A IMPORTÂNCIA DO CURRÍCULO NA CARREIRA ARTÍSTICA episódio da série CONTOS DE INVERNO roteiro de Ana Luiza Azevedo, Glênio Póvoas e Giba Assis Brasil baseado no conto homônimo de Carlos Gerbase versão 3 - 02/04/2001 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para RBS TV ******************************************************************* CENA 1 - TEATRO - INTERIOR/NOITE ERNESTO, 22 anos, sentado atrás de uma velha escrivaninha, vestindo uma roupa do século 19, segura uma pena-tinteiro. ERNESTO São hoje quatorze de maio de mil oitocentos e sessenta e seis. Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul; e para muitos - Império do Brasil... Já se vê pois que isto é uma verdadeira comédia! Na platéia de um pequeno teatro contemporâneo, a MÃE, 45 anos, de óculos, muito bem arrumada, sorri com a piada. Ao seu lado, o PAI, 50 anos, terno e gravata, está quase dormindo. No palco, Ernesto atira longe a pena-tinteiro que tinha na mão. ERNESTO (gritando) Leve o diabo esta vida de escritor! É melhor ser comediante! *** Ernesto continua dando o texto, mas agora ouvimos sua voz comentando a cena. ERNESTO (VS) Entrei no curso de arte dramática um pouco por curiosidade: eu queria saber se eu podia ser um bom ator. Mas, quatro anos depois, eu ainda não sabia. Um outro ator, interpretando MALHERBE, de barba postiça, entra em cena e começa a dar um texto, falando diretamente ao público, sem parecer notar a presença de Ernesto. Ernesto sai do palco pelos fundos. Na coxia, com o auxílio de um CONTRA-REGRA, Ernesto rapidamente se troca, colocando uma roupa de mulher. ERNESTO (VS) No encerramento do curso, montamos "As Relações naturais", de Qorpo Santo, e eu fiz dois papéis: o Impertinente e Mildona. Eu queria ser um ator eclético. Meu pai, é claro, achava tudo aquilo apenas... impertinente. No palco, o Outro Ator continua o seu texto. Ernesto, agora como Mildona, entra em cena. MALHERBE Ah! És tu, minha querida Mildona? Quanto é doce vermos feitos de nossos trabalhos de longos anos! Um abraço, minha estimadíssima, minha mesmo queridíssima filha! Na platéia, a Mãe entreabre a boca, assustada. Com o cotovelo, faz um sinal para o Pai, sussurrando. MÃE Otávio... O Pai acorda e olha para o palco, incrédulo. ERNESTO (como MILDONA) O senhor não reparou bem; eu não sou a sua encantadora filha; mas a jovem a quem o Senhor, em vez de amizade, sempre há confessado tributar amor! O Pai olha para a mãe, sério. Neste momento, irrompem os aplausos. A Mãe se dá conta e também começa a aplaudir, simulando entusiasmo. Levanta-se. MÃE Bravo! O Pai, discretamente, sério, também começa a aplaudir. Na platéia há pouco mais de 20 pessoas, todas aplaudindo. No palco, Ernesto, Malherbe e mais QUATRO ATORES, todos jovens e com figurinos de época, agradecem. Pessoas da platéia deixam seus lugares e vão em direção ao palco para cumprimentar os atores. A Mãe e o Pai se dirigem para Ernesto (ainda vestido como Mildona). A Mãe abraça Ernesto. MÃE (falando alto, exagerada) Ernesto, querido! Foi muito forte, viu? Muito... intenso. ERNESTO (constrangido) Obrigado, mãe. PROFESSORA, 40 anos, casaco de couro, calça comprida, se aproxima de Ernesto, dá-lhe um abraço. PROFESSORA Meus parabéns, Ernesto! (para a Mãe) Seu filho é muito talentoso. MÃE Eu sempre achei isso, desde criança. Ele sempre foi muito desinibido. Era o palhacinho da família, não era? Ernesto sorri amarelo, envergonhado. A Mãe e a Professora continuam conversando. O Pai fica ao lado, quieto, sério. DURVAL, 25 anos, calça jeans, blusão de lã, um pouco afastado, faz um sinal de "positivo" para Ernesto, que responde da mesma forma. ERNESTO (VS) Não posso dizer que a minha carreira começou mal. Nos primeiros cinco minutos, duas críticas positivas, ainda que fossem da minha mãe e da minha professora. Mas, a partir do sexto minuto, tudo começou a mudar. A Professora se afasta, indo abraçar outro ator. O Pai, finalmente, se aproxima de Ernesto, estendendo-lhe a mão. PAI Talento não enche barriga. Vou te mandar mais dois meses de mesada. Depois, se quiser, pode voltar para Erechim. ERNESTO Obrigado, pai. O Pai olha para o vestido de Ernesto. PAI Filho... "ator" eu ainda agüento. Mas vagabundo, não. MÃE (protestando) Otávio! Neste momento, CECÍLIA, 21 anos, bonita, com cabelos longos e soltos, aproxima-se do grupo e, entre o Pai e a Mãe, entrega a Ernesto um embrulho enrolado com papel para presente. CECÍLIA Com licença? Olha, a Suzana pediu para avisar que era para devolver lavada, que da última vez que ela emprestou voltou cheia de tinta e que tinha até piolho. ERNESTO (não entendendo nada) Suzana? CECÍLIA Tu não é o Luiz Augusto? ERNESTO Não. CECÍLIA Desculpa, eu me enganei. Imediatamente, Cecília se vira e leva o seu pacote em