LUNA CALIENTE (CAP. 1) microssérie em 4 capítulos roteiro de Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil a partir da novela homônima de Mempo Giardinelli versão de 11/08/1998 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para TV Globo *********************************************************** PRIMEIRO BLOCO CENA 1 - INT-EXT/ENTARDECER - GARAGEM DE GOMULKA A porta de uma garagem se abre, deixando entrar a claridade do dia e descortinando a paisagem de uma pequena cidade do interior. RAMIRO, 40 anos, cabelos pretos, e GOMULKA, mesma idade, cabelos vermelhos, entram. Gomulka observa Ramiro, que parece muito impressionado com o que vê. RAMIRO Que maravilha! GOMULKA Não te falei? CENA 1A - INT-EXT/ENTARDECER - GARAGEM DE GOMULKA Detalhes de um Ford 47, preto, em perfeito estado, como novo. Bancos de couro vermelho, brilhantes detalhes cromados, lataria polida e reluzente. GOMULKA (FQ) Lembra como ele era quando eu comprei? RAMIRO (FQ) Lembro, claro. Era um caco velho. GOMULKA (FQ) Quanto tempo faz que você viajou? RAMIRO (FQ) Oito anos e meio. Você recém tinha comprado. GOMULKA Oito anos e meio. Os friso de ano inoxidável vieram da Argentina. O estofamento é original. O motor V-8 AB, está como zero. Gomulka abre o capô, descortinando o motor. Os dois olham para o motor do carro. GOMULKA Olha só. Eu sei o nome, o endereço e o apelido de cada parafuso deste motor. Escuta. Gomulka senta no carro, Ramiro apóia-se na porta. Gomulka liga o motor. O som imponente de um motor V-8 enche a garagem. GOMULKA Velas inglesas, carburador duplo. RAMIRO Uma beleza, Gomulka. Impressionante mesmo. GOMULKA Ramiro, nestes oito anos e meio, enquanto você fazia biquinho falando em francês, enquanto você se apaixonava, casava e levava um chute, enquanto você se entupia de queijo e vinho, eu chafurdava neste motor. Eu conheço mais este virabrequim que qualquer mulher com quem eu já tenha dormido. E o melhor é que ele não está preocupado com igualdade de direitos. Ramiro senta dentro do carro, Gomulka se apoiado na porta. Ramiro coloca chave da casa no chaveiro do carro. GOMULKA Para você, eu empresto. Cuidado, hein? RAMIRO Não se preocupe. Obrigado, Gomulka. Eu vou cuidar dele como se fosse meu. GOMULKA Nada disso. Cuide dele como se fosse MEU. Gomulka fecha a porta do carro. CONT. CENA 1 - INT-EXT/ENTARDECER - GARAGEM DE GOMULKA Na praça da cidade o carro surge, saindo da garagem. CENA 2 - EXT/NOITE - ESTRADA DE TERRA Trilha e créditos. O Ford 47 cruza a noite por uma estrada de terra, levantando uma nuvem de poeira. Uma grande lua cheia bóia no horizonte, projetando sombras das poucas árvores imóveis na noite sem brisa. CENA 3 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE BRÁULIO O reflexo da lua passa pelo pára-brisa cobrindo o rosto de Ramiro. O carro pára na estrada, junto a uma grande figueira, em frente a uma velha casa de fazenda. Ramiro desce do carro e caminha em direção à casa. Ele carrega uma sacola. É recebido por BRÁULIO, 60 anos, e por CARMEM, 50 anos. BRÁULIO Ramiro! RAMIRO Doutor Bráulio... BRÁULIO Ramiro! Seja bem-vindo! RAMIRO Dona Carmem! CARMEM Ramiro... Que bom ver você, meu filho... Quanto tempo! É uma recepção afetuosa. Ramiro tira da sacola um pequeno pacote que entrega a Carmem. RAMIRO Isso é para a senhora. CARMEM Que bobagem, para que você foi se incomodar... Ramiro tira da sacola uma garrafa de conhaque. RAMIRO Doutor Bráulio... BRÁULIO Que beleza! Esse eu vou guardar para o inverno. Os três caminham na direção da casa. Lua Cheia e carro ao fundo. CARMEM (abrindo o pacote e revelando um frasco de perfume) Que lindo! Obrigado, meu filho... Mas você virou um homem! BRÁULIO Ué? Por acaso quando saiu daqui ele era mulher? RAMIRO Deixei parte do cabelo em Paris. Mas a barriguinha eu trouxe. BRÁULIO Então vamos começar a enchê-la! CENA 4 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / SALA DE JANTAR Bráulio e Ramiro terminam de se sentar na mesa. Bráulio pega uma garrafa de vinho já aberta e serve um copo a Ramiro. BRÁULIO Esse é da terra, para matar a saudade. Os dois brindam e bebem. Carmem chega com um prato de aperitivo. CARMEM Que bom que você está aqui. Sua mãe deve andar nas nuvens. Há mais de um mês que ela só fala de sua volta. Ela está bem? Ramiro tira da sacola um vidro de compota, entrega-o a Carmem. RAMIRO Está. Quase esqueço, ela mandou para a senhora. BRÁULIO O que é? CARMEM Não ouviu? Ela mandou para mim! (abre e cheira) Humm... Uvada. Tenho que deixar longe deste aí, senão nem sinto o gosto. Ramiro tira da sacola dois pacotes de balas. RAMIRO Isso eu trouxe para as crianças. Uma bobagem. BRÁULIO Pffu! Que crianças? RAMIRO Onde estão? CARMEM O Braulito está na faculdade, aparece aqui só de vez em quando. BRÁULIO Está namorando. Precisa ver que morena... CARMEM A Elisa estava aqui agora. Elisa! ELISA, 18 anos, surge, vinda da rua. Pára na porta, lua cheia ao fundo. Ela é linda, de cabelos negros e grossos, uma franja caindo sobre o rosto fino, de olhar lânguido mas astuto. Magra e de pernas muito longas, usa um vestido simples e curto. O efeito que ela provoca sobre Ramiro é evidente. CARMEM Está lembrada do Ramiro, filho da dona Maria? Já faz oito anos. Viu só, Ramiro? As crianças crescem. RAMIRO Tudo bem? Você está bonita. Elisa sorri. CENA 5 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / SALA DE JANTAR Mão passa pão num prato com molho. Os quatro jantam. Ramiro à frente de Elisa. Bráulio à sua esquerda. Os olhares de Ramiro e Elisa se cruzam algumas vezes durante a conversa. Carmem chega, entre Bráulio e Ramiro, com mais um prato de comida. CARMEM Você fez muito bem em ficar por lá esse tempo, terminar os seus estudos. Carmem continua servindo, agora entre Bráulio e Elisa. BRÁULIO Claro! Não tinha nada para fazer aqui. Nada. CARMEM A situação aqui está difícil, Ramiro. Difícil para todo mundo. BRÁULIO O que tem de gente quebrando... É ilusão da sua mãe achar que você podia ter dado jeito na empresa. O teu velho, que entendia daquilo como ninguém, não conseguiu fazer nada. Morreu fazendo conta. CARMEM Coitado, uma tristeza. RAMIRO Eu podia ao menos ter tentado. CARMEM Não se culpe, Ramiro. Você tinha sua vida na França, seus estudos, sua mulher. RAMIRO Por isso, não. Acabamos nos separando. Bráulio percebe os olhares dos dois. BRÁULIO Como você podia saber? Acontece. Casamento tem que ter muita paciência para agüentar. CARMEM Eu que o diga! Coma mais um pouco. Você nem tocou no suflê! RAMIRO Me servi duas vezes, dona Carmem, estava uma delícia. CARMEM E vão me deixar este restinho de arroz? Coma mais arroz, pelo menos. Para terminar. Esse