OS TRÊS EFES DO PROFESSOR DAMASCENO roteiro de Carlos Gerbase versão 3: 17 a 25 de outubro de 2006 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre **************************************************************** CENA 1 - DOCUMENTÁRIO - CASA DO PROF. DAMASCENO - INTERIOR - DIA / TABLE-TOP 1. 1. O próprio Damasceno escrevendo (a mão, ou em máquina de escrever) em sua casa, num ambiente cheio de livros. NARRADOR (V.S.) Segundo o professor Aníbal Damasceno Ferreira, a humanidade depende de três letras "efe": a fome, a foda e o fasma. 1. 2. Material de arquivo (fotos, vídeos e trechos de filmes), além de imagens especialmente produzidas. Computações gráficas simples, em 2D, completam a edição. NARRADOR (V.S.) Para sobreviver, o homem precisa vencer sua fome. Para perpetuar a espécie, tem que encontrar alguém para uma foda. Para se comunicar e viver em sociedade, ele deve saber criar e interpretar um fasma. Fasma é a representação da realidade, o ato de contar uma história sobre o mundo. Os primeiros fasmas nasceram em volta de uma fogueira, em eras pré-históricas, quando os homens relatavam suas caçadas e suas aventuras. Com o passar do tempo, os fasmas sofisticaram-se, através do uso de desenhos, falas e textos escritos. O cinema, inventado em 1895, é um fasma formado por imagens fotográficas em movimento. A palavra "fasma" deriva do grego "phásma", que significa simulacro. Aristóteles prefere "mimese", que significa "imitação". Em qualquer dos casos, perde-se algo essencial: a relação com os dois outros "efes", que dão ao "fasma" o necessário senso de urgência e primitividade. 1. 3. William, 30 anos, mulato, roupas modestas e gastas, mas limpas, com uma sacola de plástico na mão, passa pela porta do edifício de Martina, mantida aberta por Seu Zé, 30 anos, que tem um uniforme de porteiro. Os dois trocam um discreto aceno de cabeça. William entra no elevador. NARRADOR (V.S.) Alguns especialistas acham que a suprema tarefa da humanidade é reunir os três efes num só momento mágico, em que se atingiria a plenitude existencial e a mais completa felicidade. 1. 4. Damasceno ainda escrevendo em seu caderno. NARRADOR (V.S.) Para o professor Damasceno, contudo, isso não passa de um sonho. 1. 5. William, no elevador, abre a sacola e pega uma pistola. NARRADOR (V.S.) Ou de um pesadelo. 1. 6. Damasceno fecha o caderno (ou tira a folha da máquina). NARRADOR (V.S.) Ou melhor, de um fasma. 1. 7. Martina, 30 anos, vestindo um robe, abre a porta do seu apartamento. William aponta a pistola para ela. (Nova trilha. Créditos iniciais sobrepostos nas cenas 2 a 9) CENA 2 - BARRACO DE WILLIAM - INTERIOR - DIA William abre os olhos em sua cama modesta. Senta na cama e acende a luz, que ilumina um pequeno barraco de madeira, de uma única peça. Está sozinho. Pega um pedaço de pão em cima da mesa. Começa a comê-lo. Vai até a porta e olha para fora. CENA 3 - BARRACO DE WILLIAM/VILA POPULAR - EXTERIOR - DIA William passa por um carrinho de coleta de lixo, encostado no barraco, e vai até os fundos do terreno, onde há uma cabine de madeira podre caindo aos pedaços sobre uma fossa. Dá a última mordida no pão. Entra e, sem fechar a porta, começa a fazer xixi. CENA 4 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO DE SISSI E DIEGO/BANHEIRO - INTERIOR - DIA Sissi, 20 anos, está dormindo. Toca o despertador (6:30). Ela acorda. Na penumbra, caminha, meio sonâmbula, até o banheiro, e faz xixi. Volta ao quarto e acende a luz. Há duas camas, e numa delas dorme Diego, 7 anos. SISSI Diego, tá na hora. Diego não acorda. Sissi senta na cama, dá um beijo no menino, tira as cobertas e faz com que ele saia da cama. CENA 5 - BARRACO DE WILLIAM/VILA POPULAR - EXTERIOR - DIA William sai da cabine e volta à frente da sua moradia. Com uma chave que tira do bolso, abre um cadeado, liberando a corrente de aço que mantém preso o carrinho de lixo à parede. Joga a corrente dentro do barraco. Usa o cadeado para trancar a porta da frente. Pega o carrinho e se afasta, rumo à saída da vila. Há barracos nos dois lados da viela, e muito lixo acumulado pelo chão. CENA 6 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO DE ADÃO - INTERIOR - DIA Sissi entra no quarto de Adão, seu pai, 55 anos, que está dormindo. Ela acende a luz. SISSI Pai, tá na hora. Adão, que está virado para a parede, não olha para ela. ADÃO Apaga essa luz. SISSI Tu disse que hoje ia procurar emprego. ADÃO (irritado) Apaga a porra dessa luz. (grita) Agora! Sissi apaga a luz e sai do quarto. CENA 7 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - DIA Diego, já vestido, está sentando na mesinha, esperando o café. Várias garrafas de cerveja, uma de cachaça e copos sujos ocupam boa parte do tampo da mesinha. Sissi, também pronta para sair, abre a geladeira, pega uma garrafa de leite (a única) e um resto de manteiga. Sacode a garrafa. Está quase vazia. Mesmo assim, despeja o que resta num copo. SISSI (para Diego) Toma. É o que tem. Diego bebe num gole só. Sissi procura alguma coisa num armário. Acha um pacote de pão de sanduíche, com apenas uma fatia bem pequena (aquela da casca). Passa manteiga no pão e entrega-o para Diego, que não parece estar satisfeito. Mesmo assim, engole o pão. Sissi abre a sua bolsa e tira uma carteira. Examina a carteira. Está quase vazia: uma nota de cinco e duas de um real. Pega as duas notas de um real e as entrega para Diego. SISSI Pro lanche. Vamos embora. Os dois saem da cozinha. CENA 8 - EDIFÍCIO DE SISSI/FACHADA/RUA - EXTERIOR - DIA Sissi e Diego saem do edifício (pequeno, meio decadente) e começam a caminhar. Uma carrocinha de lixo seco, puxada por William, cruza por eles e segue em sentido oposto. CENA 9 - RUA - EXTERIOR - DIA William pára a carrocinha junto ao meio-fio e examina o conteúdo de um saco de lixo grande. Vai pegando papel, embalagens plásticas e pratos descartáveis. Num deles, dobrado, encontra um pedaço de pizza. Examina a pizza. Olha em volta. Não há ninguém por perto. William devora a pizza. CENA 10 - ESCOLA PÚBLICA/FACHADA - EXTERIOR - DIA Sissi dá um beijo em Diego. O menino corre para dentro da escola. Sissi fica um tempo olhando para ele e depois sai. CENA 11 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - DIA A carrocinha de William pára na frente de um edifício novo, com uma portaria toda envidraçada. William examina rapidamente o conteúdo de uma lixeira grande. Acha uma garrafa plástica de refrigerante e a coloca na carrocinha. Seu Zé, zelador do edifício, que varria a calçada, aproxima-se dele. SEU ZÉ Passa aqui pelas onze, que a dona Martina quer jogar fora um monte de jornal velho. WILLIAM Não posso pegar agora? SEU ZÉ Não. Ela deve estar dormindo. WILLIAM Tá bom. (hesita) Seu Zé, o senhor não teria aí um pedaço de pão velho? SEU ZÉ Não. William puxa a carrocinha e vai embora. CENA 12 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA Dois sanduíches são colocados sobre uma bandeja grande, com um café da manhã completo. Martina, vestindo um robe, faz os últimos ajustes na bandeja e sai da cozinha. CENA 13 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - DIA Martina abre a janela do quarto, iluminando-o e acordando Rogério, 35 anos. Ele não parece muito satisfeito. Vira de lado, evitando a luz mais intensa. Martina pega a bandeja e senta na cama, perto de Rogério. MARTINA Surpresa. Rogério abre os olhos e, de má vontade, senta na cama. Martina ajeita melhor a bandeja e, antes de deitar ao lado de Rogério, tira o robe. Está com uma camisola "sexy", curta, decotada e cheia de babados. ROGÉRIO (olhando para a bandeja) Martina, eu tô de regime. MARTINA É tudo light. Rogério toma um gole de suco e faz uma careta. ROGÉRIO Tá azedo. Rogério olha para Martina pela primeira vez. ROGÉRIO Por que tudo isso? MARTINA Porque eu te amo. ROGÉRIO Não. É pra me animar. Tu acha que eu tô deprimido. MARTINA Normal. Hoje tá todo mundo meio deprimido. Rogério afasta a bandeja e levanta da cama. Vai até a janela e olha para fora. Depois volta-se para Martina. ROGÉRIO (irritado) Todo mundo? Tu acha que eu tô deprimido porque o Brasil perdeu a porra da copa do mundo? Eu convenci um cliente a produzir um comercial com o idiota do Parreira dizendo que uma boa empresa funciona como uma boa equipe de futebol. Sabe quanto custou pra botar esse comercial nos intervalos dos jogos? Oito milhões de reais! E hoje eu vou dizer pro cliente que essas coisas acontecem. (pausa) Quem sabe eu levo pra ele esse café maravilhoso, com esse suco azedo, pra ver se ele fica menos deprimido? Martina olha para ele, desolada. Rogério respira fundo. ROGÉRIO Desculpa. (pausa) Eu vou tomar banho. Rogério sai do quarto. Martina fica sozinha na cama, com sua camisola "sexy" e sua bandeja de café intocada. CENA 14 - SALA DE AULA UNIVERSITÁRIA - INTERIOR - DIA Sissi olha para o professor, 45 anos, e toma notas num caderno. Ao seu lado, uma colega, 20 anos, come batatinhas fritas. Sissi olha com gula para as batatinhas enquanto ouve o professor. PROFESSOR Ifigênia pensa que está indo para seu casamento com Aquiles, mas, quando chega na ilha de Áulis, descobre que vai ser sacrificada para que os ventos empurrem a esquadra grega até Tróia. Primeiro ela resiste, mas depois, quando olha para os milhares de soldados passando fome, percebe que a sua vida não é nada frente ao destino da Grécia. Então ela decide morrer com honra, sem medo. Ifigênia, tão jovem e tão consciente, é a maior das heroínas da tragédia clássica. Muito obrigado, e até a semana que vem. Os alunos levantam-se e começam a sair da sala. A colega de Sissi percebe o olhar de Sissi para as batatinhas. Estende o pacote. COLEGA Quer? SISSI Não, obrigado. A colega levanta e sai, deixando o pacote em cima da mesa. Sissi espera que ela se afaste e pega o pacote. Descobre, decepcionada, que só resta uma batatinha, que engole numa só bocada. CENA 15 - ÔNIBUS - INTERIOR - DIA O ônibus está numa parada de fim de linha, esperando a hora de sair. Sissi aproxima-se da roleta e dá um vale-transporte para o cobrador, 18 anos, que está comendo um grande cachorro-quente. COBRADOR Tudo bem? SISSI Tudo. Ela não consegue tirar os olhos do cachorro-quente. O cobrador percebe. COBRADOR Quer uma mordida? SISSI (sorrindo) Não. COBRADOR Tem certeza? Sissi olha em volta. O ônibus está meio vazio. Não tem ninguém olhando pra eles. Sissi sorri para o cobrador. SISSI Parece bom. O cobrador estende o cachorro-quente. COBRADOR Pode morder. Sissi morde rapidamente e começa a mastigar. O cobrador olha para ela, meio sacana, estende a mão e segura o braço de Sissi. COBRADOR Eu largo às duas. Aí posso te pagar um inteiro. Sissi, ainda mastigando, afasta o braço com um repelão e caminha para a porta de saída. O ônibus arranca. O cobrador, que continua comendo o cachorro-quente, sorri para Sissi. Termina o lanche e lambe os dedos, cheios de maionese, ketchup e mostarda. CENA 16 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA/DESPENSA - INTERIOR - DIA Martina está na cozinha lavando a louça, já vestida. Os dois sanduíches estão em cima da mesa. Toca o porteiro eletrônico. Ela atende. SEU ZÉ (OFF) É o rapaz de lixo limpo. MARTINA Manda subir. Martina enxuga as mãos e vai para a sala. Examina-se rapidamente no espelho. Toca a campainha. Ela abre a porta. É William, sorridente. WILLIAM Bom dia. O Seu Zé disse que a senhora... MARTINA Pode entrar. Os dois passam pela sala, pela cozinha e chegam na despensa, que tem duas pilhas de jornais velhos, lado a lado. William pega uma deles e vai saindo. Quando passam pela cozinha, Martina olha para os dois sanduíches em cima da mesa. MARTINA William, tu não tá com fome? William pára e olha para Martina, que aponta para os sanduíches. MARTINA O meu marido não teve tempo de comer. Pode pegar. William, meio sem jeito, atrapalhado pela carga, pega um sanduíche. Fica em dúvida sobre o que fazer a seguir. MARTINA Bota essas coisas no chão. William faz o que Martina sugeriu e dá uma dentada no sanduíche. Faz cara de quem gostou muito. William devora o sanduíche em segundos. MARTINA Pega o outro. WILLIAM Não. Obrigado. MARTINA Senta, William. Eu faço questão. William senta na mesinha. Martina abre a geladeira e pega uma garrafa de suco de laranja. William agarra o segundo sanduíche. Martina sorri e serve suco para William num copo bonito. William sorri para ela. Ela sorri de volta. CENA 17 - BAIA DE TELE-VENDAS - INTERIOR - DIA Sissi, com fones de ouvido e microfone, tenta conseguir um cliente. Há uma tela de computador bem na sua frente. SISSI ... em relação ao que a senhora paga atualmente, seria uma economia de quarenta por cento, e se a senhora entrar na promoção ainda hoje, ganha cem minutos grátis, para falar com cinco assinantes que a senhora indicar... (pausa) Claro, eu entendo... (pausa) Boa tarde para a senhora também. Sissi desliga. Olha para o lado. Uma senhora, 60 anos, com uma cesta de lanches, oferece