direção a outro dos atores sobre o palco. O Pai e a Mãe se olham, sem saber onde pôr as mãos. Ernesto fica prestando atenção em Cecília. Sobre o palco cheio de gente, Cecília se aproxima do ator que fez Malherbe. Pode-se ver que ela faz a pergunta "Tu não é o Luiz Augusto? " empurrando o embrulho para ele, que o rejeita. ERNESTO (VS) E agora... o futuro! CENA 2 - BAR - INTERIOR/NOITE Dois copos de conhaque se batem. Ernesto e Durval estão sentados no balcão de um bar. DURVAL Eu tenho só uma palavra para te dizer sobre o futuro: Ernesto fica olhando, interessado. Durval faz suspense, leva o copo à boca, toma um longo gole, estala a língua e diz, pausadamente: DURVAL Cachorro... quente. ERNESTO (tomando o seu gole) São duas palavras, Durval. DURVAL Uma, composta. Pensa nisso. (pra dentro do balcão, indicando o copo) Mais uma, Espanhol! ERNESTO Eu acho que nós temos que montar um espetáculo que fale de nós mesmos, das nossas inquietações, das nossas dúvidas. O que é ter vinte e poucos anos nessa cidade, nesse começo de século. Começar com umas improvisações, o texto a gente vai construindo depois. O que tu acha? DURVAL (servindo-se mais uma dose) Prefiro cachorro- quente. ERNESTO (subitamente irritado) Babaca! DURVAL É tu! Os dois se olham, sérios, incomodados. Em seguida, sem que se perceba de quem foi a iniciativa, voltam a bater os copos. CENA 2A - RUA - EXTERIOR / NOITE Ernesto e Durval vêm caminhando lado a lado pela rua escura. ERNESTO Eu preciso de um emprego. DURVAL Claro! Quer ser ator. Mas tá preocupado com emprego. Tu devia pensar na proposta que eu te fiz. ERNESTO Mês que vem não tenho mais como pagar aluguel. DURVAL Ernesto, vender cachorro-quente no porta-malas do carro tá dando a maior grana. ERNESTO Eu não estou brincando, Durval. DURVAL Nem eu. O governo abriu um crédito para microempresas. A gente consegue uma caminhonetezinha por... ERNESTO Durval, eu sou um ator. EU SOU UM ATOR. E não vou desistir tão fácil. CENA 3 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 1 - INTERIOR/DIA Ernesto entra na recepção da produtora. Dirige-se à RECEPCIONISTA 1, que está atrás de uma mesa e que, sem parar de falar ao telefone, indica-lhe a cadeira em frente. RECEPCIONISTA 1 (ao telefone) É só deixar aqui comigo que eu passo para ela. (...) Pode ter certeza. Ernesto senta-se na cadeira indicada, muito desconfortável, daquelas em que se fica afundado. RECEPCIONISTA 1 Sim, senhor. Até logo. A recepcionista desliga o telefone. Ernesto começa a tentar se levantar da cadeira mas imediatamente o telefone volta a tocar. ERNESTO Ahn... Boa tarde. Recepcionista 1 atende, faz um gesto com a mão pedindo que Ernesto espere um pouco, RECEPCIONISTA 1 Set de Produção, boa tarde. A Recepcionista 1 fala ao telefone e ao mesmo tempo com Ernesto. ERNESTO (gesticulando bem a boca) Eu queria falar com a Niaia. RECEPCIONISTA 1 Só um momentinho. (tecla um ramal e, enquanto espera, fala com Ernesto) Ela saiu para ver umas locações. (para o telefone) Seu Gilberto, é aquele rapaz que deixou uns roteiros para o senhor no final de fevereiro. Ele quer saber se o senhor já leu. Toca o telefone novamente. ERNESTO Tu sabe se ela vai demorar? RECEPCIONISTA 1 (ao telefone) Pode deixar, eu digo pra ele. (na outra linha) Set de Produção, um momentinho por favor. (voltando à linha 1) Olha, ele não tem como te atender agora, quem sabe tu liga amanhã? (...) Eu dou o recado, sim. Até logo. (desligando uma ligação e pegando a outra) Set de Produção, boa tarde. Desculpe a demora. Ernesto já ficando impaciente. RECEPCIONISTA 1 Sim, vai ser para homens e mulheres de vinte a vinte e cinco anos. Enquanto presta atenção no que a pessoa do outro lado fala, a recepcionista faz um gesto negativo com a mão para Ernesto e fala sussurrando, tapando o bocal do telefone. RECEPCIONISTA 1 Não sei quanto tempo, isso de ver locações às vezes demora. (ao telefone) É. Tem que deixar o currículo aqui na produtora. (...) Bom, o de sempre: tem que ser mais ou menos bonita, ter dentes bons, cabelo bom e pele boa. (...) Tá bom, até logo. Ernesto aproveita que a Recepcionista 1 desligou o telefone, aproxima-se. ERNESTO Eu posso...? RECEPCIONISTA 1 Quem sabe tu telefona para ela amanhã e marca uma hora? ERNESTO Mas eu posso... O telefone volta a tocar. RECEPCIONISTA 1 Set de produção, boa tarde. A Recepcionista 1 olha na agenda. RECEPCIONISTA 1 Exatamente. Dia doze, sala trezentos e quatorze, às treze e trinta. ERNESTO Só diz para ela que é o Ernesto, sobrinho da Cida. Minha tia é amiga dela. RECEPCIONISTA 1 Pode deixar. (já sem olhar para Ernesto, que se vira e sai). Set de Produção boa tarde. (pausa) Sim. Já passo para ela, um momentinho por favor. CENA 4 - ORELHÃO - BORGES DE MEDEIROS - EXTERIOR/DIA Ernesto