restinho vai fora. RAMIRO Desculpe, mas não posso mais. BRÁULIO Guarde um espaço para a sobremesa. Elisa, busque de lá a sobremesa. O que é? Elisa se levanta. Ramiro não consegue tirar os olhos dela. CARMEM Fiz uma ambrosia. Mas tem frutas também. BRÁULIO Vamos comer lá fora. Esse calor me mata! Traga o seu copo, Ramiro. CENA 6 - EXT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / ALPENDRE Vinho é servido em um cálice. Elisa coloca um prato de doce na frente de Ramiro. BRÁULIO Me chamaram na delegacia eram quase duas da manhã. Disseram que um preso passou mal. Elisa, ao curvar-se para servir Ramiro, deixa os seios visíveis pelo decote do vestido. Ramiro espia, ela percebe e sorri. Termina de servir Ramiro e segue para servir Bráulio. BRÁULIO Pffu! Nem precisei examinar para saber que o coitado foi moído a pau. Levou muito choque elétrico. Eles amarram um fio no lóbulo da orelha e outro no lábio, a corrente passa pelo olho. Elisa termina de servir o pai, e segue. Olhos de Ramiro acompanham Elisa. Elisa passa por trás da mãe e a serve. Mais uma vez deixa aparecer os seios ao se abaixar. Agora, ainda mais insinuante. CARMEM (abanando-se com um leque) Bráulio! Que assunto para depois do jantar! Elisa termina de servir Carmem. BRÁULIO Eu disse que tinha que levar o sujeito para o hospital, mas não me deixaram. Disseram que o atendesse ali mesmo. Fiz o que pude, dei um calmante. O pobre estava botando os bofes para fora, o coração aos pulos. Sabe por que ele foi preso? Deu carona para um "perigoso comunista". A esta altura, se já disse o que eles queriam, deve estar morto. CARMEM Que absurdo. Elisa senta ao lado de Ramiro. RAMIRO E não se pode fazer nada? Denunciar? BRÁULIO Denunciar para quem? O que se pode fazer é beber mais um pouco. CARMEM Não quer um café, Ramiro? Elisa, passe um cafezinho para nós, minha filha. Elisa levanta a perna esquerda por cima do banco, em direção a Ramiro, e sai. RAMIRO Eu ajudo. Pelo menos café eu sei fazer. CENA 7 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / COZINHA Água quente é colocada sobre o pó do café. Elisa arruma a bandeja na mesa ao fundo. ELISA Ela era bonita? Ramiro continua a colocar água no café. RAMIRO Quem? ELISA Sua mulher. Como era o nome dela? RAMIRO Ah, Dora. Era bonita, sim. ELISA Era francesa? Ramiro termina de passar café e se vira para Elisa. RAMIRO Não. Brasileira. Mas a gente se conheceu lá. ELISA Como ela era? RAMIRO Como assim? Elisa começa a procurar algo pela cozinha. ELISA O jeito dela. Era alta, baixa... RAMIRO Um pouco mais baixa que eu. Cabelos pretos, olhos castanhos. Elisa sobe num banquinho fazendo força para mostrar o corpo. ELISA E o corpo? RAMIRO O que é que tem? ELISA Como era o corpo dela? RAMIRO Ela era magra. Bonita. Normal. ELISA Normal? RAMIRO É, acho que sim. Elisa desce do banquinho. ELISA É verdade que na França só tomam banho uma vez por semana? RAMIRO Não sei. Nós tomávamos banho todo dia. Elisa olha para Ramiro. ELISA Juntos? RAMIRO Bem... Às vezes. O que você está procurando? ELISA O açúcar. Ramiro pega um vidro com açúcar sobre o balcão. RAMIRO Está aqui. Elisa pega o vidro de açúcar, enche o açucareiro. ELISA Ela raspava embaixo dos braços? RAMIRO Por que você quer saber? ELISA Eu vi um filme francês em que a atriz não raspava. Sua mulher raspava? RAMIRO Não. ELISA Não? E você achava bom? RAMIRO Bom... Não me importava. Deve ser chato de raspar. Fazer a barba já é chato. Elisa derrama um pouco de açúcar sobre o balcão. Recolhe o açúcar com a mão, despeja na pia, lambe a palma da mão. ELISA É chato mesmo. Mas eu acho feio, eu raspo. RAMIRO Embaixo dos braços? ELISA Também. Ramiro fica olhando para ela, mudo. Elisa pega a bandeja. ELISA Está pronto o café? CENA 8 - EXT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / ALPENDRE Os quatro tomam café na mesa do alpendre. Ramiro termina de tomar o café. RAMIRO Eu preciso ir. BRÁULIO Já? Vamos terminar pelo menos esta garrafa. RAMIRO Não, doutor Bráulio. Tenho que dirigir. CARMEM Você não quer dormir aqui? Pegar a estrada tão tarde... RAMIRO Não, obrigado, Dona Carmem. Eu prometi ao João Gomulka devolver o carro dele hoje mesmo. Elisa ergue-se e se aproxima de Ramiro, que continua sentado. ELISA Eu vou deitar. Elisa põe a mão no pescoço de Ramiro enquanto lhe dá dois beijos de despedida. ELISA Apareça. E obrigado pelas balas. Elisa se afasta. Ramiro acompanha-a com o olhar. BRÁULIO Quando você volta por aqui? Carmem se levanta. CARMEM Deixa o rapaz sossegar, Bráulio. Ele mal chegou. Volte quando quiser, meu filho. Carmem se aproxima de Ramiro. Ramiro se levanta. RAMIRO Obrigado, Dona Carmem. O jantar estava ótimo. Bráulio se levanta. Os três se despedem. CARMEM Imagina! Agradeça sua mãe pela uvada. CENA 9 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE BRÁULIO Bráulio e Ramiro ao lado da porta do carro. Ramiro abre a porta e entra. BRÁULIO Está mesmo uma beleza este carro. Que ano é? RAMIRO Quarenta e sete, eu acho. O Gomulka morre por esse carro. Me deu mil recomendações. BRÁULIO Precisamos fazer um churrasco decente para comemorar sua volta. Chamar seus amigos. RAMIRO Tenho que cuidar da vida, doutor Bráulio. Trabalhar. Preparar minhas aulas. BRÁULIO Um doutor formado em Paris dando aula nessa faculdadezinha de fim de mundo... Elisa na janela ao fundo. BRÁULIO Não tenha tanta pressa, Ramiro. A Carmem tem razão, você mal chegou. Aproveite enquanto é jovem. Quando você percebe, a vida já passou. Ramiro vê Elisa na janela do quarto, no segundo andar da casa. RAMIRO Obrigado, doutor Bráulio. Até. Bráulio se afasta do carro. BRÁULIO Até. Ramiro fica olhando para Elisa. Ela está parada na janela e olha fixamente para ele. Ramiro percebe que tem as mãos suadas. Seca as mãos na calça. Põe a chave na ignição. Olha novamente para Elisa. Ela continua na janela. Ramiro olha para a chave na ignição. Ramiro aperta o acelerador várias vezes, com violência. Solta o pedal. Ramiro faz girar em vão o arranque. O motor gira mas não pega. Ramiro bombeia o acelerador e volta a girar a chave na ignição. O motor faz um ruído que vai se apagando junto com a bateria. BRÁULIO (FQ) Não quer pegar? Bráulio está ao lado do carro RAMIRO Não sei o que aconteceu. Ele veio bem até aqui. BRÁULIO Parece que afogou. RAMIRO Acho que fiquei sem bateria. BRÁULIO Quer dar uma olhada no motor? RAMIRO Acho melhor não mexer. O Gomulka me mata. Ramiro abre a porta, sai do carro. RAMIRO O senhor não me dá uma empurradinha? BRÁULIO Não, homem, fica para dormir e pronto, amanhã arrumamos isso. Depois é tarde, faz muito calor, e na viagem pode pifar de novo. RAMIRO Eu não quero