. FAUSTINA Sei! Eu sei! E vou dizer o nome agora mesmo. (pega o celular e disca) Melhor ainda: vou ligar para os jornais e contar a minha descoberta. DEMÓSTENES (tentando parecer calmo) Tu tá blefando. FAUSTINA De jeito nenhum. Alguém tem que estar por cima, mesmo que não apareça. Alguém construiu aquela companhia, e não foi tu, tio. Eu sei! (para o celular:) Alô? O editor-chefe, por favor. (para o tio:) Deve ser duro ser vice a vida inteira. DEMÓSTENES (furioso) Eu sou o verdadeiro chefe! Eu comando tudo. Em breve serei o diretor-presidente! FAUSTINA Nunca. (para o celular:) Alô? Aqui é Faustina Ferluci. Tenho uma grande notícia pra vocês. DEMÓSTENES (gritando) Chega! Faustina, o nosso contrato não pode ser anulado. Por ninguém! Mas podemos adiar a execução. FAUSTINA Então adia. Adia, ou eu conto quem é o teu superior. DEMÓSTENES (furioso) Nos veremos no futuro, querida sobrinha. A aeronave dá um solavanco mais forte. Faustina grita e fecha os olhos. Quando abre, o piloto está ao seu lado. Ele recupera a consciência e retoma o controle do aparelho. PILOTO Vamos fazer um pouco forçado! Faustina faz o sinal da cruz. A aeronave trepida. Ouve-se um som forte e grave. CENA 18 - QUARTO DE HOSPITAL - INT/DIA O quarto é bonito e ensolarado. Uma TV, ligada, mas sem som, está pendurada no teto. Faustina tem alguns esparadrapos espalhados pelo rosto e está imobilizada. Ela está sendo visitada por SARA, 25 anos. SARA (incrédula) Que sonho maluco! E, no sonho, tu sabia mesmo o nome do presidente? Faustina suspira, pensativa. FAUSTINA Na companhia, eu tentei de tudo para descobrir o nome do presidente. E não consegui. Na verdade, pensei que ele simplesmente não existia. Mas, de repente, eu... Naquela hora, no sonho, eu percebi que ele tinha que existir, e que era só eu abrir a boca e poderia pronunciar o seu nome. Aí o sonho terminou. SARA Que loucura! Parece coisa de filme de terror. Faustina olha na direção da TV e sua atenção é despertada pelas imagens. FAUSTINA Sara, aumenta o som da TV. Rápido. Sara pega o controle e aperta um botão. As duas olham para a TV. Na telinha, o tio Demóstenes, satisfeitíssimo, aperta a mão de Bill Gates, que também está sorrindo. REPÓRTER (VS) ... neste acordo inédito entre uma empresa brasileira e a maior fabricante de software do mundo. Demóstenes Ferluci, vice-presidente, explica o que significa esse contrato multimilionário. Demóstenes, com muitos microfones perto de sua boca. DEMÓSTENES Significa que a nossa empresa, que era pouco conhecida, agora pode ter um alcance muito maior. Com esse acordo, nosso tecnologia estará presente nos computadores de todo o planeta. (sorri, muito simpático) Resumindo: estamos prontos para dominar o mundo. Um dos microfones sai de quadro. REPÓRTER (VS) E como o senhor explica uma transformação tão rápida? O microfone volta. DEMÓSTENES São muitos fatores. Em primeiro lugar, ao nosso trabalho, que vem sendo desenvolvido há muito tempo. (sorri outra vez) Há séculos, como se diz. Mas não posso deixar de citar uma pessoa, que tem sido fundamental na companhia, e que recentemente sofreu um acidente, em pleno exercício de sua função. (Demóstenes olha para a câmara) Essa pessoa é nossa competentíssima Relações Públicas, Faustina Ferluci, que deve estar nos assistindo neste momento. Tina, querida, muito obrigado por tudo. Espero que te recuperes rapidamente. E lembra: nós temos um encontro marcado! Faustina olha para a TV, horrorizada. FIM ******************************************************************* (c) Carlos Gerbase, 2002 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br