seus artigos. Sissi faz que não com a cabeça. Clica no computador. Espera um momento. Tenta dar um tom simpático à sua voz. SISSI Boa tarde. É o senhor Oliveira? (pausa) Aqui é Cecília, da Líder Celular. (pausa) Alô, alô? CENA 18 - SUPERMERCADO - INTERIOR - DIA Martina empurra um carrinho quase cheio. Quando está se aproximando do caixa, toca o seu celular. Ela atende. MARTINA Oi, amor. Tô no super. (pausa) Não faz mal. Eu entendo. (pausa) Não, só umas comprinhas pro jantar. (pausa) Tudo bem, amor. Te amo. Martina desliga o celular e olha para o carrinho cheio. CENA 19 - GRAMADO SUPLEMENTAR DE ESTÁDIO DE FUTEBOL - EXTERIOR - DIA Está terminando o treino de um grupo de jogadores sub-20, no gramado suplementar de um estádio de um grande clube. Sissi chega, apressada, e se encosta na grade que cerca o campo. Uma garota bonita, Giane, 18 anos, falsa loura, usando roupas que oscilam entre a sofisticação e a breguice, aparece ao lado de Sissi. As duas se beijam. Giane está agitada e nervosa. GIANE Oi, Sissi. SISSI Oi. Como tu tá linda! Essas roupas, esse cabelo... GIANE Tinta importada. Custou um monte de dinheiro. SISSI Tu ganhou na loteria? Giane sorri amarelo. GIANE (preocupada) Outra hora eu te explico. Seu Lopes, 50 anos, um homem corpulento, vestido com conjuntinho safári, surge por trás delas. SEU LOPES Oi, garotas. Seu Lopes inclina-se para beijar as duas. SEU LOPES Tu tá muito bonita, Giane. GIANE (seca) Obrigado. SEU LOPES (para Sissi) Boas notícias. O Estevão vai pra Europa. Sissi, abalada, não consegue dizer nada. GIANE E o Vandeir? SEU LOPES Talvez no fim do ano. Antes ele vai pra São Paulo. GIANE Não vai coisa nenhuma. O salário é uma micharia. SEU LOPES Eu já te expliquei, menina, é uma vitrine... GIANE (cortando) Vitrine é a puta que pariu. Um longo apito assinala o final do treino e parece despertar Sissi do seu estupor. SISSI Que país? SEU LOPES Portugal, Espanha. (pausa) Ou Japão. SISSI O Japão não fica na Europa. SEU LOPES É? (olha para o campo) Olha os dois aí. Estevão, 18 anos, e Vandeir, 19 anos, chegam perto da cerca. Vandeir tem um brinco na orelha. Os dois beijam suas namoradas. ESTEVÃO (para Sissi) Oi, meu amor. SISSI Oi. VANDEIR (para Giane) Tu tá muito gata! Giane dá uma voltinha. Seu Lopes aproxima-se de Estevão. SEU LOPES Pode fazer as malas. ESTEVÃO (entusiasmado) Qual é o time? SEU LOPES Ainda não sei. (pausa) Mas é o salário que tu pediu, mais casa, comida e roupa lavada. Vandeir abraça Estevão, emocionado. Estevão olha para Sissi, que retribui o olhar. SEU LOPES Vai te arrumar. Vamos assinar uns papéis com a tua mãe. Estevão olha para Sissi. ESTEVÃO Combinei de sair com a Sissi. SEU LOPES Tu que sabe. A gente se vê por aí. Seu Lopes dá as costas para todos e caminha na direção do estacionamento de carros. Estevão fica nervoso. Olha para Sissi, como pedindo desculpas. ESTEVÃO (gritando) Espera aí. Já tô indo. (para Sissi) Eu te ligo assim que der, tá? Te amo. Estevão e Vandeir saem correndo. Sissi e Giane estão sozinhas outra vez. GIANE Não sei como o Estevão suporta esse escroto. SISSI Eu sei. O escroto deu um carro pra ele. GIANE Tu chama aquilo de carro? (olha com atenção para Sissi) Sissi, o que é isso? Sissi enxuga algumas lágrimas com o dorso da mão. SISSI Ele me disse que preferia ficar aqui. Mas ele tem que ajudar a mãe dele. GIANE O Vandeir tá sempre me dizendo a mesma coisa. O pai tá doente, o irmão precisa de remédio. Sissi continua chorando. GIANE Ah, Meu Deus! Não é o fim do mundo. Vem aqui. (abraça Sissi) Eu vou te contar uma coisa. Eu cheguei assim pro Vandeir e perguntei: e se a gente tivesse um pouco mais de grana, se pudesse alugar um apartamentinho pra nós dois, tu ficava em Porto Alegre? (pausa) Sabe o que ele disse? SISSI (fungando) Não. GIANE Ele disse que ficava. SISSI (surpresa e confusa) Vocês alugaram um apartamento? GIANE Não. Mas a gente já foi duas vezes em motel. Suíte de luxo. SISSI Com que dinheiro? GIANE Larguei a lancheria. Tenho um emprego novo. SISSI Onde? GIANE Em lugar nenhum. (pensa um pouco) Em vários lugares. (baixinho) Eu disse pro Vandeir que virei representante de roupas, que todo dia eu vendo vinte, trinta peças, e tiro uma comissão. SISSI Roupas de que marca? GIANE Ai, meu Deus! Sissi, cai na real. Não tem roupa nenhuma. (pausa) Eu tô me virando. SISSI Se virando? GIANE É. Tô me virando. Tiro uns duzentos por dia. Às vezes, até mais. Só hoje de tarde ganhei trezentos. Sissi finalmente entende. Olha para Giane por algum tempo, sem dizer nada. Depois respira fundo e consegue falar. SISSI Eu tô com fome. Não como nada desde ontem. Tu pode me emprestar vinte? Giane sorri para Sissi e abre a carteira. CENA 20 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA - INTERIOR - NOITE Martina está na cozinha, terminando de fazer um prato pequeno, mas bacana. Os apetrechos que usa - e a maneira como ela os manipula - revelam que Martina tem intimidade com a culinária. Dá os últimos acabamentos e leva a comida para a sala. Senta na mesa. Abre uma garrafa de vinho. Serve-se. Vai até um aparelho de som e coloca uma música. Volta a sentar-se. Dá a primeira garfada. Engole. Vai dar outra. Mastiga, mas não consegue engolir. Cospe o que tem na boca num guardanapo. Toma outro gole de vinho. Olha para o prato. Afasta-o. CENA 21 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE Martina sai do elevador com uma marmita e um pacotinho nas mãos. Num canto da portaria, há quatro pequenos monitores, mostrando a rua em frente ao edifício, a porta da frente da portaria, o interior da portaria e dentro do elevador. Seu Zé vai abrir a porta do edifício para ela. MARTINA Obrigado. Mas eu não vou sair. O senhor já jantou? SEU ZÉ Não senhora. Martina aproxima-se de Seu Zé e estende a marmita. Seu Zé não pega a marmita. MARTINA Eu trouxe pro senhor. O meu marido não veio jantar em casa. SEU ZÉ Muito obrigado, Dona Martina. Martina entrega o pacotinho. Sorri para ele. Parece nervosa. MARTINA Eu tô com mais umas coisas pra jogar fora. O senhor tem algum contato com aquele rapaz do lixo seco? SEU ZÉ A senhora quer que eu fale com ele? Amanhã mesmo... MARTINA (cortando) Não tem pressa. Obrigado, Seu Zé. Martina dá as costas para Seu Zé. Sorri, nervosa. CENA 22 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA - INTERIOR - NOITE Sissi limpa a sala, enquanto seu pai assiste televisão. Diego dorme no sofá. SISSI Conseguiu alguma coisa hoje? ADÃO Fica quieta. Eu tô vendo TV. Toca o celular de Sissi. Ela atende. SISSI Já tô descendo. ADÃO Vai sair? SISSI Vou. Sissi pega o irmão no colo e leva-o na direção do quarto. Cruza a sala outra vez, para sair. ADÃO Traz pão e leite pro café. Sissi pára por um momento. Olha para o pai, quase perdendo a calma. Mas prefere seguir em frente e sai do apartamento. CENA 23 - CARRO DE ESTEVÃO - INTERIOR - NOITE Sissi está no carro de Estevão, um Gol caindo aos pedaços. SISSI Então, como foi? ESTEVÃO Normal. A mãe assinou uns papéis que o Seu Lopes precisava. Depois a gente foi jantar. SISSI Tu assinou também? ESTEVÃO Assinei. SISSI E já sabe pra que clube tu vai? Ou pelo menos o país? ESTEVÃO (irritado) Não. SISSI Já tem as passagens? ESTEVÃO Ainda não. Estevão dirige em silêncio por algum tempo. Sissi estende o braço e faz um carinho no cabelo de Estevão. SISSI Eu te amo. ESTEVÃO Eu também. Vamos no drive? SISSI Eu não gosto de ir lá, Estevão. Estevão pára o carro e puxa o freio de mão. ESTEVÃO Tem pouca gasolina. Ou a gente vai no drive, ou faz aqui mesmo. Sissi olha em volta. É uma rua mal iluminada, perto de uma vila popular. CENA 24 - CARRO DE ESTEVÃO/DRIVE-IN - INTERIOR - NOITE O carro de Estevão entra num drive-in (estacionamento com pequenos boxes cercados, destinados a encontros sexuais) e estaciona. ESTEVÃO Quando eu voltar, vou ter dinheiro pra motel. SISSI (sorrindo) Claro. Os dois se abraçam e se beijam. Começam a transar meio vestidos, com dificuldade, pois o carro é pequeno. CENA 25 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE Martina está lendo na cama, de pijama bem comportado. Rogério entra no quarto, já tirando o paletó. Está um pouco bêbado. Beija Martina, que sente o bafo do marido. MARTINA Como foi a reunião? ROGÉRIO (tirando a roupa) O Borges teve uma idéia: já que o cliente se fudeu mesmo, pra não perder a conta o negócio é mostrar que ele tem outras coisas a ganhar ficando com a gente. A Marlúcia achou a idéia ótima e liberou a verba. A velha é foda. MARTINA E o que vocês fizeram? ROGÉRIO Eu e o Borges pegamos o cara no hotel e mostramos pra ele alguns prazeres dessa cidade. Rogério deita na cama, só de cueca e camiseta. Abraça Martina, que coloca o livro de lado. Beija Martina, mas é um beijo agressivo demais. Martina vira o rosto. MARTINA Tu tá com um bafo horrível. ROGÉRIO Foda-se. Tu não queria trepar hoje de manhã? MARTINA Vai escovar os dentes, pelo menos. ROGÉRIO Não precisa me beijar mais. Não é a tua boca que eu quero. Faz o favor de tirar esse pijama de vovozinha e vira essa bunda pra cima. MARTINA Não. ROGÉRIO Então vai te fuder! Rogério levanta da cama e tenta vestir-se outra vez. Tem dificuldade para colocar a calça e quase se desequilibra. ROGÉRIO A gente devia, sendo marido e mulher, se divertir junto. Mas eu posso me divertir por aí, não tem problema... Consegue botar a calça. Vai botar a camisa. MARTINA Hoje de manhã tu nem olhou pra mim. ROGÉRIO Hoje de manhã eu tava mal. Agora eu tô melhor. Quer dizer, eu tava melhor. Fiquei mal de novo. Martina tira o pijama rapidamente. MARTINA Se tu quiser, pode ficar bem outra vez. Rogério olha para Martina, em dúvida. Martina sorri. ROGÉRIO Tu sabe que eu te adoro, gatinha. Rogério tira as calças outra vez e vai para a cama. CENA 26 - CARRO DE ESTEVÃO/DRIVE-IN - INTERIOR - NOITE Sissi é obrigada a ficar numa posição incômoda e começa a sentir uma cãibra na perna. SISSI Ai! ESTEVÃO Que foi? SISSI Cãibra. Sissi interrompe a transa. SISSI Eu já te disse que nessa posição é ruim. ESTEVÃO Tudo bem. (olha pro relógio) Eu tenho que ir mesmo, tá na hora. Sissi olha pra Estevão, decepcionada. Estevão faz um carinho no rosto dela. Os dois se beijam. SISSI Eu tenho que comprar pão e leite. Tu pode passar naquele posto perto da minha casa? ESTEVÃO Claro. Estevão vai dar a partida. O motor gira um pouco e depois pára. Estevão tenta de novo. Nada. CENA 27 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE Rogério e Martina estão transando. Ela de costas, ele por cima. Os dois não se olham. Ela não está curtindo nem um pouco. Ele, bêbado, transa como um idiota, se acaba e desaba por cima dela. Depois rola pro outro lado. CENA 28 - FACHADA EDIFÍCIO DE SISSI - EXTERIOR - NOITE Um táxi pára na frente do edifício. Sissi beija Estevão e sai do carro, com uma pequena sacola de plástico na mão. Estevão se aproxima da janela. ESTEVÃO Um dia nós vamos morar juntos, Sissi. É a coisa que eu mais quero na vida. O táxi arranca. Sissi entra devagar no edifício. CENA 29 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - NOITE Sissi, triste, come pão com manteiga e toma um leite na mesa da cozinha. CENA 30 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA/DESPENSA - INTERIOR - DIA Martina, bem vestida, com um avental, está fazendo um omelete caprichado. Na mesa, uma travessa com pão, dois pratos e dois copos com suco de laranja. Olha para o relógio na parede: oito e meia. O porteiro eletrônico toca. Ela pega o interfone imediatamente. MARTINA Pode deixar subir. Termina o omelete e tira o avental. Coloca o omelete nos pratos. Toca a campainha. Ela vai atender. Abre a porta, com um sorriso nervoso no rosto. É Sissi, que está com uma sacola na mão. SISSI Oi, tia. Martina, surpresa, não sai da frente da porta. SISSI A escola do Diego é aqui perto, e eu resolvi passar. MARTINA Que bom... Entra. Sissi entra na sala. MARTINA Senta. SISSI Que cheiro gostoso, tia. MARTINA Eu tava fazendo o café. Quer um pouco de omelete? SISSI Eu aceito. Tu sabe que eu não sou de fazer cerimônia. Quando entram na cozinha, Sissi vê a mesa posta para dois. MARTINA Eu pensei que o Rogério ia comer comigo, mas ele teve que sair correndo. As duas sentam. SISSI O tio trabalha um monte, né? Tá sempre correndo. MARTINA É verdade. Sissi começa a comer com vontade. O porteiro toca outra vez. Martina vai atender. MARTINA Sim? SEU ZÉ (OFF) É o rapaz do lixo limpo. Martina hesita um pouco, mas acaba respondendo: MARTINA Manda ele subir. Coloca o interfone no gancho. MARTINA (para Sissi) É só um instante. Martina vai até a despensa e olha o balde do lixo limpo. Está vazio. Pega uma caixa de papelão, cheia de vidros, tira os vidros e desmonta a caixa. Toca a campainha. Martina, com a caixa na mão, vai abrir a porta. É William. WILLIAM Bom dia. O Seu Zé disse que a senhora queria que eu pegasse umas coisas. Martina entrega a caixa pra ele. MARTINA Hoje é só isso aqui. William pega a caixa, meio confuso. MARTINA