ÂNGELO ANDA SUMIDO roteiro de Rosângela Cortinhas e Jorge Furtado, abril de 1996 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre ******************************************************************* CENA 0 - TV / ESTÚDIO (ARQUIVO) Comercial de páscoa. A televisão muda rapidamente de canal, mostrando fragmentos de vários programas. Trilha e créditos. CENA 1 - INT/NOITE - CORREDOR DO EDIFÍCIO DE JOSÉ José, pouco mais de 30 anos, ar tranqüilo, sentado numa poltrona, com o controle remoto na mão, desliga a televisão. Ele se levanta, pega uma mochila e caminha em direção à porta. JOSÉ (OFF) Eu lembro que saí de casa antes das nove porque a novela estava começando. Eu desliguei a tevê e saí. Eu não tinha almoçado e estava com muita fome. José sai e fecha a porta de seu apartamento. No corredor, ele abre a caixa de correspondência. Ele examina alguns cartões. JOSÉ (OFF) Eu lembro também que eu peguei a correspondência. Tinha a conta da luz, um cartão de uma desentupidora que eu não lembro o nome e um anúncio de uma loja chamada Siamarrô, tudo junto. Inesquecível. Põe o cartão no bolso. CENA 2 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO DE JOSÉ José sai do prédio. O porteiro, 45 anos, gordo, ar relaxado, que estava numa cadeira ao lado da porta, ergue-se e acompanha José até o portão do prédio, descendo as escadas. PORTEIRO E esse calorão? JOSÉ Esquentou mesmo. PORTEIRO Minha prima passou este fim de semana na praia, voltou com a pele em carne viva. José guarda suas chaves no bolso. Com um molho de chaves, o porteiro abre o portão. PORTEIRO É o ozônio do sol que provoca estes buracos nas camadas da pele. O ozônio que eles usam para fazer desodorante e motor de geladeira. Eu vi uma reportagem na tevê. Impressionante. José fica pensando alguns segundos antes de responder. JOSÉ Pois é. José sai, o porteiro fecha e chaveia o portão. JOSÉ (ao porteiro) Boa noite. José caminha pela calçada. JOSÉ (OFF) Onde eu estava? Ah, sim, indo para a casa do Ângelo. Caminhei até o ponto do ônibus. José pára. Olha para trás como se tivesse esquecido de algo. JOSÉ Não, não... Fecha os olhos. José sai, o porteiro fecha e chaveia o portão. JOSÉ (ao porteiro) Boa noite. JOSÉ (OFF) Acho que eu peguei um táxi. José faz sinal para um táxi. JOSÉ Táxi! O táxi pára. JOSÉ (OFF) É, foi isso, peguei um táxi. Eu estava morrendo de fome. Ele entra no táxi. CENA 3 - INT/NOITE - TÁXI O rádio do táxi toca uma música em altíssimo volume. JOSÉ Eu estou indo para o centro. O motorista aciona o taxímetro. JOSÉ O senhor pode abaixar um pouco o rádio? O motorista diminui o volume do rádio. José pega no bolso a carteira e dela tira um papel. JOSÉ (OFF) Eu não via o Ângelo desde a faculdade. CENA 4 - EXT/DIA - RUA E ÔNIBUS Ângelo está dentro de um ônibus, na janela. José está de pé, ao lado do ônibus. Ângelo anota alguma coisa num caderno, rasga e entrega para José enquanto o ônibus parte. JOSÉ (OFF) A gente se encontrou uns dias antes e marcou de jantar no sábado. CENA 5 - EXT/NOITE - TÁXI O papel está rasgado. Falta um pedaço do número do apartamento: 40... O táxi dá uma freada brusca. MOTORISTA (gritando) Quer morrer, animal?! José guarda o papel e dá uma olhada na conta da luz. MOTORISTA (resmungando) Maloqueiro, raça de vagabundo! Só matando tudo! JOSÉ (OFF) Não lembro que caminho o táxi fez. CENA 6 - TABLE-TOP - MAPAS Animação mostrando o caminho do táxi pelas ruas da cidade. JOSÉ (OFF) Ele pode ter dobrado a esquerda, logo depois da praça, e seguido direto até o centro. Ou ele pode ter feito a volta na praça e descido até a perimetral. Não lembro. CENA 7 - EXT/NOITE - RUAS (VIADUTO) José