incomodar. BRÁULIO Incômodo nenhum! O quarto do Braulito está sempre pronto. Ramiro fecha a porta do carro e acompanha Bráulio. Olha para o segundo andar. A janela está vazia, luz principal apagada. CENA 10 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / QUARTO E CORREDOR Ramiro está sem camisa, sentado na cama, tenta fazer funcionar um velho e pequeno ventilador sobre a mesinha de cabeceira. Batem à porta. CARMEM Olha a toalha, Ramiro. Ramiro veste rapidamente a camisa e abre a porta. Carmem passa-lhe a toalha. RAMIRO Obrigado. CARMEM Tem certeza que não quer um pijama do Braulito? RAMIRO Não, obrigado. Com esse calor, não precisa. CARMEM Boa noite, meu filho. Qualquer coisa é só chamar. RAMIRO Boa noite, Dona Carmem. Carmem apaga a luz do corredor, entra em seu quarto e fecha a porta. A luz do quarto de Bráulio e Carmem se apaga. Ao fundo do corredor, Ramiro vê uma porta entreaberta de onde vem uma luz tênue. Ramiro volta ao seu quarto e fecha a porta. Ramiro passa a toalha pelo rosto, seca o corpo molhado de suor. Vai até a janela, acende um cigarro. Fuma. Olha para fora. Ramiro se debruça na janela. Olha pro carro. CENA 11 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE BRÁULIO Em frente à casa, o carro de Gomulka, parado sob a figueira. Acima dele, a grande lua cheia. CENA 12 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / CORREDOR Ramiro abre a porta do quarto. O corredor está em silêncio e às escuras. A porta ao fundo continua entreaberta mas a luz se apagou. Ramiro caminha lentamente até o banheiro. Olha para a porta ao fundo e vê, pela fresta, o pé de Elisa na cama. Entra no banheiro. Fecha a porta. CENA 13 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / BANHEIRO Ramiro abre a cortina e sai do box, nu e com os cabelos molhados. Olha-se no espelho, senta no vaso. Seca o rosto e o corpo com a toalha. Tenta abrir a basculante. Ramiro volta à pia, coloca cabeça embaixo da torneira. Olha-se novamente no espelho. Abre o armário e encontra um vidro de aspirinas, pega o vidro, lê rapidamente a bula. Abre o vidro e pega dois comprimidos. Toma os comprimidos. Guarda o vidro. Olha-se outra vez. O armário, com um rangido, abre sozinho. Ramiro fecha o armário. O armário volta a abrir sozinho. Ramiro fecha o armário outra vez, com mais força. CENA 14 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / CORREDOR Ramiro sai do banheiro. Olha em direção à porta de Elisa. Apaga a luz do banheiro. Silêncio absoluto. Na porta entreaberta do quarto de Elisa não há luz, apenas o resplendor da lua ardente, que ingressa pela janela e chega, mortiço, ao corredor. Ramiro caminha lentamente pelo corredor em direção ao quarto de Elisa. O assoalho de madeira range. Ramiro olha para trás. Ramiro chega à porta do quarto e espia pela fresta. Rosto de Ramiro é iluminado pela lua. Começa a abrir a porta. CENA 14A - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / QUARTO DE ELISA Elisa tem os olhos fechados. Seminua, apenas uma calcinha aperta seus quadris delgados. O lençol revolto cobre uma perna e mostra a outra. Braços cruzados nos seios, parece dormir sobre o antebraço direito. Da porta, Ramiro a contempla, quieto. Elisa faz um movimento e por um momento seus seios escapam da proteção dos braços. Elisa desperta, olha para a porta e vê Ramiro. Durante alguns segundos eles ficam assim, olhando-se em silêncio. FIM DO PRIMEIRO BLOCO SEGUNDO BLOCO CENA 15 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / QUARTO DE ELISA Ramiro entra no quarto e fecha a porta atrás de si. Olha para Elisa. Elisa vira-se de barriga para cima, levantando os braços. Sempre olhando para Ramiro e sorrindo. Ramiro respira fundo duas vezes e depois sorri de volta. Ramiro caminha devagar até a cama. Ramiro leva a mão e começa a acariciar a coxa de Elisa, suavemente, quase sem tocá-la. Elisa parece gostar. Ramiro aumenta a pressão da mão sobre a coxa. Ramiro reacomoda-se na cama, chegando mais perto dela. RAMIRO (sussurrando) Só quero te tocar. Você é tão bonita... As mãos de Ramiro sobem pelas pernas de Elisa, pelos quadris, juntam-se sobre o ventre, vão suavemente até o tórax e finalmente fecham-se sobre os seios. Ramiro continua fitando-a nos olhos. RAMIRO Você é linda. Ramiro se deita sobre ela, sem parar de acariciá-la. Ramiro beija-lhe o pescoço e depois aproxima sua boca da orelha de Elisa. RAMIRO Você é muito linda. Ramiro, meio bruscamente, tenta beijar a boca de Elisa, mas ela vira o rosto e tenta erguer-se. Ramiro, suando muito, leva a mão direita para o púbis de Elisa e apalpa-lhe o sexo. Ramiro arranca a calcinha, num movimento brusco. Ramiro aproveita e abre as próprias calças. Depois, com um movimento dos joelhos, abre bem as duas pernas de Elisa. Ela reage. O rosto de Elisa se contrai. Seus olhos mostram pavor. ELISA Eu... Eu vou gritar... RAMIRO Quietinha, quietinha... Ramiro tapa a boca de Elisa com a mão esquerda. Elisa debate- se. RAMIRO (off) Não grita! Ramiro, sempre com o peso de seu corpo sobre o da menina, consegue segurar-lhe os braços com sua mão direita. Ramiro pega o travesseiro e tapa-lhe o rosto, fazendo pressão sobre a boca. Elisa pára de se debater. Lua cheia. Ramiro deita ao lado de Elisa. Elisa ainda com travesseiro sobre o rosto. Ramiro fica assim por alguns segundos, ofegante. Elisa está inerte. Ramiro olha para ela, ergue o tronco, se apoia no cotovelo direito, e tira o travesseiro bem devagar. Elisa, olhos semi-abertos, boca aberta, está morta. Ramiro levanta rápido da cama, como se estivesse com medo de Elisa. Puxa as calças. Vai afastando-se de costas, devagar, na direção da porta. Apóia-se contra ela. Olha outra vez para o corpo de Elisa. Passa a mão no próprio rosto, lavado de suor. Ramiro caminha pelo quarto, nervoso. Pára. Ramiro vira-se e abre a porta bem devagar. CENA 16 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / CORREDOR Ramiro espia para um lado do corredor. Vazio. Ramiro olha para o outro lado. Nada. Sai bem devagar. No segundo passo, o chão range um pouco. Pára. Continua. Ouve um claro ruído de uma porta de madeira se abrindo. Ramiro vira-se lentamente em direção ao som. Vê surgindo, na escuridão do banheiro, seu próprio rosto refletido no espelho do armário. Ramiro suspira fundo e continua a caminhar. Ramiro entra na porta do quarto de Braulito. CENA 17 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / QUARTO BRAULITO Ramiro fecha a porta. Vai até a cadeira. Ramiro se desloca pelo quarto. Pega suas coisas, pega as chaves e sai. CENA 18 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / CORREDOR Ramiro deixa os sapatos ao lado da porta do