Tem mais coisa, mas agora eu não posso... Quem sabe tu volta pelas onze? WILLIAM Pode ser. MARTINA (sorridente) Combinado. Tchau. Martina fecha a porta. Volta para a cozinha. Sissi já comeu todo o omelete e está rapando as sobras com o pão. Martina fica admirada. MARTINA Não quer mais? Come o meu. Eu tô sem fome. SISSI Não. Eu tô satisfeita. MARTINA Tem certeza? Sissi olha para o outro prato. SISSI Já que insiste... Martina sorri e troca os pratos. Sissi come. SISSI Tá muito bom, tia! Tu é a melhor cozinheira da família, disparado. MARTINA Aprendi muito com a tua mãe. As duas estão sentadas no sofá. Sissi toma uma xícara de café com leite. MARTINA Tu não tem aula hoje? SISSI Tô matando. Não gosto muito de grego. (hesita um pouco) Aí resolvi fazer a visita. Eu queria falar contigo sobre uma coisa. Abre a sacola e tira um pacote embrulhado em papel de presente. Martina olha para o pacote, desconfiada. SISSI Tia, eu tô precisando de uns conselhos. (respira fundo) Na verdade, tia, eu vou fazer uma coisa... Sissi pára de falar, sem coragem para seguir adiante. MARTINA (sorrindo) Sissi, pode falar. SISSI Há um tempo atrás, quando a mãe já tava doente, na cama, eu fui ajudar ela a arrumar o guarda-roupa. E achei esse pacote. Perguntei pra mãe o que era, e ele disse que não lembrava. Aí eu abri, e ela disse que eram uma coisas que tu deu pra ela. MARTINA Eu posso olhar? Sissi estende o pacote para Martina. Martina abre o pacote e examina o seu conteúdo: várias calcinhas muito pequenas, sutiãs cheios de rendas, uma meia 7/8 de náilon preto e uma cinta-liga. Martina olha para Sissi, sem dizer nada. SISSI Ela disse que essas coisas eram tuas. Que tu deu pra ela quando... Parou de fazer programa. (baixa os olhos) Ela me fez jurar que eu nunca contaria isso pra ninguém. Pediu que eu jogasse tudo fora, mas eu não consegui. Martina olha para a sobrinha. Parece chocada demais para responder. Quando se recupera, tenta sorrir. MARTINA A tua mãe devia estar muito perturbada. SISSI Então essas coisas não eram tuas? MARTINA Não. Sissi fica pálida. Leva a mão à altura do estômago. SISSI É que... Tu conhecia a mãe. Acho que ela nunca contou uma mentira na vida. MARTINA Eu não disse que ela mentiu. Disse que tava perturbada. Confusa. Talvez os remédios, sei lá... Martina devolve as coisas para Sissi, que fecha o pacote e coloca na bolsa. SISSI Claro. Eu entendo. (pensa um pouco) Desculpe, tia. Eu banquei a idiota. MARTINA De jeito nenhum, Sissi. Sissi olha o relógio. SISSI Eu tenho que ir. As duas levantam-se. Sissi beija Martina. SISSI Tchau. Desculpa mesmo, tia. Sissi caminha para a porta de saída. Martina abre a porta. SISSI Foi o melhor omelete que eu já comi na minha vida. De verdade. Sissi engole em seco e leva a mão à garganta. MARTINA Sissi, tu tá te sentido bem? SISSI Acho que eu comi muito depressa. (engole em seco outra vez) Será que eu posso ir no banheiro? Martina está na porta do banheiro social, ouvindo Sissi terminando de vomitar. MARTINA Tudo bem, Sissi? Barulho de água correndo na pia. Sissi sai, tentando sorrir. SISSI Já passou. Eu tenho que ir. Sissi apressa-se, na direção da porta. Martina vai atrás dela. Abraçam-se. Sissi sai. Martina fecha a porta. Senta no sofá. Pensa um pouco. CENA 31 - FACHADA EDIFÍCIO DE SISSI - EXTERIOR - DIA Um carro, dirigido por Martina, estaciona na frente do edifício. Martina sai do carro e bate no porteiro eletrônico. ADÃO (OFF) Sim. MARTINA É a Martina. ADÃO (OFF) Que Martina? MARTINA (impaciente) A irmã da tua mulher. CENA 32 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA - INTERIOR - DIA Martina e Adão (de pijama) conversam na sala. ADÃO Não notei nada, não. MARTINA Ela tá muito magra. ADÃO Ela sempre foi meio desmilingüida. MARTINA Ela sempre foi muito bonita. E agora tá esquelética. ADÃO (meio irritado) E o que tu quer que eu faça? MARTINA Que vá procurar trabalho, em vez de ficar de pijama em casa. ADÃO (agora irritado mesmo) Tu veio aqui pra me encher o saco? Pode sair. Adão levanta. Martina continua sentada. MARTINA É um absurdo essa menina ficar te sustentando. Adão aproxima-se de Martina. ADÃO Tu tem idéia de em quantas empresas eu já fui pedir emprego? (pausa) Eu sou velho demais até pra lavar carro na garagem da esquina. MARTINA (constrangida) Eu só estou preocupado com ela, Adão. ADÃO E porque ficou preocupada com ela agora? Não lembro de tu ter ligado pra cá desde que a Rosana morreu. Martina olha para Adão e não consegue responder. Martina levanta- se. MARTINA Desculpe, Adão. Se eu souber de alguém que esteja precisando... ADÃO (cortando) Sabe quantas vezes eu já ouvi essa frase? CENA 33 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA Borges, 30 anos, elegante e atlético, além de muito sorridente, conversa com Rogério. Ambos estão de terno e paletó. Em cima da mesa, muitas fotos e catálogos de modelos, que eles vão examinando enquanto conversam. BORGES Não contei todos os detalhes, mas a Marlúcia entendeu. (mostra uma foto) Essa aqui é bonita. ROGÉRIO Muito baixinha. BORGES Se a conta ficar conosco, eu vou ter uma bonificação no Natal. Ela não ficou muito satisfeita quando viu a despesa da noitada: quase três mil reais. ROGÉRIO Caralho! BORGES Cada garrafa de champanhe era 500 paus. E a menina do Gilson foi 800. (mostra outra foto) Essa aqui é bem alta, um metro e oitenta e um. ROGÉRIO Mas não fala. E eu, será que eu fico? BORGES (meio sacana) Acho que depende de ti. ROGÉRIO Como assim? BORGES A Marlúcia me fez várias perguntas... Se tu também tinha aproveitado a noite, como tava o teu casamento... Essas coisas. ROGÉRIO Tu tá brincando, Borges. BORGES Não. (mostra outra foto) Eu lembro dessa. (lê o nome atrás da foto) Vanessa. É esperta, sabe das coisas. ROGÉRIO Ela é casada. BORGES A Vanessa? Não sabia. ROGÉRIO Não, Borges. A Marlúcia. BORGES E tu também. Empate. (aproxima-se mais de Rogério) Eu tenho certeza que ela tava jogando verde. Eu disse que tu tava meio depressivo, o que é normal, considerando o que aconteceu. E que tu tá precisando de... Compreensão. Foi isso que eu disse: "O Rogério tá precisando de compreensão". (bate com o dedo na foto de Vanessa) Acho que a Vanessa é perfeita. Vou chamar pra uma entrevista. E depois vou apresentar pro nosso cliente. ROGÉRIO Cara, tu tá perdendo completamente a noção... BORGES Sem segundas intenções, claro. (olha para Rogério e sorri) Eu li ontem uma frase muito legal, do Hölderlin - conhece? - o cara é genial, "Lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva". Pensa nisso, Rogério. (pausa) Pensa bem, porque a salvação tá batendo na tua porta. CENA 34 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - DIA Martina está chegando de carro. A carrocinha de William está estacionada na frente do edifício. Ele está organizando as coisas na carrocinha. Martina pára o carro e abre a janela. MARTINA Oi, tudo bom? Desculpa, eu esqueci. WILLIAM Não tem problema. MARTINA É que eu não separei ainda o que eu vou te dar. Tu pode voltar ao meio-dia? WILLIAM Claro. CENA 35 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA/SALA - INTERIOR - DIA Na cozinha, Martina está terminando de fazer um belo almoço. Um peixe está fritando na frigideira e há alguma coisa no microondas. Olha para o relógio. Sai da cozinha, bota a mesa, com precisão e rapidez. Volta para a cozinha. Coloca a comida em duas travessas. Toca o porteiro eletrônico. Ela atende. SEU ZÉ (OFF) É o rapaz do... MARTINA (cortando) Manda subir. Martina leva as travessas para a mesa. Pega um vinho e um saca- rolha. Abre o vinho. Toca a campainha. Ela abre. MARTINA Entra, por favor. WILLIAM Com licença. William entra e vê a mesa posta. MARTINA William, eu gostaria muito que tu almoçasse comigo. William olha para Martina, surpreso. CENA 36 - RESTAURANTE - INTERIOR - DIA Marlúcia, 55 anos, bem vestida, mas com as marcas da idade evidentes no rosto e no corpo, está almoçando com Rogério numa mesa discreta, no fundo de um restaurante. MARLÚCIA Ainda bem que tu aceitou meu convite. ROGÉRIO Foi um prazer. MARLÚCIA Será? Não sei. A comida pode ser boa, mas a companhia de uma velha nunca é agradável. ROGÉRIO (constrangido) A companhia está ótima. MARLÚCIA O Borges me disse que tu tá um pouco deprimido. ROGÉRIO O Borges não me conhece. Eu tô ótimo. Marlúcia ri. MARLÚCIA Ótimo? Depois do que aconteceu? (toma um gole de vinho) Tu tá brincando. Rogério baixa os olhos. MARLÚCIA Ele disse que vocês vão dar um jeito de segurar a conta, e que eu não devo pedir a tua demissão. (pausa) Tu deve imaginar que a tua saída é muito provável, não é? ROGÉRIO Esse almoço é pra isso? Pra anunciar minha demissão? MARLÚCIA Não. Esse almoço é pra gente ver o que vai acontecer daqui pra frente. Nesse momento, nesse exato momento, tu tá precisando de compreensão. (pausa) E acho que é o que eu preciso também. Compreensão. Marlúcia toma mais um gole de vinho e olha para Rogério. Sorri, tentando ser sensual. CENA 37 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - DIA O almoço já está no fim. William está raspando o prato. Martina olha para ele e toma um gole de vinho, terminando o cálice. MARTINA Não vai tomar o vinho, William? WILLIAM Claro. Desculpa. Eu esqueci. Pega o cálice e toma mais da metade, como se fosse cerveja. WILLIAM Muito bom. (olha para o prato de Martina, quase intocado) A senhora mal comeu. Martina enche seu cálice de vinho. MARTINA Eu tava sem fome. Mas não te preocupa. O maior prazer de quem cozinha é ver os outros comendo. William sorri, confuso. Toma mais vinho. Martina também toma. CENA 38 - RESTAURANTE POPULAR - INTERIOR - DIA Sissi come um prato-feito com Giane. As duas tomam Coca-Cola. GIANE Tá na agenda. Trinta e um de dezembro. Aí eu paro. SISSI E como tu vai fazer pra pagar o apartamento? GIANE Eu já vou ter juntado dinheiro pra um ano de aluguel. Depois disso, ou o Vandeir dá um jeito e consegue um contrato decente, ou eu é que pico a mula. (pausa; pensa um pouco) Ai, meu Deus! Deus me livre! Eu amo aquele moleque. Toca o celular de Giane. Ela atende. GIANE Alô, é a Michele. Giane olha pro relógio. GIANE Posso às três, se o Heitor me levar. (pausa) Me pega lá em casa. Combinado. (baixinho) Duzentos e trinta. (pausa; sorri) Tu é um anjo. Tchau. Giane fecha o celular. Sissi olha para Giane, curiosa. GIANE Era a Brigite. Disse que aumentou meu cachê e pôs minha foto na capa do site. SISSI Tem site? GIANE Claro que tem site. SISSI Com fotos tuas? GIANE (ri) Claro que tem fotos minhas. Custaram uma nota. Sem fotos boas ninguém te conhece, e ninguém liga pra Brigite, e aí ela não liga pra mim. Fecha a boca, Sissi! Não aparece o meu rosto. Fica assim... Tipo uma nuvem em cima do rosto. SISSI E como... Os caras escolhem? GIANE Eles têm outros interesses além do rosto. SISSI Então é assim? Um telefonema, e tu vai ganhar duzentos e trinta reais? GIANE Cento e oitenta. Cinqüenta eu deposito pra Brigite. E fica todo mundo feliz. SISSI Como é essa Brigite? GIANE Nunca vi na vida. Mas é simpática. Se tu quiser, eu ligo e te apresento pra ela. CENA 39 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA William coloca os pratos sujos na pia da cozinha, enquanto Martina abre a geladeira. MARTINA Tem sorvete de creme e petit gateau. Gosta? William olha para Martina, sem jeito. WILLIAM (confuso) Acho que gosto. Do sorvete eu gosto. Mas eu tenho que ir, dona Martina. Fica pra outra hora. Tenho um material pra pegar às três da tarde. Martina fecha a geladeira. MARTINA Um café, pelo menos. WILLIAM Não tomo café. Me deixa nervoso. MARTINA (sorrindo) Então tá. Paciência. Mas antes de tu sair, eu vou te pedir um favor. Eu quero tirar uma foto. De recordação. Posso? WILLIAM Pode. Martina pega uma câmera pequena, em cima da geladeira, e fotografa William. Martina olha a foto no visor da câmera. MARTINA Ficou boa. Quer ver? Antes que William responda, Martina se aproxima, mostra a foto e, num rompante, beija William na boca. Ele não esboça qualquer reação. Ela se afasta. Os dois ficam se olhando por algum tempo, ambos constrangidos. WILLIAM Tem... Algum material pra eu levar? MARTINA Hoje não... Quem sabe outro dia. Martina sai da cozinha. William a segue. Martina abre a porta da sala. William sai, sem dizer nada. Martina fecha a porta. CENA 40 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA Vanessa, 20 anos, a modelo escolhida pela foto na cena 33, está sentada ao lado de Borges. BORGES (para Vanessa) O nosso cliente adorou tuas fotos. (para Rogério) Eu já expliquei pra Vanessa que o teu destino está nas mãos dela. ROGÉRIO (espantado) Como assim? BORGES Semana que vem ela faz a foto pro anúncio. E ela precisa estar maravilhosa. (pausa) A Vanessa sabe que essa campanha tem que dar certo. VANESSA (simpática e ingênua) Se depender de mim... ROGÉRIO (confuso) Nós nem temos uma campanha. BORGES Claro que temos. (para Vanessa) Não liga pra ele. (para Rogério) Já está tudo aprovado