DECAMERÃO, A COMÉDIA DO SEXO Episódio 1: COMER, AMAR E MORRER roteiro de Jorge Furtado, Guel Arraes e Carlos Gerbase roteiro final de Jorge Furtado e Guel Arraes versão de 29/08/2008 ***************************************************************** CENA 1 – CAMPO – AMANHECER Amanhece. Masetto colhe macela. CENA 2 – RUA FEIRA – EXT/DIA Uma feira de rua. Câmera 1/4, seguindo um ramalhete de macela nas mãos de MASETTO. Músicos, animais, barulho. Masetto oferece ramalhetes de macela. MASETTO Macela! Macela! MASETTO Macela. Macela. MASETTO Macela... Macela... Masetto passa por um PADRE GORDO corta, com uma faquinha de cabo branco, um pedaço de salame, come um pedaço do salame e põe o salame no alforje de um burro, junto com a faquinha. O Padre termina de tomar copo de vinho oferecido pelo feirante. Masetto aproxima-se do Padre. PADRE Tem quantos dias que colheu? Masetto estende o ramalhete, dá para o Padre. MASETTO No amanhecer da Sexta-Feira Santa, antes do sol. Padre pega a macela, cheira, guarda no alforje do burro. PADRE Deus lhe pague, meu filho. O Padre vai saindo. MASETTO Deus me pague, Padre, obrigado, mas e o senhor? Não vai me pagar? PADRE É sua contribuição para a Páscoa da igreja. MASETTO Então... pelo menos me dê um pedaço de salame. Eu não como desde ontem. PADRE É da igreja, não posso dar. MASETTO Não pode dar, mas pode comer. PADRE Claro! Eu não sou da igreja? MASETTO E eu? Como é que fico? Também preciso comer. PADRE Vai trabalhar. MASETTO Estou trabalhando, vendendo macela. PADRE (rindo) E isso é trabalho, vender macela? Macela dá no campo, é só pegar. Trabalho idiota! Dois soldados passam. MASETTO Melhor que roubar dos pobres! Padre pára, encara Masetto. Os soldados observam. PADRE Tá me chamando de ladrão? Soldados param, se aproximam. Outras pessoas observam. MASETTO O senhor não pagou a macela que eu lhe dei. PADRE Você deu na minha mão! Estou mentindo? MASETTO Não. PADRE Então peça desculpa. MASETTO Desculpa. Os soldados se afastam. O Padre ri. PADRE Você não é tão bobo quanto parece. Masetto tira do dedo um anel, esconde na mão, se aproxima do Padre. MASETTO Padre! O Padre pára. Masetto, sem que o Padre veja, põe o anel dentro do alforje do burro. MASETTO Já que vou morrer de fome... dê ao menos uma benção... PADRE (saindo, rindo) Vai trabalhar, rapaz... O Padre, que se afasta, deixando a feira. Masetto sorri. CENA 3 – ESTRADAS – EXT/DIA Masetto segue o Padre, corta caminho subindo um morro. Vê que um grupo de soldados se aproxima à frente. Masetto desce o morro e vai tirando a roupa. Passa por um riacho, molha o cabelo e sai correndo, quase nu, atrás dos Padre, gritando. MASETTO (gritando) Ladrão! Socorro! Masetto alcança o Padre que, um pouco embriagado, não entende o que está acontecendo. O soldados chegam. MASETTO Ladrão! PADRE O que é isso? Está louco? Um TENENTE de aproxima, se destaca do grupo de soldados. MASETTO (ao Tenente) Tenente! Deus seja louvado! Chegaram na hora exata, foram mandados pelo Senhor! Esse homem roubou meu burro, minhas roupas, tudo! Eu estava me banhando no riacho... PADRE Este homem está louco! MASETTO Louco? Vejais no alforje, o salame que eu comprei na feira, só comi um pedaço, vejais! O Tenente olha para o Padre, para Masetto. PADRE Vejais!? Vejais é presente do subjuntivo, o imperativo afirmativo