O SANDUÍCHE roteiro de Jorge Furtado versão 26/06/2000 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre ******************************************************************* CENA 1 - SALA - INTERIOR, NOITE Sala de um apartamento. Bons quadros na parede. Uma luminária é a única fonte de luz da cena. ELA, cabelos presos, está a mesa e observa uma xícara de chá. ELE está de pé, carrega uma sacola e alguns livros. ELE Acho que é isso. ELA Certo. ELE Se eu lembrar de mais alguma coisa eu te ligo. ELA Claro. ELE Eu ligo de qualquer maneira, amanhã. ELA Se quiser. ELE Eu vou querer. ELA Você não tem como saber se vai querer. ELE Tenho sim. Eu vou querer. ELA Então tá bom. ELE Você também pode ligar. ELA Posso? Que bom, fico feliz em saber. ELE Pode não no sentido de poder. No sentido de... Eu quero que você ligue. ELA Quer? ELE Quero, claro. Só porque a gente não vai mais morar junto não significa que eu vá perder um... Pausa. ELA Esquecer. Desarmam os personagens. ELE Esquecer! Esquecer! Esquecer! Que eu vá esquecer! Que eu vá esquecer cinco anos da minha vida. Ele pega um roteiro encadernado, confere. Ele caminha pela sala. Ela acende um cigarro. ELA A gente mudou esta fala faz tempo. ELE Eu sei, claro. ELA Quer parar? ELE Não, não. Vamos terminar a cena. Até aí foi bem. Me desconcentrei, foi só isso. ELA Faz o seguinte: imagina que aqui tem uma platéia, que o teatro está lotado, tem um monte de gente nos olhando. ELE Onde. ELA Ali. Ela aponta para a platéia, lotada. Ele se vira e fica olhando para as pessoas na platéia. ELA Imaginou? ELE Imaginei. E agora? ELA Agora esquece deles e lembra do texto. Acho que tu podia largar a pasta na fala anterior, ali no "sentido de... Eu quero que você ligue". ELE É bom. ELA É o momento em que ele vacila, diz que quer que ela ligue. Acho melhor. ELE Vamos fazer do início ou só final? ELA Vamos fazer a partir do "você também pode ligar". ELE Tá bom. Ele volta a sua marca, ela apaga o cigarro, ele pega a pasta, retomam os personagens. ELE Você também pode ligar. ELA Posso? Que bom, fico feliz em saber. ELE Pode não no sentido de poder. No sentido de... (ele larga a pasta) de que eu quero que você ligue. ELA Quer? ELE Quero, claro. Só porque a gente não vai mais morar junto não significa que eu vá esquecer cinco anos da minha vida. ELA Sete. Contando o namoro. ELE (ele se aproxima) Parece menos. Passou tão rápido. ELA É. Passou. ELE Você acha que passou mesmo? ELA (ela levanta) Não é questão de achar ou não achar. Você está indo embora, passou. Acabou. ELE Eu não acho que acabou. ELA Mas acabou. Talvez até possa começar outra vez, de outro jeito. ELE (ele se aproxima) Seria ótimo. ELA Seria. Desarmam os personagens. ELA Aí a gente se beija e fim. ELE Ficou bom largando a pasta mais cedo. ELA Ficou. ELE Tu já jantou? ELA Comi um sanduíche. Tu não jantou? ELE Não. (olha o relógio) É tarde. ELA Quer um sanduíche? Eu faço. ELE Não precisa, obrigado, eu como qualquer coisa em casa. ELA Eu faço um sanduíche em um minuto. Gosta de peito de peru? ELE Gosto. Ela prepara um sanduíche. ELA Tu foi casado quanto tempo? ELE Dois anos. ELA Rápido. Gosta de mostarda? ELE Gosto, mas