desce do táxi. JOSÉ Eu lembro que ele me deixou a umas duas quadras da casa do Ângelo, porque a rua dele era contramão. José caminha sob o viaduto. Cruza com um homem que tem dois cabos de vassouras nos ombros e, em cada um deles, sacolas plásticas de diferentes tamanhos. O homem fala sozinho. MENDIGO Eu sabia que aquela era a minha chance. Desgraçado, bagaceiro! Eu sabia! Coisa de bagaceiro, mesmo! (resmungos incompreensíveis]. José não pára. Cruza com um grupo de mendigos que, aparentemente, passa as noites sob o viaduto. CENA 8 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO DE ÂNGELO José chega na frente de um prédio. É um prédio antigo, cinza, quatro andares. Ângelo examina o porteiro eletrônico, confere o endereço no papel. JOSÉ (OFF) Duas chances: quatrocentos e um ou quatrocentos e dois. (toca no porteiro eletrônico) Apertei no quatrocentos e um. Ninguém responde. De uma janela aberta do prédio vem uma música muito alta. JOSÉ (OFF) Alguém estava ouvindo uma música altíssima. Pelo que eu me lembrava do Ângelo, podia até ser ele. Ele toca outra vez. JOSÉ (OFF) Toquei também no quatrocentos e dois. Nada. Uma moça sai do prédio. Ela lê um cartão-postal e sorri. Quando vê José, seu rosto se modifica, se fecha. Ela se aproxima de José, cautelosa. JOSÉ Boa noite. Podia abrir para mim? O meu amigo não está escutando. MOÇA Onde é que o senhor vai? JOSÉ (OFF) E agora? JOSÉ No apartamento de um amigo meu, o Ângelo do... (cobrindo a boca com a mão) quatrocentos e (grhums). A moça olha para ele, de baixo para cima, lentamente. Detalhes do tênis de José, da calça de José, mãos e rosto de José. JOSÉ (OFF) Ela olhou para mim, de baixo para cima. Se eu estivesse de chinelo, ou de calção, ou tivesse as mãos muito fortes, ou se a minha pele fosse marcada pelo trabalho ao sol, ou, simplesmente, se eu fosse preto, não teria a menor chance. José sorri. INSERT: Ficha odontológica de José. JOSÉ (OFF) Eu sorri, passando no último teste: todos os dentes. Ela abre a porta. JOSÉ (OFF) No Brasil, dente é salvo conduto. Não saia de casa sem eles. Ela sai, sempre olhando para José com alguma desconfiança, fecha e chaveia o portão externo do prédio. JOSÉ Obrigado. José atravessa a ponte do edifício e se depara com a porta do prédio fechada. Tenta abri-la. Toca em outro porteiro eletrônico. Nada. Os Replicantes continuam aos gritos. Abre-se uma janela no terceiro andar. Ele se afasta do prédio e tenta ver alguém. Uma mulher surge na janela com um saco plástico nas mãos. JOSÉ Senhora! Ela não responde e joga o saco pela janela. O saco cai na calçada ao lado de uma lixeira. Ao cair, o saco se abre espalhando lixo pela calçada. Mendigos se aproximam e catam o lixo. JOSÉ Senhora! MULHER 1 Que que é? JOSÉ A senhora podia abrir para mim? MULHER 1 Como é que tu entrou? JOSÉ Eu estou indo na casa de um amigo meu... MULHER 1 Não pode ficar aí. É proibido. Eu vou chamar a polícia. JOSÉ Senhora! Ela entra e fecha a janela. Ele aperta mais uma vez no porteiro. JOSÉ (gritando) Ângelo! Ninguém responde. A música segue alta. Ele senta no degrau da porta. Um mendigo passa caminhando na calçada. José olha para ele. A música pára. Ele se ergue rapidamente. JOSÉ (gritando) Ângelo! Ângelo! Ângelo! Ele aperta muitas vezes o botão do porteiro eletrônico. JOSÉ Ângelo! A música recomeça. José desiste e tenta sair do prédio. Não consegue, o portão está trancado. Ele sacode o portão, muito irritado, os Replicantes aos gritos. Ângelo tem um surto, sacode e chuta o portão. Dois novos moradores, um homem e um velho, surgem nas janelas do prédio e do prédio vizinho. HOMEM 2 O que está acontecendo aí? Ele