é vede! O tenente fica olhando para o Padre, sem entender o que se passa. TENENTE Verde? PADRE Vocês são dois ignorantes. O Tenente se irrita e abre o alforje do Padre, encontra o salame cortado. Masetto faz cara de "eu não disse?". PADRE Ele me viu comer o salame na feira, é um farsante! (ao tenente) Não seja burro! MASETTO Vede se aí está a minha faca... O Tenente encontra a faquinha, esconde o cabo, olha para Masetto. TENENTE Verde? MASETTO Não, branca! O Tenente confirma que a faca tem o cabo branco. PADRE (ao tenente) Ele também reparou na faca. É um pilantra nunca visto! MASETTO Além de ladrão, blasfema, agride um servo de Cristo! É um louco, um psicopata! Tenente, procure bem, um pequeno anel de prata com a Cruz de Jerusalém. PADRE Que cruz de jerusuquê! MASETTO O tenente pode ver! Tem quatro cruzinhas brancas e uma maior no centro. Tenente verifica a bolsa, acha o anel, examina. MASETTO Representa os Evangelhos e o Antigo Testamento. Vede, confirais. O Tenente olhou para o anel, para o Padre e para Masetto. PADRE (Possesso) Que "confirais"! É "conferi"! Estou cercado de jumentos. TENENTE (ao Padre) Silêncio! Imóvel! Calado! Conferi é pretérito perfeito, eu conferi, tu conferiste, ele conferiu. E você feche essa boca e vá pra... Tenente se controla e faz um sinal aos soldados que cercam o padre. Corta. O Padre esbraveja, é amarrado, só com a roupa de baixo. Masetto, já vestido de padre, no lombo do burro, abençoa a patrulha. MASETTO (abençoa) Vão com Deus, meus filhos! Vão com Deus! PADRE (grita) Calhorda, filho de um jegue! Por Cristo, te busco onde for! MASETTO Vão deixar que em vão empregue o santo nome do Senhor? O Tenente faz sinal para os soldados, que amordaçam o Padre, que continua esbravejando. A patrulha parte, levando o Padre de arrasto, a pé. CENA 4 – ESTRADAS – EXT/DIA Masetto se afasta no burro. Abre o alforje, pega o salame e a faquinha de cabo branco quando vê em frente, parada na estrada, uma MULHER (30) e DOIS MENINOS (8 e 6), em estado lastimável. MULHER A benção, seu Padre. MASETTO Benção minha filha. A Mulher e os Meninos ficam parados, olhando para o salame. Masetto olha para o salame, para as crianças, corta o salame em quatro partes, dá três partes para a Mulher, fica com uma. MULHER Muito obrigado, seu Padre! Os meninos comem avidamente. Nisso, outra criança, uma MENINA, 5 anos, sai de trás de uma moita, amarrando as calças. A Menina fica olhando para Masetto enquanto seus irmãos mastigam. Masetto olha para o seu pedaço de salame, entrega para a menina. MULHER Deus lhe pague! MASETTO Eu estou anotando, ele já me deve duas. Isso só hoje! Masetto se afasta com o burro. Olha o alforje, não tem mais comida, só a faquinha e uns livros. Ele lambe os dedos, sentindo o gosto do salame. CENA 5 – ESTRADA – EXT/DIA Masetto vê uma árvore carregada de frutas. Masetto olha para os lados, não vê ninguém. Ele tenta se equilibrar de pé, sobre a mula, para alcançar uma fruta, quando ouve um grito. CALANDRINO (esbaforido) Padre! Padre! Masetto desce da mula, disfarça. Calandrino se aproxima, ofegante. CALANDRINO Graças a Deus, que eu lhe encontrei! Santa Marta, padroeira, me indicou o caminho certo! Comprido, mas certo! Vamos! Calandrino puxa a mula. CALANDRINO Deixa que eu ajudo com a mula. MASETTO Vamos onde? CALANDRINO O senhor precisa