ANCHIETANOS roteiro de Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil primeiro tratamento - 11/02/1993 (formato de longa-metragem - não realizado) projeto: Casa de Cinema de Porto Alegre **************************************************************** CENA 1 - CORREDOR DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA Um corredor de colégio, largo, comprido e vazio. Azulejos na parede, basculantes, piso preto de pedra. Ouvem-se ao longe, um andar acima, passos que se aproximam. É um salto de madeira, e o som dos passos ecoa pelo colégio vazio. O ritmo muda quando os passos começam a descer a escada. O som cresce e se aproxima. Uma mulher GORDINHA, provavelmente uma professora, aparece no corredor, saindo da escada. Ela caminha alguns passos no corredor e some. Os passos agora descem a escada e se afastam. Ouve-se muito longe uma porta que abre e fecha. O corredor, largo, comprido e vazio, agora está vazio até de sons. Nada acontece. Toca a sirene. Mil ADOLESCENTES explodem no corredor. Correm, riem, xingam, abanam, beijam, mascam, pulam, gaguejam, falam, coçam, apertam, sacodem, sentam, levantam, caminham, falam e, principalmente, gritam. São loiros, morenos, ruivos, sardentos, cheios de espinha, gordos, de aparelho, de boné, baixos, altos, de óculos, meninos, meninas, magros e brancos. Toca a sirene. No corredor vazio, comprido, largo e silencioso, um copo de plástico quebrado é sacudido pelo vento. CENA 2 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA MAURÍCIO, um professor baixinho troncudo com cara de cavalo, vestindo um terno xadrez, termina de fazer a chamada dos alunos. CHICO (OFF) Eu lembro de um professor de alguma coisa que, no primeiro dia de aula, acho que era segundo ginasial, se apresentou com uma frase incrível: MAURÍCIO Meu nome é muito mau. Meu nome é Maurício. Os ALUNOS, todos meninos (entre eles CHICO, LUCIANO e EMÍLIO), ficam paralisados, olhando o professor Maurício, que começa a escrever uma série de coisas no quadro, muito animado. Ele tem gestos teatrais e parece excessivamente simpático. CHICO (OFF) Todos nós, cinqüenta pré-adolescentes idiotas e cheios de espinhas, ficamos momentaneamente paralisados pela súbita e coletiva revelação de que um professor, adulto, responsável pela nossa educação nos próximos oito meses, era muito mais idiota que nós. CENA 3 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR CHICO está caminhando por um estúdio de televisão, vazio, em frente a um grande céu aerografado. Magro, não muito alto, trinta anos, Chico tem a aparência de quem está cansado demais para conseguir dormir. Caminha olhando para o chão. O estúdio tem restos de uma festa, pratos plásticos, copos e garrafas, espalhados sobre mesas improvisadas. CHICO (OFF) Eu esqueci o nome de muitos professores que tive, mas o nome do Maurício continua ocupando algum arquivo morto do meu cérebro. O que prova que ser idiota às vezes dá resultado. Chico esbarra numa mesa. Um copo plástico cai no chão. CENA 4 - ENTRADA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA Os alunos chegam para as aulas: descem de ônibus escolares, kombis e carros e vão entrando na escola. Os PAIS, as MÃES e as EMPREGADAS se despedem das crianças. Gritaria geral. CHICO (OFF) O ano era mil novecentos e sessenta e nove, Brasil, e quase todas as pessoas que existiam tinham dez anos. Todo mundo bem alimentado com três refeições diárias, grapete, pastelina e kibamba. É claro que, não muito longe dali, atrás das sete montanhas, depois das sete florestas, na casa dos sete anões, uma quadrilha de assaltantes tomava conta do país. Hoje todo mundo sabe. Eu fiquei sabendo quase dez anos depois. Até ali, nós éramos o futuro do país do futuro. CENA 5 - CLÍNICA - INTERIOR, DIA LISA sentada num banco de praça. Lisa, trinta anos, é bonita e triste. Chico está ao seu lado. LISA (cantando) Onde o arco-íris é ponte, onde vivem os imortais... CENA 6 - CASAS E TELEVISÃO (ARQUIVO) LISA (OFF) ... do trovão é deus guarda-mor, o barra-limpa, o grande Thor! Bebês e crianças comendo na frente da televisão. Comem mingau, bolacha, arroz com feijão, sucrilhos, pão, bolo, doce, bebem leite, suco, coca-cola. Assistem de tudo: abertura de Thor, Vigilante rodoviário, Shazam e Xerife, Hebe, Família Trapo, Três patetas, Tom e Jerry, Silvio Santos, Jornal nacional, filmes de terror, comerciais. Edição de trilhas de TV. CHICO (OFF) Eu gostava do Thor porque ele era imortal. O pior era o Homem de Ferro, que era cardíaco. Achava ridículo um super-herói cardíaco. Hoje não acho mais. LISA (OFF) Eu lembro o nome do Vigilante rodoviário: tenente Carlos. Eu lembro dos Incas Venusianos, do Reizinho, dos Patrulheiros Toddy, do Perdidos no espaço e dos três irmãos Cartwright, do Bonanza: Adam, Little Joe e... A televisão desliga, fica só aquele pontinho luminoso no meio da tela. CENA 7 - CLÍNICA - EXTERIOR/DIA Lisa, no banco de praça, não lembra o nome do terceiro irmão Cartwright. LISA Você lembra o nome do outro? CHICO Não. Chico olha o relógio. LISA Eu também não. Eu passei a maior parte da minha infância mudando de uma casa para outra. Mas eu não lembro de casa nenhuma. Eu só lembro do que eu via na televisão. Chico levanta. Eles estão num pequeno jardim interno, cercado de muros altos. Uma ENFERMEIRA caminha ao fundo. CHICO Eu preciso ir. LISA Eu sabia o nome e o jeito de todas as pessoas da televisão e é só disso que eu me lembro, agora. Toda a memória que me sobrou foi criada por roteiristas americanos. (ri) A Carolina esteve aqui esses dias. (pausa) Eu não lembro mais o nome do terceiro irmão Cartwright. Não que isso tenha alguma importância. CENA 8 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE Chico caminhando pelo estúdio. O fundo agora é uma multidão pintada na parede. Chico encontra um balão sobre a mesa. Pega o balão. CHICO (OFF) Nenhuma importância. CENA 9 - ENTRADA DO COLÉGIO - EXTERIOR/DIA Chico, Emílio, Luciano e outros meninos observam a chegada de Roal no colégio. ROAL é um menino louro, com um topete enorme. Ele desce de um carrão com motorista. CHICO (OFF) Todos nós tínhamos dinheiro, o que não nos impedia de odiar secretamente os que tinham mais dinheiro que nós. E mais ainda o Roal, que, tendo mais dinheiro que todos os outros, ainda ganhou um mini-bug no concurso da Toddy. Logo o Roal foi ganhar o mini-bug! Ali eu comecei a me tornar um ateu marxista. E o penteado do cara então? Pelo amor de deus! O cara era um completo imbecil! Também, com esse nome: Roal. Pelo amor de deus! De repente, Luciano interrompe a brincadeira e aponta para um carro que chega ao estacionamento. Os guris correm para ver de perto. O carro estaciona. Dele desce um GORDO ENORME, com as naturais dificuldades de um gordo enorme ao sair de um carro. CHICO (OFF) Tinha um gordo que dava aulas de técnicas comerciais. A gente fingia que aprendia a fazer notas, descontos e faturas. O gordo era muito gordo e o banco do carro dele era afundado no chão. Era impressionante. CENA 10 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA A PROFESSORA DE INGLÊS, uma senhora baixinha, 50 anos, bate uma caneta na mesa para chamar a atenção dos alunos. PROFESSORA Atention, please... Listen: élefant! No quadro negro está escrito: "Elephant". Os alunos, todos meninos, respiram fundo, entediados. Luciano levanta a mão. CHICO (OFF) Quase sempre era o Luciano quem começava. LUCIANO Cavalo! PROFESSORA (rindo) No, no, no. ALUNO 2 Vaca! CHICO Jumenta! PROFESSORA No, no, no. CHICO (OFF) O mais católico, quase sempre o Emílio, acabava com a tortura. EMÍLIO Elefante. A professora fazia um gesto de "That's it!". CHICO (OFF) E ela recomeçava. PROFESSORA (Escrevendo "Hippopotamus" no quadro) Ráipopótamusss... LUCIANO Macaco! ALUNO 2 Minhoca! CHICO Égua! CENA 11 - ESTÚDIO - INTERIOR/NOITE Chico acende alguns refletores do estúdio. Os refletores iluminam uma parede onde a palavra "DAVI" se repete dezenas de vezes, em relevo, formando uma retícula. CHICO (OFF) Tinha um professor louco, de física, que parecia o Hortelino do mundo bizarro, que além de tudo tinha um assistente com um olho de vidro. O assistente chamava a gente para o quadro-negro e a gente nunca sabia para quem ele estava olhando. CENA 12 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA O ASSISTENTE do professor de física, com um olho de vidro, chama alguém ao quadro. ASSISTENTE Você! Você mesmo aí! CHICO Quem? Eu? Chico levanta-se e caminha para o quadro. A sala de aula agora tem MENINAS. CHICO (OFF) Isso foi em 72, quando eu tinha aula de física. E aí já tinha meninas na escola. No início não, era um colégio jesuíta, masculino. Aí os padres compraram um outro colégio, só de meninas, e elas entraram de bando na nossa aula. Quase rodei em física. Quase que todos nós rodamos em física. Chico sobe na base de um gerador Van Der Graaf, uma espécie de banqueta de metal. O Assistente do professor explica alguma coisa para a classe mas Chico não ouve, fascinado pela visão das meninas, que olham todas para ele. CHICO (OFF) Todas elas eram lindas, maravilhosas, puras, perfumadas, educadas, tímidas e, obviamente, brancas. Esqueci de dizer isso: naquela época, todos nós éramos brancos. O assistente liga o gerador Van Der Graaf. Os cabelos de Chico se arrepiam. As meninas morrem de rir. CENA 13 - MUSEU DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA A turma de Chico entra, caminhando em fila, no salão de exposições do museu da escola. Chico, 12 anos, troca olhares com Carolina através das vitrines. Eles se cruzam várias vezes, sempre separados por pacas, tatus e cotias empalhadas. CHICO (OFF) Eu me apaixonei por Carolina às duas e trinta e oito da tarde de uma quinta-feira, nove de junho, dia de Anchieta. Não me lembro o ano, acho que era setenta e dois, mas foi numa aula de ciências, no museu do colégio. Tinha uma aranha enorme, peluda, e um monte de bicho empalhado no museu. Carolina era linda como um Blastocerus Dichotomus, pura como um Troquilídeo. Eu acho que agora bicho empalhado deve ser politicamente incorreto, mas na época ainda não tinham inventado a ecologia. CENA 14 - CENÁRIO DE ALICE - INTERIOR/NOITE Um cenário de teatro infantil. CAROLINA, 25 anos, bonita, um jeito de menina acentuado pelo figurino da peça, dá o texto final de "Alice no País das Maravilhas". CAROLINA Ao final imaginou a irmã já transformada em mulher adulta, e como ela conservaria, através dos anos, o coração simples e afetuoso da época de sua infância. Ela estava cercada de outras crianças e fazia os olhos delas brilharem quando lhes constava histórias curiosas, talvez até mesmo o sonho do País das Maravilhas, de há muito tempo atrás. Chico, com uma criança de 2 anos (JOSÉ) no colo, LUCIANO e ANDREW, no meio de uma platéia de mães com seus filhos, batem palmas. Os outros atores entram em cena. Carolina agradece. CENA 15 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA No quadro-negro, alguém escreve o nome WITTGENSTEIN. É ABRAÃO, um professor baixinho, precocemente careca e de fala mansa, que não tem qualquer controle sobre o caos à sua volta, e não parece se importar muito com isso. Ele fala fazendo muito gestos e sempre olhando para cima, o que lhe confere uma certa dignidade e impede que ele enxergue o óbvio: não há um só aluno prestando atenção ao que ele diz. Uma menina se penteia com o auxílio de um espelho, um menino desenha uma mulher nua no tampo de sua classe, um grupo se diverte com um joguinho qualquer. Ao fundo, de pé, quatro meninos conversam animadamente, sem ao menos se preocupar em baixar a voz. CHICO (OFF) Eu lembro também do Abraão, o professor de filosofia, isso já no científico. Eu nunca entendi como foi que um judeu foi dar aula de filosofia num colégio jesuíta. A gente aproveitava as aulas dele para jogar fruta-flor, passar bilhetinhos ou conversar sobre qualquer coisa. Só muitos anos depois eu fui descobrir o que era filosofia. De repente, uma coisa verde e gosmenta jogada não se sabe de onde explode no quadro, cobrindo parte de um esquema de história da filosofia e respingando no rosto e na camisa de Abraão. Ele interrompe o seu discurso sobre Wittgenstein e, pela primeira vez, encara a turma. Silêncio total. CHICO (OFF) Teve uma única vez em que o Abraão conseguiu ser ouvido na aula. Ali a gente podia ter aprendido alguma coisa de filosofia. Mas ele resolveu contar uma história. Abraão, calmamente, tira os óculos e limpa-os com um lenço. Depois, recoloca os óculos e volta a encarar a turma, que permanece em absoluto silêncio. ABRAÃO Cinco anos atrás, na melhor escola técnica de Israel, os alunos pediram ao diretor para não ter mais aulas de filosofia, história e ciências sociais. Afinal, eles iam ser engenheiros, técnicos, matemáticos, e achavam aquilo tudo uma perda de tempo. Pausa. Os alunos todos olham para Abraão, concordando com seus colegas israelenses, mas sem se mexer. ABRAÃO O diretor disse que concordava em mudar o currículo, desde que os alunos fizessem um trabalho extra nas férias: eles tinham que apresentar o projeto de um grande sistema de encanamento ligando o norte ao sul de Israel, e que fosse capaz de transportar por dia três mil litros de sangue. Nova pausa. Alguns alunos se olham, curiosos com a história. ABRAÃO Os alunos se dividiram em grupos: alguns estudaram técnicas de conservação de sangue, outros pesquisaram qual seria o melhor material para fazer os canos, que minérios do país poderiam ser usados, como aproveitar o relevo da região, como bombear o sangue de um lugar pro outro. Quando acabaram as férias, entregaram o projeto pro diretor. Pausa. Abraão finge que tem o projeto nas mãos e o examina, virando as páginas com atenção. ABRAÃO O diretor examinou o projeto e disse: "Muito bem, o projeto de vocês é ótimo. Mas eu acabo de resolver que, a partir deste semestre, vocês vão ter O DOBRO de aulas de filosofia, história e ciências sociais." Pausa. Abraão encara os alunos, procurando um único que tenha entendido a atitude do diretor. Mas estão todos perplexos. Abraão sorri e se prepara para explicar. Neste momento, toca a campainha. Os alunos, imediatamente, abandonam a perplexidade e saem correndo da sala. Abraão fica parado, impotente. A sala se esvazia. Apenas CAROLINA permanece sentada, olhando para Abraão, como que entendendo tudo. Chico pára na porta e fica esperando Carolina. Abraão olha para ela por alguns instantes e depois vira-se para juntar suas coisas e ir embora. Carolina fica sozinha na sala. CHICO (OFF) Uma semana depois, Carolina encontrou o Abraão no bar do colégio e perguntou por que o diretor da escola de Israel resolveu fazer aquilo. Ele olhou, deu um sorriso e disse que, se ela tinha perguntado, era porque não precisava mais da resposta. (pausa) Carolina podia ter se apaixonado por ele. Mas ele era judeu. CENA 16 - ESTÚDIO - INTERIOR/NOITE No estúdio, Chico está deitado no chão, sobre uma cama improvisada de cobertores e folhas de isopor. Ao fundo, a multidão aerografada. Carolina examina um monte de fitas, anota dados das fitas numa prancheta. CHICO Carolina, você quer me ouvir? CAROLINA Não, Chico, não quero te ouvir. Eu já te ouvi demais. Você tem sempre uma belíssima justificativa pra tua covardia, você tem sempre uma ótima desculpa pra fazer o que é mais fácil, mais cômodo e mais conveniente. CHICO Carolina, isso é um trabalho, um emprego. Você acha tão vergonhoso ser pago pra fazer um trabalho? CAROLINA (rindo) Ah, Chico, até parece que você acredita nisso. Você devia ter sido ator. Você seria um ótimo ator. E sabe por que você não foi? Por que você tem medo, medo de se expor. CHICO Carolina, por favor. Se você quer ir embora, se você quer abandonar mais um trabalho pela metade, tudo bem, o problema é seu. Mas eu vou ter pedir favor: não me analisa. CAROLINA Tudo bem, então eu vou lhe responder profissionalmente. Você me convidou para trabalhar na produtora durante a campanha. Eu agradeci e aceitei, eu precisava da grana. Eu já fui paga, agora eu vou embora. Profissionalmente. CHICO E agora que a campanha terminou e a gente vai poder tocar os nossos projetos, você vai embora. Por quê? CAROLINA Problema meu. CHICO Então me responde como amiga. CAROLINA Como amiga? Tudo bem, eu vou lhe responder como amiga. Eu vou me embora por que você é um canalha. Você pensa que é uma ilha cercada de canalhas, todos os canalhas pensam isso. CHICO (erguendo-se) Deixa ver se eu entendi... Nós fizemos um trabalho, juntos, um trabalho que tinha o mesmo objetivo. Mas eu sou um canalha por fazer melhor aquilo que precisava ser feito. Carolina termina de arrumar as fitas e anotar os dados. CAROLINA Você fez mais do que precisava ser feito. E você gostou de fazer. Você só faz o que gosta. CHICO Quem disse que eu gosto? Vai saindo. CAROLINA Você faz e parece gostar. Pra mim é o suficiente. Tchau, Chico. Chico fica sozinho no estúdio vazio. CENA 17 - BIBLIOTECA - INTERIOR/DIA Chico está sentado na biblioteca, lendo Asterix. CHICO (OFF) Eu me apaixonei por Lisa às dez e vinte cinco de uma manhã de outono, não lembro o dia. Eu estava lendo Asterix na biblioteca. A sobrevivência nos recreios era mais difícil que na floresta de Carnutes, onde os irredutíveis gauleses faziam tremer os imperialistas romanos. Eu achava que a biblioteca era um território livre, silencioso e seguro. Eu ainda não sabia como os livros podiam ser perigosos. LISA senta na outra ponta da mesa. Chico levanta os olhos. Ela sorri, ele também. Ele volta a olhar para o livro. CHICO (OFF) Ela está lendo um livro em francês. Acho que é em francês. Vou perguntar. Vou perguntar porra nenhuma, vou ficar na minha. Vou fingir que ela nem está aqui. Chico ergue os olhos outra vez. Lisa está lendo, aparentemente compenetrada. CHICO (OFF) Tinha um monte de mesas vazias e ela sentou exatamente na minha. É lance, só pode ser lance. Lisa pega da bolsa, meio escondida, uma bolacha. CHICO (OFF) Ela está comendo bolacha. Por isso ela sentou aqui, porque não pode comer na biblioteca e nesta mesa a Dona Irene não pode ver. É isso, claro, não podia ser lance, essa mina é muito estranha. Comer bolacha na biblioteca. Pelo menos ela podia me oferecer uma. Tô morrendo de fome. Tudo bem, vou ficar na minha, vou ficar na minha. Chico volta a prestar atenção no Asterix. LISA Tem horas? CHICO (nervoso) Não, obrigado. LISA O teu relógio não funciona? CHICO Ah, horas... Faltam cinco. LISA Cinco o quê? CHICO Cinco minutos pra acabar o recreio. São dez e vinte e cinco. LISA Quer uma bolacha? CHICO Não, obrigado. Chico volta a olhar para o livro. CHICO (OFF) Por que você disse não, sua anta? A guria ofereceu, você tava a fim. Agora azar, vou ficar na minha. Vou ficar na minha! Chico volta a erguer os olhos. Pelo decote de Lisa, percebe uma nesga de sutiã preto. CHICO (OFF) Ela tá de sutiã. Sutiã preto! Ai meu deus do céu, ai meu deus do céu... Vou ficar na minha, vou ficar na minha. Sutiã preto, ela nem tem muito peito. A bundinha é ótima, mas peito ela quase não tem. Ou será que tem? Lisa olha para ele e fecha o último botão da blusa. Chico baixa os olhos rapidamente, constrangido. CHICO (OFF) Ela se deu conta que eu tava olhando os peitos dela. Azar, quem mandou usar sutiã preto. Vou ficar na minha. Lisa levanta, pega a bolsa e vem sentar ao lado de Chico. LISA Você já fez o trabalho de física? CHICO Do pêndulo? Não. LISA A gente podia fazer junto, lá em casa. CHICO Legal. Quando? LISA Hoje à tarde. CHICO Tudo bem. Lisa pega um papel e anota um endereço. Entrega para Chico. LISA É bem aqui perto, conhece a rua? Chico faz que sim. LISA Duas horas? CHICO Duas horas. LISA Legal. Lisa levanta e vai saindo. Luciano chega. LUCIANO Oi, Lisa. Luciano senta ao lado de Chico. LUCIANO Essa mina é louca mas é muito gostosa. O Emílio te mostrou o cavador? CHICO (ainda em estado de choque) Acho que não. LUCIANO O Emílio comprou um cavador bárbaro. Ele disse que hoje ninguém ganha dele, que ele vai se fechar na defesa. CHICO (lembrando-se) O campeonato! Não vai poder ser hoje. LUCIANO Como? Você disse que tava tudo certo! CHICO É que a minha mãe tem novena e elas vão usar a garagem. LUCIANO Novena??? Porra, Chico, hoje de manhã eu ainda falei contigo do campeonato, você esqueceu que... Lisa volta. LISA Esqueci minhas bolachas. (para Luciano) Você já fez o trabalho de física? CHICO Já. LUCIANO (estranhando) Por quê? LISA A gente podia fazer um grupo de três. Eu e o Chico vamos trabalhar lá em casa, às duas. LUCIANO Hoje? (olhando para Chico) Hoje. Tudo bem. Eu vou com o Chico. LISA Legal. Lisa sai. Luciano e Chico ficam olhando Lisa se afastar, enquanto Emílio chega, excitado. EMÍLIO (abrindo a sua pasta para mostrar algo) Chico, aposto que você nunca viu um cavador de acrílico com três camadas... CHICO (distraído) Não... LUCIANO (cortando) Não vai ter campeonato hoje, Emílio. EMÍLIO Por quê??? Chico olha para a porta da biblioteca, por onde Lisa vai saindo, conversando com uma colega. LUCIANO Novena. Eu e o Chico temos novena. Emílio fica olhando para eles, com o cavador na mão, achando que os dois estão tirando sarro da cara dele, mas sem muita certeza. CENA 18 - CASA DE LISA - INTERIOR/DIA Chico, Luciano e Lisa estão sentados no chão da sala, entre papéis e gráficos espalhados. Lisa está maravilhosamente sedutora vestindo uma bermuda e um pulôver velho. Chico e Luciano estão hipnotizados. Lisa gesticula e dá instruções sobre o melhor modo de realizar uma experiência científica com um pêndulo. Chico deve contar a oscilação, Luciano deve medir a amplitude enquanto ela, de pés descalços sobre um pufe cor-de-laranja, segura o pêndulo. Ela segura o pêndulo, que se move lentamente. Chico e Luciano ficam parados, de pé, sem conseguir tirar os olhos dela. CHICO (OFF) Eu fui colega do Luciano desde o jardim da infância. Ele era tão idiota quanto eu, o que sempre é muito prático, a gente se entende fácil. CENA 19 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA Um grupo de trinta pessoas acompanha um enterro. Chico, Luciano e Andrew caminham em silêncio, lado a lado, pelos corredores do cemitério. Nas paredes destacam-se as fotos e os nomes esculpidos dos mortos. Alguns túmulos têm flores de plástico. CHICO (OFF) Eu vi o Luciano pela última vez no enterro do Velho, acho que já faz dois meses. Não o meu velho, que continua vivo, aliás cada vez mais vivo. Luis Carlos Silveira Velho, um cara que me ensinou muita coisa. O Andrew, é claro, também estava lá. Chico olha para Andrew no momento exato em que estoura o flash de um fotógrafo. CENA 20 - CAMPO DE FUTEBOL - EXTERIOR/DIA DOIS TIMES DE FUTEBOL de adolescentes e um JUIZ esperam a cobrança de um pênalti. O batedor é Chico. O goleiro é ANDREW. Chico ajeita a bola. Andrew chuta a trave para limpar a chuteira. Chico toma distância. Andrew coloca-se no centro do campo. Chico olha para um canto da goleira. Andrew olha para a bola. Chico olha para o outro canto da goleira. Andrew olha para os pés de Chico. Chico e Andrew se olham. Chico corre para a bola. CHICO (OFF) Andrew, hoje todo mundo sabe, não era anchietano. Eu achei que a gente tinha se visto pela primeira vez em 74, na semifinal do Interescolar Pérola, um campeonato de futebol patrocinado por um óleo de soja, que reuniu os times do Colégio Anchieta e da Escola Técnica de Viamão. Andrew jogava no gol. A escola vencedora receberia o troféu no Revista Pérola, um programa de televisão, sábado de manhã. O time deles tinha melhor saldo e jogava pelo empate. A gente teve um pênalti a nosso favor bem no fim do jogo. Eu bati o pênalti. Chico aproxima-se da bola. Andrew flexiona os joelhos. Chico chuta a bola. Andrew salta. A bola dirige-se para o canto esquerdo do gol. Andrew pulou para a direita. A bola continua seu caminho para as redes. Andrew tenta inverter a direção do seu salto. É muito tarde. Andrew estica a perna para a esquerda, inutilmente. A bola aproxima-se das redes. Andrew cai junto ao poste direito. A bola bate no poste esquerdo. O time de Andrew comemora. Chico fica parado, mãos na cintura. Andrew levanta e é abraçado. Luciano dá um tapinha de consolo nas costas de Chico. O juiz apita o final da partida. CHICO (OFF) Nossa amizade futura só se tornou possível porque o time deles foi massacrado na final pelo Colégio Militar, grande campeão do Interescolar Pérola 74. CENA 21 - BAR DA FACULDADE - INTERIOR/NOITE Um bar de faculdade, apinhado de gente e forrado de cartazes. Luciano faz um discurso num megafone. Por trás dele, Chico segura um gravador e, com outro estudante, uma faixa de pano onde está escrito: "ISTO É UMA FAIXA DE PANO". O gravador toca "AMAPOLA". LUCIANO A Aliança Místico-Anarquista Pró Orgasmos e Livre Arbítrio, AMAPOLA, pede um minuto de atenção aos nossos distintos eleitores. Exigimos anistia ampla, geral e irrestrita a todos os condenados por crimes políticos. Exigimos que o professor de editoração escove os dentes antes das aulas. Exigimos que todos os congressos da UNE sejam realizados em cidades com praia. Exigimos a renúncia imediata do presidente dos Estados Unidos da América. Exigimos eleições livres e diretas em todos os níveis. Se nossas exigências não forem atendidas em 48 horas nós ficaremos bastante chateados. Muito obrigado! A platéia ri, vaia e aplaude. Na platéia, Andrew acha graça, mas não muito. Chico, Luciano e seu companheiro de chapa distribuem panfletos, impressos em páginas arrancadas de uma lista telefônica. CHICO (OFF) Eu só reencontrei Andrew na faculdade, em setenta e nove. Eu era candidato a secretário numa das chapas na eleição pro diretório acadêmico. Chico oferece um panfleto a Andrew. Gentilmente, Andrew recusa. CHICO (OFF) Andrew era vice na chapa da situação. CENA 22 - AUDITÓRIO DA FACULDADE - INTERIOR/NOITE O candidato da situação, um BAIXINHO com um cavanhaque, faz um discurso inflamado. Andrew está ao seu lado. BAIXINHO O inimigo mais perigoso não está na direita, companheiros. O inimigo mais perigoso está camuflado de progressista e tenta ridicularizar a luta dos estudantes. Luciano está de pijama e segura um travesseiro. Parte da platéia se diverte. O Baixinho está cada vez mais irado. BAIXINHO Mas esta luta vai continuar. Ao lado dos operários, dos camponeses, das donas de casa, dos funcionários públicos, os estudantes vão continuar resistindo à ditadura militar, ao arrocho salarial e ao ensino alienante. Operários foram presos em São Paulo por lutar pelo direito de greve. (olhando para Luciano) E isso não é engraçado, companheiro. A luta dos camponeses por terra para... LUCIANO Engraçado é chamar alguém de camponês. Camponês usa gorro de lã e ceroula, e mora em Sherwood! BAIXINHO Eu não lhe concedi aparte, companheiro! LUCIANO O seu discurso é importado e a tradução é muito ruim! Aqui nunca ninguém viu um camponês, no Brasil não existe camponês. Chama um agricultor de camponês e ele acerta o seu pé com a enxada. BAIXINHO O seu discurso serve à ditadura, companheiro. O anarquismo é a direita vestida de palhaço. LUCIANO O que serve à direita é a incompetência da esquerda. Os dois gritam ao mesmo tempo. Luciano pega um grande despertador. O despertador toca, aumentando o caos. A platéia vaia, grita e aplaude. CENA 23 - RESTAURANTE UNIVERSITÁRIO - INTERIOR/DIA Chico está terminando de almoçar. Andrew procura um lugar e acaba sentando ao lado de Chico. CHICO Parabéns. Andrew vê Chico. ANDREW Tudo bem? Obrigado. Eu sou só o vice. Vice é quase o mesmo que nada. (pausa) A campanha de vocês foi ótima. É importante que alguém questione a forma como se faz política estudantil. Andrew começa a comer. Pelo jeito está com muita fome. CHICO Desde que não toque no conteúdo. ANDREW O conteúdo é sempre o mesmo: derrubar e começar a construir de novo. CHICO Sempre igual? Será que a política não pode ser feita de maneira mais... divertida? ANDREW A realidade nem sempre é divertida. Você não vai comer o pão? CHICO Não, pode pegar. Andrew pega o pão que Chico não comeu. Parte o pão e começa a comer com o molho da carne. CHICO Você lembra da semifinal do Interescolar Pérola de setenta e quatro? ANDREW Semifinal? Não. Eu lembro da final. CHICO Nosso time jogou contra o teu na semifinal. Foi zero a zero, vocês se classificaram para a final pelo saldo de gols. ANDREW Não lembro. Mas eu lembro que a gente perdeu a final pros milicos. Foi tudo armado. Chico acha graça. ANDREW Você não acredita? O juiz e um bandeirinha eram militares da reserva. CHICO Você acha que a ditadura militar estava preocupada com o resultado do Interescolar Pérola? Eu vi a final. Vocês levaram um banho de bola, cinco a um. ANDREW Veja bem, a imagem que a direita tentava passar dos militares era a de... CHICO Tudo bem, Andrew, não precisa me convencer de nada. A campanha já terminou, vocês ganharam. O Interescolar Pérola também já terminou e vocês perderam. Ou você ainda quer revanche?