pouquinho. E tu? ELA Eu adoro. ELE Não, tu já foi casada? ELA Ah... Morei com um cara, um ano. ELE Mais rápida que eu. ELA Maionese? ELE Não, tô precisando emagrecer. ELA Pra que? Tu tá ótimo. ELE Acha? Obrigado. Pode botar um pouquinho então. ELA (entrega o sanduíche, corta ao meio) Pronto. ELE Obrigado. ELA Quer suco de laranja? Refrigerante? ELE Suco. Ele morde o sanduíche. ELE Humm. Delícia. ELA Obrigado. Ela serve o suco. ELE Tu se separou por quê? ELA Ele não gostava dos meus sanduíches. ELE Não é o meu caso. O que mais tem aqui? Peito de peru, mostarda. ELA Rúcula, tomate e... o resto eu não digo. ELE O que é? ELA Um tempero secreto. Aprendi com uma pessoa, prometi não contar. E nunca contei. ELE Uma pessoa. ELA Uma amiga. ELE Não precisa contar. É ótimo. Um cara que não gosta deste sanduíche tem algum problema sério. ELA Obrigado. Ele estava namorando outra. ELE E tu descobriu. Ou te contaram? ELA Ele me contou. ELE Bom. ELA Menos mal. (ela senta perto dele) E tu? Separou por quê? ELE Não sei bem. Ficou chato. ELA De repente? ELE Não, aos poucos. Acho que é sempre assim. Acontece aos poucos e a gente percebe de repente, quando acontece alguma coisa, uma coisa banal. ELA Que coisa? ELE Isso eu não conto. ELA Desculpe. ELE Não, tudo bem. É que é uma coisa que não faz sentido, pra quem vê de fora. É complicado de explicar. ELA Claro, eu sei. ELE É uma coisa que a outra pessoa faz e tu percebe de repente que ela é uma estranha. Ou uma coisa que ela sempre fez mas tu nunca tinha percebido que ela fazia. Ou queria fazer. ELA Conta logo. ELE Quer que eu conte? ELA Tu tá louco para contar. ELE Vamos fazer o seguinte: tu me diz qual é o tempero do... ELA Vinagre balsâmico, azeite de oliva, sal e páprica. O que foi que ela fez? ELE Páprica? ELA Um tempero, tem em qualquer lugar. Conta logo. ELE Ela comprou uma calça de couro. Pausa. ELE Eu disse que era ridículo. Claro que eu não me separei por que ela comprou uma calça de couro. É que de repente eu vi ela de calça de couro, botando batom e pensei, quem é essa pessoa de calça de couro no meu banheiro? ELA Sei. ELE Na verdade foi ela que mandou embora. Mas foi um alívio. Acho que ela já estava a fim de outro cara há tempo. A calça de couro foi um sinal. Páprica é um vegetal? ELA É. Acho que é, eu compro em pó. Só conheço em pó. ELE Tenho que fazer super. Só compro comida no posto de gasolina. ELA Tu tá sozinho? ELE Estou. Quase um ano. E tu? Eu vi você com um cara lá no teatro. ELA Amigo. ELE Amigo? Sei. ELA Um ex-namorado. A gente ficou amigo. ELE Mesmo? Como é que faz isso? Quer dizer, eu encontro minha ex-mulher, cumprimento. Eu vi vocês dois no teatro. Vi ele mexendo no teu cabelo. ELA Ele é gay. ELE Ah, bom. Assim é fácil. ELA Ele adora cinema, teatro. ELE Sei. ELA Eu estou sozinha. ELE (ele se aproxima) Alguém que faz sanduíches assim não fica sozinha por muito tempo. ELA Não é qualquer um que experimenta meus sanduíches. ELE Hummmm... Espero que seja o primeiro de uma série. ELA Seria ótimo. ELE Seria. ELA Essa é uma fala da peça. ELE Qual? ELA Seria ótimo, seria. ELE É mesmo. O que vem depois? ELA Depois a gente se beija. ELE Seria ótimo. ELA