vir comigo! Agora! MASETTO Desculpe, mas eu... CALANDRINO O Velho está morrendo, coitado! (emocionado) Ele falou comigo, acho que pela última vez... Me disse: Calandrino, seu imbecil inútil, ache um Padre! Calandrino sou eu. E o Padre é o senhor. Vamos! MASETTO Eu não posso, eu tenho que... CALANDRINO Não pode? Como, não pode? Que espécie de padre é o senhor? Isso não é batismo que pode esperar, nem casamento que pode até suspender! O Velho está morrendo! É o seu serviço. Vamos! MASETTO Que velho é esse? CALANDRINO Como, que velho? O Velho, o dono disso tudo, de todo este vinhedo, até da fruta que o senhor estava tentando roubar! O Velho Spinellochio! CENA 6 – CASA DOS SPINELLOCHIO/QUARTO – INT/DIA O VELHO SPINELLOCHIO, 80, com aparência doentia, está gemendo, olhos fechados, de camisola, na sua grande cama. MONNA, 35, está sentada numa cama pequena, num canto do quarto, fazendo tricô. O seu vestido tem um decote generoso. O Velho acorda e olha para Monna. Sorri, meio sacana. VELHO Monna, minha querida, tenho frio. Monna pega um cobertor da sua cama, fecha a janela e aproxima-se da cama do Velho. MONNA É a brisa que vem do rio. Monna coloca o cobertor sobre o Velho. VELHO É a morte, está me chamando. O velho tosse. Monna sorri e faz um carinho no rosto do Velho. MONNA Se a hora sempre chega, melhor demorando. Vou pedir uma sopa bem quente, e o frio vai embora. VELHO Sopa não adianta, quando chega a hora. Monna ri. O Velho ergue o cobertor. VELHO Eu preciso me esquentar. Deita aqui, bem junto. Monna percebe que o Velho já está pronto para a ação. MONNA O senhor está brincando... Em plena luz do dia! VELHO Não há o que temer. Sou quase um defunto. MONNA Mas eu temo, e muito. Seu filho, o que diria? O velho força uma tosse e faz cara de doente. VELHO É meu último desejo! Um pouco de calor, um beijo... MONNA Um beijo? Só um? (sorri) Quem se importa? VELHO Só um, mas é melhor trancar a porta. Monna tranca a porta, e começa a tirar a roupa, aproximando-se do Velho, que abre espaço na cama para ela. CENA 7 - FRENTE DA CASA Calandrino e Masetto chegam na casa, Calandrino amarra o burro. CENA 8 – QUARTO DA CASA SPINELLOCHIO – INT/DIA Calandrino bate na porta, insiste, Monna abre, ajeitando o vestido. Masetto entra no quarto, empurrado por Calandrino, seguido por TOFANO, Tessa, que pára na porta. No quarto, Monna termina de ajeitar a cama, O Velho está de olhos fechados, ofegante. MASETTO (animado) Boa noite! Tudo bem? MONNA (triste) Podia ser melhor, padre. MASETTO (rapidamente triste) Morreu? TOFANO Ainda não, está dormindo. MONNA Está calmo... TOFANO É a calmaria final. Tofano examina um vaso sobre a cabeceira, guarda na gaveta. TESSA Parece não estar mesmo muito bem. MONNA Precisa se alimentar... CALANDRINO Eu também. Acho. Que ele devia se alimentar. Sai arrastando Tessa. MONNA Talvez ele melhore. TOFANO Pouco provável... Está com uma cor horrível. MASETTO (para Tofano) O senhor é médico? TOFANO Não, sou o filho. Monna tira o vaso da gaveta, põe de volta no lugar. MASETTO (para Monna) A senhora é filha? TOFANO (rindo) Filha? Imagina. É uma das empregadas. Eu sou o único filho. Tofano deita um porta-retratos sobre a estante. MONNA Eu cuido dele há dez anos, desde que a esposa o deixou. Monna ergue o porta-retrato, volta pro lugar. TOFANO Coincide com o