quarto. Caminha lentamente em direção ao quarto de Elisa. Olha para os dois lados. Parece estar em dúvida. Estende a mão e abre a porta. Entra. CENA 19 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / QUARTO DE ELISA Ramiro entra. O corpo de Elisa está exatamente na mesma posição. Respira fundo duas vezes e aproxima-se devagar da cama. Olha para Elisa. Ramiro estende o lençol sobre o corpo nu, cobrindo-a completamente. Vai para trás, olha, pensa um pouco. Aproxima- se de Elisa, descobre o seu rosto e dá um outro passo para trás. Ramiro pisa sobre um pequeno pedaço de pano, olha para baixo e vê a calcinha rasgada de Elisa. Abaixa-se e pega a calcinha. Olha para a calcinha. Olha para os quatro cantos do quarto. Escuta um barulho, semelhante ao que ouvira no banheiro. Coloca a calcinha no bolso da calça. Recua em direção à porta. Ramiro vai abrir a porta. Pára. Coloca a manga sobre a mão (cobrindo as digitais), abre a porta. Sai do quarto e começa a fechar a porta. Ramiro dá uma última olhada e fecha a porta. CENA 20 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / ESCADA Ramiro está no topo da escada, com sapatos na mão. Começa a descer a escada. No primeiro degrau, um rangido forte o faz parar. Continua descendo, bem devagar, sempre olhando para baixo. Ramiro termina de descer a escada. CENA 21 - INT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / HALL Ramiro chega na porta. Vai abrir, mas ela está trancada. Ramiro olha em volta. À direita dele um chapeleiro com um molho de chaves. Dirige-se até o chapeleiro. Ramiro pega as chaves, examina-as. São muitas. Ramiro ouve um barulho. Pára por alguns instantes. Ramiro volta para a porta e começa a experimentá-las, sem sucesso. A porta finalmente abre, mas ele a empurra muito rápido, e ela range bem alto. Mais uma vez, ele olha para o interior da casa. Nada. Sai e fecha a porta atrás de si. CENA 22 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE BRÁULIO Ramiro abre a porta do carro e senta no banco do carro com pernas para fora, coloca o pé na porta, começa a colocar e amarrar o sapato. CENA 23 - EXT/DIA - FRENTE DA DELEGACIA Ramiro entra num prédio com uma placa meio enferrujada onde está escrito: DELEGACIA MUNICIPAL. CENA 24 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO Ramiro caminha lentamente até um balcão de madeira, sob o olhar surpreso do policial, 40 anos, inspetor Monteiro sentado de costas ao fundo. Com um gesto meio teatral, Ramiro joga a calcinha sobre o balcão. CENA 25 - INT/DIA - DELEGACIA / CELA Ramiro, o rosto ensangüentado, tem um fio elétrico preso à orelha. Um outro fio é colocado no seu lábio. CENA 26 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE BRÁULIO Ramiro continua sentado no carro, colocando os sapatos. Ramiro, nervoso, pega um maço de cigarros no porta-luvas. Tira um cigarro, bate duas vezes com ele no painel do carro. Pega a caixa de fósforos, acende. Traga profundamente. Olha em volta, preocupado. Traga de novo. Olha para cima. Ramiro solta fumaça do cigarro. CENA 27 - EXT/NOITE - ESTRADA ASFALTADA E PONTE Ramiro na murada da ponte. Ramiro fecha os olhos e joga-se para a frente. Seu corpo cai lentamente em direção ao rio. CENA 28 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE BRÁULIO Ramiro termina de colocar os pés já com sapato no chão, larga o cigarro, apaga o cigarro com o pé. Ramiro vira-se para a frente, cada vez mais inquieto. Arruma o retrovisor CENA 29 - EXT/AMANHECER - ADUANA / POSTO POLICIAL Aduana. Na parede do posto, há um cartaz com a inscrição: REPUBLICA DEL PARAGUAY. Guarda aduaneiro ao lado da cancela fechada. O Ford se aproxima da aduana, pára. Guarda se abaixa para falar com Ramiro na janela. O guarda olha para Ramiro. Ramiro sorri amarelo para o guarda. CENA 30 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE BRÁULIO Ramiro decide ligar o carro. Gira a chave. Nada. Ramiro passa a mão no rosto, limpando o suor. Tenta de novo. O carro chega a pegar, mas apaga novamente Rosto de Bráulio aparece na janela. BRÁULIO Ramiro... Ramiro, assustado, olha para Bráulio. FIM DO SEGUNDO BLOCO TERCEIRO BLOCO CENA 31 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE BRÁULIO Ramiro, dentro do carro, tentando conter o pânico, olha para Bráulio, sem saber o que dizer. RAMIRO Doutor... O senhor me assustou. Bráulio sorri, os olhos mareados, de bêbado. BRÁULIO Tem um cigarro, filho? RAMIRO Claro... Ramiro, atrapalhado, passa a Bráulio o maço de cigarros, e em seguida o isqueiro. Bráulio acende o cigarro. Ramiro olha em volta, inseguro. BRÁULIO Não consegui dormir... RAMIRO É. Eu também não. Bráulio tosse. Limpa a garganta. BRÁULIO O calor é insuportável. Hum... mas, todas as noites eu me escapo. RAMIRO Eu já estava indo embora. Bráulio debruça-se sobre a janela do carro, sem pressa. Dá uma tragada no cigarro e sopra em direção a Ramiro. BRÁULIO E o carro? Consertou sozinho? RAMIRO É... Acho que estava afogado. E, para provar, gira a chave e liga o motor, que pega fácil. Bráulio ainda está na janela de Ramiro. BRÁULIO Me leva pra dar uma volta. Reflexo da lua passa pelo pára-brisa. Bráulio dá a volta pela frente do carro. BRÁULIO Vamos à cidade, tomar um vinho no La Estrella. RAMIRO Não, doutor, acontece que... BRÁULIO (contrariado) Como assim? Vai rejeitar o meu convite? Sem esperar resposta, Bráulio afasta-se da porta. Ramiro olha em volta, resignado. Bráulio quase perde o equilíbrio enquanto faz a volta, cambaleante, pela frente do carro. Entra pela outra porta e bufa ao largar-se no banco. BRÁULIO Vamos. RAMIRO Não, doutor, é que depois eu não vou poder trazer o senhor de volta. Tenho que devolver o carro. É do Gomulka. BRÁULIO Droga, já sei que é do Gomulka. RAMIRO É. Eu tenho que devolver. BRÁULIO Então tá. Me deixa na cidade. Eu volto a pé, pego um táxi... Eu quero é tomar um vinho contigo. Pelo teu velho, entende? (quase chorando) Eu gostava muito do teu velho, gostava mesmo... RAMIRO Eu sei, doutor. BRÁULIO Não me chama de doutor, me chama de Bráulio. RAMIRO Está bem, mas... BRÁULIO (enrolando a língua) Bráulio, te disse: me chama de Bráulio... RAMIRO Olhe, doutor Bráulio, acredite, eu não posso levar o senhor. Eu tenho o que fazer. BRÁULIO Que merda você tem que fazer a essa hora? São... que horas são? Ramiro olha o relógio e fica ainda mais nervoso. RAMIRO Três. BRÁULIO Bem, mete a primeira e vamos. Ramiro, resignado mas ainda nervoso, arranca. O carro se afasta pela estrada de terra, deixando a casa de Bráulio iluminada pela lua cheia. CENA 32 - EXT/NOITE - FORD 47 / ESTRADA DE TERRA Ramiro dirige, preocupado. Bráulio, a seu lado, sorri e fala