pela Marlúcia. (para Vanessa) Tu pode esperar só um minuto ali fora? Vanessa sai. BORGES Hoje de noite vou levar a Vanessa e o Gilson pra jantar. É o teu emprego, e tu vai conosco. ROGÉRIO (tenso) Não posso. Tenho compromisso. BORGES Desmarca. ROGÉRIO (gritando) Não posso, caralho! E é tua culpa! Borges vai dizer alguma coisa, mas desiste. Sorri. BORGES (malicioso) Ah... Tudo bem, cara. Então... Boa sorte pra todos nós. Borges sai, sorridente. Rogério olha pela janela. Pega um lápis. Força o lápis até quebrá-lo. CENA 41 - PARQUE - EXTERIOR - DIA Martina e Sissi conversam enquanto caminham no parque. MARTINA De quanto tempo é o teu intervalo? SISSI Vinte minutos. MARTINA Então eu vou ser rápida. (respira fundo antes de falar) Eu menti pra ti. Aquelas roupas eram minhas. Sissi olha para Martina, meio constrangida. MARTINA E eu fui... Aquilo que a tua mãe falou é verdade. Durou menos de um ano. Aí conheci o Rogério e tudo se ajeitou. Mas eu não queria jogar aquelas coisas fora e dei pra tua mãe. Achava que ela poderia usar. Ela reclamava que a vida sexual dela era sem graça, que o Adão era um idiota na cama. A gente confiava tanto uma na outra... Caminham em silêncio por algum tempo. MARTINA Eu tenho saudade. Desde que a Rosana morreu, só consigo falar de mim pro analista. SISSI Eu também sinto falta de conversar com a mãe. MARTINA Acho que todo mundo precisa de alguém que não cobre pra ficar prestando atenção no que tu fala. SISSI É. (hesita um pouco) Tem uma coisa que eu tô pensando em fazer... Por isso fui te visitar aquele dia. Martina sorri e abraça Sissi. MARTINA Quando eu era criança, na escola, e queria trocar um segredo com uma amiga, uma dizia o que tava pensando - tem que ser bem resumido - e a outra logo depois fazia a mesma coisa, sem pensar. E só depois se falava a respeito. O que tu acha? SISSI Legal. MARTINA Então eu vou dizer. E logo depois tu diz, OK? SISSI OK. MARTINA Eu tô morrendo de tesão por um papeleiro. SISSI Eu resolvi ser garota de programa. As duas se olham, apavoradas. MARTINA Acho que nós vamos precisar de mais de vinte minutos. CENA 42 - AGÊNCIA DE PUBLICIDADE/SALA DE ROGÉRIO - INTERIOR - DIA Rogério entra na sala com um copo de água na mão. Senta. Rogério pega um envelope pequeno no bolso e o examina, sem abrir. Pega o telefone. ROGÉRIO Sandra, liga pra Marlúcia. Coloca o fone no gancho. Abre o envelope. É uma caixa de Viagra. Pega um comprimido e toma. Guarda a caixa de Viagra na gaveta. Toca o telefone. Ele atende. ROGÉRIO Pode passar. (pausa) Oi, Marlúcia. Tudo certo? (pausa) Oito horas, combinado. Tchau. Rogério coloca o fone no gancho. Pensa um pouco. Abre a gaveta, tira a caixa de Viagra. Pega outro comprimido e toma. CENA 43 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE Martina abre um vinho, com alguma dificuldade. Sissi está sentada com ela na sala. SISSI Tem uma amiga minha que tá ganhando trezentos reais por dia. MARTINA Que maravilha. O que ela faz? A rolha sai. Martina serve dois cálices. SISSI Faz programa. MARTINA Tira essa história da cabeça. Eu posso te emprestar alguma coisa por mês, até o teu pai conseguir um emprego. Martina alcança um cálice para Sissi. Batem os cálices. Começam a beber. SISSI De jeito nenhum, tia. MARTINA Isso não é vida pra ti, Sissi. Martina levanta, abre a bolsa, pega a carteira e começa a fazer um cheque. MARTINA Vou te dar trezentos reais. Tu devolve quando puder. SISSI Nem pensar. Martina termina o cheque. Entrega para Sissi, que o guarda, meio constrangida. SISSI Obrigado, tia. MARTINA E não se fala mais nisso. Sissi, tu quer conhecer o meu papeleiro? Eu tenho uma foto. SISSI Quero. Martina pega a câmera e vai sentar-se ao lado de Sissi. Mostra a foto no visor da câmera. SISSI Ele é bonito! MARTINA É, né? E sabe de uma coisa? Ele tem cheiro bom! Sissi, tu acha que eu tô louca? SISSI (sorrindo) Não sei, tia. MARTINA E o pior tu não sabe. (hesita) Desde que eu vi o William pela primeira vez eu tenho uma fantasia com ele. Só de pensar... Ai, Sissi, que loucura! Martina ri. Sissi olha para a tia, cada vez mais espantada. CENA 44 - MOTEL 0 (QUARTO DE LUXO) - INTERIOR - NOITE Rogério e Marlúcia na cama, nus, em baixo dos lençóis. Ela está fumando. MARLÚCIA Eu não gostaria que tu pensasse que isso que aconteceu entre nós foi uma troca, quer dizer, tu me come e eu mantenho o teu emprego. Seria uma coisa... meio sórdida. Rogério dá um beijo no rosto de Marlúcia. ROGÉRIO Não foi uma coisa sórdida. Foi uma coisa boa. MARLÚCIA Essa história do Borges dizer que, se o cliente ficar, tu fica também... Isso é muito relativo. Tu sabe que o Borges é ambicioso. Ele não tá fazendo todo esse esforço por ti. É por ele. ROGÉRIO Entendi. Marlúcia abraça Rogério. MARLÚCIA Posso ligar a TV? ROGÉRIO Claro. MARLÚCIA Faz tempo que eu não vejo um pornô. Marlúcia aciona o controle remoto. Passamos a ouvir os gemidos de um filme pornográfico. MARLÚCIA (olhando para a TV) Que luz horrível. (troca o canal; pequena mudança nos gemidos) Esse é melhor. A primeira coisa a fazer é a mais dolorosa: tu sai da mídia e volta pra criação, o que implica também na perda de alguns benefícios. Tu sabe como é. ROGÉRIO (espantado) E quem entra no meu lugar? MARLÚCIA O Borges. É o prêmio dele. Rogério sai da cama, indignado, e começa a se vestir. MARLÚCIA Eu imaginei que tu ia ficar indignado. Mas pensa bem, antes de fazer bobagem. E confia em mim. ROGÉRIO Tu podia ter me dito isso antes. MARLÚCIA E estragar a trepada? De jeito nenhum. ROGÉRIO Eu peço demissão. MARLÚCIA E vai conseguir emprego onde? ROGÉRIO Eu tenho mais de dez anos de experiência... MARLÚCIA (cortando, enfática, sem perder a calma) Tu não tá compreendendo. Eu detesto o Borges. Ele não vai durar. Eu gosto de ti. Gosto bastante. (pausa) Confia em mim. (sorri) E volta pra cama. Rogério olha para Marlúcia, em dúvida. CENA 45 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE Martina e Sissi continuam conversando e bebendo. A garrafa da cena anterior está vazia. Há outra garrafa em cima da mesa, já pela metade. As duas mulheres estão um pouco bêbadas. MARTINA Uma vez, na saída do cinema, eu tava com o Rogério e um gordo careca se aproximou, estendeu a mão pra mim e falou: "Não lembra de mim? Eu lembro de ti". (toma mais um gole de vinho) Eu quase desmaiei, achei que ele era um cliente, e o Rogério já tava olhando pro cara, meio desconfiado. SISSI O tio não sabe de nada? Martina faz o sinal da cruz. MARTINA Deus me livre. Ninguém sabe, Sissi. Só eu e tu. Eu nunca usei meu nome de verdade. SISSI E o careca ali, segurando a tua mão. MARTINA É. Aí ele largou minha mão, se afastou um pouco e disse. Eu sou o Pinto, Martina. Teu colega no terceiro ano. O cara que te deu cola e te salvou em Geometria Descritiva. SISSI (rindo) Que loucura. MARTINA Aí olhei o cara de novo, e, juro por Deus, era como se o cabelo crescesse naquela careca, e eu vi o idiota que me salvou no terceiro ano. Aí eu apontei pro Rogério e disse assim: "Esse é o Rogério, meu marido". E os dois apertaram as mãos. E acho que conversamos sobre o filme. A porta de entrada abre e Rogério entra, com ar cansado. As duas mulheres levantam-se. Martina beija Rogério. SISSI Oi, tio. ROGÉRIO Oi. (olha para as garrafas) Estão fazendo uma festa? MARTINA Não. É só um encontro familiar. Quer um copo? ROGÉRIO Quero. Rogério senta numa poltrona, longe de Martina, que lhe alcança um cálice com vinho. MARTINA Como foi a reunião? Rogério toma um gole. ROGÉRIO O que tu quer primeiro: a notícia boa ou a ruim? MARTINA Primeiro a boa. ROGÉRIO Não vou ser demitido. MARTINA (sorrindo) Eu te disse, querido. ROGÉRIO Agora a ruim: vou ganhar a metade do que eu ganhava. MARTINA Isso é contra a lei. ROGÉRIO O salário continua o mesmo. Mas eu vou perder todos os adicionais. Eu não preciso aceitar, claro, e posso procurar outro emprego. O que tu acha? Martina olha para Rogério, preocupada, e não sabe o que dizer. Sissi levanta-se, constrangida. SISSI Tio, eu já tava saindo. (para Martina) Foi ótimo, tia. As duas se abraçam. CENA 46 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE Sissi sai do elevador. Seu Zé abre a porta para ela. Sissi hesita e não sai. SISSI Eu... Esqueci de deixar uma coisa pra Martina. Tem alguma caixa postal aqui na portaria? SEU ZÉ Tem, sim senhora. Seu Zé mostra o armário com as caixas postais. Sissi abre a bolsa, tira o cheque de Martina e empurra-o, rapidamente, na fenda da caixa postal do apartamento de Martina. SISSI Boa noite. SEU ZÉ Boa noite. Sissi sai do edifício. CENA 47 - APARTAMENTO DE SISSI/SALA/COZINHA - INTERIOR - NOITE Sissi entra, com uma sacola pequena de supermercado nas mãos. Adão está vendo TV. ADÃO Trouxe alguma coisa? SISSI Leite e pão. ADÃO O Diego foi dormir sem comer. SISSI Amanhã de manhã dou um café reforçado pra ele. Na cozinha, pai e filha comem pão com manteiga e tomam leite. ADÃO Não me aceitaram no estacionamento. Eu tô muito velho pro serviço. (pausa) Eles tão procurando uma secretária. O salário é razoável. SISSI Que turno? ADÃO Normal. Manhã e tarde. SISSI Eu não posso pai. Tem a faculdade. Mas eu vou sair do tele-marketing. Vou fazer... (hesita; não encontra a palavra) Representação de uma marca de roupa. Uma amiga minha tá ganhando bem, e eu vou ajudar ela. Essa geladeira vai ficar cheia, pai. Adão olha para a filha e sorri, cético. CENA 48 - SHOPPING/ÁREA DE ALIMENTAÇÃO - INTERIOR - DIA Giane e Sissi conversam numa mesa da área de alimentação. Giane está segurando um celular. GIANE (para o seu interlocutor) Vou passar pra ela. (para Sissi, sorridente) Vai dar tudo certo. SISSI Alô? (pausa) A Giane... (fica nervosa) Quer dizer, a Michele me explicou. (pausa) Entendi. Pensei em... Helena. (pausa) Sobrenome? Sei lá. (pausa) Velasquez? Pode ser. (pausa) A Giane me falou em duzentos. (pausa; fecha o bocal e fala para Giane) Ela diz que tem que ser cento e cinqüenta no início. GIANE É o que ela fez comigo. SISSI (de volta ao celular) Combinado. (olha em volta) Posso. Ele tá aqui? (pausa) A Giane me avisou. (pausa) Pretendo fazer as fotos ainda nessa semana. (pausa) Tudo bem. (pausa) Tchau. Sissi desliga o celular e devolve-o para Giane. SISSI Ela disse que um tal de Marco Aurélio já vai sentar aqui conosco. Giane olha em volta e vê Marco Aurélio, 25 anos, que se aproxima da mesa. Ele chega e beija as duas garotas. MARCO AURÉLIO Oi, Michele. GIANE Oi, tudo bom? MARCO AURÉLIO (olhando para Sissi) Prazer, Marco Aurélio. SISSI Prazer, Cecília. Não!... Helena. Marco Aurélio senta. GIANE Eu já expliquei tudo pra ela. MARCO AURÉLIO Tudo? Tem certeza? GIANE Eu falei sobre o depósito pra Brigite, toda segunda-feira, dei o número da conta, essas coisas. MARCO AURÉLIO Ótimo. (olha atentamente para a Sissi) Nós vamos colocar no site que tu é totalmente iniciante. Isso significa que o cliente não vai esperar um atendimento muito especial. Só o básico: uma chupada e sexo vaginal. Tu beija só se quiser. Aí tu toma banho, conversa um pouco e, se o cara quiser, tu dá outra chupada e mais sexo vaginal. Tu tem direito a pedir camisinha sempre, tanto na chupada quanto no vaginal. Fica duas horas com o cara e vai embora. (percebe que Sissi está chocada) Tudo certo, Helena? SISSI Tudo certo. MARCO AURÉLIO A Brigite também quer saber se tu topa fazer anal e quanto tu cobra de extra. Sissi não responde. Olha para Marco Aurélio, mas parece que não vê ninguém. GIANE Sissi, ele fez uma pergunta. SISSI Desculpe. Que pergunta? GIANE Se tu faz sexo anal. Eu não faço, mas tem umas garotas que cobram até 100 reais de extra. Sissi olha para Giane e não diz nada. MARCO AURÉLIO (para Giane) A tua amiga sabe sobre o que nós estamos falando? GIANE Claro que sabe. Eu vou ajudar ela. Deixa comigo. Marco Aurélio olha para Sissi, desconfiado. CENA 49 - BAIA DE TELE-VENDAS - INTERIOR - DIA Sissi trabalha, com fones de ouvido e microfone. SISSI ... e se o senhor entrar na promoção ainda hoje, ganha cem minutos grátis, para falar com cinco assinantes que o senhor indicar... Martina aproxima-se da baia, conduzida por um supervisor, 30 anos. Acena e depois faz um sinal de "posso esperar" para Sissi, que está surpresa com a visita. O supervisor fica perto delas, com cara de aborrecido. SISSI (no microfone) Muito obrigado pela sua atenção. Desliga e olha para a sua tia. MARTINA Não quero atrapalhar. SUPERVISOR A sua tia disse que era urgente. Eu avisei pra ela que a empresa não permite visitas. MARTINA Tu pode sair um pouquinho, Sissi? SUPERVISOR Ela não pode sair. SISSI Ninguém te perguntou. Sissi sorri e tira os fones e o microfone. SISSI Vou sair, mas não vai ser um pouquinho. Estende os aparelhos para o supervisor. SISSI Se quiser, pode ficar no meu lugar. Ou então enfia. CENA 50 - PARQUE - EXTERIOR - DIA As duas conversam num banco. Marina abre a bolsa e estende um envelope para Sissi. MARTINA Se tu não aceitar, eu nunca vou me perdoar na vida. Sissi olha para o