falando ao telefone, num orelhão. ERNESTO Por favor, eu gostaria de falar com a Niaia. (pausa) Eu sou o Ernesto, o sobrinho da Cida. Eu estive aí na produtora ontem à tarde. (pausa) E a que horas termina a reunião? (pausa) Tá bom, eu ligo daqui a meia hora. Ernesto desliga desanimado, sai caminhando pelos arcos do viaduto da Borges. CENA 5 - BAR/BALCÃO - INTERIOR/NOITE No balcão, o barman serve uma cachacinha para Ernesto e Durval. ERNESTO Eu não sei por quê que é tão difícil. Eles não sabem se sou um bom ator ou não. Aliás, nem eu sei. DURVAL Normal. Ninguém sabe. ERNESTO Mas alguém tem que me dar uma chance. O que é eu preciso fazer pra eles me darem uma chance? DURVAL Currículo, cara! Já que é isso que tu quer, capricha num currículo e leva para as produtoras. ERNESTO Eu posso não saber nada de latim. Mas "curriculum" quer dizer "carreira". Como é que eu posso fazer currículo se eu ainda não tenho uma carreira? DURVAL Não sabe latim mesmo. "Curriculum vitae" quer dizer "carreira de vida". Vida todo mundo tem. Até tu. (sorrindo) E quem precisa de currículo é justamente quem não fez nada. Ou tu acha que o Zé Vitor Castiel anda por aí, com um currículo na mão, pedindo uma chance? CENA 6 - JK DE ERNESTO - INTERIOR/DIA Uma peça única com apenas o básico: uma cama de solteiro, uma geladeira pequena, um fogão, uma estante de metal com alguns livros e papéis, uma arara com roupas dependuradas, uma mesa e duas cadeiras. Ernesto, com uma máquina de escrever, datilografa. Pára, fica em dúvida. Tira a folha da máquina, fica relendo. ERNESTO (VS) Nome, data e local de nascimento, curso de Arte Dramática. Não era uma grande "carreira de vida", mas o que é que eu ia fazer? Pensei em botar o sarampo, a cachumba, essas coisas, mas achei que eles não iam gostar da brincadeira: a moça deixou bem claro que tinha que ter pele boa. Neste momento, Ernesto larga a folha e passa a mão no rosto, procurando alguma imperfeição. CENA 7 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 2 - INTERIOR/DIA Na recepção, muito semelhante à da Produtora 1, Ernesto pega um copo de plástico e tenta pegar água numa bombona próxima à porta de saída, ao lado da poltrona. Algumas pessoas passam apressadas à sua frente, som de conversa telefônica ao fundo. Ernesto aperta a torneirinha para colocar água no copo. Quando solta a torneirinha, a água não pára de correr. Ernesto, sem saber o que fazer, coloca um copo novo embaixo da torneira enquanto pega o primeiro, cheio de água, e deixa-o num cantinho escondido. RECEPCIONISTA 2 (OFF) O que o senhor deseja? Ernesto se vira e percebe que a Recepcionista largou o telefone e está falando com ele. Rapidamente, coloca um copinho vazio sob a torneira, pega uma folha de papel ofício dobrada em dois que estava sobre a poltrona e vai correndo até a mesa. ERNESTO Ah, sim. (largando a folha sobre a mesa) Eu vim deixar o meu currículo. E volta correndo até a bombona, para trocar o copo. RECEPCIONISTA 2 (pegando o currículo) Ah. A água continua escorrendo e Ernesto continua enchendo copos e os cantinhos de uma prateleira com copos cheios de água. ERNESTO Eu já tinha falado contigo por telefone e... RECEPCIONISTA 2 Ah, tá. ERNESTO Eu achei que, se eu deixasse o currículo, o pessoal poderia me selecionar pra fazer algum trabalho. RECEPCIONISTA 2 Hum, hum. Ernesto, bastante atrapalhado, já quase não tem mais onde colocar os copinhos com água. A Recepcionista 2 olha o currículo de Ernesto sem nenhum interesse, abre uma gaveta de um arquivo e joga-o dentro. Ernesto, decepcionado, deixa cair um copo no chão, molhando todo o carpete. Toca o telefone. A recepcionista atende, aparentemente sem notar o acidente. RECEPCIONISTA 2 Dirigível produções, boa tarde. (...) Sim, já vou passar. (...) Seu Ricardo, é aquele fotógrafo que deixou um trabalho pro senhor examinar o ano passado. Ernesto junta o copo do chão calmamente, põe na lixeira, deixa a bombona escorrendo e vai embora. CENA 8 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 3 - INTERIOR/DIA A RECEPCIONISTA 3, muito parecida com as outras duas, bate o telefone e fala para alguém à sua frente. RECEPCIONISTA 3 Infelizmente ele está numa reunião, não pode ser interrompido. A recepção é muito parecida com a das produtoras anteriores. Em frente à recepcionista, de pé, está WILSON, 25 anos, roupa esquisita, um maço de papéis embaixo do braço. RECEPCIONISTA 3 Mas o senhor pode deixar o seu currículo e, quando ele estiver precisando de um ator... Pela porta, ao fundo, Ernesto vem entrando, com uma folha de papel ofício dobrada em dois na mão. WILSON Eu sei. Mas desta vez eu vim preparado. Gastei um dinheirão, mas valeu a pena. Wilson coloca em cima da mesa o seu maço de papéis. A folha de cima é um "composite" supertransado, com