(pausa) Você ainda joga futebol? ANDREW Não. Eu nunca gostei muito de futebol. Por isso jogava no gol. (pausa) Eu lembrei da semifinal. Você estudava no Anchieta? Chico confirma. ANDREW Lembra de Vila Oliva? CHICO Claro. ANDREW Eu morava lá. Meu pai era o zelador. CHICO Sei. Eu não lembro de você. ANDREW Claro que não. Mas eu lembro de vocês. CHICO Vocês quem, cara pálida? ANDREW Vocês. Os anchietanos. O que eu mais me lembro é que vocês falavam muito alto, vocês gritavam quase todo o tempo. Crianças ricas quando estão felizes gritam muito. (acrescentando) Crianças pobres também, só que é mais raro. CHICO Eu adorava ir na Vila Oliva. A gente ia uma vez por semestre, cada turma. (pausa) Eu ficava esperando o dia, na véspera eu mal conseguia dormir pensando no campeonato de futebol, na viagem de ônibus, nas gurias. Principalmente nas gurias. Chico levanta, pega a bandeja. Andrew vê que Chico vai devolver a bandeja com uma laranja intacta. ANDREW Posso pegar a laranja? CHICO Pode. Nós não vamos comer a laranja. CENA 24 - ENTRADA DE VILA OLIVA - EXTERIOR/DIA Um ônibus escolar ultrapassa o portão da Vila Oliva. O ônibus está cheio de crianças, que gritam muito. O PAI DE ANDREW, um homem alto, moreno, fecha o portão. A seu lado, Andrew, com 11 anos, o ajuda. O ônibus pára e as crianças começam a descer, tremendamente excitadas, gritando e correndo. Os meninos, com uniformes de futebol, dirigem-se ao ginásio. Andrew fica em silêncio, olhando os anchietanos que se afastam. CENA 25 - GINÁSIO DE VILA OLIVA - INTERIOR/DIA Final da manhã. No ginásio, DOIS TIMES disputam uma partida de futebol de salão. Chico e Luciano jogam no mesmo time. O JUIZ é um professor, em trajes civis. Na arquibancada, Emílio está torcendo, ao lado de Carolina. Lisa chega e senta ao lado de Emílio. LISA Você não vai jogar? EMÍLIO Não. Eu não jogo muito bem. LISA E daí? EMÍLIO Acho que eles gostam de ganhar. LISA Ganhar o quê? Aquelas medalhas horríveis? Luciano faz um golaço. O time inteiro corre pro abraço. Carolina e Emílio vibram. Lisa sai correndo, invade o campo e participa da comemoração. Ela gruda em Chico e fala alguma coisa no ouvido dele, sempre fazendo de conta que está festejando o gol. Chico faz uma cara de surpresa. CAROLINA (para Emílio) Essa guria é louca, pirada. EMÍLIO É. Completamente. Lisa volta correndo e senta outra vez ao lado de Emílio. LISA Quanto tá o jogo? EMÍLIO Três a zero. LISA Isso é muito ou pouco? EMÍLIO É bastante. O jogo tá ganho. LISA Legal. (E grita, escandalosamente:) Vamo lá, Chico! Chico está com a bola. Olha para Lisa. Ela está de pé, linda, usando um casaco como se fosse uma bandeira. E ri. É uma bela visão. Chico passa a bola para Luciano e corre para receber. Luciano lança. O zagueiro adversário chega antes e corta. Chico, que vinha correndo, choca-se com ele e cai no chão, cara de dor. O juiz marca a falta. ZAGUEIRO (para o juiz) Não foi nada, seu juiz! Chico está segurando a perna e gritando de dor. Os companheiros de time vêm ver o que aconteceu com ele. O juiz-professor fica preocupado. JUIZ Quê que houve, Chico? CHICO Ai, ai. Tá doendo muito. LUCIANO Não faz onda, Chico. Não foi nada. (E tenta levantá-lo do chão) CHICO (enquanto grita de dor) Minha perna, minha perna! Luciano volta a colocá-lo no chão. O juiz examina a perna. Mais gritos de Chico. JUIZ Acho que não foi nada grave. LUCIANO Levanta aí, Chico, não faz onda. CHICO Não dá mesmo, Luck. Vamos botar o reserva. LUCIANO (surpreendido) Que reserva? Tá louco? O juiz carrega Chico pra fora da quadra. No meio do caminho, Chico fala: CHICO O Emílio. Bota o Emílio. Carolina, Lisa e Emílio vêm pra examinar Chico. LUCIANO Pirou na jogada? CHICO (para Emílio) Entra, Emílio! O jogo já tá no fim. EMÍLIO Eu? CHICO (passando a camiseta para Emílio) Vai lá, entra. Emílio não tem coragem. Mas Lisa dá um empurrão nele. Luciano não está entendendo nada. Mas o juiz já voltou pro campo. A falta precisa ser batida. Luciano chega perto de Emílio. LUCIANO Fica na defesa. Luciano bate a falta. A bola bate na barreira e vai no pé de Emílio. Ele está tão nervoso que não consegue fazer absolutamente nada. O time adversário toma a bola facilmente e faz o gol. A torcida adversária vibra. Luciano fica louco. Vai correndo até Chico, que continua deitado. LUCIANO Volta, cara. CHICO Não dá. Tá doendo muito. LUCIANO Você me paga! (E vai correndo até Emílio. Grita pra ele:) Vai pro ataque! E não sai de lá! Carolina está preocupada com Chico. CAROLINA Será que você não quebrou a perna? CHICO Não. No máximo, rompi os ligamentos. LISA Eu sei fazer massagem pros ligamentos. Lisa começa a massagear a coxa de Chico.) CAROLINA (desconfiada) Ligamentos não é no joelho? CHICO Também tem na coxa. Tem ligamento no corpo todo. Ai, ai! Cuidado, Lisa. O jogo continua. Emílio está parado, sozinho, do outro lado do campo. O resto do time agüenta a pressão dos adversários. Então Luciano corta com a cabeça uma cobrança de escanteio e a bola vai direitinho no pé de Emílio. O goleiro do outro time sai do gol, desesperado. Emílio não sabe o que fazer. Mas decide: é agora! Fecha os olhos e dá um bico. No ângulo. Golaço. O time corre pro abraço. Lisa invade o campo outra vez. Chico levanta e corre atrás, esquecendo de mancar. Pula no bolinho. Carolina não entende nada. Emílio chora de alegria. CENA 26 - BEIRA DO RIO - EXTERIOR/DIA Umas pedras, na beira do rio. É um local de acesso difícil, pois é preciso descer o morro por um caminho em declive acentuado. Chico e Lisa estão de pé, lado a lado, encostados numa pedra. Ele ainda está com o fardamento do jogo. Ela soltou o cabelo e está ainda mais linda. CHICO Você prometeu. LISA Prometi. CHICO Então cumpre. LISA Você pensou que eu ia dar pra trás? CHICO Não sei... Essas coisas... LISA (cortando) Se eu falei, eu cumpro. Lisa levanta a blusa devagar, mostrando os seios. Chico olha para eles, completamente abobado. LISA Gostou? São meio pequenos, né? CHICO Não. São bonitos. Muito bonitos. Lisa chega um pouco mais perto de Chico. LISA Eu prometi que te deixava pegar. Chico está paralisado. Não consegue nem levantar a mão. Lisa percebe o estado de Chico e sorri. LISA Eu te ajudo. Pega a mão direita de Chico e a leva até os seios. Chico sua. Lisa larga a mão de Chico, que imediatamente a recolhe. Ele está grudado numa pedra, todo encolhido. LISA (puxando a blusa de volta) Bom, eu cumpri a minha palavra. (pausa) E sabe, Chico, até que eu gostei. CHICO Eu também gostei. LISA Nem parece. CHICO Eu gostei. Gostei muito. LISA Vamos voltar? CHICO Não. LISA O que nós vamos ficar fazendo aqui? CHICO Eu quero um beijo. LISA Isso eu não prometi. CHICO (ganhando coragem e chegando perto) Mas eu quero. LISA Não sei... Você não é meio namorado da Carolina? CHICO Não. LISA Então tudo bem. Lisa fecha os olhos, esperando um superbeijo. Mas Chico dá um beijinho muito recatado. Lisa fica decepcionada, mas disfarça. CHICO Agora vamos voltar. Chico sai, tão feliz que quase esquece Lisa. Ele sobe a longa escadaria correndo. Lisa vai ficando para trás. Lisa ouve um ruído, percebe que há alguém no mato. LISA Quem está aí? Ninguém responde. Lisa entra no mato por uma trilha. Ouve passos de alguém que se afasta. Lisa chega numa clareira. Há uma grande pedra de onde se avista a beira do rio, o lugar onde Lisa estava com Chico. Não há ninguém ali, e é impossível seguir adiante. Lisa se volta e dá de cara com Carolina. Ela tem os olhos vermelhos e tenta esconder o choro. CAROLINA Oi, Lisa. O pôr-do-sol está lindo. Você gosta mais do nascer ou do pôr-do-sol? Lisa fica confusa, surpresa com a pergunta de Carolina. LISA Não sei... acho que são iguais. CAROLINA Iguais? Imagine! Claro que não são iguais. O pôr- do-sol é muito mais vermelho, o nascer do sol é mais branco. E o pôr-do-sol é mais devagar, não sei por que, mas é. Eu lembro de um dia, na praia, a gente... Lisa segura o braço de Carolina LISA Carolina. Ele é só um guri bobo. Não precisa ficar triste por causa dele. Carolina fica em silêncio. Seca os olhos na manga da blusa. Lisa passa os braço sobre o ombro de Carolina. LISA Vamos voltar, tá ficando escuro. CENA 27 - AEROPORTO - INTERIOR/DIA Carolina toma um refrigerante no balcão do bar do aeroporto. Chico, Luciano e Lisa estão parados, sem assunto. LISA A temperatura externa de um vôo de jato chega a quarenta graus abaixo de zero. Todos concordam, sem muito interesse. Ficam em silêncio. CAROLINA Eu sei que vocês não vão escrever. Todos reagem ao mesmo tempo. LUCIANO Ai, meu deus... CHICO Carolina, não começa com esse papo de novo. A gente já disse que vai escrever. CAROLINA Eu sempre digo que vou escrever e nunca escrevo. LUCIANO É que você é uma mentirosa, cínica, falsa e trapaceira. E nós não. A MÃE DE CAROLINA se aproxima. Ao fundo, o PAI DE CAROLINA, um coronel fardado, se despede de outros militares. MÃE DE CAROLINA Agora nós temos que ir, filha. Carolina pega sua sacola. Todo mundo se despede. CAROLINA Dessa vez eu vou escrever. Eu já vou começar a escrever agora, no avião. CENA 28 - RUAS DA CIDADE - EXTERIOR/DIA Algumas ruas do centro da cidade às seis e meia da manhã (no verão). Ainda há pouco movimento, mas já tem gente indo pro trabalho. O sol está atrás dos edifícios. CENA 29 - BANCA DE JORNAL - EXTERIOR/DIA Chico, cara de sono, compra um jornal que exibe a manchete: "COMEÇA O VESTIBULAR". Chico sai caminhando, lendo o jornal. CENA 30 - QUARTO DE LUCIANO - INTERIOR/DIA O rádio-relógio está funcionando no quarto de Luciano, que dorme pesadamente. LOCUTOR (OFF) ...o épico da família Terra-Cambará. E agora as últimas dicas para a prova de português, com o professor Dalbém. PROFESSOR DALBÉM (OFF) Sempre há pelo menos duas questões de acentuação no vestibular Unificado. Lembre que todas as proparoxítonas são acentuadas. As paroxítonas terminadas em ditongo crescente... Luciano continua dormindo. Na mesinha de cabeceira, um envelope de comprimidos. Três comprimidos já foram usados. A MÃE DE LUCIANO, de camisola, entra no quarto. Desliga o rádio- relógio. Sacode Luciano, mas ele não reage. Então ela percebe o envelope de calmante. Fica apavorada e sai do quarto. CENA 31 - PARADA DE ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA Chico, na parada de ônibus, lê o jornal. Olha o relógio, olha para o fim da rua, volta a ler o jornal. A partir daí, intercalam-se as cenas *** e ***. O pai e a mãe de Luciano no quarto dele. A mãe está com um copo de água na mão. Joga uns pingos no rosto de Luciano, que reage, mas muito devagar. PAI Eu avisei que era perigoso dar calmante pro guri. MÃE Um só não tinha problema. Luciano! Luciano, meu filho! PAI (sacudindo Luciano com força) Acorda, desgraçado. Chico está na parada de ônibus. Um ônibus passa, mas ele não pega. Olha para o relógio. Sai da parada. O telefone toca na sala. A mãe vai atender. MÃE DE LUCIANO (nervosa) Alô? É Chico, que está num telefone público. CHICO Dona Alice? Eu estou esperando o Luciano, ele já saiu de casa? MÃE Ele está no banho, mas ainda não acordou. Vai indo, meu filho. Nós vamos levar ele de carro. No banheiro da casa de Luciano. Ele está de pé, no box, pelado, amparado pelo pai. A água vem forte, molhando o pijama do pai. PAI (furioso) Acorda, Luciano! Luciano, agora um pouco mais acordado, com a água correndo pelo rosto, olha para o pai, faz uma cara de espanto e pergunta: LUCIANO Pai, por que você tá tomando banho de roupa? Chico no ônibus. Olha para um papel, onde estão rabiscadas algumas coisas. Dá pra ver que são regras de acentuação. CHICO (murmurando) Paroxítonas terminadas em ditongo... Luciano, vestido, mas ainda muito sonolento, está sentado na mesinha da copa. O pai enfia uma xícara de café preto na sua boca. A mãe passa manteiga numa fatia de pão. PAI Sabe quanto eu gastei no cursinho desse débil-mental? MÃE Calma, Guilherme. Ele vai fazer a prova. Não vai, meu filho? LUCIANO (arrastando as palavras) Proparoxítonas... (longa pausa) todas. Paroxítonas... as que terminam em ditongo crescente... ditongo... crescente... (fecha os olhos e dorme sentado) CENA 32 - ENTRADA DE COLÉGIO - EXTERIOR/DIA Um colégio grande, com uma porta enorme, e alguns VESTIBULANDOS entrando, em passo acelerado. O PORTEIRO faz sinal para que eles se apressem. Chico está parado, do lado de fora de porta, esperando, nervoso. Olha para o relógio. Aproxima-se do porteiro. CHICO Quanto falta? FISCAL Um minuto. Entra logo. Um carro estaciona. O pai de Luciano dirige. O próprio está no banco da frente, dormindo. A mãe, nervosíssima, está no banco de trás. Chico vai correndo até o carro para ajudar. Mas Luciano tem que ser praticamente arrastado. O porteiro não deixa os pais de Luciano entrarem. A porta é fechada. Chico não agüenta o peso de Luciano. Os dois escorregam até ficar sentados no chão. Chico pede ajuda. Uns RAPAZES se prontificam. Levam Luciano até a sala dele, sob os olhares espantados dos OUTROS ESTUDANTES. CENA 33 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA Chico, com a prova à sua frente, murmura. CHICO Paroxítonas terminadas... CENA 34 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA Luciano, com a prova à sua frente, dorme sentado. CENA 35 - RUA - EXTERIOR/DIA Chico olhando para a frente. Surge uma mão com um pincel. Lambuzam a cara de Chico com tinta vermelha. Depois derramam um monte de talco no cabelo. Surge uma mão com uma tesoura, que corta uma mecha do cabelo de Chico. Mais tinta. Lambança geral. CENA 36 - JUNTA DE ALISTAMENTO - INTERIOR/DIA Luciano está sentado a uma mesa. À sua frente, um SARGENTO. SARGENTO QUER servir? LUCIANO Não. SARGENTO Por quê? LUCIANO Eu tenho que estudar. SARGENTO (enquanto olha uma ficha à sua frente) Tem o comprovante de matrícula na faculdade? LUCIANO Não. SARGENTO Você é arrimo de família? LUCIANO Não. SARGENTO Tem algum problema físico? LUCIANO Asma. Já entreguei o atestado. SARGENTO Asma? Sabe quantos caras com asma eu já entrevistei hoje? Doze. Tem uma epidemia de asma na cidade. Asma e pé-chato. Você é o décimo-terceiro. Sabe o quê que eu acho? Que vocês não querem servir a pátria! (Carimbando a ficha) Exame médico na quinta. E não falta. (Ameaçador) Se você não vem... a gente busca em casa. CENA 37 - SALA DE EXAMES - INTERIOR/DIA Luciano, pelado, ao lado de outros CINCO CARAS, também pelados. Um OFICIAL-MÉDICO passeia entre eles, com um estetoscópio na mão. Pára na frente de Luciano. Ausculta o pulmão. OFICIAL-MÉDICO Asma? LUCIANO Sim, senhor. Desde que eu tenho dois anos. OFICIAL-MÉDICO (bem alto) Todos vocês têm asma? PELADO 1 Eu tenho bronquite alérgica. OFICIAL-MÉDICO (auscultando o pelado 1) E tem mesmo! Vai, meu filho, te veste. (O pelado começa imediatamente a se vestir) Dá um abraço no doutor Mânica. E vê se cura essa bronquite, viu? O oficial-médico continua a passear entre os pelados. Ausculta um pouco, manda tossir, manda levantar os braços, manda mostrar a língua. Finalmente pára bem no meio da fila e discursa: OFICIAL-MÉDICO Cinco rapazes fortes, bem-nutridos, com todos os dentes, sem nenhuma doença venérea. Ideais para o Exército. Mas vocês têm asma. Algum de vocês, apesar de ter asma, quer servir? (Silêncio total) Não? Que pena. Sabe, eu já vi muito soldado curar asma aqui no 18. Sargento, faltam quantos recrutas pra completar o contingente? SARGENTO Um, capitão. OFICIAL-MÉDICO Um? Só um? Que pena. Quem será que vai curar a asma graças ao Exército Brasileiro? CENA 38 - BARBEARIA DO EXÉRCITO - INTERIOR/DIA Uma mecha de cabelo cai no chão, misturando-se a um monte de outras mechas, de todos os tamanhos e cores. Uma máquina de cortar cabelo, zunindo como um marimbondo furioso, faz o seu serviço. O som irritante se mistura ao Hino do Exército, assoviado com maestria pelo BARBEIRO. Acompanhamos, em detalhe, uma das "raspadas", que acaba revelando o rosto de Luciano, estático, olhando para o infinito. Ao seu lado, mais uns TRINTA ADOLESCENTES esperam a vez. O barbeiro desliga a máquina e pára de assoviar quando considera o corte pronto. Luciano levanta da cadeira e é logo substituído por outro RECRUTA. A máquina volta a zumbir. O barbeiro recomeça o Hino do Exército. CENA 39 - RUAS PRÓXIMAS AO AEROPORTO - EXTERIOR/DIA Um coturno pequeno atravessa a rua. Um tênis Adidas com três listras azuis desce de um táxi. Um coturno bem grande desce de um ônibus. CENA 40 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA O primeiro coturno, o pequeno, já está entrando no saguão do aeroporto. A câmara sobe, revelando uma calça jeans preta com umas tachinhas. Sobe mais um pouco, mostrando a bunda de Lisa. Um remendo dos Sex Pistols adorna a paisagem. Agora vemos o tênis Adidas, também no saguão. Quando a câmara sobe, revela uma pasta de plástico com a inscrição "COMUNICAÇÃO", na mão de Chico. O coturno grande também está no saguão. A câmara sobe por uma calça verde-oliva, até a mão de Luciano, que segura a "cobertura" de passeio. Voltamos para Lisa, mais especificamente para as suas costas. Jaqueta de couro preta. A câmara sobe até a nuca, que está quase raspada. Lisa exibe um corte "meio-moicano" azul. Lisa afasta-se da câmara, rumo ao setor de desembarque. Agora estamos nas costas de Chico. Ao subir, a câmara mostra que o seu cabelo está quase a zero. Chico afasta-se da câmara. Finalmente, as costas de Luciano. A câmara sobe e mostra um típico corte militar (nuca raspada e um pouco de cabelo em cima). Luciano afasta-se da câmara. Um plano mais aberto de cima. Os três encontram-se perto do desembarque. CENA 41 - PÁTIO DO AEROPORTO - EXTERIOR/DIA Final da escada do avião, no nível da pista. Um sapato feminino entra em quadro por cima. Vemos depois as pernas de Carolina. E, a seguir, a sua barriga, bastante proeminente, uns oito meses de gravidez. Vemos o rosto de Carolina, tenso, enquanto ela caminha rumo ao setor de desembarque. Entra no prédio do aeroporto. CENA 42 - AEROPORTO/SETOR DE DESEMBARQUE - INTERIOR/DIA Carolina sai do setor de bagagens e olha em frente. Três carecas abanam para ela. Ela não reconhece de imediato. Olha pra trás, achando que eles podem estar abanando para outra pessoa. Mas não há ninguém. Ela olha outra vez e sorri: são eles. Os três a abraçam. Também estão surpreendidos pela barriga dela. CAROLINA (rindo) Meu Deus, quê que houve com vocês? Epidemia de piolho? LUCIANO (fazendo continência) Soldado cento e trinta e dois, Luciano, da Companhia de Comando da Terceira Região Militar. CHICO Aluno zero sete nove três, barra setenta e sete. Bixo. LISA Sem número. Você gosta de azul? Os quatro se abraçam mais uma vez, emocionados, fazendo um bolinho que atrapalha a saída dos outros passageiros. CENA 43 - BERÇÁRIO DO HOSPITAL - INTERIOR/DIA Nas janelas do berçário do hospital, Luciano e Chico abanam para um bebê (José). Lisa se junta a eles. Ficam os três fazendo gracinhas. Uma AUXILIAR DE ENFERMAGEM empurra o carrinho para fora da sala. Os três saem da janela. No corredor, brigam para decidir quem empurra o carrinho, apesar dos olhares repressores da auxiliar de enfermagem. Chegam à porta do quarto de Carolina. Entram. Carolina está na cama. Beijos generalizados. A auxiliar de enfermagem pega o bebê e o coloca no colo de Carolina, para que ela dê de mamar. Mas o bebê não parece muito a fim. AUXILIAR DE ENFERMAGEM Se a senhora precisar, é só me chamar. Tem que insistir. Ele é meio preguiçoso. (E sai do quarto) LUCIANO Vai, meu irmão, aproveita que essa comida aí é boa. CHICO É, aproveita enquanto você não tem que engolir a bóia do quartel. CAROLINA Coitadinho... (para o bebê) Você não vai ser bobo que nem o tio Luck, vai? CHICO É, pelo amor de Deus, já chega um panaca na turma. LUCIANO Falando em panaca, eu ainda tenho que passar em dois bancos antes de voltar pro quartel. LISA É assim que você serve à pátria? Indo em banco? LUCIANO Não, normalmente eu lavo banheiro e sirvo cafezinho. LISA Por mim, dava pra matar todos os milicos do mundo. (Ela percebe que falou besteira e tenta consertar.) Quer dizer, tem exceções... Tem os caras que apesar de serem milicos... CAROLINA Não enrola, Lisa. LISA Não... É que o teu pai, por exemplo, eu sempre achei que ele... CAROLINA (cortando) O meu pai, por exemplo, é um grande filho-da-puta. Fica um clima pesado no quarto. CAROLINA Eu descobri muitas coisas no Rio. Descobri o que o meu pai realmente faz no Exército. (pausa) Acho que, pessoalmente, ele nunca torturou ninguém. Mas nem isso eu tenho mais certeza. (pausa) Vocês não me perguntaram quem era o pai da criatura. LUCIANO Se você não falou é porque não interessa. CAROLINA Interessa pra mim. (olhando para o bebê) E talvez interesse pra ele. (pausa) Saí de casa, fui morar com uma colega do colégio. Aí eu conheci um cara super legal, me apaixonei por ele, pensei que ele era o cara da minha vida, fiquei grávida. E descobri que o cara conhecia muito bem o meu pai. (pausa) É isso. O pai dele (e aponta outra vez para o bebê) é um milico filho-da-puta, que foi mandado pelo avô milico filho-da-puta pra me vigiar. Chico, Lisa e Luciano não sabem o que dizer. Estão surpresos demais. CAROLINA Ele fugiu, com medo que o meu pai acabasse com ele. O que seria bem possível. E eu não quis abortar, apesar de todas as ameaças. Fugi de novo, pra cá. E encontrei vocês. Final feliz. Chico, Lisa e Luciano continuam mudos. Carolina sorri. CAROLINA Eu tenho sorte. Lisa segura a mão de Carolina. Chico e Luciano ficam olhando o filho de Carolina. CHICO Neto e filho de milicos filhos-da-puta. Tem tudo pra ser boa gente. LUCIANO Provavelmente ele não vai ser milico. CHICO A não ser que ele durma demais. LUCIANO Provavelmente o filho dele vai ser milico. CHICO A criatura já tem nome? CAROLINA José. CHICO Por que não José Francisco? LUCIANO Ou José Luciano? CAROLINA Que horror! LISA Já sei! José de Anchieta! LUCIANO Evidente! CHICO Óbvio! CAROLINA José de nada, só José. José do que ele quiser. LUCIANO É muito comprido. CENA 44 - FRENTE DA CASA DE LISA - EXTERIOR/NOITE O carro de Chico pára em frente à casa de Lisa. Ele desce, apressado, e caminha em direção à casa. A porta da casa de