período que a saúde piorou. Tem uma obstrução na aorta. Tosse seca, reumatismo, suores, senilidade... MONNA Viveu, trabalhou, amou. É o que importa. A tosse, suores, dores, são conseqüências da idade. MASETTO Vai morrer, pelo que vejo. Passou assim todo o dia? Ela ajeita o vestido, a cama. MONNA Foi o gasto de energia, em seu último desejo. MASETTO Morte boa, vida boa. Bom é o que bem acaba. MONNA Morte é sempre justa paga. Foi uma boa pessoa. Masetto se aproxima de Monna. MASETTO (baixinho) Para ter um anjo por perto, é certo. CENA 9 – COZINHA – INT – DIA Tessa prepara uma sopa, Calandrino chega por trás, agarrando. CALANDRINO Tessa, meu bem querer, chegue um pouquinho pra cá TESSA Cê deixe de me atentar. O homem tá lá pra morrer! CALANDRINO (Agarrando ela) E eu tô doido pra viver! TESSA (Se soltando) Não, Calandrino, qué o que! CALANDRINO Tessa, minha querida, esse é o natural da vida: comer, amar e morrer Tessa começa a ceder, Calandrino a agarra. TOFANO (OFF) Aaaaiii... Aaaiii... CENA 10 – QUARTO DA CASA SPINELLOCHIO – INT/DIA O Velho acorda, num acesso de tosse. Monna se aproxima. TOFANO Aaaaiii... Aaaiii... MONNA Acordou... TOFANO Agora vai... MONNA Padre, por favor... É a sua hora. Todos olhando para Masetto, esperando que ele faça algo. Ele olha para Monna. Masetto pega o livro na bolsa. MASETTO Claro, minha hora. Masetto abre o livro, folheia, procura algo. MASETTO Hoje é dia... MONNA De Páscoa. MASETTO Claro... Eu digo... da semana? MONNA Domingo? MASETTO Domingo de Páscoa, é claro. Neste caso... Masetto pára numa página, lê. MASETTO Esse é bom... Praecisa est velut a texénte, vita mea... Enrolam como um tecelão o tecido da minha vida... Bonito. É do ofício dos defuntos. O Velho voltou a dormir. MONNA Ele ainda não morreu. TOFANO Mas já pode ir enrolando o tecido, para ganhar tempo. Vamos deixar o Padre trabalhar? MASETTO Nom vidébo Dóminum Deum in terra vivéntium... Não mais verei o senhor na terra dos vivos... MONNA Será? VELHO Aaaai... TOFANO Agora vai. VELHO (grita) Aaaaaiii... CALANDRINO A hora chega para todos. TESSA Coitado... Velho abre os olhos. VELHO (grita) Aaaaa... Silêncio! Todos ficam quietos. VELHO Calem a boca! Eu não chamei Padre para ouvir latinório! Fiquem todos quietos e me escutem! Tragam papel e tinta! Papel e tinta! Papel e tinta! Papel e tinta! TOFANO (vira-se para Monna) Papel e tinta! MONNA (vira-se para a porta) Papel e tinta! Tessa e Calandrino entram com papel e tinta. TESSA (Entrando) Papel... CALANDRINO ... e tinta. VELHO Padre! Masetto se aproxima. VELHO Escreva! O Padre pega o papel e a pena, Calandrino segura o tinteiro. VELHO Meu testamento! TOFANO O quê? Mas como? Isso agora? (para Monna) Quem sabe a cabeça ferve? (para Masetto) Já existe um testamento, registrado no cartório! (... com assento na justiça!) VELHO (furioso) Silêncio! Aquele não serve, use de supositório! (... justiça de pau é piça!) Tofano, muito irritado, dá as costas ao pai, vai para o canto do quarto. TOFANO (para Calandrino) A cabeça está virada! Ficou maluco de vez! VELHO É decisão tomada em completa lucidez! O Velho afasta as cobertas, ergue-se na cama, fica de pé. VELHO É meu último desejo, e Deus permita que eu fale. E que assim seja cumprido em seu mínimo detalhe. Masetto pega o papel e a tinta, escreve. O Velho respira fundo, caminha