SANEAMENTO BÁSICO, O FILME 

Entrevista com Jorge Furtado



Como surgiu a idéia do filme?

Um filme não é feito só com uma idéia, mas muitas. Eu identifico o início desse filme com uma vontade que eu tinha de fazer alguma história em cima da Commedia dell’Arte. Eu estava na época estudando os personagens da Commedia dell’Arte e queria fazer uma história de seis, sete personagens, arquetípicos da Commedia dell’Arte, numa pequena comunidade. Em função disso, comecei a pensar em alguma coisa italiana, uma colônia italiana.  Tempos depois, fui ao Santa Maria Vídeo e Cinema, no Rio Grande do Sul. Visitei a quarta colônia italiana de Santa Maria pensando em locações e quando estava lá, durante o festival, foi lançado um concurso para produção de vídeos de cidades com até 20 mil habitantes. Santa Maria queria participar, mas não podia porque era grande demais, com seus 200 mil habitantes.  Eu achei isso engraçado, quero dizer, a idéia do concurso. Democratizar a produção de vídeos, de cinema, faz sentido, mas creio que o formato adotado foi a um extremo muito grande. Porque a maioria dos filmes são feitos no Rio, São Paulo, Porto Alegre, Recife, cidades de mais de um milhão de habitantes. Parecia mais lógico lançar um concurso para cidades com menos de um milhão de habitantes, incluindo todas as médias cidades no Brasil. Então me ocorreu essa história: imaginei uma cidadezinha muito pequena, com problemas para conseguir dinheiro para algumas coisas de que precisa, mas que tem a possibilidade de fazer um vídeo.

Sempre existe uma contradição nos países subdesenvolvidos sobre o investimento na cultura. Como um país que não tem saneamento básico vai fazer cinema? Mas claro que essa é uma contradição boba: é preciso fazer tudo ao mesmo tempo. Não podemos só fazer saneamento. Comecei a escrever essa história com esses personagens que querem resolver um problema de saneamento básico e não têm verba, mas têm para realizar um vídeo e resolvem usar a grana para fazer a obra; fazendo um vídeo sobre a construção da obra.
 
Primeiro veio a idéia da forma e depois a história para contar?

Sim, a história tem um pouco desse universo mínimo da Commedia dell’Arte: um grande problema para uma pequena comunidade. O interessante do teatro da Commedia dell’Arte é que sobreviveu durante séculos  com seis, sete personagens. Realizar toda a dramaturgia necessária tendo apenas esses seis ou sete personagens foi o que deu origem a esse trabalho.

Por que uma comédia política?

Eu gosto de comédias e normalmente trabalho com um registro próximo da comédia. Uma comédia política porque eu nunca fiz isso, uma novidade no meu estilo de fazer cinema.
 
Que referências o ajudaram a construir o filme?

Eu procuro sempre, dentro do possível, fazer um filme bem diferente do anterior. E nunca fiz nada parecido com esse filme antes. As minhas referências vêm principalmente do cinema italiano e do cinema cubano, com a comédia política. Filmes de Tomás Gutiérrez Alea, como "Guantanamera", por exemplo. Ou de Juan Carlos Tabío, que também fez filmes políticos. Gosto de comédias de situação com um tom político e social.  Ettore Scola  fez vários filmes assim, "Feios, Sujos e Malvados" (1976), por exemplo. O Scola trabalha muito em cima da Commedia dell´Arte. "A viagem do Capitão Tornado" (1990) mostra exatamente um grupo da Commedia dell’Arte. Uma comédia humanista que envolve política e relações pessoais. 
 
Comédia talvez seja o melhor gênero mais atraente o espectador, e o mais difícil para o criador. Por que você optou por esse registro narrativo?

MEU TIO MATOU UM CARA e HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES são comédias, mas comédias românticas. O que move os personagens é a paixão de conquistar. Eu gosto da comédia porque não acredito muito em heróis. Na definição do Aristóteles, a tragédia mostra o melhor dos homens, o que os seres humanos têm de melhor, e a comédia mostra o que temos de pior. O herói trágico é perfeito, com exceção de uma coisa: ele tem uma falha, algo que é um problema e esse problema causa a sua desgraça. Mas, no resto, ele é perfeito. Na comédia, os personagens são medíocres, tacanhos, mesquinhos, invejosos. Esses sentimentos ficam exacerbados. Só que acabamos gostando deles porque são humanos. Eu prefiro representar a realidade através da comédia porque tudo é, de alguma maneira, risível. A comédia mostra os defeitos dos personagens e entende as razões deles. Eu jamais faria um detetive, por exemplo. A maior parte do cinema é feito de heróis, pelo menos no grande cinema hollywoodiano. Eu prefiro o registro dos perdedores, que são muito mais interessantes.

Você é um cineasta do contemporâneo. Como uma forma clássica como a Commedia dell’Arte é usada para falar de questões atuais?