Lisa se abre. Lisa sai, seguida pela mãe, DILMA, que está segurando alguma coisa na mão. Chico pára. A mãe pega o braço de Lisa, ansiosa. Imediatamente começam a discutir. Chico não consegue ouvir direito. Só chegam até ele algumas palavras como "doente" e "velha". Lisa vem caminhando em direção a Chico. A mãe vem atrás. CHICO O que foi, Lisa? LISA Vamos embora daqui. Lisa abre a porta do carro, entra e fecha a porta violentamente. Dilma se debruça na janela. LISA Vamos embora. DILMA Me respeita! Eu sou sua mãe! Chico percebe que Dilma está drogada, ou bêbada. LISA (olhando fixamente para a frente) Chico, vamos embora! Chico entra no carro. CHICO A sua mãe tá doente? DILMA Tô. Tô doente, e a minha própria filha se recusa a me ajudar. LISA (sempre olhando para a frente) Porra, Chico, arranca logo essa merda de carro! DILMA Olha pra mim, olha pra mim! LISA Antes te olha no espelho. Chico, por favor! Chico arranca. Lisa esconde o rosto entre as mãos. Chico fica olhando a mãe de Lisa pelo retrovisor. Um MENINO vem atravessando a rua de bicicleta. Chico, que está olhando para trás, não vê. Lisa ergue os olhos. LISA Cuidado! Chico buzina e dá uma freada brusca. A bicicleta passa raspando. Chico pára o carro, tentando se acalmar. Olha para Lisa e para a mãe de Lisa, na calçada. CHICO Será que eu não posso ajudar em alguma coisa? LISA Você sabe achar veia no braço? Chico fica alguns segundos olhando para Lisa e, pelo espelho, para Dilma, ainda na calçada. CHICO Não. LISA Vamos embora daqui, Chico. O carro se afasta. CENA 45 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Lisa está deitada no sofá da sala do apartamento de Chico. Na parede, pôsters de cinema, uma prateleira feita com tijolos, um som. No balcão da cozinha, Chico faz café. LISA Ela começou a se picar há pouco tempo. Antes, só cheirava. Eu tô com medo, é perigoso. CHICO Tem um centro médico em São Paulo, no interior, eu acho, onde trabalha um cara muito legal... LISA Ela não precisa de médico. Precisa de alguém que cuide dela, que trate ela que nem criança. Minha mãe precisa de uma mãe. CHICO Todo mundo precisa. Chico vem sentar no sofá. Lisa deita no colo dele. Chico começa a acariciar os cabelos de Lisa. LISA Hoje eu fui na casa da Carolina. CHICO Ela já foi pra casa? LISA Desde terça. (pausa) Vendo a Carolina com o José, me deu uma puta inveja. Ela passou por tanta merda, tanta coisa ruim, e a impressão que me deu é que ela tá tranqüila, que a vida dela tá recomeçando agora, e que ela se transformou. E isso é muito bom. Chico pára de acariciar Lisa. LISA Continua. Chico volta a acariciar. Toma coragem. Aproxima-se e dá um beijo em Lisa. Leve, mas quente. Afasta-se, como quem perdeu a coragem. LISA Continua. Chico está indeciso. Mas decide prosseguir. Mais um beijo. Desta vez, Lisa toma a iniciativa logo que os lábios se tocam. É um beijo de verdade. Longo e molhado. Afastam-se. Chico estende a mão devagar. Primeiro acaricia os seios de Lisa por cima da camiseta. Depois, coloca a mão na barra da camiseta e vai subindo o tecido devagar. Descobre os dois seios. Inclina-se e beija um, depois o outro. Afasta-se outra vez. Olha para Lisa. Lisa tira de vez a camiseta. LISA Continua. Mas Chico está paralisado. LISA Continua. Como Chico não reage, Lisa pega a mão direita de Chico e a conduz até o cinto da sua (dela) calça. LISA Continua. (E ajeita-se no sofá, facilitando o trabalho de Chico) Chico abre o cinto. Depois desabotoa a calça. Lisa estende as pernas. Chico tira os coturnos dela. Puxa a calça pra baixo até ela sair. E fica olhando Lisa, que agora está só de calcinha. LISA Continua. Chico inclina-se. Novo beijo longo. Depois, Chico vai lentamente - e sempre beijando - conduzindo sua cabeça para baixo. O rosto de Lisa, de olhos fechados, feliz. Mas, de repente, abre os olhos, insatisfeita e ameaça: LISA Se eu tiver que dizer "continua" mais uma vez, só mais uma vez, eu vou embora. Pouco depois, Lisa volta a fechar os olhos. A câmara aproxima-se muito, o mais possível, dos seus lábios. E então ela murmura, tão baixinho que só os espectadores do filme podem ouvir: LISA Continua, continua, continua... CENA 46 - ESCOMBROS DE QUARTEL - EXTERIOR/NOITE Ruínas do que já foi um quartel no centro da cidade. Uma grande placa avisa: "ÁREA MILITAR, NÃO ULTRAPASSE". Da construção original, sobrou só um pequeno quarto, onde ficam dois beliches utilizados como dormitório da guarda. Há uma casamata, bem na esquina da rua. Luciano, de guarda na casamata, tenta ler "Um Estranho numa Terra Estranha", edição de bolso, mas o sono não deixa. Ele guarda o livro. Tira o carregador do FAL e olha as balas. Ele está fazendo isso quando surge o SARGENTO-RONDA. Luciano assume a posição de "sentido" e se apresenta. LUCIANO Soldado cento e trinta e dois, Luciano, da Companhia de Comando da Terceira Região Militar. SARGENTO (olhando para as balas) Tudo em ordem, soldado? LUCIANO Serviço sem alteração, sargento. SARGENTO Por que tá mexendo no FAL? LUCIANO Eu estava verificando a munição, sargento. O Sargento pensa em dar uma mijada, mas desiste, não vale a pena. SARGENTO Boa noite. (Faz continência e sai.) LUCIANO (respondendo à continência) Boa noite, sargento. (Fica olhando o sargento se afastar.) Luciano começa a recolocar as balas no carregador. Coloca duas. Quando está colocando a terceira, sente uma mão se enfiando pelo meio das suas pernas. É RODRIGUES, milico como ele, mas com um ar mais "marginal". Luciano se vira rápido, em posição de defesa. RODRIGUES Ah, deixa eu segurar o seu FAL, deixa. LUCIANO Porra, Rodrigues, não enche o saco. RODRIGUES Você sabe o quê que o Joaquim disse quando eu acordei ele? (com sotaque de colono alemão) Eu pedi que me acordassem quinze minutos antes! E faltam só cinco! (Pára de imitar) Que cara bem trouxa! LUCIANO Deixa o guri em paz, Rodrigues. Rodrigues percebe um casal no outro lado da rua. Ela é Marli, uma prostituta; ele é SIDMAR, um prostituto. RODRIGUES Olha ali a Marli! (Assobia) Ô Marli, vem aqui. O casal acena e atravessa a rua, na direção da casamata. LUCIANO Pelo amor de Deus, Rodrigues. Não vai fazer besteira. RODRIGUES Fica frio, militar. (O casal chega) Marli, eu tô me sentindo tão sozinho... MARLI Isso aí a gente resolve rápido. SIDMAR E eu podia ajudar... LUCIANO Rodrigues... RODRIGUES (Para Sidmar) Sidmar, se você botar o pé aqui, eu juro que te enfio essa baioneta no rabo, entendeu? SIDMAR Ai, que morte gloriosa. RODRIGUES Entra, Marli. Nesse momento, vindo da casamata, chega JOAQUIM, um milico alto, alemão, com ar estúpido e desengonçado. JOAQUIM O que está acontecendo? RODRIGUES Não te mete, Joaquim. JOAQUIM Eu não vou permitir que... RODRIGUES (já entrando, de mãos dadas com Marli) Não enche, Joaquim. JOAQUIM Alto! Alto! Eu vou denunciar, Rodrigues. RODRIGUES (OFF) (gritando) Experimenta, militar, pra ver o que acontece. LUCIANO (suspirando) Fica frio, Joaquim. Não vale a pena. O ronda já passou. Assume o posto que eu vou dormir. Luciano sai, entra no alojamento. Joaquim fica sozinho com Sidmar. SIDMAR Não fica triste, querido. JOAQUIM Some daqui. SIDMAR Tu é do interior? JOAQUIM Some. SIDMAR Aposto que tu é do interior, que nem eu. Eu sou de Santana, mas caí na vida em Bagé. JOAQUIM (tirando o FAL do ombro e engatilhando) Some, já! SIDMAR Ai, esse barulho, que coisa máscula. CENA 47 - ALOJAMENTO - INTERIOR/NOITE No interior do alojamento, Luciano tenta dormir, mas Rodrigues está trepando com Marli e os dois fazem muito barulho. LUCIANO Pô, Rodrigues, eu quero dormir. RODRIGUES Ele quer dormir, Marli. Não faz escândalo. E os dois se calam por um instante. RODRIGUES Ai, como o exército é bom! Marli começa a rir. Luciano vira-se na cama. CENA 48 - ESCOMBROS DO QUARTEL - EXTERIOR/NOITE Sidmar está bem perto da casamata. Joaquim está com o FAL apontado para ele, o olho na mira. JOAQUIM (destrava o FAL) Se você der mais um passo, eu atiro. SIDMAR Tu não ia fazer isso comigo... Olha, eu não vou fazer nada de mais. Eu prometo. A gente não pode só conversar? JOAQUIM Eu tô avisando, paisano, eu tenho instruções claras para ... Mas a pressão do dedo já é suficiente e o FAL dispara. Sidmar é atingido bem no meio da testa e cai. Luciano vem correndo. Rodrigues e Marli se vestem, apavorados. Pouco depois, também chega o sargento-ronda. Todos ficam em volta do cadáver. Joaquim está branco, em estado de choque. Luciano fica paralisado, olhando para o corpo. RODRIGUES Sargento, essa bicha também tentou entrar quando eu tava na hora. Eu mesmo alertei o Joaquim para tomar cuidado. Inclusive ele já tinha roubado uns tijolos. MARLI (chorando) O Sidmar nunca roubou ninguém. SARGENTO (para Joaquim) O que aconteceu, soldado? JOAQUIM (lívido, quase uma estátua) Ele queria entrar. Eu matei o cara, sargento. RODRIGUES Sargento, eu assisti tudo. O cara se jogou em cima do Joaquim. (abaixando-se) Inclusive ele tava segurando esse tijolo aqui. Rodrigues pega um dos muitos tijolos no chão. O sargento pega o tijolo e examina. SARGENTO Eu vou fazer um relatório. Soldado Joaquim, me acompanhe. Soldado Rodrigues, assuma o serviço. RODRIGUES Sim, senhor. SARGENTO Não mexam no corpo. O sargento sai, com o tijolo na mão, acompanhado de Joaquim. LUCIANO (olhando para o cadáver) O Joaquim errou todos os tiros no treinamento. A pior pontaria da companhia. RODRIGUES (acendendo um cigarro e abraçando Marli, que chora baixinho) Treino é treino. Guerra é guerra. Na guerra o sujeito se supera. Luciano fica olhando Sidmar sangrar entre os tijolos. CENA 49 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA Luciano está em sua mesa numa sala de redação. É um lugar meio decadente, com obras incompletas, móveis improvisados e velhas máquinas de escrever. Luciano pega, na gaveta, um saco plástico. Dentro do saco, um tijolo. O saco está lacrado e tem várias etiquetas do exército. LUCIANO O tijolo, prova número um do inquérito policial militar número dez mil quatrocentos e trinta e seis, barra setenta e nove, que obviamente não deu em nada, roubado da sede da auditoria pelo soldado Luciano de Almeida. Luciano põe sobre a mesa um roteiro. LUCIANO "O Tijolo", roteiro inédito de Luciano de Almeida, para caso especial de televisão a ser dirigido por Francisco Freire. A Carolina faz a Marli. O Abraão pode ser o Sidmar. Chico pega o roteiro, folheia. LUCIANO Eu já contei pro Velho, ele achou interessante, que é o máximo que ele acha de qualquer coisa. O problema é o custo. CHICO Por que você não dirige? LUCIANO Por que eu não quero ser diretor, nem jornalista, nem trabalhar em televisão. CHICO E o que você está fazendo aqui? LUCIANO Juntando dinheiro para abrir uma padaria. Já tenho até um sócio uruguaio. Pra abrir uma padaria um sujeito precisa de um sócio uruguaio. Chico acha graça. LUCIANO É sério. O VELHO, um sujeito de uns quarenta e cinco anos, aparência cansada, abre a porta que dá para a sala de redação. Faz um sinal para Luciano. Ele levanta. LUCIANO Vamos lá. Cadê a fita? Chico mostra uma fita de vídeo. CENA 50 - FAZENDA DE SOJA - EXTERIOR/DIA Fotos de uma pequena propriedade rural. Uma FAMÍLIA DE COLONOS alemães posa pra foto em frente da casa. Detalhe da foto mostra um menino de doze anos, UBIRAJARA. CHICO (OFF) Em 1968 esta pequena propriedade rural produzia milho, mandioca, alface, tomate e batata. Ubirajara tinha nove anos. Imagens da fazenda hoje, coberta de soja. CHICO (OFF) Dez anos depois, o pai de Ubirajara morreu. A fazenda ficou para os cinco filhos, que resolveram plantar soja. Depoimento de UBIRAJARA, hoje, com vinte e poucos anos. Fala dos custos de produção, das dificuldades em pagar o financiamento para o banco e da sua decisão de vir para Porto Alegre. Ubirajara no ônibus, a caminho de Porto Alegre. CHICO (OFF) Todos os anos, milhares pequenos agricultores expulsos do campo vêm para Porto Alegre. Trazem na bagagem algumas roupas, nenhum dinheiro e o sonho de uma vida melhor. Ubirajara trabalhando na construção de um prédio. Ubirajara num bar, com amigos. Ubirajara, a mulher grávida e um filho pequeno, na frente de um barraco. CHICO (OFF) Ubirajara mora na Restinga Velha, num barraco de uma peça. Sua mulher, Regina, trabalha como doméstica. Seu filho Ricardo, de seis anos, vende marcela na rua, para ajudar no orçamento. Regina está grávida. Depoimento de Ubirajara: "Eu quero voltar". Edição de vários depoimentos de COLONOS, no interior, e de MORADORES DA VILA. Os colonos falam da vontade de vir para Porto Alegre. Os moradores da vila dizem que querem voltar para o interior. CENA 51 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/DIA Luciano desliga o vídeo e tira a fita. Entrega para Chico. O VELHO está sentado em uma velha escrivaninha, cheia de fitas de vídeo e papéis. Um jornal está aberto sobre a mesa. Um enorme cinzeiro está cheio de baganas de cigarro. O Velho acende mais um. Durante todo o diálogo ele divide a atenção entre Chico e o jornal. VELHO (não muito animado) Interessante. Você já sabe o salário? CHICO O Luciano me disse. Tudo bem. VELHO E o horário? CHICO Madrugada, tudo bem. VELHO (para Luciano) O Andrew já terminou a edição? LUCIANO Deve estar terminando. VELHO Diz pra ele dar uma chegada aqui. Luciano sai. VELHO A audiência do jornal é mínima, mas sempre tem alguém que acorda às sete da manhã e liga a tevê. O patrocinador principal é uma revenda de tratores, o jornal sempre tem matérias de agricultura, previsão do tempo, essas merdas. A editora chefe é a Dona Miriam Junqueira, conhece? Chico faz que não. VELHO Ninguém conhece, nem o marido. Ela dorme às sete, chega na tevê às quatro, volta pra casa ao meio dia. Ela não dá a mínima pro texto das matérias, desde que não tenha três linguodentais fricativas na mesma frase. Eu já vi ela trocar a frase "os assaltantes são sete" por "os ladrões eram oito". É boa gente. Chico acha graça. Andrew, com Luciano, entra na sala. VELHO O apresentador do jornal é Rubens Ribeiro, o imbecil mais bem penteado da cidade. Boa gente também. (pausa) Andrew, este é o Chico. ANDREW A gente já se conhece da faculdade. Tudo bem? Cumprimentam-se. VELHO O Chico vai segurar a outra alça da mala. ANDREW Já avisou das linguodentais fricativas? VELHO Já. (para Chico) Passa no departamento de pessoal pra acertar tudo. Tem certificado de reservista? CHICO Tenho. VELHO Meu pai dizia que tudo que um ser humano precisa é um pênis, um emprego e um certificado de reservista. LUCIANO Então tá tudo em ordem. Chico fica esperando mais alguma instrução. VELHO É isso aí, pode ir. (pausa) Você já leu Dante? Chico faz que não. VELHO Na porta do inferno estava escrito: "Aos que entram, esqueçam suas esperanças". CENA 52 - VILA DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR/DIA Seqüência sem diálogos. Kombi da TV estaciona na frente de um bar, numa vila pobre de periferia. A kombi é cercada por CRIANÇAS. Chico e Andrew descem da kombi. Com eles, um CINEGRAFISTA, um OPERADOR DE VT e o MOTORISTA. O motorista desce e entra no bar. Andrew está de terno e gravata e segura o microfone. Chico dá instruções ao câmara. Um CASAL vem falar com Andrew. Andrew reconhece o homem, cumprimentam-se. Andrew entrevista o casal. O homem aponta para o esgoto que sai de uma fábrica, correndo a céu aberto e passando pelas casas. Chico orienta o cinegrafista, que faz imagens das crianças brincando no valão. Os GUARDAS, na portaria da fábrica, não deixam Chico entrar para fazer imagens. Chico filma o guarda fechando o portão, pondo a mão na frente da lente. CENA 53 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/DIA Prossegue a seqüência sem diálogos. No monitor da ilha, imagens da vila, das crianças, da fábrica. Andrew orienta o EDITOR, que edita a matéria. Chico, de pé, ao seu lado, fica acompanhando o processo. Dona MIRIAM dá uma olhada desinteressada nas imagens, faz alguma observação e vai embora. Chico, insatisfeito, sugere uma mudança na edição. Andrew gosta da idéia e orienta o editor, que opera o equipamento. Agora as imagens dos guardas no portão aparecem intercaladas com as das crianças brincando no esgoto. Andrew e o editor comentam que ficou bom. Chico, no seu canto, fica muito satisfeito. CENA 54 - COZINHA DE CAROLINA - INTERIOR/DIA Carolina dá a papinha de José, que agora tem em torno de um ano de idade. Ela tem cara de muito sono e ele está a mil, fazendo a maior sujeirada. Chico está sentado ao lado dela. Toma café e tem os olhos fixos na TV, onde Andrew está apresentando a matéria da vila, microfone na mão, fábrica ao fundo. ANDREW ...e é a mesma fábrica que patrocinou (mostrando) esta revista de ecologia. Mas aqui, na vida real, a fábrica despeja milhares de litros de resíduos químicos sobre as casas destas pessoas. A fábrica já foi multada e preferiu pagar a multa a tratar o esgoto. Os guardas na portaria da fábrica. ANDREW (na TV) Tentamos ouvir os responsáveis pela fábrica mas eles não quiseram nos receber. Parece que aqui a sujeira não está só do lado de fora. CHICO (para Carolina) Olha só essa edição agora... José dá um tapão no prato e voa mingau pra tudo que é lado. CAROLINA José! Carolina limpa a mesa com um pano. CHICO Viu só? Na TV, o apresentador RUBENS RIBEIRO começa a dar a previsão do tempo. CAROLINA Ótima matéria, Chico! CHICO Você não viu a edição. CAROLINA É um absurdo o que esses caras fazem. Pra economizar uns trocados eles jogam o lixo no meio das pessoas, destruindo tudo. E depois posam de defensores do meio ambiente. CHICO Você não viu a edição. A edição final sintetizava tudo. Carolina levanta, limpa o rosto de José, enfia o bico na boca da criatura, lava o prato na pia, faz dez coisas ao mesmo tempo, quase automaticamente. CAROLINA Liga pro aeroporto e confirma a chegada. CHICO Já liguei, confirmado, nove e meia. CAROLINA Fica um pouco com o José que eu fico pronta em cinco minutos. Se o bico cair no chão, lava com água do filtro. O bico cai no chão. Chico pega o bico, lava na água do filtro. CHICO Tinha uma coisa do movimento da mão do segurança juntar com uma zoom rápida no rosto da criança no lixo, você não viu... Chico põe o bico na boca de José. Ele cospe e o bico cai no chão. Chico faz uma cara de "ai, meu saco", recolhe o bico e lava no filtro outra vez. CHICO (muito sorridente, para José) E a culpa é sua, seu... analfabeto. Porque é isso que você é: um inútil, analfabeto e egoísta. Você sabia que o filho de um búfalo quando nasce tem que sair caminhando em meia hora? Se ele não levanta rapidinho a manada vai embora e ele fica de almoço pros coiotes, não tem moleza não. (pausa) Tua mãe provavelmente vai te dar papinha até os dezoito. Aí você vai procurar outra trouxa que te dê papinha. Não pensa que você me engana, não, que eu te conheço. Chico enfia o bico na boca de José. Ele joga o bico no chão. CHICO Agora azar o seu, garoto. José começa a resmungar. CAROLINA (fora de cena) Dá o bico pra ele, Chico! Chico junta o bico no chão, assopra, passa na camisa e põe na boca de José. CENA 55 - SAGUÃO DO AEROPORTO - INTERIOR/DIA Chico e Carolina, ela com José no colo, entram no aeroporto. Caminham rápido pelo saguão. CHICO O vôo já deve ter chegado. CAROLINA Ela deve estar nos esperando. (Aponta em frente) Olha lá o Luciano. CHICO (apertando o passo) Quem é aquela figura? CAROLINA Não sei. Eles chegam perto de Luciano e de sua acompanhante, que veste um traje "krishna" completo. Só então Luciano e Chico olham direito para o rosto da "krishna": é Lisa. Os dois ficam completamente patetas. LISA (sorrindo) Hare-krishna. CAROLINA (tentando aparentar normalidade, mas ainda desnorteado) Lisa... Ôi... Hare... Hare-krishna. Chico, depois de um momento de hesitação, decide cumprimentar à maneira ocidental, com um beijo, mas Lisa o detém com um gesto. LISA (sempre sorrindo, meio beatífica) Desculpe, Chico, mas o beijo é maia. Nós não somos casados. Chico fica sem saber o que fazer. CHICO Apertar a mão pode? LISA (sorrindo) Pode. Os dois apertam as mãos. LISA Que bom que vocês vieram. (pausa) Vocês podem me levar até o templo? CHICO Claro. Os rapazes pegam as bagagens de Lisa, muito esquisitas. As duas meninas vão na frente. Luciano segura Chico pelo braço, deixando as duas se distanciarem um pouco. LUCIANO Ela vai morar num templo, e não beija mais ninguém? CHICO Pelo que eu entendi, só se for marido. LUCIANO Por Deus, essa é a maior demonstração de loucura que eu já vi na vida. As duas meninas notam que Luciano e Chico ficaram pra trás. Carolina faz sinais, chamando-os. Os dois vão correndo até elas. CENA 56 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE Chico, Luciano, Carolina e Lisa estão sentados em volta de uma mesa, cabeça baixa. Silêncio absoluto, como se estivessem num ritual religioso. O apartamento é decorado com tudo que há de mais astral: krishnas, budas, macramês e batiques, samambaias e George Harrison. Lisa já não veste a roupa krishna. CHICO (OFF) Um dia a Lisa me contou que inventava os sonhos pra contar para o analista. Ela ficava muito ansiosa por não lembrar dos sonhos e começou a inventar, a caminho da sessão, no táxi. Ela achava que dava no mesmo, que inventar pecados é quase o mesmo que cometê-los. Quase. CENA 57 - CONSULTÓRIO DO ANALISTA DE LISA - INTERIOR/DIA Lisa está sentada numa poltrona de couro e gesticula muito, contando uma história. O ANALISTA escuta e fala algumas coisas. CHICO (OFF) O problema é que a maioria dos sonhos se passava num táxi, sempre com o motorista como personagem. O analista começou a achar que ela tinha uma fixação em táxi. CENA 58 - BANCA DE REVISTAS - EXTERIOR/DIA Lisa compra uma revista numa banca. O nome da revista é "BONS SONHOS". CHICO (OFF) Aí ela comprou uma revista de interpretação de sonhos pra decorar um sonho qualquer que era dado como exemplo, pra contar pro analista. CENA 59 - RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA Lisa caminha nua pela rodoviária. Tenta se esconder com um jornal. As PESSOAS passam por ela mas não prestam atenção. Um GUARDA se aproxima. CHICO (OFF) Ela leu e contou que tinha sonhado que estava nua na rodoviária quando um guarda aparecia e pedia uma informação. O guarda queria saber onde ele podia pegar o ônibus para Caxias. CENA 60 - CONSULTÓRIO - INTERIOR/DIA Lisa termina de contar o sonho pro analista. CHICO (OFF) O analista disse que a análise estava mexendo com ela, que ela estava se sentindo exposta, que eles precisavam falar sobre o pai dela. A revista disse que sonhar com guarda é sinal de sorte e que sonhar com ônibus é camelo. CENA 61 - BANCA DE BICHO - INTERIOR/DIA Lisa conversa com o CAIXA DO BAR. Ele anota o palpite dela no bicho: camelo. CHICO (OFF) Ela jogou uma grana no camelo, invertido do primeiro ao quinto. Alguma coisa dizia que o fato de ela ter escolhido especificamente aquele sonho na revista tinha algo a ver com algo, sei lá. CENA 62 - CASA DE CÂMBIO - INTERIOR/DIA Lisa deixa cair alguns dólares. Vai juntar e é ajudada por um homem de mãos fortes, braços fortes e cabeça raspada. Ele é KRISHNA. CHICO (OFF) Deu porco, mas ela conheceu um uruguaio na casa de câmbio onde foi trocar os dólares para jogar no bicho. O cara era krishna. Eu disse que achava estranho um krishna numa casa de câmbio mas ela não prestou atenção. Ela largou o analista. CENA 63 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE Os quatro em volta da mesa, ainda em silêncio. CHICO (OFF) Eles foram juntos pra Índia. Aí ela teve uma infecção por estafilococos e voltou pro Brasil. Duas semanas longe do uruguaio e ela deixou de ser krishna. Ela diz que lembra de todos os sonhos. Estes dias ela sonhou com um cavalo e jogou no bicho outra vez. Deu avestruz. É muito difícil ganhar na loteria. LUCIANO (gritando) STOP! Os quatro, que estavam estáticos, se agitam muito. LISA Não acredito! Você conseguiu bicho com "ene"? LUCIANO Bicho com "ene" é fácil. Difícil foi novela com "ene". CAROLINA Nina. CHICO Ene? Não era "Eme"? LISA Não, Chico, tá brincando que você fez tudo com "Eme"! Eu falei dez vezes, e-ne, e-ne, e-ne! Acorda, Chico! Acorda! CENA 64 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE Chico está na central técnica, com cara de sono, mexendo nos controles da mesa. O relógio na parede marca 3:47. Lisa, a um canto, observa tudo. Chico aperta os olhos e olha para o monitor. CENA 65 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE Carolina, interpretando "Alice no país das maravilhas", agita os braços na frente de um fundo azul. CAROLINA Dinah vai sentir muito a minha falta esta noite, eu acho... No monitor, graças ao "chroma-key", Carolina-Alice parece estar caindo em um poço sem fundo. CAROLINA Dinah, eu queria que você estivesse comigo aqui. Não tem nenhum rato no ar, infelizmente, mas bem que você podia pegar um morcego... De repente, o fundo do "chroma-key" termina, e Alice fica sacudindo os braços no ar sobre as imagens da reportagem do cano. CENA 66 - CENTRAL TÉCNICA DA TV - INTERIOR/NOITE Lisa, bastante divertida, sacode o braço de Chico, que está dormindo sentado, em frente ao monitor. Chico cabeceia e olha para o monitor, assustado. CENA 67 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE Carolina, sem saber o que se passa, continua agitando os braços e dando o texto de Alice. CAROLINA ...é igualzinho a um rato, sabe? Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos? CHICO (OFF) (no microfone) Parou. Terminou a base do chroma. São quase quatro da manhã, eu reedito depois. Ficou ótimo. Luciano entra em cena, seguido por Andrew. Luciano tem um baseado na mão e faz sinais para Chico, apontando para o lado. Carolina e Andrew morrem de rir. CHICO Que é isso? Chico vê que no monitor onde está escrito "PROGRAMAÇÃO" surge a imagem de Luciano. Percebe que a TV está no ar. CHICO (assustado, grita no comunicador) Porra, Luciano, você é louco! Desliga está merda, Luciano! LISA Que foi? CHICO (levantando) Ele ligou o transmissor. A tevê tá no ar! (sai) Lisa fica rindo. Luciano pega o livro "Alice no país das maravilhas" na mão, dá uma tragada e segura a fumaça nos pulmões. LUCIANO No ar, zê-ipslon-cá-cete, tevê Lisão, canal Cem. (Abre o livro, procura um trecho.) "Era briluz. As lesmolisas touvas roldavam e relviam nos gramilvos. Estavam mimsicais as pintalouvas e os momirratos davam grilvos". E agora com vocês, nosso comentarista comunista e pobre, Andrew Silva Terceiro. Luciano passa o baseado para Andrew. Ele dá uma tragada e vem para frente da câmara. ANDREW Trabalhadores do Brasil! Pelas liberdades democráticas e por uma melhor distribuição de maconha! Hay que endurecerse, pero sin faltar la marijuana jamás! Chico entra no estúdio e desliga a luz. Luciano entra em cena e continua a transmissão clandestina. LUCIANO Camaradas! Mercenários a soldo do capitalismo ianque estão invadindo nossos estúdios. Querem calar a nossa voz, camaradas! A Tele Rebelde, canal nove, uma emissora da Fundação Raul Seixas... Luciano fica falando mas não se ouve o que ele diz. Chico cortou o som dos microfones. Chico entra em cena, ainda irritado, gesticulando muito. Luciano estende o baseado para Chico. Ele pára de discutir, pega o cigarro e fuma. CENA - SALA DE ESPERA DA CRECHE - INTERIOR/DIA Chico está sentado num banquinho, numa sala de espera. A decoração infantil é supercolorida. As mesinhas e banquinhos dão a impressão de que Chico cresceu ou está tendo uma alucinação. CHICO (OFF) "Muito estranhíssimo, muito estranhíssimo, gritou Alice. Eu estou crescendo como um telescópio. Adeus pés". Chico levanta-se. CHICO (OFF) Quartas-feiras Carolina tinha ensaio até mais tarde e eu buscava o José na escolinha. A PROFESSORA surge com José, que agora tem uns quatro anos. Chico pega José pela mão e sai. CHICO (OFF) Este era um dos meus poucos rituais, eu não ia à missa desde o primário. De vez em quando eu também ia ao teatro, ver a Carolina. CENA 69 - FRENTE DA CASA DE CAROLINA - EXTERIOR/DIA Chico acompanha José até a porta de casa. Carolina abre a porta, abraça José. CENA 70 - CENÁRIO DE TEATRO - INTERIOR/NOITE Cenário da peça "Seis personagens à procura de um autor". Carolina, com um boneco no colo, faz o papel da MÃE. Abraão, aquele que era professor de filosofia, faz o DIRETOR. CAROLINA (desesperada) Meu filho! Meu filho! (sai gritando) Socorro! Socorro! DIRETOR Feriu-se? Feriu-se de verdade? PRIMEIRA ATRIZ (entrando em cena pela direita, penalizada) Morreu! Pobre menino! Morreu! Oh! Que coisa, meu deus... PRIMEIRO ATOR (entrando pela esquerda, rindo) Morto o quê! Ficção, ficção, não acredite!... OUTROS ATORES (gritando) Ficção? Realidade! Realidade! Está morto! Não! Ficção! Mas que ficção? Realidade! Ficção! ABRAÃO (interrompendo, aos gritos) Ficção, realidade! Vão todos para o diabo que os carregue! Luz! Luz! Luz! O teatro inteiro se ilumina. Chico, Lisa e Andrew estão na platéia. ABRAÃO Ah! Jamais me tinha acontecido coisa semelhante! Fizeram-me perder o dia. Podem ir, podem ir. Que mais querem fazer agora? Muito tarde para recomeçar o ensaio. Até logo à noite!... Os atores saem todos, cumprimentando o diretor. Ele fica só. ABRAÃO Ó eletricista! Apague tudo! O teatro cai na mais densa escuridão. ABRAÃO O que é isso? Deixem-me acesa ao menos uma lâmpada, para eu ver onde ponho os pés! De repente, por trás do telão branco, como por erro de ligação, acende-se um refletor que projeta as sombras dos Personagens. O diretor se assusta e foge do palco. A luz volta ao normal. Cai o pano. O público aplaude muito. Os atores surgem no palco. Carolina está muito feliz, cansada e bonita. CENA 71 - CAMARIM - INTERIOR/NOITE No camarim lotado, clima de alegria, confusão, todos falando ao mesmo tempo. Chico cumprimenta Abraão e lhe apresenta Andrew. Os atores todos gritam muito. Chico abraça Carolina. CENA 72 - RESTAURANTE - INTERIOR/NOITE Chico, Andrew, Carolina e Abraão comem e conversam. Abraão e Andrew embarcaram num papo seríssimo. ABRAÃO Todo teatro é teatro político. ANDREW Eu falo de uma coisa mais popular, mais compreensível. ABRAÃO A idéia de uma dramaturgia popular e outra erudita é ultrapassada e preconceituosa. Shakespeare sempre foi popular. Pirandello pode ser muito popular. Só depende da mídia. ANDREW Eu acho, que por mais que se aperfeiçoem as mídias, satélite, computador, a revolução vai ser anunciada num panfleto, numa pichação de parede. Você acha que Pirandello pode ser eficiente para combater o bombardeio de alienação que a televisão despeja sobre as pessoas todos os dias? ABRAÃO Não menos eficiente que Brecht ou Plínio Marcos. Meu amigo, eu fiquei metade da minha vida esperando uma revolução. A tal revolução ia chegar um dia, para julgar os vivos e os mortos. Eu não sou adventista. Eu acho que é possível fazer coisas que melhorem a vida das pessoas. Teatro é só uma delas. Eu faço o que posso e pra mim isso é que é política: fazer o que você pode. Fazer. É a melhor maneira de dizer. Bertold Brecht. CENA 73 - BAR DA VILA - INTERIOR/NOITE Um vidro cheio de ovos de conserva em cima de um balcão, num bar de vila. Andrew e um CASAL conversam numa mesa. Eles falam baixo, para não dar bandeira. HOMEM O Lima ficou cuidando os carros. Passou um camburão e nós largamos as pás, ficamos encostados na cerca. Eles passaram reto, nem aí. CENA 74 - RUA DA VILA - EXTERIOR/NOITE TRÊS HOMENS cavam um buraco ao lado da rua. Um QUARTO HOMEM fica na cerca da casa, cuidando a rua. ANDREW (OFF) Que horas eram? HOMEM (OFF) Onze, onze e dez. Mas o lugar é claro, tinha que ser pra encontrar o cano. É perto do poste. Quando a gente encontrou o cano é que a coisa engrossou. Depois da água jorrar tinha que ser rápido, não dava mais para parar. Uma lasca do cano pegou na perna do Mancha, um corte feio. Os três lutam contra o barro e a força da água, tentando encaixar um cano no cano quebrado. HOMEM (OFF) Tinha água pra tudo que é lado. O nosso cano tinha uma bitola maior e o cotovelo ficou curto. No meio daquele barral, pra acertar o cotovelo foi um parto. Depois foi frouxo. Tapamos a folga com uma corda e fomos ligando os canos, eu e o Lima. O Pedrão e o Mancha taparam o buraco. Depois foi tapar a vala, encaixar outro cotovelo e distribuir a água, prum lado e pro outro. No começo a água saiu barrenta, depois limpou. ANDREW (OFF) E agora? Não apareceu ninguém pra reclamar? CENA 75 - BAR DA VILA - INTERIOR/NOITE No bar, Andrew continua entrevistando o casal. HOMEM Muito cedo. Mas os carinhas já devem ter percebido que a força diminuiu lá pra cima. Leva uns dias. MULHER A gente tá organizado em turnos, criança também. Quando eles vierem a gente chama a imprensa, faz barulho. Não sei se vêm alguém. Vocês vêm? CENA 76 - RUA DA VILA - EXTERIOR/DIA Algumas PESSOAS carregam faixas "QUEREMOS ÁGUA". FUNCIONÁRIOS da companhia de água cavam no mesmo lugar, sob a proteção da POLÍCIA. Andrew, Chico e um CINEGRAFISTA estão lá. As pessoas gritam palavras de ordem enquanto Andrew tenta entrevistar o CHEFE DOS FUNCIONÁRIOS. CHEFE Eu faço o que me mandaram. Não entendo nada de política. ANDREW Quem foi que mandou? CHEFE O meu chefe. Quer ver a ordem? CENA 77 - CASA DO CHEFE DO CHEFE - INTERIOR/DIA O sujeito, provavelmente DIRETOR DA COMPANHIA de água, dá uma entrevista para Andrew na frente de casa. Enquanto ele fala, Chico percebe que uma MENINA molha a grama do jardim da casa do cara. DIRETOR A distribuição de água obedece a um planejamento técnico rigoroso. Nós não podemos permitir que os moradores interfiram na rede programada conforme sua própria vontade. Chico chega na orelha do cinegrafista. CHICO Faz o foco na menina do jardim. IMAGEM DE VíDEO. O Diretor fica completamente fora de foco. O foco é na menina, molhando a grama, feliz, com a mangueira. DIRETOR A água é um direito de todos e deve ser distribuída democraticamente. Duas crianças, de pé no chão, numa rua coberta de pó. DIRETOR (OFF) Democraticamente... CENA 78 - SALA DO VELHO - INTERIOR/DIA Chico e Andrew estão sentados na frente da mesa do Velho, que mostra um ofício. VELHO Essa é a melhor parte. (lendo) "e no momento em que este órgão público se alia a esta emissora numa grande campanha publicitária, é incompreensível o tratamento desonesto a que foi submetido nosso diretor técnico na referida reportagem, etcetera, etcetera". Eles provavelmente vão cancelar a campanha. Vinte mil dólares. E desligaram o cano, de qualquer jeito. CHICO E aí? VELHO Pediram a cabeça dos dois. O coronel já me ligou três vezes. Chamou a edição de "molecagem". CHICO Velho, dá um resumo. VELHO Tudo bem, eu segurei essa. Só que matérias desse tipo eu quero ver antes de ir ao ar. CHICO De que tipo? VELHO Interessantes. CHICO Você ia cortar a matéria? VELHO Não sei, acho que não. Chico e Andrew levantam pra sair da sala. CHICO Regra número um: toda reportagem é contra alguém. O resto é publicidade. VELHO Regra dois: a publicidade paga o nosso salário. CENA 79 - SAGUÃO E ELEVADOR DE EDIFÍCIO - INTERIOR/DIA Um edifício moderno e luxuoso no centro da cidade. Chico entra no elevador. CENA - SEDE DA BRASETIC - INTERIOR/DIA Chico chega ao último andar. Uma placa na parede: "BRASETIC CONSTRUÇÕES". Chico entra numa pequena ante-sala. LAURA, a recepcionista, é elegante e muito bonita. Tem uns trinta anos, mas aparenta menos. LAURA Boa tarde, doutor Francisco. CHICO Oi, Laura. O Emílio já chegou? LAURA Ele está na sala do doutor Ernâni. Ela usa o interfone. Logo depois, introduz Chico na sala, onde estão ERNÂNI (pai de Chico) e Emílio. Laura sai, fechando a porta atrás de si. CHICO A Laura é MUITO gostosa. Ôi, pai. Ôi, Emílio. EMÍLIO (constrangido) Fala baixo, ela pode ouvir. CHICO E você pensa que eu já não disse isso pra ela? ERNÂNI (sorrindo, meio sacana) Ela é muito competente. Vocês estão se dando bem, não é, Emílio? EMÍLIO (sem jeito) Muito bem. Quer dizer, ela é muito competente. (envergonhado) Bom, vocês me dão licença? Emílio sai da sala. Chico aproxima-se da mesa do pai, que é enorme. Na parede da sala, grandes fotos que mostram obras de grande porte: estradas, hidroelétricas, edifícios públicos, etc. ERNÂNI E aí, filho, veio pra assinar o teu contrato? CHICO Pai, eu já tenho emprego, esqueceu? Oito horas por dia. ERNÂNI Quanto você ganha? CHICO Eu não discuto o meu salário. ERNÂNI Aquilo não é salário, você não tem emprego. Aqui, além de ganhar decentemente, você vai contribuir para que a empresa cresça. Quatro por cento das ações estão no teu nome, você esqueceu? CHICO (levantando-se) Eu não quero ação nenhuma. Você ainda espera que eu, um dia, chegue aqui nessa mesa e diga "Pai, eu assumo tudo. Vai pra casa descansar que eu cuido do império da família". ERNÂNI Eu não espero nada. Tô te oferecendo um trabalho. Se não quiser tudo bem. CHICO (de pé, junto às primeiras fotos da parede) Que obra é essa? ERNÂNI Uma estação de tratamento de água em Brasília. CHICO Quem era o presidente na época? ERNÂNI Sessenta e cinco? O Castelo Branco. CHICO (apontando outra obra) E essa? (lendo) Avenida Tiradentes, em Goiânia. Obra federal. Quem era o presidente? ERNÂNI Acho que o Costa e Silva. Por que este interesse? CHICO (apontando outra obra) E essa? ERNÂNI Isso é uma rede de esgotos em Belém. CHICO Obra federal. Quem era o presidente? O Médici. (apontando outras fotos) Isso aí é um hospital de Campo Grande. Geisel. Essa aí também tem a data: Figueiredo. Esta é mais nova, rede de esgotos, em São Luiz. Sarney. ERNÂNI E aí? CHICO Pai, só me responde duas coisas: primeiro, como você conseguiu se dar bem com todos os governos que o Brasil teve desde o Jango; segundo, por que você botou a Laura pra trabalhar com o Emílio. ERNÂNI (ri) Ela é eficiente. E eu comecei a trabalhar pro governo com o Juscelino. CHICO E talvez o Emílio acabe comendo ela. ERNÂNI Talvez. Seria bom pra ele. Ela é discreta. CHICO E seria bom pra ele, que é tão tímido. Pai, você é um grande calhorda. (indo em direção à porta) Mas eu te amo. ERNÂNI Vê se liga pra tua mãe de vem em quando. CHICO Eu ligo. CENA 81 - REPORTAGEM - INTERIOR/NOITE Uma reportagem, em vídeo, que Chico e Andrew fizeram sobre Abraão. Cenas de Abraão se maquilando, no palco, dando aulas. ABRAÃO (OFF) Eu nem era comunista. Eu só não gostava do que os militares faziam: torturar gente, prender músicos, proibir filmes. E eu fazia teatro, dava aula de filosofia, estas coisas. (...) Os caras que me torturavam me chamavam de "judeu!", "veado!", "atorzinho!". Eles me torturavam por ser tão diferente deles. Abraão, sentado no cenário da peça, termina de tirar a maquiagem. ABRAÃO Tinha um lado irônico: era tudo verdade, eu era mesmo um atorzinho veado e judeu. Mas não era engraçado. (...) Eu continuo querendo mudar o mundo, eu continuo achando que a mudança se faz por ação política, organizada, e também por ação política individual, eu continuo sendo... esquerdo. Só que eu quero me reservar o direito, neste momento, de não seguir incondicionalmente a opinião da maioria. E aí fica difícil fazer política partidária.(...) Tem uma frase no Orlando... "eu estou crescendo. Estou perdendo algumas ilusões. Talvez para adquirir outras". Tomara que sim. CENA 82 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE Chico desliga o VT. O Velho fica olhando para o monitor apagado. Chico e Andrew ficam esperando uma resposta do Velho. VELHO (muito sério) Interessante. Muito interessante. Só que não vai ao ar. Chico ri, como quem não acredita. Andrew não esboça uma reação. CHICO Por quê, Velho? VELHO (levantando) Chico, por favor, não vamos começar uma conversa adolescente a esta hora. Não vai porque não vai, você é um bom jornalista, sabe por que não vai. CHICO Não, Velho, eu não sou um bom jornalista. Aliás, eu sou um péssimo jornalista. Não vai porque ele é veado, ator ou judeu? VELHO Ele fala que os militares no governo torturavam gente... Não é momento de radicalizar com os militares, você sabe disso. Andrew ri. Chico guarda a fita, entrega na mão do Velho. CHICO Tudo bem, Velho. Mas eu tô fora. Eu gasto o meu salário em gasolina pra chegar aqui. Já aprendi o que tinha pra aprender nessa tevê. Eu vou sair e botar a boca. VELHO Onde? No bar? Ou no jornal do sindicato? Chico, vai dormir. ANDREW Como é que você se conforma com um papel desses, Velho? VELHO Da mesma maneira que vocês: eu sou pago pra isso. Andrew levanta, começa a pegar suas coisas, papéis, livros. ANDREW Eu não. Não mais. VELHO Não seja ridículo, Andrew. Vocês têm que, pelo menos, acabar de editar o jornal. Isso não é profissional. ANDREW Então eu não sou profissional. Sabe qual é o seu problema, Velho? É que você cansou. Cansou, de tanto levar porrada, e resolveu colaborar com o inimigo. Tudo bem, dá pra compreender. Mas eu ainda nem comecei e não vou me submeter aos seu critérios nazistas. Eu tô fora. Andrew sai. Chico senta, fica olhando para o Velho. VELHO E você Chico? Vai pegar ou vai continuar? O prêmio está acumulado em dez milhões. O carro vale quarenta milhões... CHICO Deixa de ser cínico, Velho. VELHO Deus me livre! Ser cínico é que me faz suportar idiotas como vocês dois. O Andrew nem gosta deste Abraão. Disse que ele era um desbundado. E você também, no fundo, tá cagando pra esse Abraão, você quer é ganhar um premiozinho qualquer e comover meia dúzia de donas de casa que acorda cedo pra fazer café pro marido e depois não consegue dormir. "Ele foi torturado? Pobrezinho..." Ninguém vê a merda deste jornal às sete e meia da manhã nessa tevê de merda, Chico, o Ibope de vocês é traço! Não se faz merda de revolução nenhuma dando traço no Ibope. O Velho vai saindo. Chico senta na cadeira do editor. Apóia a cabeça com a mão. VELHO Termina de editar o jornal e vai pra casa. Amanhã a gente conversa sobre o "Vida Comum". CHICO "Vida Real". VELHO Ou isso, sei lá que programa é esse. Dá pra fazer sem o Andrew? CHICO Não sei. VELHO Ele não te falou que recebeu uma proposta pra trabalhar numa rádio, falou? Três vezes o salário daqui. Chico fica surpreso, faz que não, com um gesto. VELHO Ele quer sair daqui dando uma de ofendido. E você quer perder o emprego, quer que eu arrisque o meu emprego pelas bichices de um ator. CHICO Você esqueceu de dizer que ele é judeu. VELHO Podia ser pior. Ele podia ser negro. CENA 83 - EDIFÍCIO DE CHICO - EXTERIOR/NOITE Chico chega em casa, muito cansado. Lisa está sentada na escada do edifício, evidentemente deprimida. Ela levanta e abraça Chico. CHICO Quê que houve? LISA Minha mãe. Levaram ela pra clínica. CHICO Tua mãe? Que absurdo! Vamos lá. E faz meia-volta, carregando Lisa, disposto a partir para a clínica. LISA (fazendo Chico parar) Não... é melhor não. Deixa. Amanhã a gente vai lá. CHICO Vamos tirar tua mãe de lá, Lisa, se ela tá mal, só vai ficar pior. Eles vão enfiar um monte de calmantes na velha, e quando ela acordar vão dar mais um monte de calmantes, e todo o dia a mesma coisa. LISA (irritada) O que você entende da vida da minha mãe? Nada. E da minha vida? Nada. Eu não vim aqui pedir opinião, eu vim aqui... (Fica indecisa e depois decide ir embora.) ...eu nem sei por que eu vim aqui. Lisa desce as escadas, vai sair do prédio, desiste. Senta na escada. LISA Eu não tenho pra onde ir. (pausa) E fui eu que chamei os caras. CHICO Você mandou internar sua mãe? LISA Mandei. CENA 84 - FESTA DE ANIVERSÁRIO - EXTERIOR/DIA Edição de fotos. Dilma, a mãe de Lisa, bem mais jovem, com Lisa no colo, com AMIGOS, brincando. LISA (OFF) Tudo o que a minha mãe me deu, depois ela tirou. Toda a minha infância, eu achava que ela era a única mãe legal do mundo. Nunca, nunca, eu quis ter um pai de verdade. Eu gostava de todos os pais que passaram na minha casa. Porque eles estavam com a minha mãe, e a gente se divertia junto. Quando eu cresci, achei que ela também seria a melhor amiga que eu poderia ter. E ela também achou isso. E deixou de ser mãe de repente. E começou a me tirar tudo. Tirava minhas roupas. Roubava minha maquilagem. Tomava todas as drogas que eu levava pra casa. Tentou me tirar um namorado. CENA - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Lisa está deitada. Chico está sentado na cama, ao seu lado. LISA No começo, eu achava tudo legal. Ninguém tinha uma mãe como aquela. Uma mãe que se preocupava quando NÃO tinha maconha na minha gaveta. Mas depois ficou chato. Muito chato. Às vezes parecia que eu era a mãe dela. E ser mãe é chato. (pausa) É muito fácil dizer que não existe loucura, que não se deve internar alguém só porque é diferente dos outros. Outra coisa é ter essa diferença dentro de casa. CENA 86 - CASA NÃO IDENTIFICADA - INTERIOR/NOITE Uma GAROTA, segurando uma boneca, está sentada no chão, no canto da sala, quase embaixo da mesa. Ela tem um olhar assustado e se agarra à boneca, tudo muito melodramático. No centro da sala, a MÃE abraça um HOMEM de terno e gravata, barba mal feita. Eles riem muito. A mãe segura uma garrafa de gim. CIÇA (OFF) No começo eu gostava dos homens que ficavam com a minha mãe. Porque eles estavam com a minha mãe, e a gente se divertia. CENA 87 - CENÁRIO "VIDA REAL" - INTERIOR/NOITE Uma mulher, CIÇA, óculos escuros e lenço no cabelo, fala e chora, secando as lágrimas com um lenço. CIÇA Eu achei que ela também seria a melhor amiga que eu poderia ter. (chora) E então ela deixou de ser mãe e passou a ser minha rival. E começou a me roubar tudo. Roubava minhas roupas. Roubava minha maquilagem. Tomava todas as drogas que eu levava pra casa. Tentou me tirar um namorado. (chora) Foi horrível. A Mulher está sentada numa cadeira giratória e há um pequeno PÚBLICO, umas trinta pessoas, ouvindo a entrevista. Algumas pessoas choram, emocionadas. A luz torna-se dramática. Ouve-se a voz de um APRESENTADOR, fora de cena. APRESENTADOR Nós não estamos aqui para julgar, nós não estamos aqui para chocar. Nós estamos aqui para contar a história de pessoas como você, para mostrar, sem disfarces, os conflitos e os dramas da "VIDA REAL"! (sobe música) Entra vinheta eletrônica: VIDA REAL. Direção e Produção: CHICO FREIRE. Chico entra no estúdio, roteiro na mão. A Mulher entrevistada tira os óculos, seca os olhos. CHICO Muito bom, Ciça, muito verdadeiro. Aquela história da rival foi caco, mas tudo bem. Ciça pega o roteiro, no chão. CIÇA Não falava em rival? Desculpe, eu achei que podia. CHICO Tudo bem, ficou legal. Quantos quadros a gente já gravou? Carolina está no estúdio, confere uma planilha. CAROLINA Seis. Este foi o sexto. CHICO Tá bom, amanhã a gente continua. Tem mais alguma coisa hoje? CAROLINA Luciano tá te esperando. CHICO (lembrando) O clipe, eu tinha me esquecido. Você vai? CAROLINA Você disse que não precisava, eu não chamei babá. Eu não posso levar o José, posso? CHICO Melhor não. CENA 88 - ESTÚDIO DE ENSAIOS - INTERIOR/DIA Um estúdio de ensaios caseiro. Lisa empunha uma guitarra à frente de um microfone. Mais dois caras: um BAIXISTA e um BATERISTA. Eles têm cabelos curtos e se vestem de preto. Chico e Luciano gravam um clipe da banda. Chico faz câmara e Luciano segura um pau-de-luz. Lisa puxa a introdução da música, que é bem simples, mas tem uma melodia interessante. O baixista entra. Logo depois, o baterista. Ficam tocando juntos por uns quinze segundos. Lisa não está satisfeita. Olha para seus companheiros de banda, que não erguem os olhos para ela. Lisa pára de tocar, evidentemente contrariada. Mas os dois continuam. Ela espera um pouco, cada vez mais puta-da-cara. E então dá uma porrada com a palheta nas cordas. Eles não reagem. Lisa dá mais umas três ou quatro porradas. Eles continuam tocando. Ela tira a guitarra do ombro e a joga no chão. Vai até o amplificador do baixo e tira o plug. Barulho típico. O baterista pára de tocar. O baixista tá puto. Chico continua gravando tudo. BAIXISTA Me diz uma coisa, cara: você quer queimar o ampli? LISA Eu já disse que essa música não é assim. BATERISTA Puta embalo, Lisa. Tava tri punk. LISA (para Chico) Esse sujeito é a prova de que o uso excessivo de drogas destrói os neurônios. (para o baterista) Essa música NÃO É PUNK. Quantas vezes eu tenho que dizer? Essa banda NÃO É PUNK. BATERISTA Eu não vou fazer som astral. LISA Porra, que merda vocês têm na cabeça? Eu não quero fazer música astral, nem música punk, nem merda nenhuma. Eu não vou seguir merda nenhuma de tendência, não vou copiar banda inglesa, nem americana, nem aquela merda de banda da Finlândia. Eu quero que a Finlândia se fôda! Lisa levanta a guitarra sobre os ombros e a atira com toda a força em cima da bateria, quase acertando o baterista. Fica todo mundo parado, espantado com o ataque de Lisa. Ela se acalma. Chico continua gravando. LISA Desculpa. Se estragou alguma coisa, eu pago. LUCIANO Vamos embora, Lisa. BATERISTA (verificando a bateria) Você tá maluca? Pirou? LISA Não. Foi só uma cópia. E mal feita, ainda por cima. Podem ficar com guitarra por enquanto. Tchau. Valeu. (E sai.) O baterista continua verificando o instrumento. Luciano vai até a janela e abre uma fresta, pra ver Lisa saindo de casa. Chico, que continuava gravando tudo, desliga a câmara. CHICO Acho que perdi o foco quando ela jogou a guitarra. O resto ficou legal. LUCIANO (baixinho) Acho que eu tô apaixonado. CENA 89 - REDAÇÃO - INTERIOR/DIA Luciano trabalhando na redação da TV. Ele consulta um mapa do céu, verificando a posição das estrelas. Na parede, por trás de sua mesa, há uma serigrafia colorida, meio hippie, onde se lê: "A coisa mais medíocre que um ser humano pode fazer é pendurar frases exemplares na parede do escritório. Lucky Luciano, * 1959 - + 1999 ". CHICO (OFF) Luciano, na televisão, fazia economia e horóscopo. Ele escrevia os textos que a Madame Mirna lia no Jornal da Mulher, meu programa de televisão preferido. CENA 90 - CENÁRIO MADAME MIRNA - INTERIOR/DIA Cenário de um programa de horóscopo na TV. MADAME MIRNA é uma ruiva gordinha com sotaque castelhano. Ela fala olhando levemente sobre a câmara. MADAME MIRNA Aos nativos de Câncer a recomendação é cautela e caldo de galinha. O posicionamento de Mercúrio em Virgem e a frente fria argentina favorecem a gripe e os distúrbios pulmonares. Cuidado com pessoa invejosa. Cor bege, número vinte e três. CENA 91 - REDAÇÃO DA TV - INTERIOR/NOITE Luciano escreve numa velha máquina Remington. Segura o telefone com o ombro. Luciano escuta alguém que fala ao telefone e, em intervalos regulares, diz "hum-hum". CHICO (OFF) Economia parecia ser bem mais fácil. LUCIANO Sessenta? (...) Setenta e dois. (...) Hum-hum. (...) Sei. (...) Rogério, eu escuto esta conversa desde março. (...) Certeza? (...) Isso vai dar uns quarenta e cinco por cento numa semana... (...) E dá pra acreditar? (...) Claro, Rogério, nem precisa falar. Sigilo absoluto. CENA 92 - BAR DA TV - INTERIOR/NOITE Luciano toma uma cerveja e fala com o Velho, Chico e quem mais quiser ouvir. LUCIANO Quarenta e cinco por cento numa semana, talvez cinqüenta. Depois não digam que eu não avisei. Eu estou botando nessas ações o dinheiro de quatro investidores. Todo o dinheiro que eles têm. CHICO Eles toparam? LUCIANO Se eles soubessem, topariam, tenho