arrastando as palavras, com uma pequena garrafa de vinho na mão. BRÁULIO Me alegra muito te ver, guri. Bráulio leva a garrafa à boca e toma um gole. Ramiro observa- o, com o canto do olho. BRÁULIO Merda, como eu gostava do teu velho. Toma um trago. RAMIRO Não, obrigado. BRÁULIO Olha só o abstêmio... Toma, estou mandando. De repente, Bráulio inclina-se em direção a Ramiro e enfia-lhe a garrafa no rosto. O carro desgoverna-se por uns metros, mas logo volta à sua pista na estrada de terra. Na direção, novamente seguro, Ramiro pega a garrafa. Bráulio olha para a janela. RAMIRO Obrigado. Ramiro não bebe. Percebe que Bráulio não percebeu, e fica mais confiante. Devolve a garrafa. RAMIRO E o senhor, doutor, por onde andou? Pensei que tinha ido dormir. BRÁULIO Todas as noites eu escapo. Carmem é uma velha insuportável. Dormir com ela é pior do que tomar uma colher de ranho. Ramiro acha graça. Bráulio acha muita graça. BRÁULIO Agüentar ela é mais difícil do que cagar num vidrinho de perfume. (rindo, soluçando) A pobre está mais gasta que chupeta de gêmeos. Ah, ah, ah... Bráulio prolonga o riso. Ramiro fica sério. RAMIRO E aonde você vai? BRÁULIO Quem? RAMIRO Você, quando escapa. BRÁULIO Tomo um porre, ora! RAMIRO E esta noite... que fez? BRÁULIO Estou te dizendo, me emborrachei. Tomei um porre. Não falei claro? Bráulio olha para a janela. BRÁULIO Os homens, homens, e o trigo, trigo, como dizia Lorca. RAMIRO Sim, mas onde você bebe? Não ouvi nada. BRÁULIO Na cozinha. Em minha casa sempre tem vinho. Muito vinho. Todo o vinho do mundo para o doutor Bráulio Tennembaun, clínico geral, menção honrosa da turma de trinta e sete... (assoando o nariz com a mão e limpando-a na calça)... e que veio acabar nesta vila de merda. CENA 33 - EXT/NOITE - FORD 47 / ESTRADA ASFALTADA O carro entra na estrada asfaltada e acelera. Ramiro, na direção, parece mais confiante. Ramiro volta a espiar Bráulio, a seu lado, e percebe que o velho está parado, pensativo. BRÁULIO E Elisa, hein? Sombra do espelho cobre os olhos de Ramiro. Ramiro não responde. Bráulio olha fixo para ele. BRÁULIO Está linda a minha filha, não? Vai ser um mulherão. Bráulio olha para a frente. BRÁULIO Se algum dia alguém fizer mal pra ela... Bráulio olha para Ramiro. BRÁULIO ... eu mato. Seja quem for, eu mato! O rosto de Ramiro crispa-se, como se ele estivesse passando mal. Ramiro, de repente, pisa no freio e gira a direção no sentido do acostamento. CENA 34 - EXT/NOITE - ACOSTAMENTO DA ESTRADA Carro se aproxima e pára. A porta do motorista abre-se bruscamente. Ramiro espicha o corpo para fora e vomita. Dentro do carro, Bráulio olha para Ramiro, preocupado. BRÁULIO Está se sentindo mal? RAMIRO É claro! Com meio corpo para fora do carro, Ramiro respira fundo, procurando recuperar-se. Põe a mão no bolso da calça e pega um lenço. Passa-o sobre a boca, depois na testa. Fecha os olhos, momentaneamente aliviado. A voz de Bráulio soa-lhe cavernosa, mas ele permanece de olhos fechados. BRÁULIO Pensa que eu não sei o que você fez? Bráulio está atrás da porta de Ramiro, parado na estrada, sério e sóbrio. Tem um revólver na mão, apontado para Ramiro. Fala baixo, com ódio. BRÁULIO Miserável... Ramiro continua na mesma posição anterior. Uma gota de suor cai-lhe da testa. Bráulio continua olhando-o, com ódio. O dedo de Bráulio puxa lentamente o gatilho. Ramiro treme, aperta os lábios. A arma dispara. Mas o som que se ouve é de vidro espatifando-se no chão. Ramiro volta a sentar no carro. Bráulio está sentado em seu lugar. RAMIRO Que barulho foi esse? Bráulio está sentado no banco, mãos vazias, ainda bêbado. BRÁULIO A garrafa. Terminou o vinho. Joguei fora. RAMIRO (virando-se) Não! Lá atrás. Bráulio também se vira. Na estrada, um carro se aproxima. RAMIRO É um carro. Acho que é da polícia. Ramiro e Bráulio olham para a frente. BRÁULIO (rindo, fazendo menção de levantar-se) Ah... Tô cagando pra polícia. Ramiro, rapidamente, coloca as pernas para dentro do carro e segura Bráulio. RAMIRO (em voz baixa, gutural) Mas eu não, merda! Fica quieto aí! Quer que eles nos caguem a tiros? O carro-patrulha pára no acostamento, atrás do Ford 47. Na capota do carro-patrulha acende-se um forte holofote. Luz do holofote do carro da polícia ofusca, pelo reflexo no espelho, os olhos de Ramiro. Bráulio, também ofuscado, vira-se para a frente. Ramiro e Bráulio ficam quietos, imóveis. Ramiro olha para o retrovisor de fora. Ramiro vê DOIS POLICIAIS MILITARES saindo pelas portas traseiras do carro-patrulha. O TENENTE sai pela porta da frente. Do carro-patrulha vem uma voz calma, mas firme e autoritária. TENENTE Não se mexam. Ramiro, sem se virar, acompanha o movimento dos policiais. Os dois que saíram primeiro, com carabinas engatilhadas, cercam o carro, mantendo uma certa distância. O outro se aproxima, devagar, com uma pistola na mão. TENENTE Mantenham as mãos à vista e não façam qualquer movimento suspeito. BRÁULIO (em voz baixa, para Ramiro) Estamos cercados pelo esquadrão da geometria. Foi Foucault quem disse. Você leu Foucault? RAMIRO (para o policial) Tudo em ordem, oficial. Pode fazer seu trabalho. O tenente chega à janela do motorista e olha para dentro. TENENTE Diga onde estão os documentos. Sem se mexer. RAMIRO Minha identidade está na carteira, no bolso traseiro da calça. BRÁULIO Eu não tenho documento nenhum. O tenente olha para Ramiro, indicando Bráulio com o olhar. RAMIRO É o doutor Bráulio Tennembaun, mora aqui perto. Está bêbado, oficial. O tenente concorda com a cabeça. Depois abre a porta do motorista, sempre apontando a arma. TENENTE Desça, por favor. Ramiro sai do carro, devagar. Tenente fecha a porta do carro, Ramiro encostado de frente para o capô. Ramiro levanta os braços e o tenente começa a revistá-lo. TENENTE E agora fique parado, com as mãos para cima. PM abre a porta do carona. TENENTE Vamos lá! Desce. Bráulio olha em volta e começa a se levantar. BRÁULIO Já estou indo. Tenente olha a identidade de Ramiro iluminada por uma lanterna. Ramiro apoiado no capô. Bráulio no outro lado. TENENTE Ramiro Bernardes? Ramiro, ainda de mãos sobre capô, confirma. RAMIRO Isso. Dentro do carro um PM revista o porta-luvas. Levanta o tapete, inspeciona o lado oculto do painel. Tenente devolve as identidades a Ramiro e Bráulio, ambos já com os braços abaixados. TENENTE Por que pararam? RAMIRO O doutor Bráulio se sentiu mal... E eu também. (indicando o chão com um gesto) Me desculpe. TENENTE Desculpa? Por quê? RAMIRO (voltando a indicar) Isso aí, o que acaba de pisar. O tenente só agora percebe que está de pé sobre uma poça de vômito. TENENTE Merda! O policial esfrega as botas no chão, tentando