até a janela, abre a janela. VELHO Tudo que tive em vida, tudo o que tenho e vale, As terras até o rio, as vinhas por todo o vale. O Velho olha para dentro da casa. VELHO Minha casa, meu pecúlio, minha imagem da Madona Minhas vacas, espingardas, o dinheiro na poltrona O Velho volta para a cama, lentamente, senta na cama. VELHO Os meus livros, as gravuras, a gaita, a acordeona... O Velho volta ao seu lugar na cama, se recosta nos travesseiros. VELHO Deixo a Tofano, meu filho!... Tofano olha para o Velho, pasmo. VELHO ... se ele se casar com Monna. Monna olha para o Velho e para Tofano. Tofano olha para Monna, pasmo, e para o Velho. VELHO Se não... vai tudo para a igreja! Está escrito! Assim seja! O Velho sorri. E morre, rindo. Monna fecha os olhos do Velho e faz o sinal da cruz. Masetto faz o sinal da cruz com a mão esquerda, troca no meio. Tofano morde a mão fechada. Calandrino e Tessa se olham, olhos arregalados, e fazem o sinal da cruz. MASETTO (OFF) Mors omni aetate communis est. CENA 11 - CEMITÉRIO DA VILA (AO LADO DA IGREJINHA) – EXT/DIA Os habitantes da vila, de luto, assistem ao enterro. Masetto está à beira da cova, ladeado por Tofano e Monna, Filipinho e sua bela esposa ISABEL, 25. Um pouco mais longe, Calandrino e Tessa. O caixão, fechado, sobre a grama, dois COVEIROS ao fundo. Masetto, lê seu livro de rezas. MASETTO A morte não poupa ninguém. O senhor Spinellochio deixa um filho saudoso... Masetto fecha o livro, faz sinal aos Coveiros, que amarram o caixão, preparam para descê-lo na cova aberta. Calandrino chora. TESSA Para que tanto choro, Calandrino... Você nem é parente! CALANDRINO Por isso mesmo... Tofano sorri para Isabel. Monna e Tessa choram. Calandrino tira umas casquinhas de Tessa, baixa a mão do seu ombro para sua cintura e daí para o quadril. Tessa dá uma cotovelada em Calandrino, e ele sente o golpe, reprime a expressão de dor, transforma em luto, chora. MASETTO E empregados... a quem sempre tratou da forma... carinhosa que eles bem mereciam. Masetto olha para Monna, ela percebe, retribui. Tofano continua tentando flertar com Isabel, que o evita. Os Coveiros estão prontos para descer o caixão, olham para o Padre, esperando a ordem. MASETTO Antes que esta alma vá, ao encontro do Bom Deus, um breve verso de adeus seu filho irá recitar. Tofano leva um tempo para perceber que deve falar. TOFANO Pai... (pausa) Adeus. (para os coveiros) Pode baixar. Os coveiros começam a baixar o caixão. Tofano dá as costas e se afasta. Monna está indignada com Tofano. MASETTO Verso breve, como a vida. Convido para o casamento que acontece já em seguida. Masetto acelera o passo na direção da igrejinha da vila, ao lado do cemitério. Masetto ultrapassa Tofano, que é seguido por todos. Enquanto caminham, todos trocam de roupas, os trajes escuros e tristes de enterro são substituídos por trajes festivos de casamento. Monna, com a ajuda de Tessa, tira a capa preta que cobre seu vestido de noiva. Tofano permanece de luto. MASETTO (OFF) Eu os declaro marido e mulher. CENA 12 - IGREJINHA DA VILA – EXT/DIA Masetto celebrando o casamento, numa mesa armada na frente da igrejinha. Tofano (de luto) e Monna (com vestido de noiva) estão à sua frente. Os dois não se olham. MASETTO (para Tofano) Pode beijar a noiva. TOFANO (baixinho) O beijo é fundamental? Se