certeza. Chico e o Velho ficam olhando para Luciano, sem acreditar. LUCIANO Eu vou vender o meu carro, o terreno na Guarda e os dólares que eu guardei. Vou pedir emprestado todo o dinheiro que eu conseguir, pago vinte por cento de juros em quinze dias. VELHO E se der errado? LUCIANO Ai, meu santo... Será que Cristóvão Colombo tinha um sujeito cutucando ele e dizendo "e se der errado?". VELHO Vários, certamente. LUCIANO Não vai dar errado, Velho. Júpiter em Sagitário, Mercúrio em Libra, não tem como dar errado. CENA 93 - CENTRO COMUNITÁRIO - EXTERIOR/NOITE Uma festa de casamento. O lugar é um centro comunitário da periferia de Porto Alegre. Tem uma churrasco sendo feito numa churrasqueira enorme, chopp servido em copos de papel num balcão e um MONTE DE GENTE mais ou menos pobre em roupas de festa. Os noivos, Andrew e SÍLVIA, recebem os cumprimentos. Sílvia é uma mulher morena, bonita e evidentemente grávida. Chico e Carolina esperam na fila dos cumprimentos. Andrew avista Chico e sorri. Chico e Carolina se aproximam. Se abraçam, todos muito sorridentes. CAROLINA Parabéns! (para Sílvia) Você está linda! SÍLVIA Obrigado. O Andrew fala em vocês toda hora. Que bom que vocês vieram. CHICO (cumprimentando Andrew) Parabéns. Pelo casamento e pelo sucesso. ANDREW Obrigado. Depois a gente fala com mais calma. E o Luciano? CHICO Disse que vinha. Nunca se sabe. ANDREW Vocês já comeram? Chico e Carolina tentam comer churrasco e salada de batata num prato de papel apoiado sobre os joelhos. Carolina resolve o problema pegando um pedaço de costela com a mão. Andrew tenta fazer um discurso. A festa tem um conjunto que toca música caribenha, salsa, essas coisas. A música é muito alta e todos gritam muito. Chico avista Luciano e Lisa. Ela está linda, feliz e levemente drogada, na boa. Luciano está estranhamente bem vestido. Se cumprimentam. Luciano está eufórico e conta alguma coisa para Chico e Carolina. Eles ficam parados, de boca aberta. Luciano gesticula muito. Chico larga o prato de churrasco e faz sinal para que Luciano o acompanhe até o lado de fora do salão. Lisa senta ao lado de Carolina. CENA 94 - CANCHA DE FUTEBOL DE SALÃO - EXTERIOR/NOITE Chico e Luciano estão numa cancha de futebol de salão e basquete do centro comunitário. LUCIANO Tenho que descontar os impostos, a comissão de um agente financeiro, tenho que devolver a grana que me emprestaram... Eu acho que sobra uns... quase cem mil. CHICO Cem mil? Luciano concorda. CHICO Cem mil dólares? Luciano concorda. CHICO Você ganhou - você, Luciano - cem mil dólares na bolsa, em uma semana? LUCIANO Doze dias. CHICO Você ficou rico, você agora é um homem rico, um milionário! Luciano concorda. CHICO O que você vai fazer com cem mil dólares? LUCIANO O que a gente pode fazer com cem mil dólares? Vou gastar. CENA 95 - CENTRO COMUNITÁRIO - INTERIOR/NOITE Inicia seqüência sem diálogos. Chico, Carolina, Lisa, Luciano, Andrew e Sílvia dançam no meio do salão. Todos parecem muito felizes e já estão suficientemente alcoolizados para perder a noção do ridículo. A banda ataca uma salsa explosiva. CENA 96 - LUCKY BREAD - EXTERIOR/DIA Chico e Luciano observam os operários que terminam a fachada da "LUCKY BREAD, Delícias Naturais". Luciano dá algumas instruções aos operários. IBARRI, um sujeito de bigode, relógio Rolex, corrente de ouro no pescoço, camisa e gravata, se aproxima de Luciano. Luciano apresenta o sujeito para Chico. CENA 97 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/DIA Ciça e outros atores contam tragédias e choram. O público chora e aplaude. É a gravação do "Vida Real". CENA 98 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE Luciano, Chico, Carolina e Lisa assistem "Vida Real". Todos, menos Carolina, acham muita graça no clima exageradamente trágico do programa. CENA 99 - PARQUE - EXTERIOR/DIA Num parque florido, uma EQUIPE DE PRODUÇÃO prepara a gravação de um comercial. É o cenário de um piquenique: toalha estendida na grama, entre as flores, um monte de pães, de diferentes tipos, dentro de uma cesta de vime. O MAQUILADOR, a CABELEIREIRA e a MANICURE preparam uma modelo, RENATA, para entrar em cena. Chico e Luciano discutem baixinho, longe da modelo. CHICO Não dá, cara. Olha, nós já ensaiamos duzentas vezes. Essa guria não vai conseguir dar o texto. LUCIANO Claro que vai, Chico, olha lá que gracinha. CHICO Eu odeio esse negócio, eu odeio publicidade. LUCIANO Claro. Publicitário tem que morrer, você já me disse isso trezentas vezes. Acontece que a gente precisa de dinheiro para o projeto, acontece que você aceitou fazer este comercial, acontece que eu quero vender bastante pão e acontece que a gente só tem mais uma hora de equipamento. CHICO Eu não posso fazer um comercial que vai ser pior que todos os comerciais que eu odeio. LUCIANO Chico, o sol tá caindo, Chico... (Aponta a modelo.) Olha lá a Renata. Ela é linda. Ela vai comer o meu pão e dizer que é gostoso, macio e fofinho. Todo mundo vai acreditar nela, porque ela é linda. Publicidade é só isso. Chico fica olhando para Luciano. Depois dá uma olhada para Renata. Ela dá um sorriso simpático para Chico. Chico retribui. CENA 100 - APTO.DE LUCIANO - INTERIOR/NOITE A tela de uma TV colorida. Renata começa a comer o pãozinho, linda e simpática. Musiquinha no fundo. Ela fica comendo o pão, com mordidas pequenas. LOCUTOR 1 Cláudia foi contratada para dizer que os pãezinhos da Lucky Bread são gostosos, macios e fofinhos. A Cláudia foi escolhida por que ela também é gostosa, macia e fofinha. Ela está ganhando um ótimo cachê só para dizer isso, que os pãezinhos da Lucky Bread são gostosos, macios e fofinhos. É um serviço fácil. Cláudia... Basta parar de comer e dizer que os pãezinhos da Lucky Bread são muito gostosos, macios e fofinhos. Ela sabe o texto de cór, já ensaiou várias vezes. Ela é uma profissional. Cláudia, por favor... Cláudia, Cláudia! Ela ainda está comendo. Entra a assinatura da Lucky Bread, com a locução final. LOCUTOR 2 Pãezinhos Lucky Bread. Experimente, e depois nos diga se eles não são gostosos, macios e fofinhos. Chico, Carolina, Luciano e Renata estão na sala do apto. de Luciano, onde se reuniram para tomar cerveja e ver a primeira veiculação do comercial. Carolina e Luciano aplaudem, entusiasmados. CAROLINA Ficou ótimo! CHICO É... podia ser pior. RENATA (sem entender) E o meu texto? LUCIANO (beijando Renata) Era um subtexto. Renata continua sem entender. LUCIANO Subtexto... um texto que fica por baixo do outro, não aparece, é super comum nos comerciais, eles usam muito nos Estado Unidos. (Dá outro beijo) Parabéns, Cláudia, você tá linda. Renata fica mais contente. RENATA Obrigado. LUCIANO E eu vou vender montanhas de pão. Parabéns, Chico, CHICO Publicitário tem que morrer. LUCIANO (erguendo o copo de cerveja) Longa vida ao Chico, um publicitário que um dia vai morrer. CAROLINA Ao "Tijolo"! CHICO Muitos tijolos! Todos brindam, alegres. Luciano dá um longo beijo em Renata. CENA 101 - BAR - INTERIOR/NOITE O Velho está numa mesa de bar, sozinho. Na sua frente, um copo com um resto de chopp, várias "bolachas" e um copinho de cachaça. Ele faz sinal para o GARÇOM, que passa sem lhe dar atenção. Chico entra no bar, procura e encontra o Velho. Vai até a mesa. CHICO Sozinho? Velho vira-se com a dificuldade natural dos bêbados, olha para cima, reconhece Chico. VELHO (discursando) Sozinho, não! Com os trabalhadores na luta pelo socialismo! Chico puxa uma cadeira e senta. CHICO Eu preciso falar com você. VELHO Quando alguém que JÁ está falando com você diz que precisa falar com você, pode ter certeza que tem sacanagem no meio. Tem, teve ou vai ter. CHICO Eu vou sair da tevê. VELHO Não te falei? Eu não disse? No caso, VAI TER sacanagem. CHICO O Luciano vai abrir uma produtora, me convidou pra trabalhar com ele. VELHO Você vai virar publicitário. Publicitário é um sujeito num balcão com uma caneta de ouro atrás da orelha. "Queira mais, patrão". (chamando) Garçom! Ôoo... Chumbo! Pelo amor de deus, Chumbo, faz duas horas que eu pedi um conhaque e um chopp! Quer o pedido por escrito? CHICO Velho, eu quero é fazer os meus projetos. A minha condição pra trabalhar na produtora é não fazer SÓ comerciais. Eu tenho um projeto com a Carolina, "O Tijolo", um especial pra televisão, o roteiro é do Luciano, eu já te mostrei. VELHO Se você que virar publicitário, tudo bem, eu entendo. Publicitário vive cercado de modelos maravilhosas, trabalha pouco, se diverte muito... Em compensação ganha uma fortuna. Tudo bem, Chico. Vai fundo. O garçom chega e larga dois copos de chopp na mesa. Chico faz menção de devolver o dele, o Velho não deixa. VELHO E o conhaque? Ôoo... Chumbo! E o conhaque? Chumbo já foi. VELHO Deixa aí! Vamos fazer um brinde... um brinde... ao Chumbo! Um brinde ao Chumbo, que não vai virar publicitário e, um dia, vai me trazer o conhaque. CHICO Ao Chumbo! CENA 102 - CASA DE CHICO - INTERIOR/NOITE Chico dorme. O porteiro eletrônico bate várias vezes seguidas. Chico acorda e vai atender. É a voz de Luciano LUCIANO (OFF) Chico, desce. CHICO Quê que houve? LUCIANO (OFF) Desce. Eu te explico no caminho. CENA 103 - CARRO DE LUCIANO - EXTERIOR/NOITE Luciano dirige em grande velocidade por uma avenida. LUCIANO Colocaram uma camisa de força nela e arrastaram pra dentro da ambulância. Ela tava gritando o meu nome. O vizinho pegou a guitarra, que era toda rabiscada, achou meu número e telefonou. CHICO Quem foi que chamou a clínica? LUCIANO Não sei. Quem atendeu o telefone foi a Cláudia, eu estava no banho. Deve ter sido a mãe. CHICO Que Cláudia? LUCIANO A Renata. CHICO Você avisou a Carolina? CENA 104 - FRENTE DA CLÍNICA / PORTARIA - INTERIOR/NOITE Carolina já está na portaria, discutindo com um SEGURANÇA. Chico e Luciano entram. CAROLINA Esse imbecil tá dizendo que a gente não pode entrar. SEGURANÇA Vocês são familiares? LUCIANO Eu sou, sou irmão dela. A minha mãe taí? SEGURANÇA (desconfiado) O senhor tem uma carteira de identidade? LUCIANO Claro que eu tenho carteira de identidade, mas não aqui comigo, agora. Eu saí correndo de casa. Mas o senhor, por favor, chame a minha mãe, ela deve estar aí com a Lisa, não está? O segurança, irritado, verifica uma ficha. SEGURANÇA (pelo telefone interno) Por favor, senhora Dilma Reis, queira comparecer à recepção. Chico leva Luciano para um canto. CHICO Qual é a idéia, Luciano? Eu não estou entendendo. LUCIANO No mínimo eu vou dar umas porradas nela. CHICO Isso não resolve nada. Uma porta abre. Surge a mãe de Lisa. CHICO (para o segurança) Vocês estão cometendo um erro. Esta senhora já esteve internada aqui, dois anos atrás. Você não lembra dela? Dilma bota os óculos escuros, o que só contribui para a armação de Chico. CHICO Pode conferir aí nos arquivos... Dilma Reis. Ela... tem problemas. O senhor há de concordar comigo que ela não tem condições de atestar sobre a saúde mental da filha... DILMA Chico, pára com isso. SEGURANÇA (confuso) Eu não posso ver os arquivos daqui. CHICO Então chama um médico. DILMA (baixo, para Chico) Chico, não faz isso comigo, Chico... CHICO (baixo, para Dilma) Manda soltar a Lisa. DILMA Ela tá muito perturbada, Chico. Ela tá violenta. Eu não tenho mais condições de... CAROLINA Ela não vai voltar pra sua casa. A gente toma conta, pode deixar. DILMA Ela não me respeita mais. LUCIANO (para o segurança) Você não está vendo que ela é que é maluca? Vê a ficha dela! CHICO Calma, Luciano. O segurança pega o telefone outra vez. Logo depois, surge um ENFERMEIRO, muito forte. ENFERMEIRO Qual é o problema? CAROLINA O problema é que essa senhora é toxicômana e mandou internar a própria filha. ENFERMEIRO (olhando bem para a mãe de Lisa) Eu conheço a senhora... CHICO Claro, ela esteve internada aqui, há dois anos. ENFERMEIRO (para Dilma) Como é o nome da senhora? DILMA Olha doutor, minha filha está doente... ENFERMEIRO Como é o seu nome? DILMA Dilma. Dilma Reis. ENFERMEIRO Com licença. E sai. A mãe de Lisa fica desconcertada. CHICO Dona Dilma, vamos fazer um acordo. LUCIANO A gente sabe que a Lisa não tá legal, mas aqui ela não pode ficar. DILMA Mas eu não posso... CAROLINA A gente fica com ela, Dona Dilma. A senhora sabe que nós gostamos dela. DILMA Ela não tem dinheiro. LUCIANO Eu me responsabilizo. DILMA Eu sou mãe dela, e ninguém gosta dela mais do que eu. E se eu trouxe ela pra cá, era pro bem dela. Dilma caminha nervosamente pelo saguão. Pára, pega um cigarro. Vê que há uma grande placa de NÃO FUME na parede. Guarda o cigarro. DILMA Vocês tem que me prometer que ela não vai ficar sozinha, nem um minuto, nem um segundo. (pausa) Se acontecer alguma coisa com ela, eu juro que mato vocês. CENA 105 - CALÇADA DA CLÍNICA - EXTERIOR/NOITE Lisa sai da clínica, amparada por Luciano. Ela está dormindo em pé e mal consegue caminhar. CHICO (OFF) Nós tiramos a Lisa da clínica meia hora depois, mas ela já estava dopada. Dormiu quase vinte horas seguidas. CENA 106 - AEROPORTO - INTERIOR/DIA Chico e Carolina esperam o desembarque de um vôo. Carolina sorri e aponta para Luciano e Lisa. Eles parecem muito felizes e cansados, cheios de presentes e malas. CHICO (OFF) Quando acordou, na casa do Luciano, disse que estava a fim de viajar. Ele comprou duas passagens para Nova Iorque. Ele sempre quis cuidar da Lisa, ser responsável por ela. Foram pra passar um mês, voltaram oito dias depois, de casamento marcado. O Luciano dizia sempre que era um homem do seu tempo e tinha pressa. O que ele não dizia é que a frase era do Médici. CENA 107 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/DIA Luciano e Chico, de terno e gravata, entram num grande e luxuoso escritório. O escritório é decorado com grandes fotos de vacas, garrafas de leite e queijos. DAVI levanta de sua mesa e cumprimenta Luciano. DAVI Lucky Luciano! LUCIANO Fala, Davi! Luciano apresenta Chico. LUCIANO Davi, este é o famoso Chico Freire, o mago das telinhas. DAVI O Luciano não pára de falar do seu trabalho. CHICO O Luciano normalmente não pára de falar. Ele exagera um pouco. DAVI No seu caso, eu não acho. Eu já vi o seu trabalho e é realmente muito bom. CHICO Obrigado. Davi apresenta dois assessores, GUSTAVO e LÚCIO, e uma secretária, dona LOURDES. DAVI GUSTAVO, do departamento de marketing, Doutor Lúcio, do jurídico, Dona Lourdes... Vamos sentar. Chico cumprimenta a todos e vai sentando numa grande sala de reuniões. DAVI Nós fomos colegas de Anchieta, não da mesma turma, eu era um pouco mais velho. Não sou mais. Os assessores riem muito. Chico faz cara de quem tenta se lembrar de Davi no colégio. DAVI No colégio me chamavam de Roal, meu nome é Davi Roal, mas eu não queria que pensassem que eu era judeu. Agora eu quero. Os assessores riem muito. DAVI O Gustavo vai expor rapidamente qual é a nossa estratégia de marketing, nosso target, e qual é o recall esperado com essa campanha. Gustavo, o assessor de marketing, começa a falar e mostrar gráficos e alguns panfletos com fotos de mulheres de maiô comendo iogurte. Chico finge que presta muita atenção. Um GARÇOM serve cafezinho e iogurte para todos. Luciano faz alguns comentários durante a exposição de Gustavo. CHICO (OFF) Quando eu fiz faculdade, achava que jornalistas falavam a verdade por opção ideológica, e publicitários mentiam profissionalmente. Os meus colegas, tanto os estudantes de publicidade quanto de jornalismo, também achavam isso. Os próprios professores achavam isso. E hoje eu me pergunto: como um engano tão grande enganou tanta gente durante tanto tempo? Como eu acreditei que era possível dividir tão facilmente as pessoas em dois times, o meu time e o time deles? E como eu fui capaz de trocar de time enquanto ainda acreditava nisso? CENA 108 - OBRAS DA PADARIA - INTERIOR/DIA Durante todo o diálogo, Chico e Luciano caminham pela obra da padaria. CHICO Roal ou Davi, ele continua sendo um imbecil. Ele sempre foi e sempre vai ser um imbecil. Lembra quando ele ganhou aquele mini-bug no concurso? LUCIANO (balançando a cabeça) Chico, deixa eu te explicar uma coisa. Uma produtora de comerciais faz comerciais. Sacou? (articula bem a palavra) Co- mer-ci-ais. A palavra vem de comércio, que significa troca de mercadorias, de serviços, de idéias, de qualquer porra, por dinheiro. Você não pode se recusar a fazer esse ou aquele comercial. O raciocínio é o oposto: você quer fazer (articulando) qual-quer comercial, se pagarem o que você pede. E o Davi tem muita grana, pode até sustentar a produtora. CHICO Luciano, eu não disse que eu não vou fazer o comercial. Eu disse que a gente poderia ter uma produtora diferente das outras, uma produtora mais seletiva, que a princípio não aceitasse fazer qualquer merda. Eu acho que isso, a longo prazo... LUCIANO Uma merda bem feita e bem paga é absolutamente digna, Chico. Nós estamos há três horas nessa discussão. Eu te propus um negócio, uma coisa séria, montar uma produtora pra poder viabilizar os teus projetos, os nossos projetos. Você não quer fazer "O Tijolo" com a Carolina, vocês não falam disso há anos, se queixando que não tem espaço, que ninguém apóia a cultura? No meio do discurso, Luciano grita com TONHO, o operário que está rebocando a parede da obra. LUCIANO (gritando) Tonho, essa parede não era pra tá pronta desde ontem? Tonho pára, olha para Luciano, mas não chega a responder porque Luciano se afasta, puxando Chico e retomando o assunto. LUCIANO A produtora é uma chance de você ganhar dinheiro com o teu talento e ainda por cima viabilizar os teus projetos. Quando tudo isso está a um passo de se tornar possível, você vem com esse papo de coerência política! Tudo bem, Chico, você não é obrigado a ser meu sócio. CHICO Luciano, você sabe que, se fosse só pela grana, eu tava trabalhando com o meu velho na construtora. Podia ser vice de qualquer coisa. LUCIANO Então vai, cara. Vai ser vice de qualquer coisa. Luciano estende um projeto arquitetônico sobre uma mesa, no meio da obra. Fica examinando o projeto, como se considerasse a conversa encerrada. CHICO Você sabe que eu não gosto de publicidade. Sem olhar para Chico. LUCIANO Sei. Eu também não gosto. Prefiro ficar em casa fumando um e vendo a sessão da tarde na tevê. CHICO Eu tô falando sério. Se a gente vai ser sócio, as coisas têm que ficar claras. LUCIANO (ainda olhando para baixo) Mais claras, impossível. Eu entro com a grana, monto a estrutura, tomo uísque com caras como o Davi e consigo trabalho. Você faz com que os trabalhos fiquem bons. É simples. Eu tenho setenta por cento da empresa, você tem trinta. E mais os cachês por cada trabalho que você dirigir. CHICO Luciano, falando sério, você sabe que o único comercial que eu fiz na vida foi aquele do "Lucky Bread". Você sabe que eu não gosto disso. Por que você acha que eu vou ser um bom sócio? LUCIANO (agora olhando diretamente para Chico) Porque poucas pessoas na cidade são capazes de fazer um bom comercial do "Lucky Bread". E nenhuma, entre essas pessoas, ainda têm coragem de falar em coerência política. (pausa) A gente pode se divertir e ganhar dinheiro ao mesmo tempo. Se divertir e ganhar dinheiro é o meu ramo de negócios. Você tem que descobrir qual é o seu. CHICO Eu pensava que era jornalismo. LUCIANO Isso não é ramo. É doença. Chico vai responder, mas desiste. Fica olhando para Luciano, com uma expressão de tédio e derrota. CENA 109 - PISCINA DE COMERCIAL - EXTERIOR/DIA Uma MODELO morena, vestindo um maiô, pula do trampolim para a água. A entrada na água é perfeita, num ângulo de 90 graus. O movimento é registrado em câmara super lenta. Só ouvimos o barulho da câmara rodando. CHICO Corta! (Olha para o diretor de fotografia.) Valeu? O diretor de fotografia faz sinal de positivo. CHICO Então deu pra nós. Parabéns pra todos. (gritando, para a modelo) Pode te vestir. Obrigado. Chico senta num banquinho, suspirando, satisfeito porque a tortura acabou. Mas GERALDINHO, um rapaz da agência, rapidamente se agacha ao seu lado. GERALDINHO (sussurrando) Nós vamos fazer de novo esse último plano? CHICO (sem dar muita atenção) Não, esse último ficou ótimo. E tem mais duas opções. GERALDINHO A gente podia tentar com aquela outra modelo. CHICO A outra cai de barriga. Quase se afogou no ensaio. GERALDINHO É que... o doutor Gustavo acha a outra mais bonita. CHICO (tentando colocar um ponto final) Então ele paga um cursinho rápido de natação pra ela. Geraldinho, o comercial vai ficar ótimo. Não te preocupa. Geraldinho levanta e caminha até onde está Gustavo, que sorri para todos os lados. Geraldinho fala com ele, que não gosta do que ouve. Geraldinho aproxima-se de Luciano e fala com ele. Chico está conversando com o diretor de fotografia. Luciano aproxima-se, abraça Chico e o leva para um canto. LUCIANO Vamos fazer de novo o último plano. CHICO Pra quê? Ficou ótimo! LUCIANO O cliente chegou atrasado. E viu que a gente não usou a modelo que ele prefere. CHICO Azar o dele. LUCIANO É ele que aprova o comercial, Chico. (irritado) O que você prefere? Fazer agora, que tá tudo pronto, ou voltar daqui a uma semana? Chico vai responder, mas desiste. Olha para Luciano, com uma expressão de tédio e derrota. Uma OUTRA MODELO, loura, prepara-se para saltar do trampolim. Está nitidamente nervosa, mas disfarça sorrindo amarelo. Ela salta. A entrada na água é desastrosa, de barriga. Assistimos a tudo em câmara super-lenta. CENA 110 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE Chico tenta editar o comercial dos maiôs. Luciano está sentado ao lado de Chico e fala sem olhar para o monitor. Chico, ao contrário, não tira os olhos da tela. No monitor, a modelo loura, num trampolim, prepara-se para mergulhar na piscina. LUCIANO Um candidato é um produto como qualquer outro, Chico. Um biscoito, um iogurte, um maiô. CHICO (irônico) Tá bom... A modelo loura pula do trampolim e cai de barriga na água. O EDITOR congela a cena, volta lentamente a imagem até o ponto em que a modelo loura quase toca na água. LUCIANO Qual a diferença? CHICO A diferença é que o biscoito não quer ser prefeito da cidade, o iogurte não vai mandar transferir as favelas, o maiô não vai dizer onde o ônibus vai passar. O monitor agora mostra a imagem submarina da modelo morena mergulhando, em câmara-lenta. O editor congela a imagem no momento em que se percebe claramente que o cabelo dela é preto. Ele recua a imagem alguns quadros antes. Ele aciona a máquina, que faz a edição. No monitor, a modelo loura pula no trampolim, a modelo morena mergulha, a modelo loura sai da água. LUCIANO Você acha que o Davi é pior que os outros? Ele vai ser candidato de qualquer jeito, você não pode impedir isso. CHICO Mas não preciso ser cúmplice. (para o editor) O plano submarino ficou um pouco curto. Experimenta um pouco mais lento, acho que pode dar certo. O editor começa a refazer a edição. LUCIANO Você e a Carolina vivem criando projetos que nunca vão sair do papel por absoluta falta de grana, "O Tijolo" é um exemplo. Você desistiu do "Tijolo"? (pausa) Não é crime ser candidato a prefeito. Vota nele quem quer. CHICO E compra iogurte quem quer, vê televisão quem quer... Você sabe que não é assim, Luciano. As pessoas querem acreditar em alguma coisa. A gente diz pra elas que comendo esta merda de iogurte, cheio de conservantes, acidulantes, flavorizantes e aromatizantes cancerígenos ela vai ser forte, bonita e sexualmente atraente. A gente diz e elas acreditam, por que elas tão super a fim de acreditar em qualquer merda que tire elas da vida de merda que elas levam, seja um iogurte, um cigarro, um chinelo de plástico ou um candidato a prefeito. Só que um candidato a prefeito pode ser mais cancerígeno, mais mortal que qualquer biscoito ou iogurte. Um candidato NÃO é um produto qualquer. LUCIANO Chico, a verba da campanha do Davi pra televisão é de dois milhões de dólares. A edição do comercial fica pronta. A modelo loura pula do trampolim, o plano submarino mostra a modelo morena, a modelo loura sai da água, pega uma embalagem do iogurte DAVI e toma um gole. Entra a assinatura em computação gráfica: "Qualidade DAVI". CENA 111 - ESCRITÓRIO DE DAVI - INTERIOR/NOITE Vários ASSESSORES, aspecto cansado, discutem com Davi as estratégias de campanha. Há vários lay-outs sobre a mesa, cartazes, plásticos, buttons. Copos de café e cigarros atestam que a reunião já dura algumas horas. As pessoas gritam e gesticulam mas Chico não escuta mais. CHICO (OFF) Eu tenho que ter uma idéia, uma idéia só. Todo mundo já disse as obviedades de sempre, já marcou posição, já puxou o saco, já pediu café, já telefonou pra família, já disse piadas, já comentou o jornal de hoje. Agora é hora de alguém ter realmente alguma idéia. Assim que alguém tiver alguma idéia todos vão se agarrar a ela como náufragos numa bóia. Chico escreve o nome DAVI, uma, duas, muitas vezes, num pedaço de papel. CHICO (OFF) Com uma idéia a gente gasta o resto do repertório da reunião. Alguns vão odiar, outros vão adorar, a maioria vai tentar adivinhar o que o Davi vai achar pra concordar por antecipação. Outros, mais práticos, vão esperar pra ver o que ele acha pra depois achar alguma coisa. De qualquer maneira, no máximo em quinze minutos, todos vão concordar que é melhor pensar com calma e voltar a conversar amanhã e eu vou poder ir para casa, sentar no banheiro, ler o Planeta Diário que eu comprei, tomar banho, fumar um e dormir vendo um filme do Billy Wilder. Pra tudo isso acontecer, basta eu ter uma idéia, uma idéia de verdade. Chico rasga a folha de papel, isolando