Seria. Beijam-se. ELA Hummmm... ELE O que foi? ELA Faltou mostarda. Ele sorri. DIRETOR (fora de cena) Corta! CENA 2 - PRAÇA - EXTERIOR, DIA Ela e Ele desarmam os personagens. Um Microfonista erque-se entre os dois. Câmera recua e mostra um set de filmagens. O maquiador entra em cena e arruma o cabelo dela. O pessoal da cenografia mexe na geladeira. Uma Menina entra em cena e vem falar, muito íntima, com Ele. Falam de mão dadas. DIRETOR Valeu. Foi ótimo. Amanhã é externa, seis e meia. ELA Não quer fazer o final? No ensaio ficou melhor. DIRETOR Ficou ótimo. Melhor que no ensaio. ELA Posso tirar o cabelo? DIRETOR Pode. Ela tira a peruca, com a ajuda do maquiador. DIRETOR Olha, o Vítor terminou. Aplausos. O pessoal da equipe cumprimenta Vítor. Ele se aproxima do diretor. Abraçam-se. DIRETOR Valeu, Vítor. ELE Grande prazer. Vítor se aproxima de Márcia. (ELA) ELE Márcia. Abraçam-se. Ao fundo, o diretor responde perguntas de várias pessoas. ELA Acho que ficou bom. ELE Acho que sim. ELA Você não está na externa da praça? ELE Não, já fiz a minha parte. ELA Que inveja. Seis e meia. ELE Você filma até quando? ELA Até sexta. ELE Quero te passar aquele texto. ELA A peça. Claro, quero ver. ELE No original são quatro atores, tem um narrador e uma criada. Mas acho que dá para fazer só com o casal. ELA Vê se você vai lá na sexta. ELE Se der eu vou. Se não, te ligo. A gente marca de jantar. ELA Seria ótimo. ELE Seria. Eles sorriem. ELA Tchau. ELE Tchau. A Menina abana para Márcia. Ela abana de volta. Vítor e a Menina saem de cena. Márcia sai de cena. O diretor fica sozinho no cenário, lendo o roteiro. Risca uma folha. Continua lendo o roteiro. Pega a metade que sobrou do sanduíche e dá uma mordida. Pára no meio, a sanduíche parece ter um gosto horrível, ele não consegue engolir. Ele pega a folha riscada do roteiro, arranca e cospe o sanduíche. Põe o sanduíche inteiro na folha do roteiro e embrulha. Deixa o embrulho sobre a mesa e sai de cena lendo o roteiro. OUTRO DIRETOR (OFF) Vai grua. Vai. Sobe toda, devagar. CENA 3 - PRAÇA - EXTERIOR, DIA O cenário da sala, montado num palco no meio de uma praça. OUTRO DIRETOR (OFF) Foi toda? Segura. Corta. Os atores, um por um, com seus créditos, agradecem os aplausos da platéia. Entrevistas reais com os espectadores, durante os créditos finais. - O que você achou? - Já tinha visto uma filmagem? - Gostou da história? Entendeu? - Conte a história para alguém que não viu. (achar alguém que não viu a filmagem para que outra pessoa lhe explique o que aconteceu). Entrevista falsa (combinada) final, com casal de namorados. - Como é o teu nome? E o teu? Já atuaram alguma vez? Vocês vão ser um casal, Paulo Eduardo e Maria Regina. Aqui está o roteiro. Eu me aproximo, pergunto o nome de vocês, vocês dizem, Paulo Eduardo e Maria Regina. Aí eu pergunto se vocês gostaram da filmagem e vocês dizem o texto. "Gostei. Devia ter isso todo dia". "Seria ótimo". "Seria". Certo? Podemos fazer? MULHER Gostei. Devia ter isso todo dia. HOMEM Seria ótimo. MULHER Seria. FIM ******************************************************************* (c) Jorge Furtado, 2000 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br