for, pode ser na testa? MASETTO (indeciso) Beijar é opcional. TOFANO Ótimo! Tofano abandona Monna no altar e vai saindo, sorridente. TOFANO Vamos pra festa! Tofano sai cumprimentando os presentes. Monna, furiosa, enxuga uma lágrima, ainda virada para o altar. Olha para Masetto e tenta sorrir. Ele sorri de volta. CENA 13 – JARDIM DA IGREJINHA DA VILA – EXT/DIA Uma banda toca uma música italiana. Tofano circula entre os convidados, fala com duas senhoras. TOFANO Bom que vieram... Muito obrigado... Então? Souberam? É tudo meu, de papel passado. Tofano fala com dois amigos. TOFANO Eu fiz aquilo que o meu pai queria, mas vou viver como eu já vivia. Olha pra Isabel ali perto com Filipinho. TOFANO E Deus, na sua imensa bondade, há de me dar mulher de verdade. Filipinho nota o olhar de Toffano. FILIPINHO Não pára de olhar pra cá, o carcamano. ISABEL Mas ele acabou de casar, Filipinho! Só pode ser um engano. Tofano sai atrás de Isabel. Monna, distante, observa, ao lado de Calandrino e Tessa, que comem. Masetto sai da igrejinha, fecha a porta, vê Monna, se aproxima dela. MASETTO A senhora... fica muito bem de noiva. MONNA E o senhor fica muito bem... de Padre. MASETTO No meu caso, não é uma escolha. MONNA Nem no meu. Era noiva... ou nada. Me tornei no mesmo dia, viúva, noiva e esposa rejeitada. MASETTO É muito, para uma jornada. Também sou Padre faz pouco, inda nem me acostumei. MONNA O hábito faz o monge... MASETTO Foi sempre o que eu escutei. Calandrino e Tessa se aproximam. CALANDRINO Padre, desculpe um momento. Sem querer interromper enquanto o senhor descansa... Calandrino puxa o Padre para um canto, Tessa e Monna ficam conversando ao fundo. CALANDRINO Quanto custa um casamento? O vestido, a festa a dança, igreja, papel, aliança... Padre, por favor, me ajuda! MASETTO Igreja e papel, o preço não muda. Depende das alianças, se quem dá é a madrinha, qual o quilate do ouro... CALANDRINO Eu mesmo providencio e por mim pode ser fininha. Quilate pra mim é o cachorro. Tofano dança com Isabel. (Filipinho dança com Tessa) A música termina. Isabel faz menção de se afastar, mas Tofano a segura, discretamente. TOFANO O que foi? Quer sentar? Eu conduzo assim tão mal? ISABEL (constrangida) O noivo dança com a noiva, é o natural. A música recomeça. Tofano pega Isabel pela cintura. TOFANO Natural é a natureza, com essa não se discute. Tofano aperta o corpo de Isabel contra o seu. TOFANO Contra o sol, o vento, o amor, não é luta que se lute. Eu nunca nada implorei, a amigo ou inimigo, e palavra não diria que lembrasse coisa doce, se a sua beleza não fosse essa agonia e aflição, que obriga meu coração, para não morrer de míngua, a fazer da minha língua o arauto dessa paixão. Isabel olha para ele com desdém. TOFANO Não deixe tão belos lábios desdenharem meu desejo, nessa boca delicada ficava melhor um beijo. ISABEL A sua noiva já nos viu. E eu sou uma mulher casada. TOFANO O seu marido saiu, e a noiva para mim é nada. Não passa de uma mucama, nem sei seu nome de cor. ISABEL Hoje à noite, em sua cama, há de conhecer melhor. TOFANO Engano seu. Durmo só. Não é noiva que eu mereça. Isabel se desvencilha. ISABEL Tampouco eu sou, tenha dó! Eu lhe peço que me esqueça. Ela se afasta. Tofano fica, olha em torno. Monna observa, longe da vista de Tofano. Masetto de aproxima. MONNA Além de