tenta se acalmar. JOSÉ Desculpe, mas é que eu fiquei preso aqui. A Mulher abre a janela. HOMEM 3 Que barulho é esse? Tem gente doente no prédio! MULHER 1 Ele tá emaconhado! A polícia já vem vindo. JOSÉ Eu sou amigo do Ângelo, do quatrocentos e dois. HOMEM 2 Quem mora no quatrocentos e dois é a dona Marilda Cantarelli! MULHER 1 Eu não disse que ele tá emaconhado? Um carro da polícia se aproxima e pára. MULHER 1 Olha eles aí. (ao Homem 3) Eu sou tia do delegado Soares da décima primeira. Um policial desce e se aproxima de José. POLICIAL Qual é o problema? MULHER 1 Ele tá emaconhado! HOMEM 3 Ele invadiu o prédio! JOSÉ (ao policial) Eu fiquei preso aqui. Estou tentando ir na casa de um amigo meu, o Ângelo, do quatrocentos e um. HOMEM 2 Antes ele disse que era no quatrocentos e dois. MULHER 1 Viu? HOMEM 3 Ele tentou quebrar o portão. JOSÉ Eu fiquei preso, estava tentando sair. É só tocar no apartamento 401, chamar pelo Ângelo. O policial olha José de baixo a alto. José sorri. POLICIAL (para a Mulher) A senhora podia tocar no 401, por favor? Como é o nome do seu amigo? JOSÉ Ângelo. POLICIAL Ângelo de que? JOSÉ Como? POLICIAL Qual o sobrenome nome dele? JOSÉ Não sei. Acho que é Ângelo Chaves. Todo mundo sempre chamou ele de Ângelo. A Mulher sai da janela. HOMEM 3 A gente não tem mais sossego nessa rua. Eu estou com a minha mulher doente numa cama com problema de rins. Um inferno. A música pára. Ângelo aparece na janela. JOSÉ Porra, Ângelo! ÂNGELO O porteiro está estragado. Ele é meu amigo, pode subir. JOSÉ (ao policial) Eu não lhe disse? Ângelo joga um grande molho de chaves. ÂNGELO (grita) Não pega que dói a mão! José protege a cabeça. Um grande molho de chaves se aproxima do chão. A chave cai, com um estrondo. José se abaixa e pega. JOSÉ Muito obrigado. (para os moradores, irônico) Obrigado para vocês também. Tudo de bom. Ele tenta abrir a porta do prédio, testando as muitas chaves. ÂNGELO (grita) Na fechadura de cima é uma com o cabo preto, mais velha. A de baixo é uma doberman. Os moradores, o policial e os mendigos ficam todos olhando para José. Ele, nervosamente, tenta abrir a porta. Finalmente ele consegue e sorri, aliviado. José abana para o policial e entra. CENA 9 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, TÉRREO As portas dos apartamentos do térreo têm sobreportas de grades de ferro. José passa por uma porta onde, pela janelinha, dois olhos o observam. José entra no elevador. CENA 10 - INT/NOITE - ELEVADOR José aperta o botão do quarto andar e se encosta na parede do elevador, tentando relaxar. JOSÉ (OFF) Só lembrei da minha fome quando entrei no elevador. Minha última refeição quente tinha sido o almoço do dia anterior: lombinho de porco, daquele bem fininho, arroz, com o molho do lombinho assim, por cima, purê de maçã e uma saladinha de maionese. José chega no quarto andar e descobre que a porta do elevador também tem chave. Tenta descobrir no molho de chaves qual é a do elevador. A porta pantográfica do elevador começa a se fechar. José aperta o botão de "abrir" e tenta, só com uma mão, descobrir qual é a chave certa. A porta pantográfica fica enlouquecida, tentando se fechar. Finalmente ele abre a porta e sai do elevador. CENA 11 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, QUARTO ANDAR No meio do corredor há uma grade de ferro que isola os apartamentos do resto do prédio. Ele aperta na campainha do 401 e os olhos de Ângelo aparecem na janelinha da porta. Ângelo põe a boca na janelinha. ÂNGELO Você vai ter que abrir. Está no mesmo chaveiro, a outra cópia sumiu. Procurando no chaveiro. JOSÉ Qual é? ÂNGELO Uma gold amarelinha, meio