SANEAMENTO BÁSICO, O FILME 

Entrevista com Fernanda Torres


Quem é seu personagem?

É a Marina, casada com o Joaquim, ela trabalha na fábrica de móveis com o pai. Ela é um pouco o filho mais velho do pai e o homem da relação com o marido. A Marina é quem decide mover a comunidade para fazer uma obra de saneamento básico na cidade.

Como você vê o seu personagem?

Ela é o pragmatismo em pessoa, começa a fazer o tal filme com o objetivo prático de fechar uma fossa. A arte vai tocando a Marina, o cinema, custos do cinema, de tal forma que ela vai ficando dividida entre a obra de saneamento e a arte. Um pouco o dilema de todos nós: será que um país que é carente em saneamento básico pode sonhar em fazer cinema? Será que é o dinheiro investido no cinema que impede? Qual é a função da arte e de uma arte cara, como o cinema? O interessante é que, nesse contato com o cinema, com as razões subjetivas do cinema, a Marina acaba resolvendo todas as questões profundas da vida dela, do casamento, da relação com o pai, de tudo, menos da fossa, objetivo primeiro da querida Marina.

O que orientou a sua preparação para viver o personagem?

Eu estou frustrada porque o Jorge não liberou o sotaque, não podia ser o sotaque de Porto Alegre, era meio italiano, que eu nem sei direito como é. Ele tem toda a razão de não deixar a gente fazer sotaque, mas eu ainda luto, dentro de mim, com o sonho dela ter o sotaque de Porto Alegre. Na minha opinião a Marina soa o Sul, a essa indignação eloqüente do Sul. Ia ficar um horror, o Jorge tem razão, ele está me salvando mas, na minha cabeça, ela ainda tem sotaque. Principalmente quando fala Triliche! Estou apavorada também porque o Jorge vai botar uma música Italiana em cima de uma cena do Wagner com a motocicleta dele. Eu já falei que tem que ter música quando ele está comigo também, porque senão eu vou perder para a motocicleta. Mas fica brega, fazer o quê?! Fora isso estou indo com humildade.

O que você espera do filme?

Eu espero tanta coisa, espero que a gente se divirta filmando, eu acho que esse filme tem uma certa pureza, uma graça ingênua das comédias clássicas, algo muito raro de se encontrar. O "Marvada Carne", que eu fiz novinha, me lembra um pouco o SANEAMENTO BÁSICO, a maneira como a gente se apega aos personagens. E tem o Paulo José de pai e o Wagner Moura de marido. O Wagner é de se escangalhar, um companheirão, a gente tem umas cenas muito boas juntos.

Como é ser dirigido por Jorge Furtado?

Tem sido um processo muito feliz, o Jorge é inteligentíssimo, é uma dessas pessoas que você torce para que queira ser sua amiga. Muito parceiro, a gente trabalha sobre o roteiro, ensaia, ri muito, ele é econômico nas observações, preciso, parte um pouco do princípio de que os atores devem saber o que estão fazendo, interfere quando a gente sofre de cegueira súbita e não percebe o que ele escreveu. Trabalhar com o Jorge é estar perto, também, do universo dele, da Casa de Cinema, de Porto Alegre, da Nora, de uma vida intelectual no Brasil. É uma vida que me parece possível, às vezes, só no Sul. E é ter a chance de ficar namorando a biblioteca do Jorge, que biblioteca o Jorge tem, meu Deus, uma coisa linda.

Como foi o convite para trabalhar no filme? Conte essa história.

Ele me ligou, eu li e dei graças a Deus dele ter me ligado.

Quais as contribuições que o ator traz para um roteiro escrito por Jorge Furtado?

O que mais me surpreende no Jorge, como roteirista, é a economia dele. O Jorge confia que a informação está dada, todas as idéias que surgiram durante os ensaios voltam incorporadas, sem grandes revoluções no roteiro. Isso é sinal que ele sabe o que está fazendo, ele saaaaabe. Ele pega uma idéia e, se gosta, usa e ainda cria cinqüenta mil outros detalhes sutis a partir daquela idéia sem ter que alterar o roteiro para isso. Então é um trabalho produtivo, racional, prazeroso. E, como diz Domingos de Oliveira, a racionalidade é o único caminho para a transcendência.