texto, fotos coloridas e, bem acima, em tipo grande, o nome WILSON HOLANDA. Ernesto fica olhando, curioso, por cima do ombro de Wilson. RECEPCIONISTA 3 Muito bonito, seu Wilson. Profissional. WILSON Obrigado. A recepcionista pega a folha de cima. A de baixo é igual, e a outra também. RECEPCIONISTA 3 Mas... É tudo isso? WILSON (sem entender) É, são duzentas cópias. Será que precisa mais? RECEPCIONISTA 3 O senhor não quer... deixar em outras produtoras, quem sabe? WILSON (seguro) Já deixei. Acho que agora eu consigo um trabalho, né? RECEPCIONISTA 3 (sem jeito) Claro. Só falta um pouquinho de sorte. WILSON A gente tem que ajudar a sorte. Até logo. RECEPCIONISTA 3 Até. Wilson se retira. A Recepcionista 3 fala com Ernesto. RECEPCIONISTA 3 E o senhor, veio deixar o currículo também? Ernesto, rapidamente, esconde a sua folha de papel nas costas. ERNESTO Não, eu só queria... (olha em volta, encontra a bombona) ... um copo d'água. CENA 9 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 1 - INTERIOR/DIA Cecília passa por uma porta interna, preocupada, ao mesmo tempo caminhando, lendo um roteiro em voz baixa e tentando decorar o texto. CECÍLIA "E a morte, ao meu olhar roubando a claridade..." E a morte... ao meu olhar... Cecília passa pela Recepcionista 1, que está ao telefone. RECEPCIONISTA 1 Sabe o que é, seu Gilberto, é que esteve aqui um ator, o nome dele é Wilson Holanda. (...) Não, mas deixou currículo. Cecília vai indo em direção à porta de saída, sempre lendo o seu roteiro. CECÍLIA "Ao dia que polui rende a serenidade." Ao dia... Ao chegar à porta, esta se abre, e por ela entra Ernesto. Os dois se chocam, o roteiro cai no chão, Ernesto se apressa em juntá-lo. ERNESTO Desculpe. CECÍLIA Não, desculpe. Eu é que estava distraída. RECEPCIONISTA 1 Eu sei, seu Gilberto, mas é que ele deixou duzentos. (...) É duzentos currículos. O que é que eu faço com isso? ERNESTO (para Cecília) Ei, eu te conheço. Lembra de mim? CECÍLIA Acho que não. ERNESTO Claro! Eu sou aquele que não era o Luiz Augusto. Lembra? CECÍLIA Luiz Augusto? ERNESTO O pacote da Suzana, que da outra vez voltou com piolho... Cecília olha desconfiada, não entendendo. ERNESTO (sorrindo) Bom, esquece. Eu não sou o Luiz Augusto, sou o Ernesto. CECÍLIA E eu não sou a Suzana, sou a Cecília. RECEPCIONISTA 1 (OFF) Moço, me faz um favor? Ernesto e Cecília olham para a Recepcionista 1. RECEPCIONISTA 1 (ao telefone) Sim, dona Mônica, já foram pro estúdio. (para Ernesto, tapando o bocal) Me alcança aquele cestinho ali? Ernesto olha em volta e vê um cestinho de lixo ao lado da bombona de água. Pega-o, leva-o até a mesa. RECEPCIONISTA 1 (ao telefone) Mas eu encaminhei todos os que vieram pro teste. (para Ernesto) Obrigado. Sem largar o telefone, a Recepcionista 1 pega a pilha de currículos de Wilson Holanda sobre a mesa e joga-a toda no cestinho de lixo. Ernesto e Cecília se olham, perplexos. RECEPCIONISTA 1 (ao telefone) Mais um? Homem? Tá bom, eu vou o que eu posso fazer. A Recepcionista desliga o telefone e olha com atenção para as mãos de Ernesto, ainda segurando o cesto cheio de papéis à sua frente. RECEPCIONISTA 1 O senhor não quer fazer um teste de mão? Ernesto e Cecília se olham, surpresos e divertidos. CENA 11 - SALA TESTE DE MÃO - INTERIOR/DIA Numa grande sala com apenas um grande balcão no centro, um ELETRICISTA termina de ajustar o foco de um refletor, voltado para o balcão. A um canto da sala, 4 MODELOS esperam, de pé, encostados à parede. ERNESTO (VS) Quando eu nasci, tive que fazer o teste do pezinho. Pra tirar carteira de motorista, exame de olhos. Depois que eu resolvi ser ator, minha primeira chance foi num teste de mão. Pela porta entra Ernesto, conduzido pela Recepcionista 1, que lhe indica o canto onde estão os Modelos e em seguida se retira, fechando a porta. Ernesto aproxima-se de um dos Modelos, fazendo gestos com as mãos, exercitando-se. ERNESTO Oi. Tu já fez esse tal teste de mão? MODELO 1 (também gesticulando) Muitos. Sou PHD em testes, faz parte do ofício. A porta se abre e entra o ASSISTENTE 1, que vai direto ao assunto. ASSISTENTE 1 Coloquem as mãos no balcão, por favor. Ernesto e os quatro modelos com as mãos em cima do balcão. O Assistente 1, sem olhar para o rosto deles, observa as mãos como quem faz revista em uma tropa. Todos os modelos ficam com as mão paradas, com exceção de Ernesto, que gesticula a mão tentando torná-la mais expressiva. O Assistente 1 estranha, mas não fala nada. ERNESTO (VS) Eu ainda não era um ator de corpo inteiro, mas... Bom, já era um começo. E tudo isso graças ao meu currículo. O Assistente 1 aponta para as mãos escolhidas, de um dos Modelos. ASSISTENTE 1 Esta aqui. Pode passar no departamento de pessoal pra assinar o contrato. O Modelo