envelope, mas não pega. MARTINA Nós ainda temos uma grana no banco. SISSI Eu tô decidida, tia. (pensa um pouco) Se eu pegar esse envelope sabe o que eu vou fazer com o dinheiro? Vou pagar as fotos pro site. MARTINA Que site? SISSI O que anuncia o serviço. Já falei com a dona, a que vai me agenciar. MARTINA (chocada) Eu não vou permitir... SISSI Não vou viver de favor de ninguém, e não volto praquele emprego de merda. Guarda esse envelope. Martina não guarda. Sissi levanta. SISSI Adorei a visita, tia. Eu tenho ir. Sissi abaixa-se, beija a tia e afasta-se, em passos rápidos. CENA 51 - ESCRITÓRIO DE BETINHO/RECEPÇÃO - INTERIOR - DIA Giane está sentada, sozinha, na pequena recepção de um escritório modesto, típico das galerias do centro de Porto Alegre. Há muitas fotos de mulheres penduradas na parede, algumas de bom gosto, outras bem longe disso. A porta abre e sai uma garota, 20 anos, maquiada demais. Atrás dela também sai Betinho, 25 anos, com pose de malandro. Giane levanta-se. Os dois se beijam. BETINHO Cadê a sua amiga? GIANE Ela ficou lá em baixo. BETINHO Por quê? GIANE Ficou envergonhada. BETINHO Envergonhada de quê? GIANE Ela tá começando, Betinho. Daqui a pouco ela sobe. BETINHO (sorrindo) Tá bom. Vamos entrar? CENA 52 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA Betinho senta atrás de uma escrivaninha velha e indica uma cadeira à sua frente para Giane. Numa mesa auxiliar, um computador divide o espaço exíguo com estantes de plástico cheias de CDs e uma câmera fotográfica digital. Assim que senta, Giane abre a bolsa e pega quatro notas de cinqüenta reais. Estende-as para Betinho. GIANE Tá aqui. Betinho conta. BETINHO Só tem duzentos. GIANE Depois ela dá o resto. Betinho coloca o dinheiro em cima da mesa, na frente de Giane. BETINHO Já tô fazendo desconto. O preço de tabela é... GIANE (cortando) Que tabela, Betinho? Não faz onda. BETINHO A minha tabela. Se é pra fazer serviço porco, contrata o Vanderlei. CENA 53 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE/LANCHERIA - INTERIOR - DIA Sissi termina de comer um pastel. Passa o dedo no prato, pegando as migalhas. Leva o dedo à boca. Olha para os outros freqüentadores da lancheria e para o liquidificador, onde uma vitamina está sendo preparada. Parece nervosa. CENA 54 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA GIANE (sedutora, inclinando-se na direção de Betinho) Tu tá muito chato. Vamos negociar. BETINHO (sorrindo) Eu conheço o teu negócio. Ele não enche a barriga de ninguém. Giane suspira e abre a bolsa. GIANE Tá bom. Eu consigo mais cinqüenta. Betinho levanta e coloca a câmera numa sacola de equipamentos fotográficos. Põe a sacola no ombro. BETINHO Tchau, Giane. Eu tenho trabalho daqui a meia-hora. GIANE Eu consegui o motel pra amanhã. Dá uma força. BETINHO Dou. E tu me dá quatrocentos reais. Betinho passa por Giane e abre a porta olhando para ela, Não percebe que Sissi está de pé, junto à porta. Giane vê a amiga. GIANE Essa é a Sissi. Betinho vê Sissi. Os dois se olham. Sissi está nervosa. SISSI Oi. BETINHO Oi. Por mais alguns segundos, os dois apenas se olham. Sissi tenta sorrir. Betinho recua um pouco. BETINHO Entra, por favor. Sissi entra. Betinho larga a sacola e indica uma cadeira ao lado de Giane. Sissi senta. Betinho também senta e não desgruda os olhos de Sissi. Giane percebe e sorri. BETINHO Então... Tu precisa de umas fotos... Sissi sorri para ele, envergonhada. CENA 55 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA Martina está na cozinha, com uma cara péssima, cabelo todo desgrenhado, tomando café de roupão. Toca o interfone. Ela vai atender. SEU ZÉ (OFF) É o rapaz do lixo limpo. MARTINA Diz pra ele que hoje eu não tenho nada. Martina desliga o interfone e volta a sentar. Dá mais uma mordida no pão. De repente, levanta e vão até o interfone. Aperta o botão. SEU ZÉ (OFF) Sim? MARTINA O rapaz do lixo ainda tá aí? SEU ZÉ Já tá lá na rua. Mas se a senhora quiser... MARTINA Chama ele, por favor. Martina desliga o interfone e corre na direção do quarto. CENA 56 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE/ELEVADOR - INTERIOR - DIA Betinho, Giane e Sissi descem no elevador cheio de freqüentadores da galeria. Betinho olha para Sissi. Sissi olha para o chão. Giane olha para Betinho e sorri. CENA 57 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA William está comendo um sanduíche, enquanto Martina coloca leite quente numa xícara. Ela continua de roupão, mas ajeitou um pouco o cabelo e passou batom. MARTINA Hoje vai ter que ser café solúvel. WILLIAM Não tem problema. Ela prepara o café para William. Enquanto ela serve, os dois começam a se olhar, primeiro por poucos instantes, desviando os olhos, depois com mais tempo e mais intensidade. MARTINA Açúcar ou adoçante? WILLIAM Açúcar. Martina senta e começa servir café para ela mesma. A troca de olhares se intensifica. Martina coloca leite em sua xícara, que fica cheia e começa a transbordar sem que ela perceba. Num rompante, os dois se inclinam sobre a mesa e se beijam. CENA 58 - GALERIA DO CENTRO DE PORTO ALEGRE - INTERIOR - DIA Betinho, com a sacola no ombro, beija Sissi e Giane. BETINHO (para Sissi) Não te preocupa. Vai dar tudo certo. Betinho se afasta. Depois de alguns passos, pára, volta-se para as duas e abana, sorridente. Elas abanam de volta. Ele vai embora, ainda mais feliz. As duas se olham. Giane faz uma cara divertida. Sissi está envergonhada. CENA 59 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - DIA Martina e William beijam-se, de pé, contra a geladeira. Martina passa a mão no peito de William, que a leva na direção da pia, sem parar de beijar. William segura Martina e a faz sentar na pia. Os dois se abraçam. William vai tirando o roupão de Martina, que está de baby-doll. Martina consegue tirar a camisa de William. De repente, contudo, Martina volta a fechar o roupão e empurra William. MARTINA Eu não consigo. WILLIAM A senhora me desculpe. Eu não devia... MARTINA (cortando) A culpa foi minha. Eu te mandei subir. WILLIAM Não. Hoje eu nem devia ter passado aqui. MARTINA Então, por que passou? Tava com fome? WILLIAM (hesita um pouco) Não. Passei pra ver a senhora. MARTINA Só ver? CENA 60 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - DIA William deita-se sobre Martina na cama. Os dois começam a tirar a roupa, beijando-se sem parar. Parece que a transa finalmente vai acontecer. Mas, depois de muitas carícias, Martina afasta-se mais uma vez. Recoloca o roupão, mas não sai da cama. MARTINA Eu não vou conseguir. WILLIAM Eu entendo. Aqui nessa cama deve ser difícil pra ti. MARTINA A cama não é o problema. WILLIAM Então é o meu cheiro. MARTINA Tu tem um cheiro mais maravilhoso. Martina aproxima-se de William. MARTINA É que... Eu queria te pedir uma coisa. William olha para Marina, sem entender. CENA 61 - MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - DIA Giane está fazendo a maquiagem em Sissi, que veste um roupão de banho. Betinho faz ajustes num tripé que sustenta um flash simples. Giane termina a maquiagem, abre uma sacola e começa e mostrar calcinhas e sutiãs para Sissi. GIANE Tem essa, de rendinhas, e essa outra aqui, com esse furinho, que são as mais bonitas. SISSI Nem pensar. Com furinho, nem pensar. GIANE (falando baixinho) Sissi, tu também vai tirar sem nada. Que diferença faz? SISSI Prefiro "sem nada" que "com furinho". BETINHO Eu tô pronto. Betinho olha para as duas. GIANE (para Sissi) Rendinhas ou furinho? SISSI Rendinhas. Sissi levanta-se, decidida, e troca a calcinha, ainda vestindo o roupão. Depois tira o roupão, ficando só de calcinha e sutã. Volta-se para Betinho. SISSI Meu rosto não vai aparecer, tem certeza? Betinho fica impressionado com a beleza de Sissi. BETINHO Tenho. Vamos começar na banheira? SISSI Na banheira, de calcinha de renda? BETINHO É. Tem razão. Então começamos na cama. Sissi olha para Giane, nervosa. GIANE Vamos deixar a cama pra depois. SISSI Tô com um pouco de frio. BETINHO Ela tá com frio, Giane. Não tem um casaquinho? Giane olha para Betinho, espantada. GIANE Casaquinho? Nunca vi casaquinho nesse tipo de foto. BETINHO Tem uns casaquinhos meio transparentes, sabe? GIANE Não inventa moda! Nas minhas fotos não teve casaquinho nenhum. Betinho aproxima-se do console e liga o ar-condicionado. BETINHO Pronto. Já vai esquentar. SISSI Obrigado. BETINHO De nada. Vamos lá? (indicando uma cadeira) Senta ali. Vamos começar com uns retratos. SISSI Mas o meu rosto não pode aparecer. BETINHO Nós vamos fazer de um jeito que não apareça o rosto. Se aparecer um pouquinho, a gente borra no photoshop. GIANE Fica aquela nuvenzinha na cara que eu te mostrei. Betinho já está com a câmera a postos. BETINHO Joga o cabelo pra frente, Sissi. Sissi obedece. Giane ajuda. Betinho enquadra. BETINHO Agora, vira o rosto pro lado. Sissi obedece. BETINHO Assim... Assim... Perfeito. Betinho aperta o botão. O flash dispara. CENA 62 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - DIA Martina e William na porta de saída, ainda fechada. William está com um saco de lixo na mão. WILLIAM Eu não sei se vou conseguir fazer direito. MARTINA Tudo bem. É só uma brincadeira. Eu não sou louca, William. Só vou te ligar quando for totalmente seguro. Pode confiar em mim. Martina beija William, que sorri, meio encabulado. CENA 63 - MOTEL 1/QUARTO - INTERIOR - DIA Sissi retoca a maquiagem no banheiro. Giane conversa com Betinho em voz baixa. GIANE Que palhaçada é essa? Ela nem tirou o sutiã ainda. BETINHO Tu disse que era pra ir devagar. GIANE Não tão devagar. Eu tenho compromisso daqui a uma hora. A Brigite não vai aceitar essas fotos. BETINHO Por quê? Elas estão ficando ótimas. GIANE Tem que mostrar o corpo dela. Peito, bunda, tudo. Ela tá depilada. Eu já conferi. Sissi volta. GIANE Sissi, querida, agora vamos fazer sem o sutiã. Sissi olha para Betinho como quem pede ajuda. Giane olha para Betinho, reafirmando sua ordem. BETINHO OK, Sissi. Vamos lá. Betinho afasta-se bastante e troca a objetiva da câmera. BETINHO Pode tirar. Sissi respira fundo e aproxima as mãos do sutiã. Hesita um pouco. Betinho vira-se de costas e regula alguma coisa na câmera. Só então Sissi tira o sutiã. Giane fica pasma e aproxima-se de Betinho. Cochicha no ouvido dele. GIANE Comigo tu ficou bem perto em todas as fotos. BETINHO É que eu ainda não tinha essa tele. GIANE E não virou de costas. BETINHO A menina é iniciante. Betinho vira-se para Sissi, que imediatamente cobre os seios com as mãos. GIANE (para Sissi, ríspida) Abaixa essas mãos, Sissi. BETINHO Calma. A gente pode começar assim. (para Sissi) O principal, Sissi, é que a gente mostre que o teu corpo é a suprema promessa da felicidade. GIANE O quê? BETINHO Tem que deixar espaço pra imaginação. O que é a beleza? É a promessa da felicidade. (para Sissi) Tem que descobrir um pouquinho mais. Assim... Sissi descobre um pouco mais os seios. BETINHO Agora vira o rosto. Perfeito. Tá lindo! Betinho ergue a câmera. Giane olha para os dois, incrédula. CENA 64 - APARTAMENTO DE MARTINA - INTERIOR - DIA Sissi e Martina olham para as provas das fotos, impressas em papel ofício. Apesar de algumas poses serem mais explícitas que as mostradas na cena anterior, ainda são bastante discretas. MARTINA Estão lindas. SISSI Acha mesmo? MARTINA Claro. SISSI O Betinho - o fotógrafo, sabe? - foi bem querido. A Giane tinha me dito que ele gostava de tirar uma casquinha, mas que nada, ele foi legal. MARTINA E agora? SISSI Agora elas vão pro site. Toca o celular. Sissi atende SISSI Alô. (pausa) Oi, Betinho. (para Martina) É o próprio. (pausa maior) Certo. Eu passo aí. Desliga. Parece confusa. SISSI Ele disse que as fotos estão com problema. Eu vou lá falar com ele. (pausa) Tia, a senhora pode me emprestar trinta reais? Eu tenho que comprar umas coisas pro Diego. CENA 65 - ESCRITÓRIO DE BETINHO - INTERIOR - DIA Betinho olha para Sissi, com ar preocupado. Sissi está com os contatos na mão. BETINHO Nunca aconteceu antes. Acho que foi um problema de compressão. Os arquivos estão corrompidos. SISSI A Giane disse pra mim pegar o dinheiro de volta. Ela já falou com outro fotógrafo. BETINHO Que fotógrafo? SISSI Vanderlei, acho. BETINHO O Vanderlei? Nem pensar. Ele vai se aproveitar de ti. SISSI Pode me dar os duzentos reais de volta? Betinho não responde, nem faz menção de pegar a carteira. SISSI Por favor? BETINHO É que... Eu tava mentindo. As fotos não têm problema nenhum. Mas não posso mandar essas fotos pra Brigite. SISSI Por quê? BETINHO Porque... Não é vida pra ti. Giane entra no escritório. GIANE Betinho, o que aconteceu? SISSI Ele disse que as fotos não têm problema nenhum. GIANE Tu tá tirando onda com a gente? Manda essas fotos pra Brigite agora, ou então devolve o dinheiro! (para Sissi) Já marquei com o Vanderlei. (para Betinho) Devolve a grana, Betinho, ou tu vai passar o resto da vida fotografando vaca na Expointer. Betinho olha para