limpá-las. TENENTE Devem ter mais cuidado. Hoje em dia, qualquer movimento suspeito do pessoal civil tem que ser investigado. Ainda mais numa hora dessas. Podem seguir. (para os outros policiais) Vamos. Ramiro fica de pé, parado ao lado do carro, vendo os militares voltarem ao carro-patrulha. Dirige-se para a porta do carro, dá uma última olhadinha para o carro da polícia. Carro da polícia sai. Ramiro entra no carro. Ramiro e Bráulio olham para a frente. Ramiro liga o carro. BRÁULIO Este país é uma merda, Ramiro. Era lindo, mas os milicos o transformaram numa completa merda. Ramiro arranca. CENA 35 - EXT/NOITE - FORD 47 / ESTRADA ASFALTADA As linhas divisórias da estrada passam em velocidade maior do que na cena anterior. Ramiro está dirigindo, tenso. Bráulio, a seu lado, parece menos bêbado. Ramiro olha Bráulio com o canto do olho. BRÁULIO É... A aritmética é democrática porque ensina relações de igualdade, de justiça. A geometria é oligárquica porque demonstra as proporções da desigualdade. Afinal, você leu Foucault ou não? RAMIRO Alguma coisa, na universidade. BRÁULIO Pois os milicos nos inverteram o princípio, Ramiro. Agora somos um país cada vez mais geométrico. E assim vai continuar. RAMIRO Onde o deixo, doutor? BRÁULIO Você não vai me deixar. Ramiro segue dirigindo, tenso. CENA 36 - EXT/NOITE - FRENTE DA CASA DE RAMIRO Ruazinha suburbana, com poucos carros estacionados. O Ford 47 pára em frente a uma casinha branca, com muro baixo na frente. Ramiro desliga o carro, olha para Bráulio dormindo e faz menção de descer. Lembra que a sua chave está no chaveiro do carro. Pega-o e sai do carro. CENA 37 - INT/NOITE - CASA DE RAMIRO / HALL A mão de Ramiro abre a porta, com o chaveiro cheio de chaves. O hall de entrada está na penumbra. A porta da rua se abre devagar. Ramiro entra, põe o chaveiro no bolso e fecha a porta atrás de si com cuidado. CENA 38 - INT/NOITE - CASA DE RAMIRO / CORREDOR E QUARTO DE MARIA Ramiro caminha no corredor. À sua frente um relógio de pé marcando 3h50min. Ramiro caminha decidido, mas cuidando para não fazer barulho. Passa em frente a uma porta entreaberta. Hesita, volta. Pára na porta entreaberta. Empurra-a. Na penumbra do quarto, a mãe de Ramiro, dona MARIA, 60 anos, dorme recostada na cama com livro sobre o lençol. Ramiro fica parado na entrada do quarto, olhando para a mãe dormindo fecha a porta e segue para seu quarto. MARIA (FQ) É você, Ramiro? Ramiro, já no corredor, ouve a voz da mãe e pára. Vira o rosto para trás e responde. RAMIRO Sim, mãe. Boa noite. Luz do quarto de Maria se apaga. MARIA Boa noite. CENA 39 - INT/NOITE - CASA DE RAMIRO / QUARTO Uma gaveta se abre e revela alguns papéis, documentos, dinheiro. Ramiro está em seu quarto, sentado na cama, debruçado sobre a mesa de cabeceira, remexendo na gaveta aberta. As mãos de Ramiro abrem um passaporte e encontram, dentro dele, 5 notas de 100 dólares. Fecha o passaporte. Ramiro abre a porta do guarda-roupa. Pega uma camisa e uma calça, decidido, sem se dar ao trabalho de escolher. Coloca tudo dentro de uma sacola de nylon. Fecha o zíper. Fecha o armário. CENA 40 - INT/NOITE - CASA DE RAMIRO / CORREDOR E QUARTO DE MARIA No corredor, Ramiro volta a passar pelo quarto de sua mãe. Dona Maria dorme, na mesma posição anterior. Ramiro afasta-se pelo corredor, em silêncio. CENA 41 - EXT/NOITE - FORD 47 / FRENTE DA CASA DE RAMIRO De volta ao carro, Ramiro senta no banco do motorista e fecha a porta. Ao seu lado, Bráulio parece acordar com o barulho. Bráulio olha para Ramiro com um meio sorriso. Ramiro, sério, volta a olhar para a frente. BRÁULIO Chegamos? RAMIRO (olhando para frente) Ainda não. Liga o carro e sai. CENA 42 - EXT/NOITE - FORD 47 / ESQUINA DA CIDADE O Ford 47 aproxima-se de uma esquina e pára. Dentro do carro, com o motor ligado, Ramiro olha decidido para Bráulio. RAMIRO Bem, doutor, este é o ponto final. (indicando) O senhor consegue andar até o La Estrella? BRÁULIO (sóbrio) E você, aonde vai? RAMIRO Vou pescar. BRÁULIO A essa hora? RAMIRO Olha, velho, pára com isso, tá? Vou onde me der na telha e vou agora, entendeu? BRÁULIO Não. Vamos continuar bebendo por aí. E conversar. RAMIRO Olhe, você parece ter desejos que eu não tenho. Desça. Bráulio olha-o nos olhos e fala friamente, devagar: BRÁULIO Você não vai me deixar assim no mais, filho da puta. Pensa que eu não vi você e a Elisa? RAMIRO (perturbado) O que você disse? BRÁULIO Isso mesmo! Você e a Elisa! Ramiro dá um soco no queixo de Bráulio, que é jogado para trás, no banco. BRÁULIO Merda... Seu merda! Bráulio tenta reagir, mas Ramiro dá-lhe um segundo soco, no nariz, e ainda um terceiro, na base da mandíbula. O velho desaba sobre o banco, a cabeça pendida para trás. Ramiro, ainda incrédulo, olha rapidamente para suas próprias mãos, sem saber o que fazer. Volta a olhar para Bráulio, desmaiado. Rapidamente, sem desligar o motor, Ramiro abre a porta do carro e sai. Dá a volta pela frente do carro. Abre a porta do carona, com cuidado. O corpo de Bráulio cai pesadamente sobre seus braços. Ramiro segura o corpo do velho e olha em volta, como que pensando o que fazer com ele. Dá um primeiro puxão para sustentar o corpo de Bráulio. Então ouve um ruído. Na rua, ao longe, um farol de carro se aproxima. Ramiro volta a empurrar o corpo de Bráulio para dentro do carro. Fecha a porta. Outro carro se aproxima. Ramiro faz a volta no carro correndo. Entra pela porta do motorista, liga o carro e parte. CENA 43 - EXT/NOITE - FORD 47 / ESTRADA ASFALTADA À frente, as linhas divisórias da estrada passam em velocidade ainda maior. Ramiro está dirigindo, tenso, crispado, olhando fixamente para a frente. Uma gota de suor desprende-se da testa de Ramiro, que olha rapidamente para o lado. No banco do carona, Bráulio segue desmaiado. Carro entra em uma estrada de terra. Ramiro, cada vez mais nervoso, começa a falar sozinho. RAMIRO Perdido. Estou perdido. Agora não tem mais volta. (olhando para Bráulio) Velho de merda. (para a frente) Filha de merda. Demônio. Agora eu tenho que ir em frente: perdido por perdido... Estou jogado. Jogado e cagado. Cagado e fedido. Fedido como um morto. Bem fedido... Ramiro percebe alguma coisa à sua frente e diminui a velocidade. CENA 44 - EXT/NOITE - FORD 47 / ESTRADA ASFALTADA E PONTE Ramiro olha atentamente para a frente. Uma grande ponte se aproxima. Pára no acostamento, cerca de dez metros antes do início da ponte. Continua olhando para a frente. Nenhum movimento. Ramiro desce do carro, caminha até a amurada da ponte. Vinte metros abaixo, o rio corre entre pedras. Ramiro, tenso, põe a mão no bolso, leva-a até a testa para secar o