torta. Uma mais quadrada. JOSÉ Achei. José abre a grade e se aproxima da porta do apartamento. Tenta passar as chaves para o amigo pelo visor da porta mas o chaveiro é muito grande. ÂNGELO Não passa. JOSÉ Ai meu Deus! ÂNGELO Abre você. A de cima é uma comprida, redonda, acho que é Jorajas, Jojoras, uma coisa assim. Prateada. Experimenta a chave. JOSÉ Achei, mas não vira. ÂNGELO Tem um jeitinho. Empurra o miolo da fechadura com o polegar da mão esquerda e gira com a direita, ao mesmo tempo. A chave gira. JOSÉ Deu. ÂNGELO A do meio está do lado, na mesma argola. Acho que é Papaiz. Experimenta. A chave gira. JOSÉ Deu. Eu estou morrendo de fome. Ângelo passa uma bolacha pela janelinha. ÂNGELO Quer uma bolacha? JOSÉ Quero. Qual é a de baixo? José pega a bolacha e come. ÂNGELO A de baixo é fácil, uma vermelha. José acha a chave, põe na fechadura, gira a chave. Experimenta o trinco mas a porta não abre. ÂNGELO Acho que na de cima você só deu uma volta. José procura a chave. JOSÉ Qual é a de cima mesmo? ÂNGELO Uma comprida. José põe a chave, gira e tenta a maçaneta. A porta abre mas tranca numa correntinha. ÂNGELO Deu. Fecha para eu abrir. José fecha a porta. Som da correntinha sendo aberta. A porta se abre. Ângelo, com duas bolachas na mão, sai do apartamento. ÂNGELO Nem entra, que a reserva no restaurante é para às dez. Tudo bem? Você emagreceu. JOSÉ Deve ser a fome. Estou morrendo de fome. ÂNGELO Quer outra bolacha? José pega a bolacha e come. Ângelo pega as chaves e começa a fechar a porta. ÂNGELO A gente não se via há... JOSÉ Sei lá. Um tempão. ÂNGELO Vem cá, você lembra da Jane? JOSÉ Jane? ÂNGELO Da escola. Uma baixinha, morena, cabelo liso, bonitinha. Namorava aquele cara do segundo ano, o... como era o nome dele? Um que tinha uma cinqüentinha, namorava todo mundo. A moto fazia mais sucesso que ele. JOSÉ Lembro. Um magrão. Ângelo começa a fechar a grade do corredor. ÂNGELO Ele mesmo. Como era mesmo o nome dele? JOSÉ Não lembro. Pausa. JOSÉ Afinal o que houve com ele? ÂNGELO Com ele? Não sei. JOSÉ Mas de quem nós estamos falando então? ÂNGELO Da Jane. JOSÉ Jane... Não lembro. O que houve com ela? ÂNGELO Também não sei. Sumiu. Ele chama o elevador e põe a chave na porta. JOSÉ Mas porque você lembrou dela? ÂNGELO Não sei, achei que você talvez soubesse dela, ela era amiga da Cris. JOSÉ Cris? ÂNGELO Ué? A Cris. Vocês não eram namorados? JOSÉ Cris? Ah, lembrei. A Cris, claro. O elevador chega. CENA 12 - INT/NOITE - ELEVADOR Eles entram. JOSÉ Encontrei ela uma vez no supermercado. Nunca mais vi. Sumiu também. Pausa. Ficam sem assunto. José examina os detalhes do elevador. Lê a plaquinha: "É proibido fumar ou conduzir aceso cigarros ou assemelhados. Capacidade máxima permitida: seis pessoas ou quatrocentos e noventa quilos. A utilização acima desta capacidade é ilegal e perigosa". JOSÉ Quanto você pesa? ÂNGELO Sessenta e oito. JOSÉ Perfeito! Eu peso setenta e dois. ÂNGELO Antes da bolacha. JOSÉ Não deve fazer muita diferença. Uma bolacha... ÂNGELO Duas. JOSÉ Duas. Hoje eu nem almocei. ÂNGELO Você fuma? JOSÉ Não. ÂNGELO Eu também não. Estamos dentro da média e da lei. Isso não te dá assim... uma sensação de segurança? O elevador chega no térreo e abre. CENA 13 - INT/NOITE - CORREDORES DO PRÉDIO, TÉRREO Eles vão abrir a porta do prédio. A porta está chaveada. JOSÉ Eu deixei aberta. ÂNGELO Alguém já fechou. Olha o aviso. Na parede, ao lado da porta, há um aviso: A PORTA DEVE PERMANECER FECHADA A CHAVE DEPOIS DAS 20 HORAS. Ângelo abre a porta. Eles saem. CENA 14 - EXT/NOITE - FRENTE DO PRÉDIO Eles atravessam o pátio do prédio. Ângelo procura a chave para abrir o portão. ÂNGELO