escolhido fica contente, sacudindo as mãos. Os outros o olham. O Assistente vai saindo. ASSISTENTE Vocês estão liberados, obrigado. CENA 15 - CACHORRO-QUENTE - EXTERIOR/NOITE Durval termina de olhar a folha de ofício que é o currículo de Ernesto. DURVAL Datilografado? Isto aqui tá ridículo. Durval e Ernesto estão sentados em um banco, ao lado de uma caminhonete de cachorro-quente. Seus lanches já estão quase no fim. Durval fica brandindo a folha de ofício enquanto fala. DURVAL Tem que ser mais audaz, moderno! Tu tem que te vender, Ernesto! Com este currículo eu não te contrataria nunca. (no ouvido de Ernesto) Nem para vender cachorro-quente. ERNESTO (chateado) Ah, mas com isso aí eu já consegui um teste. Já é alguma coisa. DURVAL Mas nunca vai passar do teste. Um bom currículo, um currículo de verdade, se faz com imagens, autoconfiança... ERNESTO ... e mentiras? DURVAL Nada de mentiras. Verdades... um pouquinho exageradas. Durval levanta-se. Fica desenhando no ar o texto do novo currículo de Ernesto. DURVAL "Ernesto Dias. Formou-se, com grande destaque... CENA 16 - APARTAMENTO DE DURVAL (ESCRITÓRIO) - INTERIOR/DIA Ernesto sentado em frente do computador. Durval ao seu lado, ditando. DURVAL "... no Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi referenciado pela crítica como grande promessa no teatro gaúcho." Aqui a gente deixa espaço para a foto. Cadê as fotos? CENA 24 - ESTÚDIO DE FOTO - INTERIOR/DIA FOTÓGRAFO tira várias fotos de Ernesto, de frente, de perfil, de calção de banho, de paletó. CENA 16A - APARTAMENTO DE DURVAL (ESCRITÓRIO) - INTERIOR/DIA Ernesto entrega um envelope para Durval. Durval abre o envelope, olha as fotos, escolhe uma. A foto de Ernesto sendo escanerizada. Na tela do computador, a foto sendo inserida no meio do texto. DURVAL Participou de vários festivais de teatro, recebendo muitos elogios. Cadê aquela crítica do Festival de Santo Ângelo? ERNESTO Tá aqui. Durval vai empurrando Ernesto e assume o teclado do computador. DURVAL O que é que o crítico disse mesmo? ERNESTO (lendo) "O conjunto das atuações destaca-se pelo equilíbrio e talento." DURVAL É isso aí. Durval digita. DURVAL "A crítica especializada foi unânime em reconhecer o talento de Ernesto Dias." E a matéria sobre o espetáculo de formatura? ERNESTO "Texto de Qorpo Santo é montado pelos formandos do DAD. Talento de nova geração promete sacudir o teatro gaúcho". DURVAL "Ernesto é a grande promessa do novo teatro gaúcho." Essa letra não tá boa, quem sabe esta? Na tela do computador, aparecem as mudanças de letra. DURVAL O tamanho também não tá bom. (levantando) Bota aí tudo em tamanho 14 e manda imprimir. Durval prepara a Câmera. Tira um poster da parede, pendura um pano para servir de fundo. Coloca um abajur para iluminar a cena. Imagem do visor de uma câmera, Ernesto se prepara para gravar. ERNESTO O mundo ainda não sabe se eu sou um bom ou um mau ator. Mas vocês podem saber... se me derem uma chance. A seguir vocês verão alguns personagens que eu já interpretei nessa minha carreira que está apenas começando. FIM DO PRIMEIRO BLOCO CENA 17 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 3 - INTERIOR/DIA O novo currículo de Ernesto, com texto e fotos coloridas, é colocado sobre a mesa. RECEPCIONISTA 3 (simpática) Hummm, mas este currículo, assim, em forma de "composite", ficou muito "fashion". Ernesto está de pé em frente à Recepcionista 3, satisfeito. ERNESTO Mas tem mais. Ernesto coloca sobre a mesa uma fita VHS com a sua foto na capa. RECEPCIONISTA 3 Hummm.... E acompanhado de um "videobook", então, é o "must". Recepcionista abre a porta de um armário atrás de sua mesa. Aquela divisão do armário está abarrotada de fitas de vídeo. Ernesto nota, decepcionado. A Recepcionista guarda a fita de Ernesto por cima das outras, com certa dificuldade. RECEPCIONISTA 3 Pelo que eu vi, o senhor conhece tudo de "self- selling". ERNESTO Quase tudo. E aquele trabalho que tu tinha falado? RECEPCIONISTA 3 Ah, aquele "job"... Infelizmente, o "casting" já está completo. ERNESTO Claro. Ernesto vai se virando pra ir embora, meio chateado. RECEPCIONISTA 3 Não quer fazer um "coffee-break"? (apontando a garrafa térmica) Tá novinho. ERNESTO Não, obrigado. Tem um telefone pra recados aí. Qualquer coisa, "turn me on". CENA 18 - RECEPÇÃO DA PRODUTORA 2 - INTERIOR/DIA Na produtora 2, Wilson se aproxima da recepcionista, com um pacote embaixo do braço. WILSON Boa tarde. Lembra de mim? Wilson Holanda? RECEPCIONISTA 2 (sem saco) Sim, os duzentos currículos. WILSON (contente) Exatamente. É que... aconteceu um imprevisto. RECEPCIONISTA (pegando a lixa de unhas na gaveta) Hum-hum? WILSON É... Eu tive que mudar o meu nome. RECEPCIONISTA Não me diga. Neste momento, Ernesto entra pela porta