suor com o que ele julga ser um lenço. Ramiro percebe que o "lenço" é na verdade a calcinha rasgada de Elisa. Ramiro fica olhando alguns segundos para a calcinha. Olha para o carro. Ramiro olha mais uma vez para o rio. Volta a olhar para a calcinha. Ramiro caminha até a porta do passageiro e a abre. O braço de Bráulio cai para fora do carro. Ramiro coloca a calcinha no bolso de Bráulio, ajeita o velho e fecha a porta. Dá a volta pela frente do carro e entra pela porta do motorista. Ramiro olha para trás. Nenhum movimento na estrada. Ramiro olha para Bráulio, que continua desmaiado. Ramiro liga o carro e dá a ré. Ponte se afasta. Ramiro olha para a frente. O carro parado na estrada, a uns cem metros da ponte. Nenhum movimento na estrada. Ramiro olha para Bráulio, que continua desmaiado. A porta do motorista se abre. Ramiro sai, inclina-se para dentro do carro e puxa Bráulio para o banco do motorista. Pega as mãos de Bráulio e as coloca sobre a direção do carro. Aperta a mão direita de Bráulio sobre a alavanca do câmbio, cuidando para deixar marcadas as impressões digitais. De dentro do carro, Ramiro tira a sacola de nylon, atira-a para fora. Volta a entrar no carro, sentando-se à direção, no colo de Bráulio. Ramiro senta e fecha a porta. O velho dá um gemido, mas não desperta. RAMIRO (frio, sem olhar para ele) Não reclama, velho. Já vai terminar. Ramiro pega a mão de Bráulio e, com ela, engata a primeira. O carro volta a pôr-se em movimento. Ramiro dirige, apertado entre Bráulio e a direção. Mãos de Ramiro colocam pés de Bráulio no acelerador. Ponte se aproxima. Carro vai ganhando velocidade, em direção à ponte. Uma gota de suor começa a rolar por seu rosto. Ponte mais próxima. Ramiro, com a mão de Bráulio, engata a segunda. Bráulio, de olhos fechados, parece que vai acordar. Ramiro não olha para ele, os olhos fixos na estrada. O carro se aproxima da ponte, ainda mais rápido. Ramiro vira a direção para o lado da ponte. Bráulio geme. A gota de suor pinga e desenha um estranho sorriso no rosto de Ramiro. Ramiro, decidido, gira a direção no sentido da amurada da ponte. O carro corre em direção à amurada. Ramiro, com a mão esquerda, abre a porta do carro. O rosto de Ramiro se ilumina. Ele grita e salta fora do carro. Ramiro rola no chão. O carro vai em direção à ponte, em alta velocidade. O carro chegando na amurada. Ramiro apóia-se no chão. Levanta o dorso, gemendo de dor no cotovelo, e olha em direção à ponte. O carro rebenta a amurada, diminui de velocidade ao romper a amurada, vai parando... Pára. O corpo de Bráulio cai sobre a direção, acionando a buzina. Carro fica pendurado sobre o abismo, a buzina estridente enchendo a noite. Ramiro sai correndo em direção ao carro. Aproxima-se cuidadosamente da janela do motorista, cuidando para não escorregar no chão de terra que precede a queda para o rio. Ramiro, pela janela, puxa o corpo de Bráulio pelo ombro, afastando-o da direção e silenciando a buzina. Bráulio cai no banco, a cabeça pendente sobre o encosto. Ramiro vê, na estrada, ao longe, as luzes de um carro que se aproxima. Ramiro abaixa-se, olha sob o Ford e vê que o carro ficou preso. Na estrada, o outro carro se aproxima. Ramiro vai para trás do Ford e tenta empurrá-lo. O carro está mesmo preso. Ramiro faz força. O outro carro se aproxima na estrada. Ramiro faz muita força. Ramiro suando muito. Ford oscila. O Ford começa a se soltar. Ramiro empurra. O Ford se solta e começa a andar lentamente para o abismo. Iluminada pela lua cheia, a ponte despeja o velho Ford 47, que vem caindo em direção ao rio. Ramiro olha o carro cair. Cai. As rodas do carro ficam para cima da água, o resto do Ford submerso. Ramiro olha pro carro, olha pra estrada e se esconde, encostado na cabeceira da ponte. O outro carro está bastante próximo e Ramiro ouve uma música do rádio muito alta. Na frente, um HOMEM e uma MULHER, rindo. Ramiro não resiste a tentação de dar uma olhadinha para o carro que passa. No banco de trás, um MENINO muito sério, de nariz colado no vidro, olha para Ramiro. Ramiro olhando pro carro, vê o menino. Carro termina de passar. Ramiro se vira, senta e se recosta na parede da ponte. Ramiro aliviado, esfrega o cotovelo. Começa a levantar. Ramiro termina de subir a ribanceira, olha em volta. Nenhum movimento. Volta a olhar para o carro. Lá embaixo, o Ford está quase submerso, rodas para cima. Fala consigo mesmo. RAMIRO Tudo bem. FIM DO TERCEIRO BLOCO QUARTO BLOCO CENA 45 - EXT/NOITE - ESTRADA ASFALTADA Ramiro caminha pela estrada. Massageia o cotovelo ferido. Olha para trás à procura de alguma luz ou movimento. Nada. Pega um cigarro. Vai acender mas se detém. CENA 46 A þ INT/DIA þ QUARTO DE ELISA Monteiro (não aparece o seu rosto) ergue o lençol que cobre o corpo de Elisa. O Policial, ao fundo, se aproxima. POLICIAL O velho desapareceu. CENA 46 - EXT/DIA - MARGEM DO RIO Margem do rio, o Ford 47 é içado por um guindaste. Três POLICIAIS acompanham a operação. Dois ENFERMEIROS carregam uma maca onde há um corpo envolto num plástico. O policial 1 mostra a Carmem a calcinha de Elisa, num saco plástico. Carmem fecha os olhos, balança a cabeça afirmativamente e cobre o rosto. POLICIAL 1 A senhora tem certeza? Carmem balança a cabeça afirmativamente. POLICIAL 1 Não quer dar uma outra olhada? Carmem balança a cabeça negativamente. Policial 1 sobe a ribanceira e leva a calcinha até o inspetor Monteiro, que só aparece de costas. POLICIAL É da filha. MONTEIRO Certeza? O policial balança a cabeça afirmativamente. POLICIAL O senhor tinha razão. Ele deve ter tomado um porre. Quando se deu conta do que fez, enlouqueceu. MONTEIRO (saindo) Vamos embora. O policial pega um apito do bolso e sopra. POLICIAL (gritando para todos) Vamos embora! CENA 47 - EXT/NOITE - ESTRADA ASFALTADA Ramiro caminha pela estrada. Um cachorro late ao longe. Os faróis de um carro se aproximam. Ramiro acelera o passo. O carro se aproxima. Ramiro agora quase corre. Sai da estrada e se esconde atrás de uma tralha. Os faróis se aproximam. Ramiro sente o cotovelo ferido. O carro agora está bem próximo e já pode ser visto. É um pequeno caminhão transportando animais. Sombra passa pelo rosto de Ramiro. O caminhão passa. Ramiro respira aliviado. CENA 48 - EXT/NOITE - ESTRADA ASFALTADA Ramiro volta a caminhar pela estrada. Vê os faróis de um carro que se aproxima. Ramiro limpa a roupa, ajeita o cabelo e pára na beira da estrada. Faz um sinal pedindo carona. É um grande caminhão que se aproxima. Ramiro abana. O caminhão pisca os faróis e pára. Ramiro protege o rosto da luz do farol com a mão direita. O CAMINHONEIRO, 45 anos, gordo, sem camisa, fala