Você veio de carro? JOSÉ De táxi. ÂNGELO Vamos pegar um ali na praça Quinze, passa toda hora. Ângelo abre o portão. Eles saem. Ângelo fecha o portão. José começa a caminhar. ÂNGELO Não, vamos pelo outro lado. JOSÉ (apontando) Por aqui não é mais perto? ÂNGELO Nesta esquina tem uns mendigos que moram na calçada, eu prefiro passar pelo outro lado. A gente dá a volta... Eles saem caminhando. CENA 15 - TABLE-TOP - MAPAS Animação do trajeto num mapa. Ângelo (OFF) ... pela Andradas e entra na Sete de Setembro. Não dá para ir sempre pela Sete porque ali tem uma boates meio barra pesada, mas a gente pega aquela travessinha, acho que é a Tiradentes, e depois vai reto pela Dom Pedro até a praça Quinze. Talvez a gente já consiga um táxi na Dom Pedro. CENA 16 - EXT/NOITE - RUAS Eles caminham pelas ruas. Ângelo estende a mão com o chaveiro para José. ÂNGELO Posso por na tua mochila? José guarda as chaves na mochila. ÂNGELO Vamos atravessar que ali na frente tem uma obra onde moram umas pessoas. Atravessam a rua. Ao fundo, uma obra abandonada cercada por um tapume. Mendigos na obra. Uma forte luz ilumina a cena. A luz vem da máquina de um soldador que está colocando uma grade. Caminham mais. Dobram uma esquina e se aproximam do fim da rua, onde uma grade fecha a passagem. JOSÉ E agora? ÂNGELO Eu não sabia que tinham fechado isso aqui. Será que tem uma passagem? JOSÉ Parece que não. ÂNGELO E se a gente pulasse? JOSÉ Não. É muito alto. Ângelo tenta subir na grade, mas não tem onde apoiar o pé. ÂNGELO Tem essa ponta aqui que não dá para por o pé. Que largura tem entre uma grade e outra? JOSÉ O suficiente para não passar a cabeça de uma criança. José mede com a mão. ÂNGELO Vamos dar a volta. Eles dão meia volta e procuram um novo caminho. Assustam-se com o soldador mascarado armado de um maçarico. JOSÉ Ô! Desculpe... Seguem caminhando, sempre cercados de grades. Vêem uns mendigos na calçada, a frente. ÂNGELO É melhor a gente atravessar aqui. Atravessam. Um mendigo caminha na direção deles. ÂNGELO (ao mendigo) Eu não tenho nada. Afastam-se. CENA 17 - EXT/NOITE - GUARITA Continuam caminhando até encontrar uma guarita com um guarda. Ao lado da guarita, um cachorro policial está deitado. GUARDA Boa noite. JOSÉ Boa noite. GUARDA Não pode passar por aqui. ÂNGELO Como não? A rua é pública. GUARDA Essa aqui não é mais. O pessoal aí comprou. ÂNGELO O senhor tá brincando... JOSÉ Mas a gente só quer passar para o outro lado. GUARDA Não dá. Vocês vão ter que dar a volta. JOSÉ Isso é um absurdo! ÂNGELO Quem é que vai ficar sabendo? GUARDA Eu. Vocês vão ter que dar a volta. ÂNGELO A gente atravessa bem rapidinho. GUARDA Não dá. Vocês vão ter que dar a volta. Ângelo avança. ÂNGELO O senhor me desculpe, mas eu vou passar. A gente está morrendo de fome, aqui não passa táxi, eu vou passar. O guarda sai da guarita. Ângelo pára. GUARDA Ao cruzar o limite da guarita o senhor estará cometendo o crime definido no artigo cento e cinquenta do código penal; violação de domicílio: entrar ou permanecer clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia OU EM SUAS DEPENDÊNCIAS. Ângelo e José ficam alguns segundos parados, olhando para o porteiro. JOSÉ (baixinho, para Ângelo) Esse cara é louco. GUARDA Louco? Não, não. Louco é o meu cachorro. (para o cachorro) Pega Louco! Louco se ergue num salto, latindo, e parte em direção a José e Ângelo. Eles saem correndo, Louco nos seus calcanhares. GUARDA (discursando) A casa é o asilo inviolável do indivíduo; ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer. Artigo cento e cinqüenta e três, parágrafo décimo da constituição federal de mil novecentos