e aproxima-se pelas costas de Wilson. WILSON É... numerologia, sabe? Eu estava precisando de um "ele" a mais. Pra dar um impulso na minha carreira, entende? Ernesto chega ao lado de Wilson. A Recepcionista levanta o olhar para Ernesto, os dois se olham. WILSON Mas aí eu pensei: puxa, e todos aqueles meus currículos, por aí, com o nome antigo? Um problema, né? ERNESTO E RECEPCIONISTA É... Wilson abre o pacote: é uma pilha de etiquetas com o nome WILSON HOLLANDA impresso. WILSON Então eu mandei fazer isso. Pra colar em cima do nome antigo, percebe? São duzentas etiquetas, mas pode deixar que eu mesmo colo, tu não vai ter trabalho nenhum. É só me emprestar os currículos que eu deixei aqui a semana passada. A Recepcionista 2 fica olhando para Wilson, sem saber o que dizer. Ernesto se intromete. ERNESTO Com licença? Olha, eu só vim deixar o meu currículo, tá? (largando a folha e a fita sobre a mesa) É só um, Ernesto com um "ene" só, não precisa mudar nada. (cumprimentando Wilson) Aí, Wilson, tudo de bom pra ti, hein? Valeu. CENA 12 - ESTÚDIO 2 - INTERIOR/DIA Em frente a um fundo neutro com uma luz precária, Cecília aguarda, nervosa, olhando em volta. ASSISTENTE 2 (OFF) Tá, pode ir. CECÍLIA Nada se ganha, ao contrário, tudo se perde, quando nosso desejo se realiza sem satisfazer-nos. O DIRETOR 2, óculos escuros, calça de couro, do outro lado do estúdio, olhando pelo monitor. Aperta o botão do intercomunicador. DIRETOR 2 Faz de novo, mas agora sem atuar. Seja tu mesma. A ASSISTENTE 2, constrangida, "traduz" para Cecília. ASSISTENTE 2 Menos teatral. Diretor 2 olha de forma arrogante para a Assistente 2. Faz um sinal com mão para que a Cecília siga. CECÍLIA Nada se ganha, ao contrário, tudo se perde, quando nosso desejo se realiza sem satisfazer-nos. DIRETOR 2 OK, a próxima! ATRIZ 3 entra nas luzes e se prepara para dar o texto. A Assistente 2 se aproxima, conferindo. ASSISTENTE 2 Shakespeare, também? ATRIZ 3 Não, eu prefiro dar o texto de um autor gaúcho. Pode ser? ASSISTENTE 2 Claro, claro que pode. A Assistente anota alguma coisa na prancheta e sai. ASSISTENTE (OFF) Um, dois e... pode ir. Atriz começa a interpretar, acompanhando com gestos, como se fosse realmente um texto teatral. ATRIZ 3 Bom dia, senhoras e senhores presentes neste dia de festa. Eu sou uma atriz gaúcha. Trabalho há vinte anos com teatro, já atuei em algumas peças de Tchecov, Brecht, Beckett e de muitos dramaturgos brasileiros, Oduvaldo Viana Filho, Ivo Bender, Nelson Rodrigues, enfim. Tempo e trabalho suficientes para ter o meu talento confirmado, ou não. Mas diretor gaúcho não vai ao teatro, não conhece os atores gaúchos. O diretor e a assistente se olham, incrédulos. ATRIZ 3 E quando vão fazer seus filmes ou comerciais, nos chamam para fazer estes testes ridículos. DIRETOR 2 Tá bom, tá bom, muito obrigado pelo teste, foi ótimo. ATRIZ 3 E não pagam nem cachê pelo teste. Pois se ao menos fizessem isto estariam valorizando um trabalho... DIRETOR Tá bom, chega! (para o Assistente 2) Pode mandar a próxima. Atriz 3 sai do estúdio, triunfal. ATRIZ 3 Até logo. Até o próximo teste. CENA 13 - ESTÚDIO 2 - EXTERIOR/DIA Uma fila com 5 ATRIZES e Ernesto. A Assistente 2 aparece na porta. ASSISTENTE 2 A número dezesseis, por favor. CENA 14 - ESTÚDIO 2 - INTERIOR/DIA O Diretor 2 toma um gole de café e olha pelo monitor, quando vê Ernesto entrando no estúdio. DIRETOR 2 Quem é esse sujeito aí? A Assistente, atrapalhada, olha na prancheta. ASSISTENTE É... Ernesto Dias. Formado no Curso de Arte Dramática, fez... Ernesto vai se posicionando na frente da câmera. DIRETOR 2 Peraí! O que este cara tá fazendo aqui? Tu não sabe que o papel é feminino? ASSISTENTE 2 (constrangida) É, eu falei pra ele. Quem sabe a gente faz um teste pra arquivo? DIRETOR 2 E tu acha que eu vou perder meu tempo fazendo arquivo? Manda este cara embora. A próxima. ASSISTENTE 2 (para Ernesto) Não te disse? Ernesto dá um sorriso meio sem jeito, como quem diz "pelo menos eu tentei". CENA 20 - BAR - INTERIOR/NOITE Ernesto e Durval jogando sinuca. ERNESTO Voltei em todas as produtoras de cinema e publicidade da cidade. A quatro no canto. Ernesto tenta a tacada e erra. DURVAL Posso te dizer uma palavra? ERNESTO Não! Durval move a boca para dizer "cachorro-quente", sem pronunciar. DURVAL A seis no meio. ERNESTO Ontem eu vi a Cecília de novo. DURVAL Humpf... A do pacote? Durval acerta a tacada. DURVAL Tu, além de ser ator, ainda vai te interessar por uma assistente de figurinista? ERNESTO Ela é atriz. E é boa. Boa atriz, quero dizer. Eu vi ela fazendo um teste, mas ela não me viu. DURVAL (irônico) Ah, o amor... A sete, lá do outro lado. Ernesto senta ao lado da mesa de sinuca, nem acompanha a tacada de Durval. Durval acerta. DURVAL Entraram em