MEMÓRIA roteiro de Roberto Henkin e Jorge Furtado maio/1989 (colaborações: Ana Luiza Azevedo, Carlos Gerbase, Giba Assis Brasil e Sérgio Amon produção: Casa de Cinema de Porto Alegre ******************************************************************* CENA 1 - EXT/NOITE - ARREDORES DE SODOMA Imagem de uma mulher silhuetada contra uma grande fogueira, correndo, em câmera lenta, em direção a câmera. LOCUÇÃO Segundo o Antigo Testamento, quando Deus ordenou a destruição de Sodoma e Gomorra, Ló e sua esposa foram instruídos a deixar a cidade sem olhar para trás. O passado deveria ser esquecido. A esposa de Ló, num compreensível gesto humano, desrespeitou a lei divina e foi transformada numa estátua de sal. Neste ponto da locução, a mulher se volta para a fogueira. Um clarão, acompanhado de forte ruído, enche a tela. Corta para plano de uma estátua reproduzindo a mesma posição da mulher de Ló. CRÉDITOS E TRILHA CENA 2 - ARQUIVO Edição de trechos escolhidos, sem som, de filmes marcantes do cinema brasileiro e mundial: Tempos Modernos, Casablanca, Cidadão Kane, Oscarito, James Dean, Carmen Miranda, 2001, Macunaíma, etc. O fundo musical é uma trilha clássica de cinema. Durante esta sequência, ouve-se: LOCUÇÃO É preciso começar a perder a memória para perceber que é justamente esta memória que faz toda a nossa vida. Uma vida sem memória não seria uma vida, assim como uma inteligência sem possibilidades de se exprimir não seria uma inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela não somos nada. (Fade out) CENA 3 - INT - ESTÚDIO Depoimento de um homem de costas para a câmera, que descreve um lento movimento circular em torno dele. O fundo está desfocado. Ele fala sobre algo que não se identifica num primeiro momento. Aos poucos, percebe-se que ele fala sobre o que ele imagina ser o cinema. Pouco depois, a câmera revela que quem fala é um cego. CENA 4 - EXT/NOITE - CINEMA Notícia no jornal anuncia a última sessão de algum filme cujo certificado de censura está por vencer. Imagens da porta de um cinema onde é exibida a última sessão do filme. Uma pequena multidão se aglomera na porta do cinema. LOCUÇÃO O cinema fixa para a eternidade a essência de um momento. No Brasil, essa eternidade dura exatamente cinco anos. Este é o tempo de validade do certificado de censura, sem o qual, nenhum filme pode ser exibido. As cópias com o certificado vencido são incineradas. A destruição compulsória dos filmes não é o único exemplo do desrespeito à história no Brasil. Sessenta por cento da produção cinematográfica nacional foi destruída pela negligência. Um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. CENA 5 - ARQUIVO Cartaz da campanha presidencial de Jânio Quadros, onde aparece o seu símbolo: a vassoura. Imagens do início da década de 60 no Brasil. Jânio Quadros, com uma campanha conservadora e moralista, se elege presidente. LOCUÇÃO Eleito com a maior votação da vida política do país, Jânio Quadros chega ao poder como a grande esperança de salvação nacional. Depoimentos de grandes intelectuais brasileiros que votaram em Jânio em 1960 (Luis Fernando Veríssimo, Millôr, Antônio Callado) Imagens da renúncia de Jânio. Notícias de jornal. Entrevista de Jânio à TV Educativa, na saída de um comício. REPÓRTER Por que o senhor renunciou? JÂNIO (profundamente irritado) Isto está em todos os livros de história. Se a senhora não os leu, o problema é seu. LOCUÇÃO Até hoje a renúncia de Jânio permanece como o desfecho mal resolvido de um roteiro medíocre. Em sete meses de governo, fica para a história a proibição de corridas de cavalos aos sábados, algumas frases desconexas e o caminho aberto para vinte anos de ditadura. Sobre a imagem dos generais do golpe, lento fade-out enquanto a trilha cresce. Ruído ensurdecedor de uma metralhadora que se mistura lentamente com o som de uma britadeira. CENA 6 - EXT/DIA - ARQUIVO O som da britadeira se mistura com o som de um ônibus que passa. Ruídos do centro de São Paulo. Quando o som do ônibus chega ao seu ponto mais alto, explode na tela, em corte, um cartaz de filme de sexo explícito, da pior qualidade. ("P... duros em B... macias") Ilustração obscena. Montagem rápida de cartazes pornográficos, aos poucos intercalados com cartazes da campanha de Jânio à prefeitura. Vassoura. "Jânio vem aí". Jânio num palanque, prometendo combater o comunismo, as drogas e a pornografia. CENA 7 - INT/DIA - DEPÓSITO No depósito de uma distribuidora de filmes, um funcionário empilha latas e mais latas de filmes para serem transportadas. O rádio do caminhão toca a música da campanha de Jânio. (" Ele vem aí / não demora não / ele vem aí com a vassoura na mão"...) CENA 8 - ARQUIVO Imagens e entrevistas de Jânio para a televisão onde ele: eleito para a prefeitura de São Paulo, limpa a cadeira do prefeito; proíbe a exibição na tv paulista de "O último Tango em Paris "; fecha os cinemas que exibiam "A última tentação de Cristo". CENA 9 - EXT-INT/DIA - FÁBRICA Latas de filmes sendo descarregadas numa fábrica em Diadema, São Paulo. Numa esteira industrial, vassouras são empacotadas. Seguindo o processo inverso de fabricação da vassoura, chega-se até sua matéria prima: cópias de filmes. Latas de filmes sendo descarregadas. Detalhe da máquina que destrói os filmes. Depoimento do proprietário ou gerente da fábrica, falando de sua atividade, o que acha do cinema e porque fazer vassouras de filmes e não de um outro material qualquer. Depoimento do cego que apareceu no início do filme, desta vez situado no seu ambiente de trabalho. Por ironia, ele trabalha na fábrica de vassouras. Passa o dia manuseando cópias, de filmes que nunca viu nem poderá ver. CENA 10 - EXT/DIA - PORTA DE CINEMA Enquete na porta de um cinema. As pessoas falam sobre os motivos pelos quais apóiam Jânio Quadros. O cego (o mesmo da fábrica) entra no cinema, auxiliado por um amigo. CENA 11 - INT/DIA - SALA DE CINEMA Close no cego sentado no cinema. Gongo anuncia o início da sessão. As luzes se apagam e a luz da tela reflete sobre ele. Música de abertura de um cinejornal. O amigo, sentado ao seu lado, explica-lhe o que se vê na tela, não se escutando o que ele diz. O close é mantido até o final da cena. Texto do cinejornal: "Atualidades da Tela. O ex-prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, lançou em Londres sua candidatura a presidência da república nas eleições de 89. Satisfeito com o resultado das últimas pesquisas de opinião, Jânio Quadros declarou que... (áudio sai em Fade) FADE OUT Sobre fundo preto, lê-se a frase: "Este filme é dedicado às estátuas de sal". CRÉDITOS FINAIS FIM Obs.: A cena da "Mulher de Ló" é baseada numa idéia de Kurt Vonnegut Jr. O texto sobre a memória é de Luis Buñuel. ******************************************************************* (c) Roberto Henkin e Jorge Furtado, 1989-90 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br