as duas, sem saber o que fazer. BETINHO (vencido) Tá bom. Eu mando as fotos. GIANE Ótimo. Semana que vem a Sissi te passa os duzentos que estão faltando. BETINHO (deprimido, para Sissi) Não precisa. Tá pago. As duas olham pra ele, espantadas. CENA 66 - BAR - INTERIOR - NOITE Rogério e Borges conversam e tomam cerveja. BORGES Ouvi falar que o Tadeu, em São Paulo, vai dançar. E aí eu vou pro lugar dele, e tu vem pro meu lugar. Tá tudo esquematizado, cara. ROGÉRIO Quem te disse que o Tadeu vai dançar? BORGES A Marlúcia. (malicioso) A tua Marlúcia. ROGÉRIO Minha porra nenhuma. BORGES (sorrindo) Tá bom. A minha Marlúcia. ROGÉRIO O que tu quer dizer com isso? BORGES (inocente) Eu? Nada? ROGÉRIO Tu também comeu a Marlúcia. BORGES Eu? ROGÉRIO (quase gritando) Comeu, sim! BORGES Calma, Rogério. Fala mais baixo. ROGÉRIO Tu é o cara mais escroto do universo. BORGES Eu sou o cara que salvou o teu emprego. ROGÉRIO Como é que tu consegue? Tu é muito podre! BORGES Sabe como eu consigo? Na última vez que eu fui no motel com ela, eu disse que ia ficar mais um pouco, que tava começando um jogo na TV que eu não queria perder. Ela saiu, e eu chamei a puta mais gostosa dessa cidade. Sabe quanto ela custa? Seiscentos reais. Só de pensar nela, eu já fico com tesão. É assim que eu consigo. Se tu quiser, eu te passo o telefone. (pausa) Ela aceita cartão de crédito. CENA 67 - APTO. DE SISSI/QUARTO DE SISSI - INTERIOR - NOITE Sissi lê uma história para Diego, que está quase dormindo. O livro tem cara de ser novo. Também há um estojo grande de canetas "zero quilômetro" sobre as cobertas. SISSI O lobo soprou e soprou, mas a casa não desabou. DIEGO Por que não desabou? SISSI Porque essa casa era de tijolo. DIEGO E aí o lobo não conseguiu entrar? SISSI Não. DIEGO Tu disse que o lobo queria comer os porquinhos. SISSI Disse. DIEGO (quase dormindo) Então ele tava com fome, né? SISSI Devia estar. DIEGO Coitado do lobo... Diego dorme. Sissi fecha o livro. Deita em sua própria cama. Acende a luz de cabeceira. Pega um livro sobre tragédias gregas. Tenta ler. ADÃO (OFF) Sissi? Sissi vê seu pai no vão da porta. ADÃO O Diego já dormiu? SISSI Já. ADÃO Eu trouxe pão e leite. Tu vai querer? CENA 68 - APARTAMENTO DE SISSI/COZINHA - INTERIOR - NOITE Pai e filha comem pão e tomam leite. ADÃO O Diego adorou os presentes. SISSI Eu disse pra ele que vamos fazer a festinha de aniversário assim que der. Onde tu conseguiu dinheiro pra comida, pai? ADÃO Eu trabalhei. SISSI (muito feliz) Tu conseguiu um emprego? ADÃO Não. Eu consegui uma rua. SISSI Uma rua? ADÃO Negociei com o dono. Vou trabalhar lá nas terças e quintas e dou vinte por cento pra ele. SISSI Trabalhar em quê? ADÃO Cuidando dos carros. Deu quase cinco reais hoje, e eu já paguei a parte dele. Sissi olha para o pai, que continua comendo, impassível. CENA 69 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA Martina e Sissi conversam. Sissi está nervosa. MARTINA Sissi, liga e cancela tudo. É perigoso. SISSI Eu não tenho medo dos caras, tia. A Giane disse que Brigite tem amigos na polícia, e ninguém se passa com as gps dela. Eu tenho medo de não fazer direito, de estragar tudo. A Giane me deu umas dicas, disse que eu tenho que gemer... Eu não solto nem um ai quando tô trepando. Como tu fazia? Martina ri. MARTINA O segredo é começar baixinho, pro cara não perceber que é encenação. Se logo no começo tu já começa a gritar, fica falso. SISSI Como é que se faz, assim, baixinho? MARTINA Ai, Sissi. Que absurdo. SISSI Por favor, tia. MARTINA Era assim... (geme) Ahhhh... Sissi ri. Martina também. SISSI Só isso? (tenta imitar) Ahhh... MARTINA Começa assim, depois vai aumentando. SISSI Faz, tia, por favor. MARTINA (gemendo) Ahhhh... Ahhhh... Ahhhhhhhhhhhh... SISSI (imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh... MARTINA Depois fica mais forte. (mais alto) Ahhhhh... Ahhhh... Ahhh... SISSI (imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh... MARTINA E tem que ficar virando a cabeça de um lado pro outro. (sacode a cabeça) Ahhhh... Ahhhhh... Ahhhh... SISSI (imitando) Ahhhh... Ahhhhhh... Ahhhhhhhhh... MARTINA Dependendo do gosto cliente, dá pra ser mais escandalosa e gritar um pouquinho. (gritando) Tipo... Aiiii... Aiiii... Aiiiiiii... SISSI (imitando os gritos) Aiiii... Aiiii... Aiiiiiii... CENA 70 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - DIA Rogério entra no elevador e aperta o botão do seu apartamento. O elevador começa a subir. CENA 71 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA Continua a palhaçada. As duas riem bastante. MARTINA Tinha uns que me pediam pra falar uns palavrões. SISSI Palavrões? MARTINA É. Mas eu não gostava. Muita baixaria. Aí, pro cara não ficar brabo, eu tinha que caprichar muito e fazia o meu gemido especial. O cara achava que tava gozando, e gozava também. SISSI Como era o especial? MARTINA (entre risos) Não consigo mais fazer. SISSI Faz tia, por favor. CENA 72 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR DO APARTAMENTO - INTERIOR - DIA Rogério sai do elevador, com a chave na mão. Quando coloca a chave na fechadura, ouve vozes, abafadas, mas bem evidentes. MARTINA (OFF) Aiiiiii... Ahh... Aiaiaiaiaiaiaiaiaia... Rogério congela. Ouve uns risos abafados. Encosta o ouvido na porta e escuta. SISSI (OFF) Aiiiiii... Ahh... Aiaiaiaiaiaiaiaiaia... Rogério gira a chave, abre a porta e entra rápido no apartamento. CENA 73 - APARTAMENTO DE MARTINA - SALA - DIA As duas mulheres, sentadas frente a frente, olham para Rogério, assustadas e tentam se recompor. MARTINA Eu tava contando pra Sissi um filme que eu vi. ROGÉRIO Que filme? MARTINA Não lembro o nome. Vi quando era pequena. Era uma comédia italiana. Tinha um campeonato de gemidos eróticos. Uma velha de oitenta anos ganhou. Rogério fica olhando para as duas por um tempo. SISSI Desculpe, tio. Eu que fiz a tia gritar daquele jeito. ROGÉRIO Tudo bem. (para Martina) Tem alguma coisa pro almoço? MARTINA Eu faço num instante. Rogério sai da sala. Toca o celular de Sissi. As duas se olham e enxugam os olhos, que ainda estão cheios de lágrimas. Ela atende. SISSI Alô. (pausa) Oi, Brigite. (pausa) Mas ainda são... (pausa) Certo. O táxi me pega às quinze pras duas. (pausa) Depois, direto lá. (pausa) Entendi. (pausa) Obrigado. Tchau. Sissi desliga o telefone e olha para Martina. SISSI (baixinho) A Brigite botou as fotos, e um cliente já marcou. Eu começo amanhã. As duas se olham, e agora não há mais brincadeira alguma. CENA 74 - APARTAMENTO DE SISSI/BANHEIRO - INTERIOR - DIA Giane observa Sissi terminando de passar batom. GIANE Tá ótimo. Tá linda, Sissi. Que roupa tu vai usar? Sissi vira-se para Giane. SISSI Essa aqui tá ruim? Giane olha para o jeans e a blusa de Sissi. GIANE A calça tinha que estar mais apertada na bunda, mas pra essa hora, tá legal. O mais importante é o que tem em baixo. Deixa eu ver. SISSI Ver o quê? GIANE A calcinha e o sutiã. Sissi hesita um pouco, mas depois tira a roupa. Está com uma roupa de baixo bem discreta. Giane faz cara de quem não gostou. GIANE Não dá. Isso é calcinha de freira. Bota uma menorzinha. SISSI Essa é a menor de todas. (em dúvida) Eu tenho... Umas coisas antigas... GIANE Deixa eu ver. Sissi sai do banheiro. CENA 75 - APARTAMENTO DE SISSI/QUARTO - INTERIOR - DIA Sissi pega o pacote com as lingeries de Martina no fundo armário. Abre o pacote e olha para as peças de roupa. SISSI (para si mesma) Cento e vinte reais. Cento e vinte reais. Cento e vinte reais. CENA 76 - APARTAMENTO DE SISSI/BANHEIRO - INTERIOR - DIA Giane olha para Sissi, espantada. GIANE Onde tu conseguiu essas coisas? Sissi está usando a lingerie de Martina. SISSI Não interessa. Essas tão boas? GIANE Tão. São meio antigas, mas devem funcionar. SISSI Ótimo. Sissi começa a se vestir. GIANE O motorista se chama Heitor. É meio bagaceiro, luta jiu-jitsu, mas é de confiança. Se o cliente não se comportar, é só ligar pra ele. CENA 77 - ESCOLA PÚBLICA/FACHADA - EXTERIOR - DIA Diego corre na direção de Sissi e Giane. Sissi abraça Diego. DIEGO (admirado) Como tu tá bonita, Sissi. SISSI Obrigado. Essa é a minha amiga Giane. Giane beija Diego e mexe no cabelo dele. GIANE Que amor. DIEGO (para Sissi) Parece que tu vai numa festa. SISSI É que eu tô começando num emprego novo. DIEGO Eu sei. O vô me falou que tu vai ser atriz. SISSI Atriz? DIEGO É. Tu vai fazer representação. Quem faz representação não é atriz? Sissi sorri amarelo para Diego. CENA 78 - RUA DE SHOPPING - EXTERIOR - DIA Um táxi, dirigido por Heitor, 25 anos, estaciona. Giane e Sissi se aproximam dele. GIANE Oi, Heitor. HEITOR Oi, Michele. GIANE Essa é a Helena. HEITOR (para Sissi) Prazer. Giane abraça forte Sissi. GIANE Vai dar tudo certo. SISSI Claro que vai. Sissi entra no táxi, que arranca. Giane abana. CENA 79 - TÁXI - INTERIOR/EXTERIOR - DIA Heitor dirige e tenta observar Sissi pelo espelho. Sissi abre a bolsa, pega um óculos escuro e o coloca. HEITOR Nova com a Brigite? SISSI Hahã. HEITOR Veio do interior? SISSI Não. HEITOR Trabalhava com quem antes? Sissi não responde. Heitor dirige em silêncio por um tempo. HEITOR É a primeira vez, né? SISSI A Brigite te falou? HEITOR Não. Se tu quiser, eu fico te esperando no estacionamento do motel. Cobro trinta e cinco reais, e a corrida fica por conta. SISSI Não precisa. HEITOR Tu que sabe. Tem umas meninas que gostam. Se sentem mais seguras. (pausa) A Giane te explicou que tu pode me chamar, se o cara complicar? SISSI Explicou. Heitor sorri, tranqüilizador. HEITOR Vai dar tudo certo. Sissi tenta sorrir de volta, mas não consegue. CENA 80 - PORTARIA DE MOTEL 2 - EXTERIOR - DIA O táxi de Heitor está parado na portaria. Ele fala com o interfone. HEITOR É a Helena. O Juliano tá esperando por ela. VOZ DE MULHER (OFF) Box vinte e dois. O portão abre. O táxi entra. CENA 81 - PÁTIO DE MOTEL 2 - EXTERIOR - DIA O táxi pára no box 22, que está com o toldo abaixado. Sissi desembarca. HEITOR Tem certeza que não quer que eu espere? SISSI Tenho. Obrigada. O táxi arranca. Sissi passa pela fresta entre o toldo e a parede e entra no box. CENA 82 - BOX DE MOTEL 2/ESCADA/PORTA DO QUARTO - INTERIOR - DIA Está muito escuro no box. Sissi tem certa dificuldade de ver onde está a escada. Avança devagar, pelo lado de um carro pequeno, até achar um interruptor. Acende a luz. Agora pode ver melhor o carro: além de pequeno, é velho e está sujo. Sissi olha para a escada. Pensa um pouco. Depois segue em frente. Sobe as escadas lentamente. Chega na porta. Não bate de imediato. Respira fundo. Bate. Ouve passos aproximando-se. A porta abre. Sissi vê Betinho, que sorri para ela. BETINHO Oi. SISSI O que tu tá fazendo aqui? BETINHO Não quer entrar? SISSI Onde está o cliente, o Juliano? BETINHO Entra, por favor. Sissi entra, desconfiada. CENA 83 - QUARTO DE MOTEL 2 - INTERIOR - DIA Sissi fica parada perto da porta. Betinho dá um sorriso amarelo. BETINHO Eu te enganei, desculpa. Vou te pagar, mas não quero transar contigo. SISSI Não tô entendendo. BETINHO Eu tô apaixonado. Sissi olha para ele, confusa. Betinho abre a carteira e pega três notas de cinqüenta reais. Estende as notas para Sissi. Sissi não pega o dinheiro. BETINHO Eu te amo, de verdade. SISSI Tu nem me conhece. BETINHO Eu quero conhecer. SISSI Mas eu não quero. Eu tenho um namorado e tô apaixonada por ele. Eu só preciso de dinheiro. BETINHO Então pega, por favor. Sissi, em vez de apanhar o dinheiro, pega o celular e começa a discar. BETINHO O que tu tá fazendo? SISSI Chamando o táxi. Eu vou embora. BETINHO Não. SISSI (ainda discando) Eu não vou transar contigo. BETINHO Eu já disse: não quero transar. Vamos conversar. SISSI Meu emprego de antes era conversar. Cansei de conversar. (no telefone) Heitor? Pode me pegar? (pausa) Não. Tá tudo bem. Depois te explico. Sissi desliga o celular. BETINHO Não faz isso. Por favor, Sissi. Sissi guarda o celular. Pega uma das notas de cinqüenta. SISSI Vou ter que pagar o táxi. (pausa) Pra ti, meu nome é Helena. Tchau. Sissi dá meia volta e sai do quarto, batendo a porta atrás de si. Betinho guarda o dinheiro, triste. CENA 84 - TÁXI - INTERIOR/EXTERIOR - DIA Heitor dirige e conversa com Sissi. HEITOR Eu sempre achei esse guri meio fora da casinha, mas essa foi demais. Vou avisar a Brigite. O cara tem que ser profissional. SISSI Acho que ele não fez por mal. Deixa assim. HEITOR Tu que sabe. Pra onde vamos? SISSI Não sei. Eu tenho que trocar de roupa. Toca o celular de Sissi. Ela atende. SISSI Alô. (pausa) Oi, Brigite. (pausa; hesita um pouco) Não. Já tô liberada. CENA 85 - RUA DE SHOPPING - EXTERIOR - DIA O táxi de Heitor está parado. Sissi desce, e o carro arranca. Sissi olha o relógio de pulso e caminha na direção de uma das entradas do prédio. Betinho aparece de repente ao lado dela. Sissi pega o celular. SISSI Vou ligar pra Brigite e avisar que tu tá me seguindo. BETINHO Não, por favor. SISSI Então vai embora e me deixa em paz. BETINHO Eu tenho uma