Quando comecei a escrever o roteiro, estipulei algumas coisas. Uma delas foi que o filme não teria nenhum off, nenhuma narração. Porque todos os meus filmes têm narração. O HOMEM QUE COPIAVA tem meia hora de narração inicial. Em HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES e MEU TIO MATOU UM CARA, também. São protagonistas masculinos que narram as histórias a partir do ponto de vista deles, e a gente ouve o que eles pensam através da narração. Na Commedia dell’Arte não cabe isso. Os personagens Mariana e Joaquim são os protagonistas, mas na Commedia dell’Arte todos os personagens são equilibrados. Eu cheguei a contar o número de falas de cada um no roteiro, e há pouca diferença. Tudo está bem distribuído entre os quatro personagens principais. Não havendo off, a história é o que se vê acontecer, o que é muito próprio do cinema. O off, a narração, é uma forma de expressão da literatura que o cinema importou. Ficar ouvindo o texto é algo da literatura. No cinema clássico, vemos a história acontecendo. Mas quando e onde isso acontece é a questão do contemporâneo. A história acontece hoje, no Brasil. Há referências diretas a Brasília, ao dinheiro de Brasília. Os figurinos, os automóveis são atuais, mas como estamos em um microcosmos, uma cidadezinha do interior, o tempo fica meio indefinido - se a história se passasse 10 anos atrás, isso não faria diferença. Acho importante criar um espaço e tempo próprios do filme, e por isso me concentro numa cidadezinha. Além disso, o filme vai apresentar um universo pouco conhecido para o resto Brasil e mesmo para nós gaúchos, o universo de classe média numa pequena cidade no interior do Brasil. Normalmente, o cinema brasileiro representa os grandes centros urbanos, zonas rurais, interior do sertão. Esse filme será em uma cidadezinha. Com TV, carro e celular, o filme é contemporâneo, mas ele tem um tempo e lugar meio próprios.

Quanto tempo foi dedicado ao projeto SANEAMENTO BÁSICO até esse momento de produção (filmagens)?

A intensidade e o número de pessoas envolvidas vai aumentando. Um filme sempre começa pelo roteiro, que é um trabalho solitário. Comecei a escrever esse roteiro há três anos. Nos últimos seis meses, passamos a ter uma equipe maior trabalhando em volta do filme e agora, no último mês, já envolvemos toda a equipe no projeto.

Quanto tempo você trabalhou no roteiro?

Trabalhei durante dois anos. Com alterações, porque o roteiro não pára de ser mudado. Todos os dias eu mudo, outro dia mesmo escrevi uma cena nova, um diálogo novo. Porque nos ensaios com atores, nas leituras, na locação, sempre surgem idéias. Existe uma constante alteração do roteiro durante as filmagens. O roteiro só pára de ser mexido na mixagem.    

Ao filmar HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES você descreveu o litoral gaúcho como o mais feio do mundo, apesar do evidente carinho pelo cenário. Como é olhar para e filmar na serra gaúcha?

A serra é linda, e o filme, neste sentido, vai servir para promover o turismo. O lugar é muito bonito e temos muitas cenas nas estradas cheias de plátanos. A serra gaúcha é fotogênica; a luz tem um ângulo interessante nesta época do ano, outono/inverno. O cenário é muito típico do Rio Grande do Sul e pouco conhecido no cinema brasileiro. São vinhedos com cantinas, gente que faz vinho, pousadas. Com sorte teremos neve. Será o primeiro filme brasileiro com neve.

Qual a relação entre o título SANEAMENTO BÁSICO, O FILME e o fato de a produção do filme ser de baixo orçamento?

Um dos assuntos do filme é o dinheiro - o filme fala todo tempo em dinheiro. Os personagens discutem o preço das coisas. Eu sempre gosto de colocar isso nos filmes porque é um assunto meio tabu. Durante muito tempo, ouvi que falar de dinheiro envelhecia o filme. Eu acho que dinheiro é um assunto muito importante na vida das pessoas. Todo mundo se move, diariamente, a todo momento, por dinheiro. Esse assunto fica meio fora da dramaturgia porque ninguém quer falar nisso, porque parece um assunto menor, só que não é. O objetivo dos personagens precisa ser importante para eles mesmos e esse filme fala sobre pessoas que discutem longamente quem vai pagar por uma fita. Um filme de baixo orçamento é caríssimo. Com R$1,6 milhão se faz uma escola. Essa é uma questão no Brasil. Como investir na produção o mesmo dinheiro que construiria casas populares? Se partirmos para essa lógica, o país deve gastar só naquilo que é fundamental. Portanto, vamos discutir o que é fundamental. Eu acho que arte, cultura, cinema são fundamentais. A tese do filme é um pouco essa.

Cinema é básico?

Cinema é básico total. Na minha opinião, cinema é tão importante quanto saneamento. Morar numa casa sem saneamento é horrível, mas viver num país sem cinema também é horrível. Qualquer cultura deve produzir cinema. Viver sem cinema não dá. Qualquer país sério tem que produzir cultura. O cinema é exportável. A visão que temos dos outros países é muito mais pelo cinema do que a partir de qualquer outra coisa. O Brasil sempre produziu cinema e precisa continuar produzindo. Se o país puder resolver ao mesmo tempo os problemas de saneamento, ótimo.