o nome DAVI num papelzinho bem pequeno. Chico rasga o nome DAVI ao meio, inverte as sílabas e lê: VIDA. Volta a inverter: DAVI. Chico fica olhando para aquele pedacinho de papel. Levanta os olhos, encara Davi. CHICO Eu tive uma idéia. CENA 112 - ESTÚDIO DE SOM - INTERIOR/DIA Num estúdio de som, quatro cantores e alguns músicos gravam o jingle da campanha de Davi. A palavra "Vida" cantada várias vezes se transforma em "Davi". Chico acompanha a gravação. CENA 113 - GRÁFICA - INTERIOR/DIA Uma máquina imprime um cartaz com a marca "DAVIDAVIDAVI". Um FUNCIONÁRIO corta uma folha com várias tiras, em que a marca "DAVIDAVIDAVI" aparece em um padrão ligeiramente diferente. QUATRO CEGOS colocam presilhas na parte anterior de alguns buttons, todos com a marca "DAVIDAVIDAVI". MULHERES colam adesivos com a marca "DAVIDAVIDAVI" em caixas de fósforos. CENA 114 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA PINTORES, OPERÁRIOS e CENOTÉCNICOS aprontam o estúdio de gravação. Uma parede está coberta com a palavra "VIDA". Noutra parede terminam de ser colocadas, em frente a um grande céu aerografado, grandes letras que formam a palavra "DAVI". CENA 115 - SALA DE PÓS-PRODUÇÃO - INTERIOR/DIA Num monitor, Chico vê os primeiros movimentos de uma animação em computação gráfica. A ilha de edição está sendo montada e ainda há um monte de equipamentos encaixotados. CENA 116 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA Chico dirige um comercial. Ele fala com um CASAL DE ATORES. Ela está de costas para a câmara, em pé sobre uma caixa. Duas ASSISTENTES prendem o cabelo dela por trás, com um grampo. O vestido dela está cheio de fitas adesivas nas costas. Ela veste uma calça jeans sob o vestido. O ator lê o roteiro e exercita os músculos da face. O FOTÓGRAFO e o CABELEIREIRO se esforçam para puxar alguns fios de cabelo que cubram a reluzente careca do ator. Não têm muito sucesso. O ator está visivelmente irritado com a atriz. Aparentemente eles se odeiam. O fotógrafo cola um pedaço de papel atrás da orelha do ator. Um ASSISTENTE DE PRODUÇÃO, um gordo sem camisa, fica agachado atrás da atriz, segurando o vestido, que está rasgado nas costas. Tudo parece estar finalmente pronto e é horrível, visto pelas costas. Pela frente, os dois estão lindos e felizes. A cena é um encontro. Ele segura um copo de vinho. ATOR (muito feliz) Oi! Você aqui? ATRIZ (muito feliz) Oi! Claro! (olhando em volta) Eu adoro este lugar... O que você está tomando? ATOR Vinho Marquês de Santana. ATRIZ Você está sozinho? CENA 117 - VÍDEO-CLUBE - INTERIOR/NOITE Chico está agachado, tentando ler o título dos filmes na lombada das caixinhas de vídeo. Como algumas caixinhas estão viradas de um lado e outras de outro, Chico fica virando a cabeça, numa coreografia meio ridícula. Carolina se aproxima e reconhece Chico. CAROLINA Chico... Chico olha pra cima. Levanta-se. CHICO Carolina. Beijam-se, carinhosos e realmente felizes por terem se encontrado. CAROLINA Tá mais magro. CHICO Impossível. Eles riem. CHICO E o José? CAROLINA Tudo bem. Está no Rio, com a vó. CHICO Já consegue se desgrudar? Que progresso... CAROLINA Tudo bem? A gente não se vê mais desde que, aquele dia, na clínica. CHICO Pois é. Tudo bem com você? CAROLINA Tudo bem. (pausa) E a Lisa? Tudo bem? CHICO Acho que sim. O Luciano, pelo menos, diz que sim. CAROLINA Estou preparando uma peça nova. CHICO Infantil? CAROLINA Infantil. Bem legal, direção do Abraão. CHICO Tudo bem com ele? CAROLINA Tudo. Ele adorou o roteiro do "Tijolo", disse que a gente tem que fazer o vídeo de qualquer jeito. CHICO Pois é... Problema é arranjar grana... E tempo. Eles ficam um pouco sem assunto, parados na frente da prateleira de vídeos onde se lê: "SUSPENSE" CAROLINA Eu fico sabendo de você pelo jornal. Você vai fazer a campanha do Davi. Chico caminha, meio desconfortável, meio tentando evitar olhar diretamente para Carolina. Ela percebe o constrangimento. CHICO Vou. CAROLINA Ele é legal? CAROLINA Político. Estou fazendo pela grana. Pelo menos é melhor que esse Gabriel. CAROLINA Claro. Eles ficam outra vez sem assunto, agora parados na frente das fitas "COMÉDIA". CAROLINA (olhando a fita que Chico tem na mão) Que filme você pegou? CHICO (mostrando) "Passagem sem Volta". Você conhece? CAROLINA Não. CHICO Nem eu. Mas eu gostei da sinopse. (lendo) "Luca, - Michael Sean, "Assassinato no Metrô" - é um jovem boxeador contratado para ser guarda-costas do empresário Carlo Fabrizzi - John Davis, "Uma noite muito louca". Através das reportagens de Pearl Cristhie - Martina Mills, "A Montanha Assassina Dois", Luca descobre que Fabrizzi controla o contrabando de armas para o Oriente Médio. Uma intriga internacional repleta de ação, erotismo e aventura, produzida pela mesma equipe de "Esquadrão Suicida". CAROLINA Interessante. CHICO E você? CAROLINA Eu estou devolvendo um, "Brincadeira Arriscada". CHICO Acho que eu vi o trailer. Não é um com a Cindy Parker? Eles agora estão na frente do "DRAMA". CAROLINA Isso. Ela é uma médica e todos os caras com quem ela sai morrem de uma peste horrorosa, cheios de bolhas e feridas. Você já viu? CHICO Não tenho certeza... CAROLINA No fim o detetive descobre que é o ex-marido dela que contamina as pessoas. Ela acaba sozinha, porque o detetive, não sei o nome do ator, era casado com a Cecilia McKane, uma ruiva crespa, com umas sardas. CHICO Sei quem é. Aquela do "Nosso Último Verão". CAROLINA Ela mesma. Claro que o detetive fica com ela. Ninguém deixa a Cecilia McKane. CHICO Claro que não, deve estar no contrato dela. Eles riem. Agora eles estão no "ROMANCE". CHICO Você não vai pegar nada? CAROLINA Acho que não. Vou só devolver. Como está caro o aluguel, é incrível! CHICO É. (pausa) A gente podia comer alguma coisa, eu estou morrendo de fome. (pausa) Ou podia também ir a um cinema. Ela fica alguns segundos pensando, olha para os filmes na estante, olha para Chico. CAROLINA É. Podia. CENA 118 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Chico e Carolina estão na cama, nus. Carolina está abraçada em Chico, ele assiste que assiste televisão. Na TV, um VENDEDOR/GAROTO PROPAGANDA fala olhando diretamente para a câmara. Ao seu lado, uma caixa de "New Life". VENDEDOR ...sabe como eu me sentia? Eu acordava de manhã e não via motivo pra sair da cama. Eu não gostava do meu emprego, mas precisava do salário para viver. Eu me irritava com o trânsito, com os meus colegas e com o meu chefe. E quando eu voltava do trabalho eu me irritava com a minha mulher, com meus filhos, com o jornal e com a novela. Tudo isso mudou quando eu conheci "New Life". Com "New Life"... Chico aciona o controle remoto e troca de canal, sem ficar sabendo o que é ou para que serve "New Life". Um APRESENTADOR vestido com um escafandro entrevista uma SOCIALITE em traje de gala. Ela está de braço dado com um SUJEITO DE SMOKING que, durante a entrevista, fica abanando para algumas pessoas fora de quadro. Eles estão numa festa à beira de uma piscina e gritam muito. A música ambiente é insuportavelmente alta e ruim. APRESENTADOR ...você poderia explicar em poucas palavras, pro público de casa, o que é neurolingüística? SOCIALITE (gritando) O quê? APRESENTADOR (gritando) Eu estou pedindo para você explicar para o público o que é o seu trabalho, o que é neurolingüística! SOCIALITE Ah..! É que por trás de tudo que você faz, cada gesto, cada ação, existe uma programação, um procedimento programado, como se fosse um programa de computador... APRESENTADOR Até pra namorar? Eles acham graça. APRESENTADOR Por falar nisso, você não me apresentou o seu namorado. Eles acham graça. SOCIALITE Ele não é meu namorado. APRESENTADOR E televisão? É verdade que você vai fazer uma novela? Chico muda de canal. Dá de cara com o comercial que ele fez, aquele da piscina. Muda de canal outra vez. Pára num telejornal que mostra uma matéria policial numa favela. A REPÓRTER mostra os furos de bala na parede de um barraco. REPÓRTER ...o segundo tiro entrou aqui, vocês podem ver o buraco da bala, que perfurou a parede e veio atingir Waldecir quando ele estava tomando café aqui nesta mesa... Chico tira o som da TV. Aparece uma MULHER chorando, desesperada. A repórter agora entrevista a mulher, que não pára de chorar, sempre escondendo o rosto com a mão. CAROLINA Acho que a gente sempre soube que um dia isto ia acontecer. Eu, pelo menos, sempre soube. A minha analista disse que a gente confunde desejo com destino. Quando a gente quer muito que uma coisa aconteça a gente acaba fazendo de tudo para que esta coisa aconteça, mesmo sem se dar conta. Aí quando acontece a gente acha que foi o destino. Mas eu acho legal que tenha acontecido agora e não quando a gente se conheceu. (pausa) Você não tinha certeza que isso um dia ia acontecer? CHICO O quê? CAROLINA A gente. CHICO Ah... CAROLINA Você achava que podia acontecer? CHICO Achava sim. CAROLINA Eu tinha certeza. Davi aparece na TV, dando uma entrevista. Chico aumenta o som. DAVI ...e a questão da segurança, que aflige a todos, aos jovens e aos pais, eu acredito que deva ser enfrentada pelo governo com coragem e com determinação. Os governos municipais são omissos, transferindo a responsabilidade para o governo estadual e federal. Enquanto isso a população se tranca em suas casas, entrincheirada nesta guerra sem fronteiras em que estão mergulhadas as grandes cidades brasileiras. Volta para o APRESENTADOR. APRESENTADOR E o último candidato na corrida para a prefeitura foi definido hoje... CAROLINA Fala bem o Davi. Mas essa conversa de segurança é sempre igual, só serve para aumentar a paranóia. Estes políticos ... Chico aumenta o volume. CHICO Só um pouquinho. APRESENTADOR ... na tumultuada convenção da Frente Democrática. REPÓRTER As candidaturas do economista Joaquim Canhette e do deputado Luiz Renato ameaçavam rachar a Frente. A solução acabou sendo a terceira via, representada pelo azarão da noite e agora candidato a prefeito, o jornalista e líder comunitário Andrew Ribeiro. Andrew dá entrevista, vários microfones na frente. REPÓRTER O senhor era o azarão e sai da convenção candidato. Isso pode se repetir na eleição? ANDREW Acho que pode, mas não por minha causa. Eu acho que a Frente Democrática tem todas as condições de conquistar a prefeitura porque é da Frente Democrática o melhor programa de governo. Além disso a Frente defende os interesses dos trabalhadores, dos assalariados, dos estudantes, daqueles que moram nas vilas populares e exigem melhores condições de vida, enfim... CENA 119 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/DIA Chico, Davi e alguns ASSESSORES assistem ao jornal. ANDREW ... da imensa maioria da população da cidade. Nossos oponentes defendem os interesses das elites, que estão em menor número. Lembre-se que na hora da eleição a gente vale o mesmo que eles. Chico desliga o VT. DAVI O fato de ele ter sido seu amigo faz diferença? CHICO Eu assinei um contrato, não assinei? Davi fica alguns segundos observando Chico. DAVI "A gente" e "eles". Essa deve ser a linha da campanha dele, querer me apresentar como candidato dos ricos. ASSESSOR Vamos usar na tevê aquela pesquisa que mostra nossos eleitores de classe C e D. Pobre não gosta dessa conversa de luta de classes. CHICO Assumir pesquisa pode ser perigoso. Se a gente começa a cair ou se ele começa a subir a gente não pode mais falar mal da pesquisa. DAVI Você acha que isso pode acontecer? CHICO Tudo pode acontecer. (levantando) Vamos trabalhar? A equipe já deve estar nos esperando há horas. DAVI Você vem? CHICO Eu encontro vocês lá. Vou dar uma passada na casa de um amigo. CENA 120 - CASA DE ANDREW - EXTERIOR/DIA Chico bate palmas em frente a casa de Andrew. Sílvia aparece na porta. Uma CRIANÇA de dois anos está agarrada à perna dela. Um cachorrinho late muito. SÍLVIA Sim? CHICO Sílvia? Lembra de mim? Eu sou o Chico, amigo do Andrew. SÍLVIA (não muito animada) Ah... CHICO O Andrew... ele está? SÍLVIA O Andrew não mora mais aqui. Faz mais de um ano. CHICO Ah... E você não sabe o novo endereço ou ... SÍLVIA Eu não sei do Andrew. Só pelo jornal. Mas eu não vou dar nenhuma entrevista, muito menos para ajudar aquele Davi, se é isso que você quer. CHICO Não, claro que não. (pausa) Eu só queria conversar com o Andrew, fora do comitê... (pausa) O filho de vocês tá enorme... SÍLVIA Filha. Clarissa. Agora ela está melhor. CHICO Ela esteve doente? SÍLVIA Teve meningite, quase morreu. O Andrew não te falou? CHICO Na verdade eu não vejo o Andrew há algum tempo... SÍLVIA Mas ela ficou boa, graças a deus. Depois teve caxumba, mas caxumba tudo bem. CHICO Claro. O José, filho da Carolina, também teve caxumba. Tudo bem. Ficam sem assunto. SÍLVIA (para o cachorro) Quieto, Biluca! (para Chico) Você quer entrar um pouco? CHICO Não, não... Eu tenho que trabalhar. Bom, se você falar com o Andrew... SÍLVIA Eu não vou encontrar o Andrew. (pausa) Se você encontrar o Andrew, diga que a Clarissa teve caxumba. CHICO Eu digo. CENA 121 - VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA Chico acompanha Davi e uma comitiva numa visita a uma vila. Um caminhão de som toca o jingle sem parar. Os cabos eleitorais distribuem camisetas e panfletos. Chico orienta o CINEGRAFISTA nas gravações. Chico entra numa casa miserável atrás de Davi. É uma única peça com várias camas, fogão e uma TV. Algumas CRIANÇAS bem pequenas assistem TV. Davi fala com a MÃE delas. Ela tem um BEBÊ no colo e está grávida. Na televisão, Chico vê o comercial do iogurte. CENA 122 - CARRO NA FREE-WAY - EXTERIOR/DIA Chico dirige. Carolina ao seu lado. No banco de trás, Lisa e Luciano beijam-se, apaixonados. Rock'n'roll no rádio. CENA 123 - ESTRADA SECUNDÁRIA - EXTERIOR/DIA O carro entra numa estrada secundária. Uma placa indica "RAINHA DO MAR - 2 km" CENA 124 - CASA DE PRAIA/VARANDA - EXTERIOR/DIA Chico, Lisa e Luciano estão sentados na varanda da casa, no final da tarde, fumando, tomando chimarrão e bebendo cachaça, tudo ao mesmo tempo. Estão morrendo de frio. Carolina chega da rua. LISA Telefonou? CAROLINA Telefonei. Está tudo bem, ele está sem febre. LUCIANO O José estava com febre? CAROLINA Não. Mas ele estava um pouco gripado, eu achei que ele podia ter febre hoje. CHICO Você foi lá telefonar porque achou que ele podia ter febre... Meu deus... CAROLINA (esfregando as mãos) Quem teve a idéia de vir para a praia no Inverno? LUCIANO (enrolando-se mais no cobertor) O Chico. Ele disse que é a melhor época. CHICO Eu gosto. Olha só, não tem ninguém pra encher o saco. A gente pode fazer qualquer coisa. LISA Qualquer coisa? CENA 125 - PRAIA - EXTERIOR/DIA Os três enfileirados, de pé, na areia, morrendo de frio. Olham para a frente. Lisa sai correndo do mar e chega perto deles. Ela está vestindo uma roupa de borracha completa, tipo essas dos surfistas no inverno). CAROLINA Tem certeza que essa roupa funciona, Lisa? LISA Claro que funciona. Vocês acham que eu ia ser louca de entrar na água se não funcionasse? CHICO Eu acho. LUCIANO Eu também acho. Lisa dá um beijo em cada um. LISA O último a chegar em casa é um pingüim! E sai correndo. Os outros se olham por um instante. Depois, também saem atrás. CENA 126 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE Chico está no fogão fazendo uma massa. Lisa está tomando um banho. Luciano e Carolina conversam na sacada. LISA (berrando do banheiro) O quê que vai ter no jantar? Eu tô morrendo de fome. CHICO Minha especialidade: massa com sardinha. LUCIANO (berrando da sala) Não. Tudo menos massa com sardinha! CHICO (enquanto descarrega as compras de um saco de supermercado) Cadê as latas de sardinhas? Ele olha pra dentro do saco. Nada. CHICO Eu não comprei sardinha! LUCIANO Graças a Deus. Eu vou comprar alguma coisa decente pra gente comer. Aquele supermercado de Capão fica aberto até as oito. CHICO (chegando na sala) Eu só preciso duas latas de sardinha. LUCIANO Tudo bem. Aí eu já aproveito e compro um monte de comida congelada. CAROLINA Não foi você que disse que cada dia um de nós ia pra cozinha? LUCIANO (afirmativo) Eu vou fazer a minha comida. CAROLINA Congelada não vale. LUCIANO Tá. Vem comigo. No caminho a gente acerta esse negócio. Luciano carrega Carolina pelo braço em direção à porta. Eles saem. Chico vai até a porta do banheiro. CHICO Lisa, a água não tá fria? O velho chuveiro elétrico, cheio de fios mal encapados, faz muito barulho. LISA (gritando) Sabe que não? Eu tava mesmo pensando nisso. (Começa a sair uma fumacinha do chuveiro). Até que esse chuveiro é bem legal. O chuveiro entra em curto total. Faz um barulho estranho e pega fogo. Lisa olha, apavorada, e dá um grito. CHICO Quê que houve, Lisa? As cortinas do box pegam fogo também. LISA (saindo do box, correndo) Fogo! Tá pegando fogo aqui! Ela está apavorada, não consegue fazer nada. CHICO Abre a porta, Lisa! Ele entra. O banheiro está todo enfumaçado. Juntaram-se o vapor da água do banho com a fumaça do pequeno incêndio. Há fogo no box. CHICO Sai daqui, Lisa! LISA Eu vou pegar o extintor no carro. Lisa sai correndo, quase pelada mesmo, tentando se enrolar numa toalha muito pequena. Chico fica assistindo o fogo sem fazer nada. CHICO O carro não tá aqui. Eles foram comprar comida congelada. LISA Então vamos pegar água. Onde tem balde? CHICO Na cozinha. Mas espera, não se usa água em fogo de eletricidade. LISA (já com o balde na mão) Quem foi que disse? CHICO Não se usa. O fogo se extingue rapidamente. Afinal, o chuveiro já queimou o que tinha que queimar, e a cortina também. It's over. LISA Quem foi que disse? CHICO Não se usa. Dá choque! O incêndio já acabou. Lisa olha, percebe que o perigo passou e sorri. Mas então percebe que está toda molhada e sente frio, muito frio. Começa a tremer. LISA Chico... eu tô com frio!. Chico pega outra toalha, maior, e alcança pra ela. Ela se enrola, mas está com tanto frio que não consegue se secar. CHICO Que cheiro horrível! Eu vou pegar mais toalhas. LISA (rígida) Eu vou congelar. CHICO Pára de brincar, Lisa. Te seca logo. LISA Eu tô congelando. Chico, todo sem jeito, começa a passar a toalha em Lisa. LISA Eu tô congelando! Mais forte! Chico passa mais forte. LISA Tem que fazer como os esquimós. Assim. Lisa se agarra em Chico, que continua passando a toalha. CHICO Cadê as tuas roupas? LISA Eu tô congelando, Chico, não pára! Chico se concentra na secagem. Passa com força. Lisa vai se virando pra facilitar. Chico vê os seios de Lisa. LISA Dessa vez, não te devo nada. CHICO Quem foi que disse? LISA O quê? CHICO Que os esquimós fazem assim? LISA De onde você acha que veio o tal do beijo esquimó? Disso aqui. Um sai do banho e o outro fica se esfregando nele. Esfrega tudo. Até o nariz. (pausa) O jantar não ia ser massa com sardinha? CHICO Ia. CENA 127 - CARRO - EXTERIOR/DIA Carolina e Luciano no carro. LUCIANO A Lisa me assusta. CAROLINA Por quê? LUCIANO Às vezes parece que faz as coisas sem pensar. E depois parece que pensa demais. CAROLINA Eu gosto disso. Melhor que ficar deprimida, ou se entupir de cocaína. LUCIANO É, isso é. (pausa) Sabe como é que a gente começou? Carolina fica atenta. LUCIANO Ela simplesmente me agarrou e pronto. CAROLINA Como assim? LUCIANO Numa festa. Ela me levou prum quarto, tirou a minha roupa e... pronto! CAROLINA Tem certas coisas que só a Lisa é capaz de fazer. LUCIANO (sorrindo) Isso é. Carolina não acha graça. CENA 128 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE Jantar do Chico. Uma grande panela de massa com sardinha chega no centro da mesa. Os quatro avançam, animados, e começam a comer. CAROLINA (depois de provar) Tá ótima, Chico. LISA É. Super boa. LUCIANO (sentindo-se obrigado a concordar) Tá melhor que eu pensava. CHICO A fome sempre deixa a comida melhor. Aristóteles. LISA É. Sabe, eu fiz um cursinho em Nova Iorque com um filósofo paquistanês, um cara super quente, e o cara falava isso, que é a necessidade que gera o prazer. LUCIANO Que bobajada. LISA Bobagem nada. O sexo também é assim. Quanto mais você deseja, mais você quer, melhor fica quando você consegue. CHICO O Freud dizia ao contrário: quanto mais você deseja, e não consegue, mais merda dá depois. CAROLINA Eu sempre detestei o Freud. Como é o nome desse paquistanês, Lisa? LISA Maharishi Chuttranata. CAROLINA Como é? LISA Maharishi Chuttranata. Luciano olha para Chico. Chico olha para Carolina. Carolina olha para Luciano. Luciano começa a rir, mesmo de boca cheia. O riso contagia os outros, que não conseguem engolir a massa que está na boca. Chico se engasga e começa a tossir. Luciano bate nas costas dele. Carolina chora de tanto rir. Lisa, a princípio, fica indignada, mas depois também é contagiada e ri tanto quanto os outros. CENA 129 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE Esta seqüência acontece simultaneamente num dos quartos, onde estão Lisa e Luciano, e na sala, onde estão Chico e Carolina, tomando vinho. QUARTO Luciano e Lisa estão trepando. O problema é que a cama, como toda cama de casa de praia, é antiga, de molas, está meio quebrada e range desesperadamente. Lisa, ainda por cima, não é nem um pouco discreta. LISA Ahhh! (Ou algo parecido) LUCIANO (sussurrando) Shshsh... LISA O quê? LUCIANO O Chico e a Carolina. Não faz tanto barulho. SALA Carolina e Chico estão em cadeiras próximas, com copos de vinho na mão. Ouvem nitidamente, tanto os rangidos da cama, como os gemidos de Lisa. CAROLINA Você não acha estranho isso tudo? CHICO Tudo o quê? CAROLINA Os dois juntos, no quarto, trepando, e nós ouvindo e tomando vinho. CHICO Acho. QUARTO Lisa grita bem alto. LISA Ahhh! LUCIANO (animado) Deu? LISA (pára um pouco e olha firme nos olhos de Luciano) Tá com pressa? LUCIANO Não. LISA (beijando Luciano com suavidade) Então, por favor, respira direito. Você sabe como respirar direito é importante. Luciano respira fundo duas vezes, recompõe as energias. Lisa geme mais alto ainda. SALA Os gemidos de Lisa dominam a sala. Chico e Carolina se olham. Chico ainda está meio indeciso sobre o que fazer, mas levanta e vai até a mesa onde está o vinho. Pega a garrafa e aproxima-se de Carolina. Serve o vinho. Carolina olha para ele. Chico está tomando uma decisão. Talvez sua próxima ação seja beijar Carolina. Mas a porta do quarto abre. Lisa entra na sala, terminando de vestir uma camiseta cumprida. Está evidentemente irritada. Pega um copo, enche de vinho e senta. Chico e Carolina não sabem o que fazer. Ficam alguns segundos em silêncio. LISA Por que tem que ser tão difícil? Chico e Carolina se olham. LISA Por que a gente não tem um botãozinho pra regular tudo? CAROLINA (delicadamente) Regular o quê, Lisa? LISA Tudo. Eu. E principalmente o Luciano. LUCIANO (OFF) (do quarto) Vai te regular primeiro! CAROLINA O que aconteceu? LISA Nada. Bobagem. (terminando o copo com um grande gole) Vinho é uma das poucas coisas decentes que esse estado ainda produz. CHICO Vinhos e centro-médios. QUARTO Carolina entra e senta-se ao lado de Luciano. CAROLINA Não sei se esse fim-de-semana foi uma boa idéia. É difícil fazer de conta que tudo continua igual. Luciano fica alguns segundos pensando. LUCIANO No fundo, tá tudo igual. A Lisa não mudou nada. A gente casou, eu pensei que isso fizesse diferença, mas não faz. Carolina fica olhando Luciano. SALA Lisa e Chico conversando. LISA Eu já te contei como o Luciano me convenceu a casar com ele? CHICO Não. LISA Ele me disse que se eu me casasse com ele nunca mais seria internada. E eu achei ótimo ter alguém se preocupando com isso. Mesmo que seja mentira. Lisa começa a chorar, bem de mansinho. Chico levanta e aproxima-se. Fica de joelhos na frente dela. Lisa olha para ele. Chico a abraça. Ficam assim abraçados um longo tempo. CENA 130 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/DIA Uma embalagem de alumínio aterrisa no centro da mesa. Outra vem logo depois. Ambas contêm comidas aparentemente saborosas. LUCIANO Vualá! Camarões à catupiri e filés de haddock ao molho de champanhe. CHICO Isso é totalmente irregular. LUCIANO (rindo) Então não come. CAROLINA (servindo-se) As regras não ficaram bem claras. Por mim, tudo bem. LISA (também servindo-se) O Luciano não gosta de perder tempo. Abriu, enfiou no forno, tirou, tá pronto. Carolina e Chico não percebem o duplo sentido da frase, mas Luciano fecha a cara. CAROLINA (comendo) Deixa de frescura, Chico. Tá ótimo. (para Luciano) As vezes você tem algumas idéias razoáveis, Luciano. Ele não acha graça. Carolina e Chico percebem que ele não achou graça. CAROLINA Quê que foi, Luciano? LUCIANO Nada. Eu não estou com muita fome, só isso. Luciano sai da mesa. Clima pesado. Chico e Carolina não entendem bem o que tá acontecendo. Lisa come, quieta. CENA 131 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE Agora, no jantar de Lisa, dominam os pratos integrais, mas bastante sofisticados. Lisa está na cozinha, fazendo bolinhos de verdura. Os outros três estão na mesa, já comendo. CAROLINA (gritando para Lisa) Vem comer, Lisa. LISA (da cozinha) Tô só terminando o Alu Patra. Já vou. CAROLINA (em voz baixa, para Luciano, em tom imperativo) Se vocês continuarem com esse joguinho idiota de não se falarem, eu juro que pego o carro agora e volto pra Porto Alegre. LUCIANO Não é joguinho. Eu não tenho nada pra dizer. CHICO Dá um tempo, Luciano. Lisa chega com os bolinhos. Coloca a travessa sobre a mesa e senta. Luciano nem olha pra ela. LISA Agora só falta você, Carolina. CAROLINA (levantando) Infelizmente vocês dois já