proposta. Uma proposta séria. Uma amiga minha trabalha numa agência de modelos. Uma agência grande. Eu posso te apresentar pra ele e, se ela achar que tu tem alguma chance, eu faço um book pra ti, e aí tu consegue uns trabalhos de... Sissi começa a discar. BETINHO Tu não acredita em mim? SISSI Não. (pausa) Alô, Brigite? É a Helena. BETINHO Tudo bem, eu vou embora! SISSI (no celular) Só um pouquinho. Sissi olha para Betinho, que vai se afastando aos poucos. SISSI (no celular) Agora tá tudo bem. Tchau. Betinho caminha para longe de Sissi. Um carro pára na calçada, perto da entrada do shopping. Sissi olha para o carro e caminha na sua direção. O motorista é Borges. Sissi aproxima-se do carro. Borges abre a janela e olha para Sissi. BORGES Helena? SISSI Sou eu. Borges abre a porta. BORGES Entra. Sissi entra. BORGES Prazer, Borges. Os dois trocam beijos no rosto. O carro arranca. Betinho, desolado, vê o carro se afastando. Num rompante, corre para a rua e chama um táxi. CENA 86 - CARRO DE BORGES - INTERIOR/EXTERIOR - DIA Borges e Sissi conversam. A mão de Borges acaricia o joelho de Sissi. BORGES Tem preferência por algum motel? SISSI Não. BORGES Impressão minha, ou tu tá nervosa? SISSI Impressão. BORGES A Brigite disse que tu é iniciante. Começou quando? SISSI Há seis meses, mais ou menos. BORGES Duvido. Aposto que começou semana passada. Mas pra mim tá ótimo. Odeio PPP. SISSI O que é isso? BORGES Papo padrão de puta. É sempre igual: vou fazer programa só até o final do ano, juntar um dinheiro pra ajudar a família e pagar a faculdade, depois vou casar com meu namorado e ter filhos. Borges sorri para Sissi, que sorri amarelo de volta. Borges acaricia com mais força. CENA 87 - FACHADA DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA O carro de Borges entra no motel. O táxi de Betinho pára alguns metros antes da entrada e Betinho desce. Betinho caminha um pouco e depois senta no meio-fio. CENA 88 - QUARTO DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA Sissi tira a roupa devagar, enquanto Borges toma banho fora de quadro. BORGES (OFF) Não quer mesmo tomar banho? SISSI Acabo de tomar. BORGES (OFF) Tudo bem. Passou o nervosismo? SISSI Passou. BORGES (OFF) Não parece. Borges vem para o quarto, com uma toalha enrolada na cintura. Sissi está com a calcinha e o sutiã de Martina. Tenta sorrir. Borges olha para ela. Parece satisfeito. BORGES Posso te dar um conselho? SISSI Acho que sim. Borges aproxima-se e acaricia os seios de Sissi. BORGES Não bota silicone nos peitos. Gosto deles assim. SISSI Obrigado. Borges beija o pescoço de Sissi. BORGES Tu tá tremendo. SISSI Não tô não. Sissi estende o braço e enfia a mão na fenda da toalha. Borges sorri. BORGES Tu não parece uma puta, não fala como uma puta e não faz nada que uma puta deve fazer. (pausa) Mas não tem problema. Olha pra mim. Sissi levanta os olhos. BORGES Tira essa mão. Tá gelada. Sissi tira. Borges acaricia os cabelos de Sissi. BORGES Eu gosto de namorar. Tu não gosta? Finge que eu sou teu namorado. Borges beija Sissi no rosto e vai se aproximando da boca, mas, quando a toca, Sissi recua. SISSI Eu não beijo na boca. Borges se irrita. BORGES Não beija na boca? (aponta para a cama) Então deita! Sissi não deita. BORGES (gritando) Deita, porra! Sissi deita. BORGES Se não quer ser namoradinha, vai ter que ser puta. Borges aproxima-se da cama. CENA 89 - FACHADA DE MOTEL 3 - INTERIOR - DIA Betinho continua esperando, sentado no meio-fio. O portão do motel abre e o carro de Borges sai. Betinho vê o carro passar, sem Sissi em seu interior. O portão fecha outra vez. Betinho aproxima-se da portaria e olha por uma fresta do portão. Vê Sissi sentada num banco. BETINHO Sissi. Sissi olha para ele, séria. O portão abre. Sissi sai devagar e fica parada na frente de Betinho. BETINHO Vou chamar um táxi. SISSI Já chamei. Deve estar chegando. Os dois se olham por algum tempo. Então, sem aviso prévio, Sissi abraça-se a Betinho, que a abraça também. Sissi chora discretamente, de modo que Betinho não perceba. O abraço se prolonga. SISSI O que tu tava fazendo aqui? BETINHO Te esperando. SISSI Tu é louco. O táxi de Heitor estaciona. Heitor olha para Betinho, desconfiado, e abre a porta para Sissi. SISSI (para Betinho) Tchau. BETINHO Fica comigo, Sissi. SISSI Eu tenho que trabalhar. Sissi vai entrar, mas Betinho a segura pelo braço. SISSI Me solta. HEITOR Solta ela! BETINHO Tu não precisa disso, Sissi. Heitor sai do carro e vai direto pra cima de Betinho, que não larga o braço de Sissi. Heitor acerta-lhe um soco na barriga. Betinho grita de dor e cai no chão. Heitor vai continuar batendo, mas Sissi se mete no meio dos dois e impede que a surra continue. SISSI Chega! Vamos embora, pelo amor de Deus. HEITOR (para Betinho, ainda caído) Se tu te meter de novo com ela, vai parar no hospital. Ou no cemitério. Heitor entra no carro, seguido por Sissi, que ainda troca um olhar com Betinho. O táxi arranca. CENA 90 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - NOITE Martina e Rogério estão sentados na mesinha. Rogério come uma fatia de uma grande torta de chocolate recém cortada. MARTINA Só acho estranho ser no fim de semana. ROGÉRIO Se eu perder o emprego vou estar livre todos os dias, de segunda a domingo. MARTINA Quer que eu te leve no aeroporto? ROGÉRIO Não. O Borges vem me pegar. Se tudo der em São Paulo, a minha situação melhora bastante. Hummmm... Tá demais. E tu nem me avisou que tinha. Quando tu fez? MARTINA Hoje de tarde. ROGÉRIO Mas eu te disse que ia viajar. E essa torta é imensa. MARTINA Eu já tinha começado quando tu ligou. ROGÉRIO Vê se não come tudo. Vou querer na segunda-feira. (aponta para a torta). Isso aqui tu sabe fazer. Toca a campainha. Ele enfia mais um pedaço na boca. ROGÉRIO Deve ser o Borges. Vou pegar minhas coisas. Rogério levanta. Martina vai atender. CENA 91 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA/CORREDOR/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE Martina abre a porta. É Sissi. Seu rosto demonstra cansaço. Todo o seu corpo demonstra cansaço. Já trocou de roupa, mas a maquiagem não foi retirada com cuidado e está meio borrada. SISSI Oi, tia. (pausa) Eu... Comecei hoje. Martina fica meio sem jeito e não sabe o que dizer. Ouvimos o elevador movimentando-se. MARTINA Entra, Sissi. Sissi vai entrar, mas hesita. Ouvimos o barulho de um celular chamando. SISSI Tu tá sozinha? MARTINA O Rogério já vai sair. ROGÉRIO (OFF) Quem é, Martina? SISSI (assustada, baixinho) Eu volto amanhã. (estende um pacote para Martina) Muito obrigado, tia. Martina pega o pacote. SISSI Tchau. Sissi beija Martina rapidamente, volta para o elevador e aperta o botão. Rogério aparece na porta do apartamento, com o celular numa mão e a mala na outra. ROGÉRIO O Borges ligou. Está aí em baixo. Olha para o corredor e vê Sissi. ROGÉRIO Oi, Sissi. SISSI Oi, tio. ROGÉRIO Tá chegando? SISSI Não. Eu... Vim só entregar uma coisa pra tia. MARTINA Não quer mesmo entrar? SISSI Não. Obrigado. O elevador chega. Sissi abre a porta. MARTINA (para Rogério) Não vai aproveitar o elevador? ROGÉRIO (meio atrapalhado) Vou, claro. Rogério beija Martina. ROGÉRIO Tchau, amor. MARTINA Tchau. Rogério e Sissi entram no elevador. CENA 92 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE O carro de Borges está parado, com o motor ligado, um pouco adiante da entrada do edifício. Borges toma um gole de cerveja de uma latinha. Giane está ao seu lado. BORGES A Helena confirmou, Michele? GIANE Tava fora de área. Vou ligar outra vez. Giane pega o celular e começa a discar. BORGES Sabe, no começo, ela parecia uma virgem, mas depois que esquentou, foi demais. E era de verdade! Eu sei quando uma mulher tá me enrolando. (pausa) Nunca vi ninguém gemer de tesão como essa tua amiga. Vai crescendo... É uma loucura. GIANE (sorrindo) Tá tocando. CENA 93 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE Sissi e Rogério no elevador. Toca o celular. Sissi atende. SISSI Oi. CENA 94 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE Giane fala no celular. GIANE Oi, Helena. Que bom que tu atendeu. To indo pra casa de um amigo meu. (pausa) Ele te conhece, te viu hoje de tarde... Te adorou. Onde tu tá? CENA 95 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE Sissi no elevador. Rogério olha pro chão. SISSI Eu tô indo pra casa. CENA 96 - CARRO DE BORGES - EXTERIOR-INTERIOR - NOITE Giane continua no celular. GIANE (pausa) E ele tem um amigo que quer te conhecer. (pausa) Quinhentos reais até domingo de noite. Limpos. Sem comissão pra Brigite. CENA 97 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR/PORTARIA - INTERIOR - NOITE O elevador chega no térreo. A porta abre. Rogério abre a porta para Sissi, que continua falando. SISSI Sem comissão? (hesita) Obrigado, Giane. Eu já tenho compromisso. (pausa) Desculpa. Tchau. Sissi desliga o celular. Estão perto da porta de saída. Seu Zé abre a porta pra eles. ROGÉRIO (nervoso) Tu não quer uma carona? SISSI Não, obrigado. Eu vou a pé. Tô pertinho de casa. (beija Rogério) Tchau, tio. ROGÉRIO Tchau, Sissi. CENA 98 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE Rogério e Sissi saem do prédio juntos. O carro de Borges está estacionado à esquerda. Sissi vai para a direita. Rogério vai para a esquerda e entra no banco de trás do carro. BORGES (para Rogério) Essa é a Michele. ROGÉRIO Prazer. E a tua amiga? GIANE Não vai rolar. Já tinha compromisso. BORGES (para Rogério) Não te preocupa. (para Giane) Liga pra Brigite e pergunta se a Paula tá livre. (para Rogério) A grande vantagem da Paula é que ela gosta de cozinhar, e a gente tem que repor as energias... Borges ri da própria piada, toma um gole de cerveja e liga o carro. CENA 99 - APARTAMENTO DE MARTINA/COZINHA - INTERIOR - NOITE Martina dá um jeito de preencher a fatia de bolo que ficou faltando na torta e a coloca na geladeira. Pega o pacote aberto sobre a mesa e examina seu conteúdo: suas antigas lingeries e três notas de dez reais. CENA 100 - GRAMADO SUPLEMENTAR DE ESTÁDIO DE FUTEBOL - EXTERIOR - DIA Sissi, nervosa, espera a saída de Estevão, que caminha para fora do campo ao lado de Vandeir. O Seu Lopes está ali perto, bem sorridente, conversando com um sujeito de terno e gravata, 40 anos. Quando os dois jogadores se aproximam. Sissi abraça Estevão bem forte. Ele estranha. ESTEVÃO O que é isso, Sissi? VANDEIR Oi, Sissi. Sissi nem ouve. Vandeir ri e segue em frente. ESTEVÃO Sissi, eu tô todo suado. SISSI Não faz mal. Eu te amo muito. ESTEVÃO Eu também. SISSI Eu tenho uma surpresa pra ti. ESTEVÃO E eu tenho que falar contigo. Mas primeiro vou tomar banho. Sissi não se desgruda. Estevão olha para Seu Lopes por cima do ombro de Sissi. Seu Lopes sorri e faz sinal de positivo. O sujeito de terno e gravata ri e acena para Estevão. ESTEVÃO Sissi, tá ficando chato. Sissi se desgruda um pouco. SISSI Desculpa. Vamos sair? ESTEVÃO Vamos. Mas eu tenho que voltar às seis. Sissi volta a abraçar Estevão, feliz. SISSI Te prepara. Hoje não vai ter pobreza. Seu Lopes e o sujeito de terno e gravata olham para os dois e sorriem. CENA 101 - QUARTO DE MOTEL 4 - INTERIOR - DIA Estevão e Sissi estão transando. Vemos os dois rostos juntos, febris e apaixonados. Estevão está prestes a se acabar. SISSI Espera, ainda não. Sissi escapa de Estevão, estende a mão e pega uma garrafa de champanha quase no fim. Serve sua taça e toma um gole. Estevão olha para ela, ofegante e confuso. SISSI Nós temos que aproveitar bem tudo isso. (pausa) Sabe que eu nunca me senti tão feliz em toda a minha vida? Sissi estende a taça para ele. ESTEVÃO Eu não agüento mais. SISSI Não agüenta mais beber? ESTEVÃO Nem beber, nem trepar. Sissi sorri. SISSI Tu não é um atleta? Atleta tem que agüentar. Sissi beija Estevão. Continua sorridente. Tão sorridente que seu sorriso parece uma máscara de sorriso. SISSI (tomando mais um gole de champanha) Lembra que eu te disse que tinha uma surpresa pra ti? Sissi pega a carteira na bolsa. Abre a carteira e pega um monte de notas de dinheiro. Abre-as como um leque. ESTEVÃO O que é isso? SISSI Meu novo emprego. Sou representante de vendas. Estevão olha para o dinheiro, sem entender. SISSI Nós podemos alugar um apartamento pra nós. Já pensou? Morar juntos! (pausa, o sorriso se desfaz no seu rosto) O que foi, Estevão? ESTEVÃO Eu... Vou pra Europa depois de amanhã. Sissi olha para Estevão, mas parece não entender. ESTEVÃO Assinei o contrato antes do treino, com um espanhol. (pausa) A minha mãe vai junto. O Seu Lopes também. SISSI É mentira. O Lopes tá te enrolando há mais de um ano. Qual é a prova que tu tem? Estevão levanta e pega um envelope no bolso da calça. Dá o envelope para Sissi, que o abre e tira duas passagens aéreas. ESTEVÃO A minha. E a da minha mãe. Sissi confere. O destino é Madri. Guarda os bilhetes e devolve o envelope para Estevão. ESTEVÃO Eu tentei te contar no carro, mas não consegui. Sissi olha para Estevão, mas