Ao fazer IlLHA DAS FLORES, você dizia que estava fazendo um filme que tentava explicar o Brasil, na sua lógica social e econômica, para um marciano que recém tivesse chegado à Terra. SANEAMENTO BÁSICO, O FILME explicará o Brasil?

Eu espero que o filme explique um pouco da nossa produção cultural para os brasileiros. Espero também que explique isso fora do Brasil. Essa visão que se tem desde fora é curiosa. Às vezes, a leitura de fora revela coisas que nem o diretor percebeu que estavam no filme. Talvez esse filme revele o Brasil, para ele mesmo e para fora, de um jeito diferente. O cinema de exportação do Brasil é muito dentro de uma trilha única. Um filme brasileiro com neve, com frio, com italianos, num lugar onde se faz vinho, revela um lado diferente do Brasil para quem está fora. 

Ao realizar seu quarto longa-metragem, você mantém uma continuidade incomum no cinema brasileiro. Quatro filmes em quase o mesmo número de anos. Qual a importância dessa regularidade no seu trabalho?

 É fundamental e vital essa continuidade. Se eu fizesse só cinema, tentaria fazer dois, três filmes por ano – meio como o Fassbinder. As idéias têm um prazo, um momento para serem contadas. No Brasil, se pode levar cinco anos para fazer um filme. A continuidade é fundamental. Não só para mim, mas para o cinema em geral.

O que você espera deste filme dentro do seu projeto de realizar cinema?

Eu espero que ele seja visto. Um filme é sempre isso: dividir uma idéia com alguém, com um público.  Quando se escreve e se filma, se está querendo dividir. A vontade de dividir visões de mundo te faz escrever, pintar, filmar. Eu espero ter público, espero que as pessoas vejam o filme. O cinema tem uma característica que me agrada muito: depois de feito ele continua existindo - diferentemente do teatro, que tem um valor transitório. O cinema é durável. Eu penso que o ILHA DAS FLORES não foi visto ainda por muita gente. SANEAMENTO BÁSICO será mais um filme que desejo que seja visto.

Como os atores foram escolhidos?

Todos foram escolhidos a partir de nossa experiência. Sem exceção, eu já dirigi todos eles.
 
Fale sobre os personagens.

O personagem da Fernanda Torres, a Marina, é a mulher laboriosa, na tradição da Commedia dell’Arte. Aquela mulher que trabalha, sustenta a casa, é decidida, resolve as coisas, e tem uma certa ascendência sobre o próprio marido. Ela move a história. O personagem do Wagner Moura, o Joaquim, é um pouco calcado no Arlequim, que é o servidor de dois patrões. Ele é casado com a filha do chefe. O sogro é o patrão, e ele ascendeu socialmente com o casamento. Joaquim é o personagem mais humano e é o protagonista masculino. Ele é corajoso em casa, mas na hora de falar com o chefe, dá aquela micada. É um personagem com o qual nos identificamos muito. Ele cresce e se transforma, ficando adulto no filme. Os outros dois personagens são Fabricio, do Bruno Garcia, e Cilene, da Camila Pitanga. Eles são os personagens glamourosos. O Fabrício é o cara que se preocupa com a aparência, o galã sedutor. A Cilene é a mocinha desfrutável, bonita, e que usa a beleza para seduzir todo mundo e para ascender socialmente. Temos ainda os dois personagens mais velhos: Antônio, do Tonico Pereira, e Otaviano, do Paulo José. O Otaviano é um velho veneziano de uma família nobre e decadente. Ele teve educação, ouve ópera, lê muito, mas não tem dinheiro e está descendo na escala social. O Antônio, que é o bolonhês, é um burguês ascendente. Eles representam o confronto daqueles dois velhos inimigos que se amam desde a infância.  O personagem Marcela, da Janaina Kremer, é a burocrata, a mulher do Estado, o personagem ligado ao poder público. Ela é quem tem o dinheiro. O personagem do Lázaro Ramos, Zico, é o fanfarrão, o artista.  Perdido naquele mundinho, ele acha que deveria estar em outros lugares, em Paris, por exemplo. Zico é um cara com pretensão artística. Com esses personagens, se pode contar qualquer história.

Por que a escolha dessa região?

O ponto de partida foi o fato de ser uma região de colonização italiana. As músicas do filme são todas italianas. A história é criada em cima de uma família italiana também. Eu pensei em lugares com uma configuração de cidadezinha.  Eu precisava de um centro, um núcleo urbano pequeno, de poucas casas, que tivesse uma casa, ao lado de um negócio, ao lado de uma fábrica.

Além de Monte Belo do Sul e Bento Gonçalves, mais alguma cidade servirá de locação?

Santa Teresa, Santa Bárbara e várias estradas de lugares daquela região, no Vale dos Vinhedos.

Quando o filme estréia?

A previsão é termos uma cópia em abril de 2007. Mas a estréia vai depender da Columbia, que irá distribuir o filme.

Quantas horas por dia a equipe fica no set?

Nossa rotina é de doze horas diárias de trabalho; iniciando com a hora em que se sai do hotel para o local das locações.



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