contato ontem. (entregando um papel pra Ernesto) Deixaram este telefone, disseram que era para tu falar com a Cíntia. ERNESTO (pegando o papel) E tu não ia me dizer nada? DURVAL Ernesto! Isto é embromação, cara! Tu vai lá, faz um teste, fica cheio de esperança e no mês que vem não tem dinheiro para pagar aluguel. Pensa que eu não conheço isso? Ernesto joga o taco no chão. ERNESTO Tu não conhece é nada, Durval. Tu é um fracassado, cara. E eu não! Ernesto vai saindo. DURVAL A oito no meio. Ô, Ernesto, vai abandonar, cara? ERNESTO Tchau, Durval. CENA 26 - RUA - EXTERIOR/DIA Ernesto, com a sua mochila às costas, vem apressado pela rua, sério. Aos poucos, um sorriso vai surgindo no seu rosto. De repente ele percebe que está muito contente. Passa por uma SENHORA, cumprimenta-a. A Senhora pára ao seu lado, sem entender direito. Ernesto aperta as duas bochechas da Senhora com as mãos. ERNESTO Eu sou um ator. Eu sou um ator! CENA 27 - FIM DA LINHA DO ÔNIBUS TV - EXTERIOR/DIA Ernesto, agora vestido de black-tie, mas ainda com a mochila às costas, desce do ônibus, sorridente. Caminha a passos largos, dobra a esquina. CENA 28 - PRÉDIO DO ESTÚDIO - EXTERIOR/DIA Ernesto sobe as escadarias do prédio. Outros ATORES E ATRIZES, todos vestidos com roupas de festa, também vão chegando. CENA 29 - ESTÚDIO 1 (SALÃO) - INTERIOR/DIA No salão de espera, um grupo de 10 atores e 10 atrizes. Os atores estão vestidos da mesma maneira: black-tie, alguns ainda colocando a gravata, outros trocando de sapatos, carregando alguma mochila, pasta, mala, saco. As atrizes também estão vestidas da mesma maneira: vestido de festa, dando os últimos retoques de maquiagem. Ernesto entra e procura um lugar para sentar. Cecília, com o número 96 sobre o colo, está sentada numa banco de madeira. Ernesto faz menção de sentar ao lado dela. Ela se mexe no banco abrindo espaço para que ele possa sentar. Ele senta. Ficam os dois em silêncio por um momento. ERNESTO Oi. CECÍLIA Oi. ERNESTO Quanta gente. Eu não imaginava. CECÍLIA Normal. É o teu primeiro teste? ERNESTO Assim, de corpo inteiro, é. CECÍLIA Vão selecionar um homem e uma mulher. ERNESTO Então temos cinqüenta por cento de chance. Cecília sorri. No pátio, os outros atores e atrizes conversam. Ouvem-se trechos de conversas. ATRIZ Eu sei que desta vez eu vou conseguir. ATOR Eu estou cansado de tanto esperar nestes testes. ATOR Eles ao menos podiam nos oferecer um lanche. ATRIZ Não tá faltando trabalho não, pelo menos pra mim. ATRIZ Ela viu o anúncio lá no DAD. Foi para o teste. Só ali ela ficou sabendo que era para um filme pornô em Alvorada. ATOR E aí? ATRIZ Aí, ela encarou. Agora, há apenas cerca de dez atores no corredor. Ernesto está sozinho no banco. ASSISTENTE 1 abre a porta do estúdio. ASSISTENTE 1 Noventa e oito. Ernesto se levanta. CENA 30 - ESTÚDIO 1 - INTERIOR/DIA Assistente 1 coloca Ernesto encostado num fundo infinito, num ponto onde está marcado com fita crepe. Uma camêra de vídeo está posicionada sobre um tripé. Assistente 1 confere o visor e dispara a câmera. ASSISTENTE 1 Já está gravando. Diga seu nome. ERNESTO Ernesto Dias. ASSISTENTE 1 Pode virar e ficar de lado. Ernesto vira de lado. ASSISTENTE 1 O outro lado. Ernesto vira para o outro lado. ASSISTENTE 1 Ok. Vira para cá. Ernesto fica de frente. ASSISTENTE 1 Agora diga: Cuidado, você está numa situação muito delicada. Ernesto fica por um momento atônito. ASSISTENTE 1 Cuidado, você está numa situação muito delicada. Ernesto se posiciona. Repete a frase baixinho. ERNESTO Cuidado, você está numa situação muito perigosa. ASSISTENTE 1 Delicada, situação muito delicada. Mais uma vez, ação. Ernesto suando, passa a mão na cabeça. ERNESTO Cuidado, você está numa situação muito delicada. ASSISTENTE 1 Valeu, obrigado. Ernesto fica parado. Assistente 1 olhando para Ernesto. ASSISTENTE 1 Valeu, muito obrigado. Você já está dispensado. Ernesto começa a sair do estúdio, devagar. CENA 31 - ESTÚDIO 1 (SALÃO) - INTERIOR/DIA Ernesto entra no corredor e vê, no mesmo banco de antes, Cecília, com lágrimas nos olhos. Ernesto senta ao seu lado. ERNESTO Chateada? Ela encolhe os ombros, demonstrando que sim. ERNESTO Bobagem... Um ator de verdade jamais vai demonstrar seu talento dizendo: "Cuidado, você está numa situação muito delicada." CENA 32 - ESTÚDIO 1 - INTERIOR/DIA Vários atores e atrizes dizem a frase de maneiras diferentes, acertando, errando. ATRIZ Cuidado, você está numa situação muito delicada. ATOR Cuidado, você está numa situação muito delicada. ATOR Eu acho que ele não diria assim. ATRIZ Cuidado, você está numa situação muito delicada. ATOR Cuidado, você está numa situação muito delicada. ATRIZ Quem é este personagem? O que ele faz? Eu preciso de uma base, uma motivação. CENA 33 - ESTÚDIO 