à janela. CAMINHONEIRO Para onde quer ir? RAMIRO (com sotaque paraguaio) Para qualquier lado, más cerca de la ciudad. CAMINHONEIRO Sobe aí. Porta se abre. Ramiro sobe. CENA 49 - EXT/NOITE - CAMINHÃO / ESTRADA ASFALTADA Caminhão arranca. Ramiro tenta manter o rosto afastado do olhar do caminhoneiro. RAMIRO Se rompió mi coche. CAMINHONEIRO Sei. O caminhoneiro segue olhando para a estrada, sem encarar Ramiro. Ramiro observa-o em silêncio e depois desvia o olhar para a janela. Ramiro põe a mão no bolso e tira um cigarro. Distraidamente, bate duas vezes com o cigarro no painel do caminhão. Olha para o caminhoneiro e oferece um cigarro. O caminhoneiro recusa com um gesto e volta a olhar para a estrada. Ramiro acende o cigarro e dá uma tragada. CENA 50 - EXT/NOITE - PISCINA A Lua cheia. Um movimento de água revela que é um reflexo da lua sobre as águas do rio. Do fundo das águas, sob reflexo da lua, surge Bráulio, ofegante, o rosto ensangüentado. CENA 51 - EXT/AMANHECER - CAMINHÃO / ESTRADA ASFALTADA Ramiro, cabeça encostada no vidro, é acordado pela luz e a buzina de um ônibus que cruza a estrada. Reflexo do ônibus passa pelo vidro. O caminhão pára num sinal vermelho. Ramiro vê, nas calçadas da periferia da cidade, os primeiros movimentos da manhã: MÃE com DUAS CRIANÇAS em uniforme escolar atravessa a rua. Ramiro rapidamente abre a porta e, sem olhar diretamente para o motorista, salta do caminhão. RAMIRO Gracias, viejo. Quedome acá. MOTORISTA Tchau, gringo. Ramiro sorri e vê o caminhão se afastar. Olha o relógio. Faltam dez para as seis. O dia está clareando. Ramiro caminha pela calçada. Vê uma MULHER que se aproxima ao longe. Ramiro atravessa a rua, mudando de calçada. Do outro lado da rua, a mulher se afasta. Ramiro mantém a cabeça baixa. CENA 52 - EXT/DIA - FRENTE DA CASA DE RAMIRO Ramiro abre o portãozinho de ferro da casa sem conseguir evitar que ele ranja. Olha para os lados para ver se alguém na rua o observa. A rua está vazia. Ramiro procura a chave de casa no bolso. Não encontra. Procura no outro bolso. Ramiro pára CENA 53 - EXT/DIA - FUNDO DO RIO Na ignição do Ford 47, no fundo do rio, ao sabor da correnteza, o chaveiro de Ramiro dança ao lado da mão de Bráulio, morto. FIM DO QUARTO BLOCO QUINTO BLOCO CENA 54 - EXT/DIA - CASA DE RAMIRO / QUINTAL Ramiro, no quintal, termina de dar a volta na casa. Aproxima- se de uma janela, ergue o vidro, abre-a. Entra pela janela, tentando não fazer nenhum barulho. CENA 55 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / COZINHA Ramiro esbarra numa cadeira, provocando alguns ruídos. Pára e fica em silêncio. Não escuta nada. Caminha pela cozinha, procurando encontrar seu caminho no escuro. CENA 56 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / CORREDOR E QUARTO DE MARIA Ramiro se aproxima da porta fechada do quarto de sua mãe. Pára e escuta. Nada. No corredor, relógio de pé ao fundo (6:10h) CENA 57 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / BANHEIRO A porta do banheiro se abre. Ramiro entra e fecha a porta atrás de si. Acende a luz. Caminha em direção à pia e tira a camisa. Examina o cotovelo ferido e sujo de barro. Abre a torneira, lava o rosto e o cotovelo ferido. Termina de lavar- se e dirige-se à porta. Volta a apagar a luz do banheiro. Ramiro abre a porta para voltar ao corredor, mas dá de cara com a mãe, parada ao lado da porta, de chambre. Ele leva um susto, mas ela nem percebe. MARIA Já acordado, Ramiro? Você foi dormir tão tarde, meu filho. CENA 57 A - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / CORREDOR Ramiro sai da porta do banheiro e vai para a porta de seu quarto levando um copo com água. Maria sai em direção à cozinha. MARIA Quer café? RAMIRO Não. Vou tentar dormir mais um pouco. CENA 58 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / QUARTO Ramiro termina de se sentar na cama. Larga o copo ao lado, na mesinha de cabeceira. Deita e fecha os olhos, cansado. CENA 59 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / QUARTO O sol forte penetra pelas fendas na persiana, desenhando uma espécie de grade de luz na semi-obscuridade sobre Ramiro. Num canto, sobre uma mesinha baixa de madeira, um ventilador potente gira de um lado para o outro, fazendo um ruído monótono. A mesa, frágil, vibra um pouco. O vento que o ventilador provoca chega à cama onde Ramiro está dormindo, fazendo o lençol balançar levemente. Na mesma mesinha do ventilador, está um copo cheio de água, perigosamente colocado na beirada. Quando o ventilador vira totalmente para a esquerda, praticamente encosta no copo. A água do copo se agita um pouco. Uma vibração mais forte da mesa provoca um pequeno movimento na base do ventilador, que agora, ao atingir sua rotação máxima, começa a bater no copo. A água passa a agitar-se muito mais, e o som agudo do plástico que protege as pás em atrito com o vidro incomoda o sono de Ramiro. Ele acorda aos poucos. A primeira coisa que vê é a mesinha com o ventilador e o copo, mas está meio grogue de sono e não percebe que o copo está prestes a cair. Fica olhando para o iminente "desastre" como se visse um filme. O copo move-se meio milímetro para a frente. Vai cair. Ramiro finalmente decide agir. O copo começa a cair. Ele estende a mão e detém o copo no início da queda. Ramiro recosta-se no travesseiro. Sorri, aliviado. Vai levar o copo à boca, mas o som crescente da voz de sua mãe atrás da porta o faz deter-se. MARIA (FQ) Claro. Já está na hora de ele acordar mesmo. Ramiro olha para o relógio de pulso: onze e quatorze. MARIA Ele foi dormir muito tarde. Agora a voz já está bem forte. MARIA Um minuto. Vou ver se ele já acordou. Ramiro largo o copo na mesa à esquerda, deita para a direita. Batidas na porta. MARIA Ramiro, posso entrar? A porta se abre. MARIA Ramiro... Ramiro abre um olho, depois outro, fingindo ainda dormir profundamente. MARIA Querido, tens uma visita. Maria atravessa o quarto em direção à janela. Ramiro vira-se olhando para a porta. Ramiro ergue-se nos cotovelos, curioso. Na semi-escuridão, não consegue ver quem está ali. RAMIRO (sonolento) Visita? MARIA (olhando para trás) Entra. Uma figura feminina entra no quarto e pára perto da porta. Dona Maria ergue a veneziana. Luz da persiana sendo aberta ilumina a pessoa aos poucos. MARIA Que calor... Para horror de Ramiro, a figura recém-chegada, agora iluminada diretamente pela luz da janela, é Elisa, que sorri para ele, meiga, sensual, diabólica. FIM DO CAPÍTULO 1 *********************************************************** (C) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1998 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br