esculhambaram o meu fim-de-semana. Não vou passar mais um dia inteiro vendo essa briga infantil. LISA O que você quer? Ele não quer falar, tudo bem. Ninguém sente falta. Chico levanta. CHICO Eu também vou. LUCIANO O que vocês querem? Que a gente fique posando de casal feliz? (Levanta, vai até Lisa e a abraça) Olha, pessoal, como a gente se ama. Vocês querem que a gente se beije? Tudo bem. Luciano beija Lisa, que está impassível. CHICO Eu só quero que vocês parem de bancar adolescentes em crise. LISA Tudo bem. (E para Luciano:) Nunca mais, mas nunca mais mesmo, me chama de louca. LUCIANO Eu não te chamei de louca. LISA Tudo bem. Eu vou fazer de conta que não falou. Agora sentem. Se vocês não comerem tudo, tenho um surto psicótico em cima dos rolinhos de repolho. Chico e Carolina sentam outra vez. Discretamente, mas muito discretamente mesmo, Carolina segura por um instante a mão de Luciano. CENA 132 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE Os quatro estão jogando canastra de parceria. Homens contra mulheres. Um baseado corre de mão em mão. Lisa bate. Chico está com trezentas cartas na mão. Fica alucinado. CHICO Eu só precisava de um sete de ouros! LUCIANO E eu tinha ele na mão, ô animal. Por quê não foi baixando aos poucos? CHICO Eu tava esperando a Carolina me dar. LISA Esse é teu problema, Chico. Tá sempre escondendo o jogo. CHICO Não tem onde comprar chocolate nessa praia! LUCIANO Par ou ímpar? CHICO Par. Eles mostram os dedos. Luciano ganhou. LUCIANO (aliviado) Vai, meu irmão. CHICO Mas era só brincadeira. CAROLINA Brincadeira nada. Larica é coisa muito séria. LISA Pára de chorar, Chico. Eu vou contigo. (E levanta.) CENA 133 - RUA DESERTA - EXTERIOR/NOITE Chico e Lisa andam por uma rua deserta. CHICO Que frio. LISA (abraçando Chico) Eu te esquento. Segura Chico pelo braço e olha firme pra ele. Começa um beijo apaixonado. CENA 134 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/NOITE Um beijo longo, quente e apaixonado entre Carolina e Luciano. CENA 135 - CASA DE PRAIA - INTERIOR/DIA Uma grande travessa de arroz com galinha aterrisa sobre a mesa. O clima é bem alegre. Carolina está servindo. Todos comem com satisfação. CENA 136 - CARRO - EXTERIOR/NOITE A volta para Porto Alegre, no carro, à noite. Os quatro estão em silêncio. LUCIANO Vocês gostam de fofoca? Segundos de silêncio. CAROLINA Gostamos. Segundos de silêncio. LUCIANO E de ba-baleia? Continua o silêncio. Lisa começa a sorrir. Carolina solta um risinho abafado. Chico começa a rir. Luciano ri alto. Todos riem. O carro se perde na escuridão. CENA 137 - CASA DE CHICO - INTERIOR/DIA Chico está ao telefone e rabisca sua agenda. Tem vários números de telefone riscados. CHICO Eu precisava muito falar com o Andrew, eu liguei da praia, ontem. (...) Você me disse isso ontem. (...) Mas tem certeza que ele recebeu o recado? (...) E você disse que era eu? (...) Eu já liguei pra lá, várias vezes, disseram que ele não tinha chegado, depois disseram que ele já tinha saído. (...) Tudo bem. (...) Eu lhe dei também o meu telefone de casa? (...) Certo. Tudo bem. Desculpe a insistência, mas é importante. (...) Tudo bem, obrigado. CENA 138 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Onze da noite no apartamento de Chico. Ele está assistindo ao programa político no vídeo-cassete. É um comício do Andrew. Toca a campainha. Chico dá pause, congelando a imagem de Andrew. Sai do quarto e vai atender a porta. É Lisa. LISA Você tá sozinho? Você não tá sozinho... CHICO Estou sim, estava vendo um pouco de televisão. LISA Eu vim me despedir. CHICO Tá indo viajar? Pra onde? LISA Pro Acre. CHICO Acre? LISA É. Um lugar chamado Céu do Mapiá. CHICO (decepcionado) Daime, Lisa... LISA Você já conhece? CENA 139 - ACRE - EXTERIOR/DIA A partir daqui, os diálogos ficam OFF e aparecem imagens correspondentes às falas, ilustrando a futura odisséia de Lisa, sob dois pontos-de-vista completamente diferentes. Lisa dentro de uma canoa, com muitas árvores ao fundo LISA (OFF) É o último lugar mágico de mundo. Pra chegar lá, tem que andar dois dias de canoa no meio da floresta. Lisa, já toda de branco, pôr-do-sol ao fundo, dança e canta um hino religioso. CHICO (OFF) É uma religião, Lisa. Mais católica que a católica. As mulheres nem podem dançar perto dos homens. Lisa fuma um grande baseado com outros FIÉIS. LISA (OFF) Sabem como é que eles chamam baseado? Santa Maria. Lisa toma um grande gole do daime e olha em frente. CHICO (OFF) Isso é nostalgia, saudade da infância. Lisa, os caras bebem um troço mais forte que ácido. E você sabe o que acontece quando você toma ácido. Lisa olha para as árvores, que mudam de cor e forma. LISA (OFF) O ácido é pura química. O daime é a própria floresta. Raiz, folha, terra. Deve ser maravilhoso. Lisa vomita. CHICO (OFF) Lisa, deve ser horrível. Lisa, em paz, deitada numa rede, depois de vomitar, olha para a floresta. CENA 140 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Chico e Lisa estão sentados na sala. LISA Deve ser maravilhoso. Ficam em silêncio por alguns segundos. Chico desistiu de argumentar com Lisa. De repente, o som da televisão invade a sala, alto. LISA Tem alguém aí. CHICO Não, é o vídeo. Chico se levanta, vai até o quarto e desliga a tevê. CHICO (voltando do quarto) Não adianta, quando você bota um negócio na cabeça, ninguém tira. LISA Me faz um favor? Conta pro Luciano? CHICO Que você vai pro Acre? LISA Eu não tive coragem, não queria discutir. Disse que tava indo prum congresso de numerologia em Manaus. CHICO Quando você vai? LISA Amanhã de manhã. Não gosto de despedida. Tchau, Chico. Lisa beija Chico, na boca, mas rapidamente. Vai em direção à porta. CHICO Espera um pouco! Lisa abre a porta, abana e some. CENA 141 - ASSOCIAÇÃO DE EMPRESÁRIOS - INTERIOR/NOITE Davi está sentado numa grande mesa ao lado de vários EMPRESÁRIOS. Uma faixa indica o "Fórum Contra a Corrupção". Davi faz um discurso inflamado. Chico e sua EQUIPE gravam tudo. DAVI ...a presença excessiva do estado na economia é a principal causa da corrupção. Pois se o estado, com sua grande máquina emperrada, obstrui a passagem da iniciativa privada, é natural e, não sejamos hipócritas, é mesmo previsível que o empresário use de todos os meios ao seu alcance para limpar o caminho. Nenhum empresário vai ficar passivamente observando a falência de sua empresa enquanto o estado coloca impecilhos para o desenvolvimento: impostos abusivos, exigências legais antiquadas e um sem número de taxas sociais que têm como único objetivo sustentar os currais eleitorais de políticos profissionais. Aplausos. Chico avista seu pai, o doutor Ernâni, no meio da platéia. Eles trocam um cumprimento discreto. DAVI Isso sem falar no protecionismo cartorial praticado por algumas sindicalistas que, ao invés de se preocupar com a segurança e as melhores condições de trabalho de sua categoria, preferem acirrar o confronto com os empresários, incentivar as greves e dar entrevistas na televisão. Aplausos. No fundo da sala, Luciano e Ibarri discutem e gesticulam muito. Luciano parece estar bastante irritado. Chico percebe. DAVI Depois, com a falência das empresas, com a quebra de fábricas que não suportam as folhas de pagamento e os encargos sociais, vêm o desemprego e o trabalhador fica desassistido. E aí aqueles mesmos sindicalistas culpam os empresários pelo desemprego. É pura demagogia! (aplausos entusiasmados) CENA 142 - PRÉDIO DA ASSOCIAÇÃO DE EMPRESÁRIOS - EXTERIOR/NOITE Do lado de fora do prédio, Davi cumprimenta os empresários, despede-se, ri muito. Todos parecem exageradamente ricos, gordos e felizes. Davi embarca em seu carro de luxo sob aplausos e flashes. A cena é parte do programa de TV de Andrew. LOCUÇÃO O candidato dos grandes empresários diz que a culpa da corrupção é do estado. Mas não diz que são os grandes empresários que pagam o suborno. O candidato dos patrões diz que o desemprego é culpa dos trabalhadores. Mas não diz que as grandes empresas nunca abrem mão do seu lucro. O motorista bate a porta e dá a volta no carro. Dois MENINOS DE RUA se aproximam do carro. A SEGURANÇA barra a passagem das crianças. Davi sai abanando e sorrindo para as câmaras. A imagem congela com um flash estourando no rosto sorridente de Davi em seu carro e o braço de um segurança impedindo a passagem das crianças. LOCUTOR O candidato dos ricos diz que o seu governo vai ser bom para os pobres. Você acredita? REPÓRTER caminhando na rua. REPÓRTER (uma edição repete a pergunta várias vezes sugerindo o nome de Davi) Como é que vai a vida / a vida / davidavi ? VÁRIAS PESSOAS Terrível! / Ruim pros pobres. / Mal. / Pra quem trabalha vai mal. / Tá difícil, né? Vinheta eletrônica encerra o programa de Andrew. Outra vinheta (ridícula) começa o programa de GABRIEL, o candidato da situação, um velhinho simpático de gravata borboleta e colete. GABRIEL Meus queridos amigos. Nós não vamos entrar nesse jogo de agressões. Como muito bem disse Chesterton, "quando dois homens se ofendem em público é justo crer que os dois têm razão". Vamos, ao contrário, usar este espaço para meditar sobre o sentido da democracia. A democracia, meus amigos... A televisão é desligada. CENA 143 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE Carolina estava assistindo ao programa. Chico entra, carregando umas fitas. Carolina desliga a TV. CHICO E aí? Viu o programa dele? CAROLINA Acabei de ver. É bom. CHICO Bom em que sentido? CAROLINA Bom, bem feito. Bom pro Andrew. (pausa) Conseguiu falar com ele? CHICO Não. Já deixei quinhentos recados, ele não respondeu. Chico entrega um papel para Carolina. CHICO Dá uma olhada nisso aqui. CAROLINA Pesquisa? E aí? Carolina olha o papel com atenção. CHICO O Davi subiu, dois pontos. O Andrew subiu oito pontos. Oito pontos em quinze dias. Sabe o que isso significa? A diferença agora é de dez pontos. Aquele imbecil do Gabriel caiu mais três, o resto continuou na mesma, com um ou dois pontos. CAROLINA Hoje o Gabriel queria "meditar sobre o sentido da democracia". CHICO O sentido da democracia é de fora pra dentro. (pausa) Se continuar assim a decisão vai ser entre o Andrew e o Davi. CAROLINA O que significa... CHICO Provavelmente, uma úlcera. CENA 144 - ESTAÇÃO RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA Lisa desce de um ônibus. Carrega apenas uma mochila e uma sacola cheia de garrafas. CENA 145 - APARTAMENTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Lisa está vestida com uma bata azul cheia de desenhos coloridos. À sua frente, muito constrangidos, estão Chico, Carolina e Luciano. LISA Vocês se recusam a cantar os hinos, tudo bem. Eu entendo. Mas na hora de tomar vocês devem fazer o que eu mandar, certo? LUCIANO Depende... LISA Então fica sem. CHICO A gente tem um pouco de medo. LISA Medo de quê? Eu tô aqui, pra cuidar de vocês. Não tem nenhuma energia negativa nessa sala. CAROLINA Lisa, eu não quero passar mal, vomitar, essas coisas. LISA Nem todos vomitam. (Aproxima-se de Carolina com um copo cheio) Carolina, você acha que eu ia te dar uma coisa ruim? CAROLINA Não. LISA Então toma. Lisa estende o copo para Carolina, que o pega, ainda receosa. CAROLINA Tudo? LISA Tudo. Se quiser, fecha o nariz com a mão. Carolina tapa o nariz, olha rápido para Chico e Luciano e toma tudo num gole só. Senta numa cadeira e respira fundo. Lisa ajoelha na frente dela, sorri e segura suas mãos com força. Depois enche um copo para si e também toma tudo. Senta ao lado de Carolina. Luciano e Chico, ainda de pé, sentem-se covardes. CHICO Tudo bem. Eu tomo, mas não o copo todo. LUCIANO A gente mesmo se serve, tá? LISA Se tomar muito pouco, é desperdício. Chico e Luciano servem-se, menos de um terço de copo cada um, e bebem. Sentam-se num outro sofá. Chico bota a mão na boca e sai correndo da sala. Barulho de vômito vindo do banheiro. Os olhos de Carolina ficam muito injetados. CAROLINA Que árvore linda! Toda vermelha... Lisa sorri e fala baixinho no ouvido dela. Luciano sai da sala, rumo à cozinha. Abre a geladeira e pega uma garrafa de Coca-Cola litro. Enche um copo e bebe sofregamente. Chico também vai para a cozinha. LUCIANO Tô tentando diluir essa merda. CHICO Eu preciso de um troço doce. Do fundo da geladeira, Chico pega uma torta de chocolate e começa a comer compulsivamente. Chico e Luciano servem-se de torta. Luciano abre uma garrafa de dois litros de refrigerante e serve dois copos. Luciano e Chico, ao lado da geladeira aberta, dividem o último pedaço da torta. Carolina e Lisa chegam na cozinha, completamente viajantes. Carolina parece não entender o que está acontecendo. Mas Lisa, de dentro de sua viagem, consegue articular: LISA No Mapiá, só o padrinho Sebastião tem geladeira. Luciano e Chico olham para elas, culpados, sem qualquer defesa. Lisa começa a cantar, em tom de hino religioso. LISA Com minha mãe estarei / na santa glória um dia / ao lado de Maria, no céu triunfarei. Carolina começa a cantar junto. LISA E CAROLINA No céu, no céu, no céu triunfarei... CENA 146 - ESTÚDIO - INTERIOR/DIA O céu aerografado, no estúdio. Davi está sentado em frente ao cenário, olhando diretamente para a câmara. Chico fala fora de cena. CHICO (OFF) Você já usou drogas? DAVI (rindo) Não. Mas eu conheço... CHICO (OFF) Por favor, Davi, não ria quando responder perguntas. Você fica parecendo pedante. Davi fica sério, um pouco seguindo instruções, um pouco porque não gostou da objetividade agressiva de Chico. CHICO (OFF) Você já usou drogas? DAVI Não. Mas eu conheço gente que usa, são meus amigos. CHICO (OFF) Você é amigo de drogados? DAVI Não é isso, é que eu acho que.. CHICO (OFF) Diga que você não usa, nunca usou, ponto. Se o repórter perguntar se você conhece alguém que usa ou usou você diz que sim, ponto. Se ele perguntar mais, diga que você não é juiz de ninguém, que os viciados devem ser tratados, que os traficantes devem ser presos, que tem muitos poderosos acobertando o narcotráfico, enfim, obviedades. Davi acha graça. CHICO (OFF) Não tente ser engraçado nem informal. Você não é engraçado. Seja sério e pareça honesto. E não diga "eu acho". Achar, qualquer um acha, parece chute, palpite. Você quer ser o prefeito. Diga "eu penso" ou "eu acredito". Se você se comportar e subir dez pontos nas pesquisas eu deixo você usar "eu creio". DAVI (achando graça) Tudo bem. CHICO (OFF) Você já usou drogas? DAVI Não. CHICO (OFF) Nunca? DAVI Nunca. CHICO (OFF) Acredita em Deus? DAVI Eu sou católico. CHICO (OFF) Diga que acredita. Diga que é católico mas acha que religião é uma opção pessoal, íntima. Diga exatamente aquilo que todos já disseram, que é exatamente aquilo que todos querem ouvir. Não tente ser original. Isso assusta as pessoas. DAVI Certo. CHICO (OFF) Qual sua opinião sobre o aborto? DAVI Eu acho que... Eu acredito que... o aborto é crime e portanto... (pausa) O que eu devo dizer? Chico entra em cena. CHICO (para o cinegrafista, fora de cena) Chega, pode parar. (para Davi) Não sei. Qual a sua opinião sobre o aborto? A luz do estúdio é desligada. Chico e Davi ficam silhuetados contra o céu do estúdio. DAVI Não sei, nunca pensei nisso. O que a prefeitura tem a ver com isso? Por que interessa a minha opinião sobre deus, drogas ou aborto? Chico sorri, um pouco decepcionado, um pouco cansado, um pouco absorto. Fala quase que para si mesmo. CHICO Não sei, Davi. Não tenho a menor idéia. CENA 147 - ENTRADA DE VILA POPULAR - EXTERIOR/DIA Dois carros cheios de adesivos da campanha de Davi saem de uma estrada de asfalto e entram numa rua secundária, sem asfalto, típica entrada de vila popular. No carro da frente, estão o MOTORISTA, Davi (no banco da frente, sempre acenando), Chico e um SEGURANÇA. Chico está com cara de ressaca e saco-cheio. No carro de trás está a EQUIPE de TV que faz a campanha de Davi (motorista, câmara, operador de VT e diretor). O carro balança muito. CHICO Davi, lembra que essa vila é território do Andrew. Se você for vaiado, não se irrite. Também não fica rindo, como você fez ontem. DAVI Eu sei lidar com esse tipo de gente. CHICO Esse tipo de gente vai decidir a eleição. DAVI (sempre rindo e acenando para os moradores, que em sua maioria acenam de volta) Eles não sabem nem o que é uma eleição. Eles só sabem que têm que fazer um xis. Um xis depois de Davi. É só isso. O resto, deixa comigo. Chico está deprimido, fica em silêncio. Davi vira-se pela primeira vez para Chico, preocupado com o silêncio dele. DAVI Ô, Chico, não posso mais nem brincar? Você me traz num buraco desses, onde eu vou ouvir vaia, tomar cafezinho frio e vão jogar coisas em mim. Eu venho, de bom-humor e disposto a fazer tudo que você mandar. Qual é o problema? CHICO Não tem problema, Davi. (pausa) Por favor, não fala mais naquele negócio das trezentas mil casas populares. DAVI Por que não? É uma estimativa muito simples. Se cada habitante da cidade tiver acesso a um financiamento... CHICO (cortando) Cada habitante da cidade? Pelo amor de Deus, Davi... DAVI Tudo bem. É melhor eu não gastar saliva com eleitor garantido. Chico enterra-se ainda mais no banco de trás. Olha pela janela. Os MORADORES acenam para o carro. Um MENINO, com uma bandeira de Andrew, faz um gesto obsceno, bem agressivamente. Mas logo a seguir aparece uma NEGRONA desdentada, com uma faixinha do Davi na cabeça, e acena positivamente. Chico olha para trás. Ainda consegue ver que a negrona chega perto do menino, tira a bandeira dele e dá um empurrão. O menino cospe nela. Ela tira o chinelo e parte pra cima do menino. O carro faz uma curva fechada e Chico não consegue acompanhar o final da cena. CENA 148 - COMITÊ DA VILA - EXTERIOR/DIA Davi discursa na frente do "Comitê da Vila Caixa D'Água pela vitória de Davi", que é um casebre caindo aos pedaços. Está em cima de uma caixa de cerveja. Umas CEM PESSOAS à sua frente. A maioria das bandeiras é de Andrew. A equipe de TV registra, sob o comando do diretor. Chico está perto de Davi, mas fica em silêncio o tempo todo. DAVI (empolgado, no final do discurso) E quando eu falo em trezentas mil casas populares, podem dizer que eu sonho, podem dizer que é demagogia, que é discurso eleitoreiro. Mas eu não sonho com casas prontas que caem do céu, presentes de Deus ou do governo. Eu sonho com as ferramentas, com o material de construção, com os terrenos, com o dinheiro a juros baixos, com a capacidade de cada um erguer, a partir de seus sonhos, uma morada mais digna, mais saudável e mais humana. Muito obrigado. Uma grande vaia responde ao final do discurso. Há alguns aplausos e "muito bens", mas a reação da maioria é nitidamente negativa. Não chega a haver agressividade, e sim descontentamento. Davi reage bem: ergue as mãos, aponta os que o aplaudem e agradece. CENA 149 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE Na ilha de edição, estão sentados Chico, Carolina e um operador de VT. Um monte de fitas etiquetadas pelo chão e em cima da mesa. No monitor, acompanhamos os últimos segundos do discurso de Davi. Logo que as vaias começam, Chico interrompe: CHICO Dá pause aí. Carolina, me dá a fita da vila Recreio. Carolina alcança uma fita. Chico dá uma olhada rápida na ficha da fita. CHICO Dez minutos e trinta segundos. O operador coloca a fita, dá reset na máquina e depois fast- forward. Chega no ponto pedido por Chico: é uma pequena multidão começando a aplaudir um discurso de Davi. Muitas bandeiras. Clima festivo. CHICO Ainda não usamos isso aí. Edita no final do discurso. Assistimos, a seguir, ao procedimento de edição que transforma a reação ao discurso de Davi. Era negativa. Agora é muito positiva. Carolina está evidentemente contrariada. Quando a sacanagem está pronta, Chico levanta. CHICO Por favor, Carolina, coloca pra mim a vinheta final e cronometra. Carolina faz um sinal de positivo com a mão. Depois pega uma fita com a etiqueta "vinhetas" e coloca no VT1. O operador posiciona o VT2 no final dos aplausos e dá edit. Começa a vinheta final que tem várias imagens de Davi e, ao fundo o jingle da campanha. Carolina assiste a vinheta até o final, com uma cara de enterro. Luciano entra na ilha de edição, visivelmente nervoso. LUCIANO Cadê o Chico? CAROLINA Saiu há pouco. Quê que houve? LUCIANO Não entendi direito. A mãe da Lisa me ligou. Elas estão na delegacia. CENA 150 - DELEGACIA DE TÓXICOS - INTERIOR/NOITE Sala do delegado, que está nervoso. Em cima da mesa, quatro garrafas de Daime. A mãe de Lisa, Carolina e Luciano discutem com o DELEGADO, já faz algum tempo. LUCIANO Nós queremos ver a Lisa, agora! DELEGADO Agora não é possível. Ela está sendo interrogada. MÃE DE LISA (quase histérica) Mentira! CAROLINA Calma. Desse jeito a gente não chega em lugar nenhum. (Tentando manter-se calma:) Delegado, o senhor não tem o direito de escondê-la. DELEGADO Eu não estou escondendo nada. Daqui a pouco vocês podem entrar. MÃE DE LISA Eu quero ver a minha filha! Vocês bateram nela! DELEGADO Ela resistiu à prisão. MÃE DE LISA Seu desgraçado! DELEGADO A senhora se acalme, ou eu prendo a senhora por desacato! LUCIANO Calma, dona Dilma. DELEGADO (apontando para a mãe de Lisa) Vocês conhecem bem essa senhora? (olha para Luciano e Carolina, que não sabem o que dizer) Aposto que não. É bom que vocês saibam de uma coisa: a nossa diligência era pra pegar cocaína, que essa senhora consome em larga escala. Dois traficantes já nos deram o nome dela. Mas não achamos cocaína. Em compensação, achamos isso (e aponta as garrafas). E a filha dessa senhora está presa por porte e tráfico de... não sei o nome desse negócio na garrafa, mas sei que é uma substância estupefaciente. CAROLINA (cortando) Olha, eu não quero discutir isso agora, nós vamos chamar um advogado pra acompanhar tudo. Eu só quero ver a minha amiga. Agora! DELEGADO Impossível. Chico chega com a equipe de gravação do programa, se fazendo de repórter. O operador de pau-de-luz liga a refletor. DELEGADO O que é isso? CHICO (com o microfone, falando para a câmara) É um caso típico de abuso de autoridade. O delegado mantém um preso incomunicável. DELEGADO Não é verdade! MÃE DE LISA É verdade. Eu quero ver a minha filha! CHICO (para a mãe de Lisa) O que aconteceu? MÃE DE LISA Eles entraram na minha casa à força. E bateram na minha filha! CHICO (para o delegado) Senhor delegado, os agentes tinham mandado de busca? DELEGADO (muito nervoso, não sabe o que dizer) E o senhor tem autorização para invadir minha sala? Qual é a emissora de vocês? CHICO Desliga um pouco a luz aí, Alemão. Dá pause, Salvador. Salvador abaixa a câmara. DELEGADO (Percebe que é melhor mudar de tática) Eu gostaria de dar uma palavrinha em particular com o senhor antes de gravar qualquer entrevista. Chico entrega o microfone para o cinegrafista e faz sinal para que eles saiam da sala. DELEGADO Olha, eu vou seu franco. A nossa intenção era pegar a mãe, ela cheira faz tempo, arruma confusão com os vizinhos. Demos azar, nada de cocaína. Mas tinha isso aqui (mostra a garrafa), e a menina assumiu que era dela. E resistiu à prisão. CHICO Eu gostaria de ver o mandado de busca. DELEGADO Hoje não vai ser possível, o mandado está com o escrivão. CHICO (aproximando-se) Olha, doutor, se eu fizer as imagens da menina o senhor vai ficar numa situação difícil. Se o senhor me impedir, digo que a prisão é ilegal: houve invasão da casa e violência. O senhor não acha que nós podemos resolver isso de outra maneira? Afinal, o senhor só que tem essas garrafas. (pausa) O senhor já mandou analisar o conteúdo? O delegado pega a garrafa, examina, balança a cabeça. CHICO E se não for droga nenhuma? CENA 151 - SALA DA DELEGACIA - INTERIOR/NOITE Chico e o delegado entram numa sala pequena. Lisa está sentada numa cadeira, algemada, em frente a uma mesa. Um policial está de pé perto dela. O rosto de Lisa está todo arrebentado, principalmente um dos olhos. Ela olha para a frente, inexpressiva. Não reage à entrada de Chico. DELEGADO Ela caiu e machucou olho. Chico está tão chocado que não consegue falar. DELEGADO Tião, solta a moça. Tião solta as algemas. Lisa continua sentada. CHICO O senhor promete que o assunto está encerrado. O delegado assente, com um gesto. Chico ajuda Lisa a se levantar. Ela olha pra ele, reconhece-o, mas continua calada. Caminha devagar ao lado de Chico, rumo à porta. CENA 152 - CASA DE LISA - INTERIOR/NOITE Lisa está sentada numa poltrona, com o mesmo olhar perdido de sempre. Aparentemente perdeu o contato com a realidade. Carolina e Chico conversam com Dilma. CHICO E ela não reage? DILMA (muito triste) Não. Fica aí, quieta, olhando pra frente... Eu tenho que dar comida, levar no banheiro... Dilma começa a chorar. Chico olha o relógio, parece ansioso. CHICO Talvez ela precise tratamento. DILMA Que tratamento? CHICO Psiquiátrico. Carolina e Dilma se olham, surpreendidos pela posição de Chico. DILMA Eu tentei uma vez, mas vocês não deixaram. CHICO É diferente. A senhora tava querendo proteger o mundo da Lisa. E agora ela é que precisa proteção. Chico olha outra vez o relógio. Levanta. CHICO Nós temos que ir, Carolina. Dona Dilma, se a senhora precisar de alguma coisa, inclusive algum tipo de ajuda financeira, por favor, nos procure. Chico aproxima-se de Lisa. CHICO Outra hora a gente volta. CENA 153 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE Sob uma chuva leve, Andrew discursa em um palanque. É um comício da Frente Democrática. CANDIDATOS A VEREADOR e alguns OPORTUNISTAS se aglomeram atrás de Andrew, tentando pegar lugar nas imagens de TV. A