e sessenta e cinco! José e Ângelo correm do cachorro. CENA 18 - EXT/NOITE - RUAS José corre pela rua, desesperado. JOSÉ Essa constituição nem vale mais! José chega a uma cerca. Tenta pular. A mochila prende na grade. Louco se aproxima. José se desfaz da mochila e pula. Louco mastiga a mochila. José ergue-se e sai correndo. José dobra uma esquina. CENA 19 - EXT/NOITE - RUAS José corre mais um pouco e, sem fôlego, diminui o ritmo. Olha para trás e para os lados. Pára. Respira fundo. JOSÉ Ângelo! Ao longe, Louco late. José começa a caminhar. JOSÉ Ângelo! José caminha mais um pouco. Ângelo (OFF) José! JOSÉ (gritando) Estou aqui! ÂNGELO (OFF) Aqui onde? José dobra uma esquina. Dá de cara com Ângelo, só que do outro lado de uma grade. ÂNGELO Que que é isso? JOSÉ Vamos sair daqui. Que loucura! Os dois tentam recuperar o fôlego. JOSÉ Vamos para casa pedir uma pizza. Eu estou morrendo de fome. ÂNGELO Cadê a mochila? JOSÉ O Louco comeu. Tudo bem, não tinha nada. Minha conta da luz... Eu peço uma segunda via. José tira dos bolsos a carteira, o cartão da Siamarrô e suas chaves. JOSÉ Minhas coisas estão nos bolsos: carteira, chaves... José olha para as chaves e para Ângelo. Ângelo olha para José. JOSÉ Não acredito! ÂNGELO Onde foi? JOSÉ Ali atrás. Eu vou voltar para buscar. José vai saindo. JOSÉ Espere aqui. ÂNGELO Não, eu vou pela outra rua. Não quero ficar aqui parado. Ângelo se afasta, dá uma olhadinha para trás e desaparece depois da esquina. José caminha pelo meio da rua. CENA 20 - EXT/NOITE - RUA Dobra a esquina e vê a cerca que ele havia pulado. Nem sinal de Louco. Ele se aproxima da cerca. A mochila não está ali. Ele fica parado, olhando para o outro lado da rua, por trás da grade, para o lugar onde Ângelo deve surgir. Ele espera. Muito ao longe, a luz de uma solda. Mais ao longe, um latido. JOSÉ (OFF) Fiquei esperando uns... cinco minutos, não sei. Talvez mais. José caminha no meio da rua. JOSÉ (OFF) Fiz todo o caminho de volta, até a casa do Ângelo. Em cada esquina eu olhava, chamei por ele. José dobra uma esquina e se depara com outra grade fechando a rua. Muda de direção. Cruza com um homem que solda uma grade. Cruza com um mendigo. JOSÉ (OFF) Voltei para casa, esperei que ele me ligasse. Talvez ele tivesse encontrado a mochila. Liguei para casa dele várias vezes, naquela noite e no dia seguinte. Fiquei preocupado. José dobra uma esquina. CENA 21 - EXT/NOITE RUA José entra numa grande e larga avenida onde há um carrinho de cachorro-quente. José se aproxima e pede um. O homem prepara o cachorro-quente. Detalhes. JOSÉ (OFF) Uns dias depois, passei na casa dele. Chamei, ninguém atendeu. Também não sei se já tinham arrumado o porteiro, achei melhor não falar com os vizinhos. Aí, eu viajei, fiquei um tempo fora. O homem lhe entrega o cachorro quente. Ele paga, dá a primeira mordida e sai caminhando. JOSÉ (OFF) Depois que eu voltei, ainda procurei por ele uma vez. O edifício tinha sido reformado, o porteiro estava funcionando. Falei com um cara no apartamento dele que era inquilino novo. Alugou de imobiliária e não sabia do antigo morador. José se afasta pela avenida quase deserta. Ao longe, um soldador trabalha colocando num prédio mais uma grade. JOSÉ (OFF) Nunca mais procurei nem ouvi falar do Ângelo. Já passou um ano, eu só lembrei por causa da páscoa. A última vez que a gente se viu foi naquela noite, atrás daquela grade. O Ângelo anda sumido. Eu também. FADE OUT. SOBEM CRÉDITOS FINAIS. FIM ******************************************************************* (c) Rosângela Cortinhas e Jorge Furtado, 1996. Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br