O que acontece nos ensaios? Ensaio é só repassar o texto? Como é o processo?

A gente lê pelas beiradas, vai tentando fazer, ensaio em cinema é muito calcado no roteiro, você fica empenhado em entender o roteiro, ver se tem algum detalhe que escapa. A gente filma fora de ordem e você tem que entender de onde você está vindo e para onde você está indo. Parece simples, mas não é, se não entender o roteiro, vai sair comendo mosca durante a filmagem e vai acabar com um personagem flat, sem nuance, morto no resultado final. Um diretor sempre vê o filme como um todo, os atores servem para esmiuçar os personagens, para descobrir algo que nem o diretor havia notado, porque ele nunca leu apenas com o ponto de vista daquele personagem específico. Os ensaios do SANEAMENTO me serviram para ganhar intimidade com o Wagner e com o Paulo, os dois atores com quem ensaiei até agora. Nas cenas do casal, por exemplo, nós percebemos que havia umas brigas que já eram boas escritas mas, lidas, funcionavam muito bem, o Jorge acabou estendendo essas brigas para outras partes do roteiro, como uma característica do casal. A crise deles se concretizou e se a gente não tivesse trabalhado antes, teríamos começado as filmagens sem o crescimento das brigas, ensaio serve pra isso.

Como descreveria a sua relação com o fazer cinema?

Eu faço cinema há muito tempo. Cinema no Brasil é sempre um milagre que não se repete, cada filme parece que vai ser o último. Cinema requer um empenho, uma dedicação quase religiosa, requer que você entre num túnel com um bando de malucos igual a você, que acaba sendo bem mais fácil de fazer quando se é muito novo, quando não se tem nenhum compromisso na vida a não ser vivê-la. Hoje, com filho, casa, família, peça, empresa, imposto de renda, a possibilidade de embarcar nessa aventura é sempre mais complicada e exige que seja por um causa que realmente valha a pena. Cinema é sempre mais caro do que o dinheiro que se tem. Até no Titanic, acredito, o dinheiro e o tempo não eram suficientes. E você move essas montanhas todas por uma razão banal, a realização artística. No cinema ela acontece de forma muito ampla, você lida com teatro, música, tecnologia, literatura, o cinema é a arte e a ciência juntas, um alucinógeno muito caro e muito poderoso. Eu me identifico com os personagens do SANEAMENTO BÁSICO, a Marina, pra mim, é uma homenagem à Nora, à Lucy Barreto, à Marisa Leão, às produtoras de cinema, mulheres com um talento estranho, de lidar com a praticidade num ambiente totalmente idílico. Por ser tão caro, tão complexo, tão difícil, tão inútil e mesmo assim tão necessário, o cinema ainda mantém, pra mim, seus mistérios, ainda me sinto privilegiada e envergonhada com a chance de fazer mais um filme. Eu achava que o Irã era um país retrógrado e um dia eu assisti "Salve o Cinema" (Salaam Cinema, Irã, 1995). Esse filme mudou, para sempre, o meu conceito sobre o Irã. O Irã passou a ser um país de ponta na minha imaginação, desde que eu vi esse filme. É diferente de se ler um livro de um iraniano, para se escrever um livro basta um, mas uma andorinha não faz verão, no cinema. Para ter chegado no "Salve o Cinema", o Irã teve que produzir técnicos, atores, diretor, roteirista, muita gente teve que existir para o Irã chegar lá. Talvez por isso o cinema seja uma arte tão importante, hoje. Uma das provas de que um país é capaz de produzir cultura. O cinema é um dos quesitos da civilização.




SANEAMENTO BÁSICO, O FILME

A CASA | FILMES | PROJETOS | CONEXÕES | NOTÍCIAS | CONTATO | ENTRADA | IN ENGLISH | EN ESPAÑOL