equipe de Chico grava o comício. ANDREW ... A presença da equipe de tevê do meu principal oponente... Andrew aponta para a equipe de Chico. Explode uma vaia. Algumas pessoas jogam bolas de papel e copos na equipe. Chico diz pro cinegrafista gravar tudo. ANDREW Calma! O que eles querem é exatamente nos provocar, criar confusão. A elite se protege usando a classe média. Eles querem mostrar ao eleitor de classe média, à dona de casa, ao pequeno empresário, que nós, da plebe, somos desordeiros, que nós iremos trazer o caos social. Fazem isso para esconder que o caos social, a miséria, a violência, o desemprego, já estão aí, companheiros. (aplausos) Fazem isso para esconder que é esta elite que está aí, comandando este país, este estado e esta cidade desde que eles existem, é esta elite a responsável pela miséria, pela violência, pelo desemprego e pela fome! (aplausos) Esta elite, que vampiriza o povo brasileiro... Um homem, JÚLIO, bem perto do palanque, no meio do público, começa a gritar. JÚLIO Sai, ô comunista! Ateu! ANDREW ... (meio desconcentrado) é esta elite, predatória. JÚLIO Baderneiro! Um grupo de SEGURANÇAS, com a camiseta de Andrew, aproxima-se de Júlio, que grita. Começa uma pancadaria. Os seguranças, especialmente um, GILSON, são muito violentos e massacram o sujeito. Chico grava todas as imagens. ANDREW Calma, companheiros! Calma! CENA 154 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE Chico chega, cheio de fitas. Carolina está na ilha. CHICO (muito excitado) Receberam o meu recado? CAROLINA Chico... CHICO Preciso de pelo menos dois minutos. Quebrou o maior pau no comício deles, tenho imagens incríveis! CAROLINA Chico. Chico pára e percebe que Carolina não está com a cara boa. CHICO Que foi, Carolina? Morreu alguém? Carolina fica parada olhando para Chico. CENA 155 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/NOITE Velório. Algumas PESSOAS ocupam uma capela do cemitério. Os rostos são tristes e encaram Chico, que passa por eles em direção à capela, com aquele respeito excessivo dos velórios. Chico entra, aproxima-se do caixão e observa, através do vidro, o rosto do Velho. Ele tem um curativo na testa e está bastante maquilado. Dona Miriam Junqueira, aquela antiga jornalista das linguodentais fricativas, aproxima-se de Chico. DONA MIRIAM Deve ter sido o próprio motorista ou alguém que passava, gente pra fazer uma maldade é que não falta. Ele saiu do restaurante naquele estado, você sabe... Não tinha nenhum dinheiro, tava com a roupa toda suja. Os amigos viram ele pegar o táxi. Chico se distrai e começa a olhar em volta, mas dona Miriam continua falando, compulsivamente. DONA MIRIAM (OFF) Foi encontrado numa vila lá no fim do mundo, perto de Cachoeirinha. Todo machucado, passou a noite no sereno, coitado, um moço de tanto talento. Não resistiu, a noite foi muito fria, ele já tinha o físico muito enfraquecido. Sabe como é. A bebida. Coitado, descansou. Andrew entra na sala. Sua chegada causa alguma agitação. Andrew cumprimenta os PAIS DO VELHO. Chico sai da sala, tentando evitar um encontro. CENA 156 - CORREDORES DO CEMITÉRIO - INTERIOR/NOITE Chico sai do banheiro dos homens. Caminha pelo corredor do cemitério, meio perdido. As paredes estão cobertas por túmulos, com as fotos dos mortos e algumas flores de plástico. A luz trêmula de uma fluorescente com mau contato deixa o cenário ainda mais fúnebre. Chico dobra uma esquina e se vê a poucos passos de Andrew, que se aproxima. Todo o diálogo se dá sob a vigilância atenta dos mortos nos retratos. ANDREW (secamente) Chico. CHICO Tudo bem? ANDREW Tudo bem. E você? CHICO Tudo bem. Andrew passa por Chico, vai se afastando, pára. ANDREW Eu queria te avisar de uma coisa, como é que se diz... em nome dos velhos tempos. Você sabe que só eu e o Davi temos alguma chance. E eu nem comecei a usar o que eu tenho contra ele. Você já fez um grande trabalho trazendo ele até aqui. Caia fora antes do debate, se puder. CHICO (rindo) Andrew, você me conhece o suficiente pra saber que eu só jogo pra ganhar. ANDREW Principalmente se o jogo for a dinheiro. CHICO Engano seu, o dinheiro é só uma desculpa. Eu não gosto é de perder. Me ensinaram que os mocinhos sempre ganham. ANDREW E você acreditou? (ri) Na vida real os mocinhos perdem quase todas. Quase. Esta eleição os mocinhos vão ganhar. E os anchietanos vão perder. Vai saindo. Chico sai atrás dele, irritado. CHICO Você não entende nada de vida real, Andrew. Você entende de estratégias, de aparências e de boas intenções. Mas você nunca entendeu nada da vida real. A vida real tem pessoas e você não gosta muito das pessoas, Andrew, elas às vezes não se encaixam nas sua lógica perfeita. Aí você pega as pessoas, classifica e se livra delas. O Velho era um "vendido", lembra? O Abraão "um desbundado", a Lisa e o Luciano eram uns "porra-loucas". E eu sou "anchietano" E você, Andrew? O que você é? Andrew não pára de caminhar e fala sem olhar para Chico. ANDREW Mantenha a discussão no plano político, companheiro. Você está sem argumentos. CHICO Plano político é muito bom. Eu procurei você, muitas vezes, telefonei, deixei recado. Mas os anchietanos não faziam mais parte da sua estratégia. (pausa) Eu encontrei a Sílvia, lembra dela? Andrew pára e encara Chico. ANDREW O que é, Chico? O que você quer? Aliviar sua culpa cristã em cima de mim? CHICO Ela costumava ser a mãe da sua filha. Da sua filha você lembra? Clarissa, é o nome dela. A Sílvia me disse que você não vê a sua filha há cinco meses. Ela pediu pra avisar que a Clarissa teve caxumba. ANDREW Você escolheu o seu lado, Chico, e está sendo muito bem pago pra isso. Vá em frente. CHICO Você só consegue raciocinar dividindo o mundo em dois, Andrew, e isso não tem nada a ver com a vida real. ANDREW Quem dividiu o mundo em dois não fui eu. Quando eu nasci ele já era assim. E eu nasci no lado errado, no lado sujo, sem água, sem esgoto, sem ar condicionado. Sem futuro. Mas o futuro a gente inventa, Chico, e eu vou inventar o meu. Fique com o Davi. De qualquer jeito, os anchietanos acabam jogando sempre no mesmo time. Andrew se afasta. Chico fica parado, olhando. CENA 157 - ENTERRO - EXTERIOR/DIA O cortejo segue o enterro do Velho. Chico, Andrew e um grupo de PESSOAS segue o caixão pelas galerias do cemitério. CHICO (OFF) O Velho foi um jornalista da pesada. Anistia Internacional, Jornal Movimento, Pasquim, Coojornal, você conhece o tipo. Há uns cinco anos encheu o saco de tudo, foi pros Estados Unidos, lavar prato, varrer chão. Conheceu uma mexicana, acabou trabalhando num posto do correio em "El Paso", no Texas. Os mexicanos com visto temporário nos Estados Unidos só podiam deixar o país e voltar se tivessem um aviso de problemas de saúde com a família. O aviso tinha que vir do México, por telegrama, e falar da saúde de algum parente direto. Óbvio que todos forjavam o tal telegrama pra poder visitar a família. Pra economizar, os cucarachas mandavam pro posto do correio de El Paso sempre o mesmo texto, tarifa econômica até dez letras: MAMA'S GRAVE. A função do Velho era arquivar e catalogar as centenas de telegramas com aquele texto: MAMA'S GRAVE. A mãe está grave. Os americanos achavam aquilo muito estranho, porque eles liam "MAMA'S GREIV": o túmulo de mamãe. O Velho guardou uma pilha de telegramas e alguns dólares, voltou ao Brasil e abriu um bar com esse nome, "MAMA'S GRAVE". Ele forrou uma parede do bar com os telegramas. O bar estava falido, acho de tanto ele beber o estoque. Ontem ele bebeu mais que o normal, entrou num táxi sem dinheiro e foi achado num valão em Cachoerinha, nu e com duas costelas quebradas. Morreu ao dar entrada no hospital de pronto-socorro. Isso é parte daquilo que o Andrew chama de "a vida real". CENA 158 - CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA Andrew dá entrevistas para vários repórteres, na saída do enterro do velho. ANDREW Eu não vim aqui para falar de política, eu vim prestar uma última homenagem ao Velho. Eu aprendi muito de jornalismo com ele, foi um professor para todos nós. Sempre combateu pela liberdade de imprensa, pelos mais humildes, vai deixar uma lacuna difícil de ser preenchida. REPÓRTER Alguma estratégia especial para o último debate? ANDREW Não. Nós chegamos até aqui simplesmente dizendo a verdade, dizendo aquilo que todos os trabalhadores, estudantes e donas-de-casa já sabem: que esta cidade precisa de gente honesta e que trabalhe pelo interesse da maioria. CENA 159 - ESTACIONAMENTO DO CEMITÉRIO - EXTERIOR/DIA Chico e Luciano estão saindo do cemitério. LUCIANO A situação ficou insustentável. O Ibarri sumiu. CHICO O Ibarri é aquele teu sócio uruguaio? LUCIANO Eu descobri, entre outras coisas, que ele era Colombiano. Luciano conduz Chico para o seu carro. CENA 160 - CARRO DE LUCIANO - EXTERIOR/DIA Chico e Luciano no carro em movimento, Luciano dirigindo. LUCIANO Eu tenho que assumir todas as dívidas da padaria. Tenho que vender a minha parte na produtora. CHICO Agora? No meio da campanha? LUCIANO Agora. Se eu esperar mais um pouco, todos os cartórios me protestam e eu tenho que pedir falência. E aí a coisa se complica, porque pode atingir a produtora. CHICO E quem vai querer comprar? LUCIANO O Davi. Pela quinta parte do que vale. CHICO Tá louco, Luciano? Eu não vou ser sócio do Davi. LUCIANO Eu não tenho alternativa. Chico, a verdade é que o Davi é um canalha. Talvez ele tenha planejado tudo com o Ibarri. CHICO E você quer que eu fique sócio de um canalha? LUCIANO Se você quiser, podemos tentar uma última jogada. Você larga tudo, diz que vai abandonar a campanha. Ele fica apavorado e admite pagar a parte do Ibarri. CHICO O que tem a ver a campanha com a padaria? Ele contrata outro cara pro meu lugar, não nos paga o que deve e ainda pode alegar que nós quebramos o contrato. LUCIANO É, é um risco. Se eu tivesse tempo, esperava o final da campanha. Se a gente ganhar, acho que ele paga. Mas se a gente perder... CHICO Luciano, eu não posso assumir o teu prejuízo da padaria só porque você acha que... LUCIANO Eu não acho nada. Eu tenho certeza. Chico, o Davi é um canalha. CHICO Há pouco você disse que achava. Agora tem certeza. LUCIANO Chico, eu estou sendo o mais claro possível: eu tenho que vender a minha parte na produtora, senão tô morto. Morto e enterrado. CHICO (vendo algo no retrovisor) Pro Davi você não vai vender. LUCIANO Então acha um outro comprador. CHICO Eu. Eu vou comprar. (apontando) Tem um táxi aí atrás. Luciano vê o táxi e começa a fazer sinal. LUCIANO Você não tem dinheiro. CHICO Eu arrumo. LUCIANO (parando o carro) Amanhã é o meu último prazo. CHICO Então amanhã você me cobra. Agora eu vou preparar o debate. Chico sai do carro. Luciano vê o amigo entrar no táxi. CENA 161 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/NOITE Andrew, Davi, Gabriel e dois outros CANDIDATOS preparam-se para o debate final na TV. Cada um está de pé em um púlpito. O cenário tem um logotipo "Eleições 89". Chico está próximo de Davi e lhe dá algumas instruções. O ASSISTENTE DE ESTÚDIO faz sinal de que o programa vai recomeçar. Chico e os ASSESSORES saem. APRESENTADORA Conforme as regras estabelecidas para este debate, neste bloco os candidatos fazem perguntas um para o outro. A primeira pergunta, por ordem de sorteio. É do candidato da Frente Democrática, doutor Andrew. ANDREW A minha pergunta vai para o candidato da Aliança Liberal. Eu gostaria de perguntar ao doutor Davi qual a opinião dele sobre o uso de drogas, se ele usa ou já usou drogas. DAVI Não uso e nunca usei drogas de nenhum tipo. (pausa) APRESENTADORA O senhor ainda está no seu tempo, doutor Davi. DAVI Eu já respondi à pergunta. Andrew fala fora de quadro. ANDREW O que acha sobre o uso? DAVI Ah, sim. Eu não sou juiz de ninguém. Acho que os viciados devem ser tratados e que o tráfico deve ser combatido. O tráfico resiste porque é acobertado pelos políticos tradicionais, cúmplices dos traficantes. É preciso aparelhar a polícia, pagar salários dignos aos policiais. Os traficantes hoje estão melhor aparelhados que a polícia. Se o estado se preocupasse mais com a segurança, a saúde, a educação, e menos em manter empresas deficitárias, poderia combater mais diretamente o narcotráfico. ANDREW E como o senhor explica a apreensão pela polícia federal, em sua propriedade (mostrando um documento), a fazenda Santa Fé, na fronteira com a Argentina, de oitenta quilos de cocaína no avião prefixo PT-084, de propriedade de Lúcio Alvarez Ibarri, sócio na empresa "Lucky Bread Panificadora Limitada" de um dos patrocinadores de sua campanha, o empresário Luciano de Almeida. Eu tenho aqui todos os documentos que comprovam a apreensão. Os jornais, talvez atendendo a pedidos de um grande anunciante como o senhor, não noticiaram. Isso foi em maio do ano passado. O senhor poderia esclarecer o fato aos seus eleitores. DAVI (um pouco tenso) É muito simples. Um avião de um sujeito que eu nunca vi e não conheço, com o qual eu não tenho ou tive qualquer relação, pessoal ou comercial, este avião, transportando drogas, invadiu o espaço aéreo brasileiro e pousou na pista de pouso de uma das... de um sítio que eu tenho. A polícia federal apreendeu a droga, o avião e os traficantes estão presos. Eu não tenho nada a ver com isso, não fui acusado nem indiciado de nada. O senhor está me acusando de alguma coisa? (pausa) Porque se o senhor está me acusando eu vou lhe exigir que prove suas acusações, ou então eu vou lhe acusar de calúnia, injúria e difamação! Toca uma campainha, indicando que o tempo acabou. ANDREW Eu não lhe acusei de nada... APRESENTADORA É a sua vez de perguntar, doutor Davi. Pela ordem, a pergunta do candidato da Aliança Liberal. DAVI Pois eu vou retribuir a gentileza e perguntar ao doutor Andrew. Os outros candidatos acham graça. DAVI Eu gostaria que o senhor explicasse, doutor Andrew, a atuação do pessoal da sua segurança no comício deste sábado. As imagens daquela selvageria os telejornais mostraram, eu nem preciso relembrar. Eu estive no hospital visitando o seu Júlio, aquele senhor, pai de família, que esteve no seu comício e cometeu o crime de expressar a sua opinião. Ele perdeu dois dentes e talvez fique cego de um olho. É isso que o senhor chama de convivência democrática? ANDREW Não, é isso que eu chamo de armação. E quem tem que explicar é o senhor. Primeiro o senhor tem que explicar o que a sua equipe de televisão estava fazendo no meu comício. Porque as imagens que os telejornais mostraram, como o senhor diz, foram fornecidas pela sua equipe de TV, estrategicamente colocada para documentar a briga. Em segundo lugar... (pega um envelope) o senhor tem que explicar... Andrew mostra duas fotos. Numa, tirada do vídeo do comício, aparece o Segurança com a camisa do Andrew chutando o seu Júlio. Na outra, o mesmo Segurança, num comício, ao lado de Davi. Chico também aparece nesta foto. ANDREW ...o que este homem, Gilson Alves, o mesmo que agrediu selvagemente a seu Júlio, o que este homem fazia na sua passeata, poucos dias antes. Isso se chama armação! CENA 162 - ILHA DE EDIÇÃO - INTERIOR/NOITE Carolina chega. Chico está vendo o debate, agora reproduzido num telejornal. DAVI (gritando) Isso é um absurdo! Meu oponente quer justificar a selvageria da sua segurança, transferindo a culpa para mim. É muita cara de pau! Eu nunca vi este sujeito na minha vida... Apresentador do jornal. APRESENTADOR E aí, Zé Antônio. O debate pode alterar o resultado da eleição? ZÉ ANTÔNIO Veja bem, faltando poucos dias para a eleição a situação realmente esquentou com as denúncias de Andrew. Davi foi pego de surpresa durante o debate. E o tal segurança, João Alves, parece que saiu do Brasil. Amanhã é o último dia da campanha na televisão e a vantagem de Davi é pequena... Chico desliga a TV. CAROLINA Foi bem ruinzinho. Chico ri. CAROLINA Você sabia da armação do comício? CHICO (estranhando a pergunta) Óbvio que não, Carolina. CAROLINA E o que você estava fazendo lá? CHICO A assessoria pediu que eu gravasse o discurso inteiro, pra mostrar o lado mais furioso do Andrew. (pausa) Fazia sentido. CAROLINA E aí eles armaram a briga. São uns cretinos! CHICO Pode ser mentira. Carolina estranha. CHICO Pode ser a armação da armação. Você não viu como era boa a foto do Davi com o segurança? O cara pode ter ido, a mando do Andrew, antes no comício do Davi, pra ser fotografado. Depois ele vai no comício do Andrew, com a camisa do Andrew, e cobre de porrada um eleitor do Davi. Aí a gente filma e denuncia. E eles mostram a foto, dizem que o cara é da turma do Davi e nos desmoralizam. Xeque. Mas ainda não foi o mate. Carolina fica alguns segundos paralisada, assombrada com o raciocínio tortuoso de Chico. CAROLINA Você não tá falando sério... O cara sumiu do Brasil, largou tudo, deve ter ganho uma fortuna. CHICO De quem? CAROLINA Do Davi, é óbvio, Chico! Carolina larga algumas fitas, preenche uma planilha. CAROLINA Saiu a pesquisa? Chico faz que sim. CAROLINA E aí? CHICO O Andrew ficou na mesma. O Davi caiu um pouco. CAROLINA Um ponto? CHICO Um POUCO. Quatro pontos. CAROLINA Quatro! A diferença ficou... CHICO Três pontos. CAROLINA Isso antes do debate. CHICO Antes do debate. CAROLINA Então o Davi já era, acabou. CHICO Ainda não. Falta um programa, amanhã. Carolina ri. Levanta. CAROLINA Você não pode mudar o caráter do Davi com dez minutos de vídeo-tape. CHICO Mas talvez eu possa mostrar o do Andrew. CAROLINA Você já fez bastante, Chico. Vamos embora. CHICO Quer ver o que eu já editei? Não espera resposta. Aciona a máquina que começa a rodar o VT. São imagens do comício. Gilson Alves surra o sujeito, caído no chão, pessoas gritam e atiram coisas na câmara. As imagens são intercaladas com um amanhecer na cidade, destacando o prédio da prefeitura. O gabinete do prefeito, a decoração clássica do prédio e a tranqüilidade da manhã formam um grande contraste com a fúria da turba no comício. LOCUÇÃO (OFF) A cidade vai escolher seu prefeito, o homem que vai ocupar esta casa nos próximos quatro anos. Este homem precisa ter preparo, tranqüilidade, moderação. Este homem precisa ser DAVI. Ou você entregaria a cidade a este homem? Da surra de Júlio, fusão para o rosto enfurecido de Andrew no discurso. Fim da edição. CAROLINA Mantenha a plebe longe dos cristais de Versalhes. Muito bom. (pausa) Mas não é o suficiente, você sabe disso. Você fez o possível, Chico, vamos embora. São quase duas da manhã. CHICO Eu vou ficar mais um pouco. Carolina levanta, vai saindo. CAROLINA Eu vou visitar a Lisa amanhã. Você não quer ir junto? CHICO Acho que não vou poder. CAROLINA Algum recado pra ela? CHICO Mama's grave. Carolina não acha graça. Sai. Chico fica sozinho na ilha. Começa a rever o final da edição, o rosto enfurecido de Andrew, o homem caído no chão, sendo chutado. LOCUTOR ...ou você entregaria a cidade a este homem? Chico congela a imagem no rosto de Andrew. Pega uma fita na gaveta. Põe na máquina. Posiciona a fita. Aperta o botão "PREVIEW". Entra a imagem final da edição. LOCUTOR ...ou você entregaria a cidade a este homem? Surge, numa continuação da edição, a imagem de Andrew no debate. ANDREW Eu gostaria de perguntar ao meu oponente qual a opinião dele sobre o uso de drogas, se ele usa ou já usou drogas. Andrew, alguns anos mais moço, no estúdio da TV, com um baseado na mão. ANDREW Trabalhadores do Brasil! Pelas liberdades democráticas e por uma melhor distribuição de maconha! Hay que endurecerse, pero sin faltar la marijuana jamás! A edição intercala as duas imagens de Andrew. ANDREW ...sobre o uso de drogas / por uma melhor distribuição de maconha! / uso de drogas / maconha / se ele usa ou já usou / maconha / sobre o uso de drogas / Hay que endurecerse, pero sin faltar la marijuana jamás! Congela na expressão de chapado de Andrew. LOCUTOR Você entregaria a cidade a este homem? Chico fica alguns segundos avaliando o efeito devastador da edição. As máquinas voltam aos pontos originais, as imagens da pancadaria e a pergunta de Andrew no debate. O botão "EDIT" fica piscando em vermelho. Ao seu lado, apagado, o botão "CANCEL". Chico fica olhando o botão piscar. Chico aperta o botão "EDIT". CENA 163 - IGREJA DO COLÉGIO - INTERIOR/DIA Um bando de MENINOS E MENINOS estão na fila do confessionário. Eles esperam encostados na parede, em silêncio. Quando um desocupa o confessionário o outro vai. CHICO (OFF) No colégio, toda primeira sexta-feira do mês a gente tinha que se confessar. A gente ficava em fila e entrava num lugar apertado e falava com alguém que a gente não via, como num banco 24 horas. Nós inventávamos todos os pecados. O roteiro dos meus pecados inventados era subliteratura infantil: bati na minha irmã, roubei uma fruta do quintal do vizinho e - para dar alguma credibilidade - disse palavrão. Três Avemaria, três Santoanjo, três Painosso, seguinte! Inventei um jeito de rezar mais rápido, só com os melhores momentos de cada reza. Ave convosco, bendito seus frutos, venha a nós o vosso reino, meu zeloso seatime confiou agora e na hora de nossa morte amém. Pagava minha dívida antes mesmo de sair da igreja e podia começar a pecar de novo, do zero. São os milagres da fé. Eu ainda não sabia que inventar pecados é o mesmo que cometê-los. Quase o mesmo. CENA 164 - COMITÊ DE ANDREW - INTERIOR/NOITE Andrew dá entrevista para vários REPÓRTERES. Ele parece estar muito tranqüilo. ANDREW Foi uma grande vitória, uma vitória dos trabalhadores, da sociedade organizada. Nunca na história desta cidade um candidato que representava as classes populares teve uma votação tão expressiva. Elegemos um grande número de vereadores, quase que dobrando a nossa bancada. E só não ganhamos a eleição majoritária porque no último instante nossos adversários apelaram para calúnias e difamações. A Frente Democrática inclusive pretende recorrer até ao Supremo Tribunal Eleitoral... CENA 165 - ESTÚDIO DE DAVI - INTERIOR/NOITE Festa. Davi é carregado nos ombros da galera. Todos cantam o jingle da campanha. As grandes letras D A V I foram arrancadas do céu do estúdio e são erguidas pela TURBA como troféus de uma batalha. Davi é colocado sobre um palanque improvisado. Pede silêncio. Todos ficam quietos. Davi faz uma longa e emocionada pausa. DAVI Meus amigos e minhas amigas. Eu creio... Chico, num canto do estúdio, fecha os olhos, suspira. Davi continua o seu discurso, mas Chico não escuta mais. A multidão aplaude. CHICO (OFF) O ano era mil novecentos e oitenta e nove, Brasil, e quase todas as pessoas tinham trinta anos. Ou mais. Quase todas as pessoas estavam infelizes, angustiadas, desiludidas. CENA 166 - CLÍNICA - EXTERIOR/DIA Lisa, sentada ao lado de Chico. CHICO (OFF) Ou mais. É muito perigoso inventar um futuro. Tem sempre alguém que acredita. Aí você tem que inventar outro, e outro, e outro, cada vez mais rápido. CENA 167 - COLÉGIO DE JOSÉ - EXTERIOR/DIA Chico espera José na saída do colégio. José, um garoto de doze anos, sai da escola conversando com amigos. José vê Chico e oferece carona aos amigos. Todos aceitam e entram no carro. CENA 168 - FRENTE DO EDIFÍCIO DE CAROLINA - EXTERIOR/DIA José desce do carro de Chico. Caminha em direção à porta de casa. Carolina aparece para receber José. Chico abana mas ela não retribui. Dá as costas e entra no prédio. José abana para Chico. CHICO (OFF) Sobre o passado, não tenha dúvida que as vidas do herói, do canalha e do mártir são a mesma, com três montagens diferentes. Ou três públicos diferentes. CENA 169 - CASA DE CHICO - INTERIOR/NOITE Chico chega em casa, que está a maior bagunça, com uma pilha de correspondência e jornais na frente da porta. Chico liga a TV. No telejornal, festa dos partidários de Davi pelas ruas da cidade. CHICO (OFF) O primeiro livro que eu lembro é "O Conde de Monte Cristo". Ficar milionário e se vingar de todos é um futuro maravilhoso aos doze anos de idade. Quase todos os livros infantis de sucesso falam de ficar rico e se vingar. Quase todos os livros adultos de sucesso também. Chico abre a geladeira. Tem água, um ovo e uma lata de negativo. Fecha a geladeira. Senta na frente da televisão. Já é noite. Fica mudando de canal com o controle remoto: programas de auditório, baixarias variadas, violência e sexo gratuito. CHICO (OFF) Outro futuro bastante popular é o "todos vão se dar bem". Políticos, religiosos e os gentis patrocinadores gostam muito deste futuro. É uma ficção óbvia, ainda mais improvável que o Conde de Monte Cristo. Mas não precisa de inimigos e, portanto, é bom para os negócios. Chico vai até a janela. Já é muito tarde, a rua está deserta. Tem umas crianças tentando dormir na calçada. CHICO (OFF) O futuro mais normal no Brasil é "quase todo mundo se dá mal, especialmente se tiver nascido pobre e meio escurinho. Se for mulher, nordestino ou deficiente, pior ainda". É claro que os gentis patrocinadores detestam este futuro: é real, injusto e não vai sair em vídeo. Chico volta para a poltrona, senta na frente da tevê. CHICO (OFF) Você pode tentar inventar o seu futuro. Mas não se preocupe demais. Em todos eles a gente morre no fim. A programação da TV chega ao fim. Aparece uma mulher para se despedir. MULHER Estamos encerrando nossas transmissões esperando reencontrá-lo amanhã. Um bom descanso para todos e uma boa noite. FIM ***************************************************************** (c) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1993-1997 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br