parece que não o vê. ESTEVÃO (sem convicção) Depois de um ano, eu tenho direito a mais duas passagens, e aí vou mandar uma pra ti. Sissi continua olhando para Estevão, sem reação visível. CENA 102 - FACHADA DE MOTEL 4 - INTERIOR - DIA Sissi sai do motel. Betinho está esperando por ela, sentado no meio-fio. Ele levanta-se. Sissi olha para ele, mas caminha no sentido oposto. BETINHO Sissi. Eu só quero conversar. Sissi segue caminhando, em passos rápidos e decididos. BETINHO Sissi, por favor. Sissi não olha para trás. CENA 103 - RUAS/AVENIDAS - INTERIOR - DIA-NOITE Sissi caminha, sempre com Betinho atrás dela. Ela não olha para trás. Sissi passa por várias ruas. Atravessa avenidas. Cruza bairros. O dia termina. A iluminação pública acende, assim como os faróis dos carros. Betinho segue atrás dela. Sissi entra na rua do edifício de Martina e caminha na direção dele. CENA 104 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE Sissi aproxima-se da portaria no exato momento em que William está entrando no edifício, pela porta aberta pelo Seu Zé, que segura uma vassoura. William, com uma sacola nas mãos, encaminha- se para o elevador. Sissi aproxima-se do Seu Zé, que volta a varrer o chão na frente da porta de entrada. Betinho pára na frente do edifício. SISSI A Martina está? SEU ZÉ Está, sim, senhora. O rapaz do lixo limpo acaba de entrar. Ele vai fazer um serviço no apartamento. Seu Zé abre a porta. Sissi hesita. Olha para a rua, de onde Betinho olha para ela, com um meio-sorriso bobo no rosto. Sissi entra no edifício. CENA 105 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE O único elevador está subindo. Sissi olha em volta e vê os quatro pequenos monitores, que mostram a rua em frente ao edifício (onde está Betinho), a porta da frente da portaria (onde está Seu Zé), o interior da portaria (onde está a própria Sissi) e o elevador (onde está William). Sissi fica olhando para este último monitor. CENA 106 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE Na tela do monitor observado por Sissi, William mexe na cintura, tira uma pistola e a examina. Depois guarda a pistola na cintura outra vez. CENA 107 - EDIFÍCIO DE MARTINA/PORTARIA - INTERIOR - NOITE Sissi, apavorada, olha para o monitor até que William sai do elevador. Sissi chama o elevador e corre para a porta de saída. CENA 108 - EDIFÍCIO DE MARTINA/FACHADA - EXTERIOR - NOITE Sissi aproxima-se de Seu Zé. SISSI O cara tem uma arma. SEU ZÉ Que cara? SISSI O cara que entrou agora. Betinho aproxima-se dos dois, curioso. SEU ZÉ Impossível. Eu conheço o... SISSI (cortando) Eu vi a arma. O senhor tem que chamar a polícia. Liga pro 190. SEU ZÉ Tem uma delegacia aqui perto. SISSI Então liga. E também liga pro tio. Seu Zé corre para a portaria. Sissi, meio desnorteada, vai atrás dele. Betinho a segue. Seu Zé disca. O elevador chega. Sissi e Betinho entram no elevador. CENA 109 - EDIFÍCIO DE MARTINA/ELEVADOR - INTERIOR - NOITE Sissi e Betinho sobem juntos, sem se falar. CENA 110 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE Sissi e Betinho saem do elevador e caminham até a porta. Sissi encosta o ouvido na madeira. Nada. Sissi pensa em bater na campainha, mas Betinho a impede. BETINHO É melhor não assustar o cara. CENA 111 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE A torta de chocolate, ladeada por duas colheres grandes, uma garrafa de vinho e dois cálices, está em cima da penteadeira. William, sentado numa cadeira, aponta a arma para Martina, que está de pé, perto da cama. Vemos nitidamente que a arma é de brinquedo. William faz um sinal e Martina começa a tirar sua roupa, devagar. A lingerie que veste por baixo do vestido é toda preta. William sorri. Martina fica só de calcinha, sutiã e sandálias de salto alto, ao melhor estilo Helmut Newton. William pega uma fita crepe e cordas na sua sacola. Levanta-se. Caminha na direção de Martina. CENA 112 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE Seu Zé sai do elevador e aproxima-se de Sissi e Betinho. SEU ZÉ A polícia está vindo. O Seu Rogério também. CENA 113 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE Martina está deitada na cama. William, inclinado sobre ela, termina de amarrar seus pulsos no espaldar da cama. Seus tornozelos já estão amarrados nos pés da cama. William pega a fita crepe e olha para Martina. WILLIAM Tem certeza? MARTINA Se não, eu posso gritar. William destaca um pedaço da fita e amordaça Martina. CENA 114 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE Três policiais, com as armas na mão, saem do elevador. POLICIAL 1 (para Seu Zé) Não tem a chave? SEU ZÉ Não. Mas o dono tá chegando, e ele tem. O policial 1 olha para os outros dois. POLICIAL 1 Então vamos esperar. CENA 115 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE William passa sensualmente a arma de brinquedo pelo corpo de Martina. William começa a beijá-la. CENA 116 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE Rogério e Borges saem do elevador. Borges e Sissi se vêem, se reconhecem e ficam surpresos, mas, depois de um momento de hesitação, nenhum dos dois fala nada. POLICIAL 1 (para Rogério e Borges) Cadê a chave? Rogério passa a chave para o policial 1. POLICIAL 1 (para os outros policiais) Vamos entrar em silêncio. Ele é um só, nós somos três. Eu cuido dele. Vocês fazem a segurança da vítima. (para os outros) Ninguém mais entra, a não ser que eu chame. Ninguém! CENA 117 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE William, sempre com a arma na mão, beija todo o corpo de Martina. CENA 118 - APARTAMENTO DE MARTINA/SALA - INTERIOR - NOITE A porta abre, e os três policiais entram, silenciosos. O policial 1 encosta a porta com cuidado e orienta a revista. Um dos policiais vai para a cozinha. Os outros dois seguem na direção do quarto. CENA 119 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE Seu Zé, Sissi, Betinho, Rogério e Borges continuam perto da porta, esperando, nervosos. CENA 120 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE William tira a camisa. Martina olha para ele, sorridente. William a "ameaça" com o revólver. CENA 121 - APARTAMENTO DE MARTINA/CORREDOR- INTERIOR - NOITE Os policiais aproximam-se da porta do quarto. O policial 1, à frente dos outros, é o primeiro a ver o que está acontecendo. CENA 122 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE William arranca o sutiã de Martina com o cano do revólver. CENA 123 - APARTAMENTO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE O policial 1, tenso, está em dúvida sobre o momento da invasão. CENA 124 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE William, ainda com a arma na mão, vai beijar os seios de Martina, mas, de repente, pára. Vai até a penteadeira, coloca o revólver sobre ela. Com uma colher, pega um bom pedaço da torta e, voltando para a cama, coloca um pouco de torta nos dois seios de Martina. Olha para os seios lambuzados de chocolate e abre um grande sorriso. Ajoelha-se e começa a lamber um dos seios. O policial 1 faz uma contagem silenciosa até três para os outros policiais. No "três", invadem o quarto, com o policial 1 à frente, apontando sua arma para William. POLICIAL 1 (gritando) Parado! William e Martina olham para o policial 1 e, apavorados, não esboçam qualquer reação. A imagem congela. CENA 125 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE Com a imagem congelada, ouvimos a seguinte locução (mesmo locutor da cena 1): NARRADOR (V.S.) Temos, neste momento raríssimo, a presença simultânea dos 3 efes fundamentais da existência humana: a fome, a foda e o fasma. De acordo com os estudos do professor Damasceno, as conseqüências desta extraordinária conjunção são imprevisíveis. CENA 126 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE A imagem descongela. O policial 2 atira-se em cima de William e derruba-o no chão, enquanto Martina tenta desesperadamente soltar-se, sem conseguir. O policial 1 pega a arma de brinquedo e a examina. O policial 3 começa a ajudar Martina, desamarrando a cordas do seu pulso direito. O policial 2, de joelhos sobre as costas de William, algema-o. Com seu braço finalmente livre, Martina arranca a fita crepe. MARTINA (gritando) Não! É um engano. Ele não fez nada. CENA 127 - EDIFÍCIO DE MARTINA/CORREDOR - INTERIOR - NOITE Seu Zé, Sissi, Betinho, Rogério e Borges, através da porta entreaberta, ouvem os gritos de Martina, abafados, mas perfeitamente nítidos. MARTINA (OFF) Solta ele! Solta ele! Rogério olha para Sissi, confuso. Borges empurra um pouco a porta. Agora os gritos ficam mais altos. MARTINA (OFF) Nós combinamos tudo. Solta ele! Rogério entra no apartamento, seguido de todos os outros. CENA 128 - APARTAMENTO DE MARTINA/QUARTO - INTERIOR - NOITE Rogério entra no quarto e vê a seguinte cena: Martina, só de calcinha, meias e sandálias de salto alto, lambuzada de chocolate nos seios, e ainda amarrada pelos tornozelos na cama, está abraçada em William, que continua deitado no chão, algemado, com o policial 2 ajoelhado em suas costas, enquanto os outros dois policiais, atarantados, não sabem o que fazer. Martina não percebe que Rogério está no quarto. MARTINA (gritando para os policiais) Era uma brincadeira! Eu pedi que ele fizesse tudo. Pelo amor de Deus: o revólver é de brinquedo. O policial 2 olha para o policial 1, como que perguntando o que fazer. O policial 1 não esboça qualquer reação. MARTINA William, tu tá bem? WILLIAM Tô. MARTINA Era só uma fantasia que eu tinha. Soltem ele. Rogério dá mais um passo em frente e finalmente Martina pode vê- lo. Não diz nada. O policial 1 percebe que Rogério entrou. POLICIAL 1 (para Rogério) O senhor conhece esse sujeito? ROGÉRIO Não. Sissi entra no quarto. Martina a vê. MARTINA Explica pra eles, Sissi. SISSI Ele é... (hesita um pouco) Namorado da minha tia. Rogério olha para Sissi, surpreso. Borges, Betinho e Seu Zé se espremem para ver alguma coisa. Martina se enrola no lençol. MARTINA (para Rogério) Tu não tava em São Paulo? Rogério não sabe o que dizer. Borges decide socorrer Rogério, e os dois acabam falando ao mesmo tempo. BORGES Nós não fomos. ROGÉRIO Voltamos hoje. Os dois se olham, percebendo a mancada. MARTINA (para Rogério) Tu me enganou! ROGÉRIO Eu? E tu, tu fez o quê? (gritando) Sua puta! Sissi se adianta. SISSI Não fala assim da minha tia. ROGÉRIO Falo sim. Não te mete, fedelha. Betinho se adianta. BETINHO Olha o respeito. Baixa esse dedo. ROGÉRIO Baixo coisa nenhuma. Sissi dá um tapa na mão de Rogério. BORGES Olha só a puta! BETINHO (para Borges) Repete, se tu é homem! BORGES Claro. A tua mulher não sei, Rogério, mas essa aqui (aponta para Sissi) eu garanto que é puta mesmo. Betinho se joga em cima de Borges. Os dois caem no chão e rolam para fora do quarto. O policial 3 vai apartar. William continua algemado, no chão. Rogério olha para Martina. ROGÉRIO Eu nunca pensei que um dia... MARTINA Nem eu, Rogério. Nem eu. POLICIAL 3 (OFF) Eu preciso de ajuda. POLICIAL 1 (para policial 2) Solta ele. O policial 2 tira as algemas de William e sai do quarto. William levanta-se e olha para os seus pulsos, vermelhos e machucados. O policial 1 está com um ar cansado. POLICIAL 1 (para Martina e William) Vou ter que pegar depoimento de vocês. (para Sissi e Rogério) Vocês também. Vou esperar na sala. O policial, na saída, lança um olhar de cobiça para a torta de chocolate. Martina percebe. MARTINA Pode levar a torta. POLICIAL 1 A senhora tem certeza? MARTINA Claro. POLICIAL 1 Então vamos deixar o seu depoimento pra amanhã. A senhora passa lá na delegacia? MARTINA Passo. O policial pega a torta, sorridente. POLICIAL 1 Boa noite. (para Rogério) E o senhor vem comigo. Saem. Betinho cruza com eles na porta e entra no quarto, com a camisa rasgada. Martina olha para e depois para Sissi. MARTINA Quem é esse? Sissi olha para Betinho. SISSI O nome dele é Betinho. Ele grudou em mim, não sai do meu pé. BETINHO Eu tô apaixonado por ela. SISSI Acho que ele é doido. MARTINA (sorrindo) Acho que todo apaixonado é um doido. Eu sou doida, não resta a menor dúvida. (para William) Tu não acha que eu sou doida? WILLIAM Completamente doida. (pausa) Como é que tu dá a minha torta de chocolate praquele cara? Martina e Sissi sorriem. Betinho, malandro, coloca o braço sobre o ombro de Sissi. Sissi não o repele. Betinho sorri, feliz e ainda mais apaixonado. Sissi olha para Betinho e sorri também. Martina e William olham para o novo casal. A imagem congela com os quatro em quadro. NARRADOR (V.S.) Para o professor Damasceno, a existência humana oferece raríssimos momentos de plena felicidade. Além de raríssimos, eles também são efêmeros, fugazes, quase intangíveis. Mas, teorias à parte, está provado: mesmo que seja por um instante, vale a pena. FADE-OUT CRÉDITOS FINAIS *************************************************************** (c) Carlos Gerbase, 2006-2007 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br