1 (SALÃO) - INTERIOR/DIA Cecília limpa os olhos com um lenço de papel. CECÍLIA Tu é um ator de verdade? ERNESTO Sou. Mas amanhã começo uma nova carreira. Como empresário. CECÍLIA Empresário? ERNESTO Um negócio pequeno... Cachorro-quente. Cecília fica olhando, séria. CENA 34 - ALAMEDA AO LADO DO MARGS - EXTERIOR/AMANHECER Largo da praça da Alfândega bastante vazio. Ao longe, um homem (em silhueta) abre uma caminhonete de Cachorro-quente, prepara-se para começar a trabalhar. Coloca o guarda-sol, os bancos para os clientes. Num banco ao lado, mais próximo, Cecília está sentada, esperando. Ernesto chega por trás dela. Abraçam-se, conversam. Ele senta ao lado dela. Beijam-se. ERNESTO (VS) A partir daí a minha vida mudou. No dia seguinte eu não entrei no ramo de cachorros-quentes com o Durval. Aliás, ele também não. A gente marcou um encontro, eu e a Cecília. E foram muitos encontros a partir de então. CENA 35 - FOTOS/TEATRO - INTERIOR/DIA Num palco com alguns elementos de época, Ernesto e Cecília encenam Romeu e Julieta. ERNESTO Neste instante, meu arrebatamento é tão infinito e meu amor tão profundo como o maior dos oceanos. CECÍLIA Romeu, livra-te do teu nome. Em troca dele, que não é parte de ti, toma-me inteira para ti. Ernesto e Cecília, no palco, representando trechos de vários espetáculos: "Longa jornada noite adentro", "Casa de bonecas", "Esperando Godot", "Hamlet". ERNESTO (VS) Montamos juntos vários espetáculos. Primeiro foi "Romeu e Julieta". Depois, "Longa jornada noite adentro". Usamos vários textos que eu tinha estudado na faculdade, Ibsen, Beckett, Shakespeare. Ernesto está no palco como Hamlet. Cecília, como Ofélia, a seu lado. Na platéia, um único espectador se levanta e sai. ERNESTO (VS) A grande maioria foi um fracasso de público. Mas isto pra nós não tinha a menor importância. Tínhamos um ótimo patrocinador. Ernesto-Hamlet e Cecília-Ofélia, no palco, acham graça, riem. Caem na gargalhada. DURVAL (OFF) Posso acender as luzes? Ernesto e Cecília fazem um sinal afirmativo, mas não conseguem falar de tanto que riem. Durval sobe no palco. DURVAL Cecília, queria que tu já me assinasse estes cheques. É pra pagar o teatro e o pessoal da técnica. Durval coloca os cheques numa mesa do cenário. Cecília, ainda se divertindo com o fracasso, assina. ERNESTO (VS) Cecília, além de ter cabelo bom, pele boa e dentes bons, tinha também uma ótima conta bancária. CENA 36 - TEATRO - CAMARIM - INTERIOR/NOITE Cecília e Ernesto, em frente ao espelho do camarim, tiram a maquilagem enquanto ainda riem. Cecília fala alguma coisa, Ernesto não leva a sério. ERNESTO (VS) Tanto que, na semana passada, depois do fracasso da nossa montagem revolucionária de "Hamlet", ela resolveu que iríamos fazer um filme. ERNESTO Tá maluca? Sabe quanto custa? CECÍLIA E daí? Durval entra no camarim com um balde de champanhe e gelo e três taças. Serve, enquanto os três vão discutindo, animados. ERNESTO (VS) Vai ser um filme que fale de nós mesmos, das nossas inquietações, das nossas dúvidas. O que é ter vinte e poucos anos nessa cidade, nesse começo de século. Durval vai cuidar da produção, eu e Cecília faremos os papéis principais, o diretor e o roteirista nós vamos contratar. Falta o elenco de apoio. CENA 37 - RECEPÇÃO DE UMA PRODUTORA - INTERIRO/DIA Numa recepção de uma produtora moderna, Wilson fala com a telefonista, que tenta fazer uma ligação. WILSON Eu posso deixar meu currículo, entende? Mas eu gostaria de dar só uma palavrinha com ele, ele me conhece, é só dois minutinhos. RECEPCIONISTA (ao telefone) Seu Ernesto, tem um ator aqui, Wilson Holanda... WILSON Wilson com dois "esses". RECEPCIONISTA ... que diz que lhe conhece e gostaria de falar com o senhor. (...) Pode deixar. (desligando o telefone). Ele mandou pedir desculpa, não pode lhe atender. Mas o senhor pode deixar o seu currículo, semana que vem nós vamos fazer uns testes... CENA 38 - SALA DE REUNIÕES - INTERIOR/DIA Numa mesa de reuniões, Ernesto e Durval, entre pilhas de papéis, analisam currículos. DURVAL Olha essa ruivinha aqui: Trabalho em longa- metragem há mais de dez anos. Fui protagonista em "Agarra que elas Gostam", "Upa, upa Cavalinho", "Americana sem pudor"... Ernesto arranca o currículo das mãos de Durval. ERNESTO Como é que é? Os dois ficam examinando as fotos e os detalhes do currículo da moça. ERNESTO (VS) E deixo aqui meu conselho para as futuras gerações de atores: caprichem no currículo, porque ele é a porta de entrada para o sucesso artístico e para a realização profissional. ERNESTO Ótimo currículo. chama pro teste. FIM ******************************************************************* (c) Ana Luiza Azevedo, Glênio Póvoas e Giba Assis Brasil, 2001 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br