viúva, noiva e esposa desprezada, sou também mulher traída, agora não falta nada. MASETTO Falta a noiva ser beijada. Masetto tasca-lhe um beijo. Monna resiste bem pouquinho, logo cede e afasta Masetto. Ela se afasta, assustada. Ao fundo Tessa observa. CENA 14 – QUARTO DAS CRIADAS – INT/DIA Calandrino olha-se no espelho, triste, põe a mão na testa. CALANDRINO Meu corpo quer, mas reluto: estou febril, testa quente... São doze horas de luto... Pelo espelho, Calandrino ve Tessa saindo do banho, enrolando-se em toalhas. Ela passa. Calandrino começa a tirar as calças, fica só de camisa. CALANDRINO Prum patrão, é o suficiente! Calandrino agarra Tessa. TESSA O que é isso, Calandrino? Vem gente descendo a escada! Calandrino joga Tessa sobre a cama, parte para cima, ela se protege com a toalha. CALANDRINO Um quarto só para nós dois, não preciso mais de nada! Tessa, meu desatino... Eu sei que você vai gostar, vai... TESSA Agora não, Calandrino! O Patrão pode chegar! Sai! CALANDRINO E se chegar? O que importa? Ele finalmente consegue arrancar a toalha dela, Tessa protege a nudez com um lençol. CALANDRINO Não me envergonha o desejo que o teu corpo me provoca. Ele vai se aproximando, por cima dela, puxando o lençol. CALANDRINO Teus cabelos, olhos, beijos, teus seios, coxas, tua boca... Ela vai cedendo. CALANDRINO Te adoro... e pelo que vejo... tu já tá ficando louca! Ele parte para cima com tudo, a porta se abre, entra Monna. Tessa rola na cama, cai no chão, ergue-se por trás da cama, se enrolando no lençol. Calandrino, sobre a cama só de camisa, improvisa uma saia para esconder sua ereção. MONNA Desculpe. Interrompo alguma coisa? CALANDRINO Coisa pequena. Um tiquinho. Há pouco marcava as onze, mas não é feito de bronze: é coisa que se derrete... TESSA Agora já marca sete. Pode ficar para mais tarde. Monna entra, carregando uma sacola e um travesseiro. MONNA Volto ao meu antigo quarto. TESSA Aqui? Entre os criados? Monna tira a capa, pendura na cabeceira da cama. CALANDRINO Por quê? MONNA Tofano me mandou descer. Quer anular o casamento, e se nega a consumá-lo. Monna vai guardando suas coisas num velho baú. CALANDRINO A consumá-lo, no caso... de fato? TESSA Que rato! MONNA Por mim até prefiro! Ele é nojento! CALANDRINO Mas o Velho, o testamento... MONNA Diz que vai ao tribunal. CALANDRINO Mas que boçal! Calandrino veste as calças sob a saia. Tessa também se veste. MONNA Diz que para isso é importante, apesar de estar casado, que afinal o casamento não seja... finalizado. TESSA Mas que tratante! CALANDRINO Viver é coisa importante, surpreende a cada momento, nada é o que foi planejado. Pois se o pai foi um jumento, até o último instante... o filho, para mim, é veado! MONNA Diz que o desejo do Velho, o casamento e a herança, pode ser tudo anulado! TESSA Essa não! Mas que sacana! CALANDRINO E a senhora, como fica? MONNA A essa hora? Sem cama, sem pão, sem... nada. TESSA A senhora me perdoe, mas não se pode aceitar. É um escracho! CALANDRINO Eu também acho. TESSA O Velho, isso todos viram, em sua última hora... CALANDRINO Em desejo manisfesto! TESSA ... quis deixar para a senhora, metade de tudo. CALANDRINO E o resto. Desejo de morto é lei! MONNA Eu sei! Mas e o vivo sabe? TESSA É preciso dar um jeito de ser esposa de fato, levar para cama esse rato que arranjou como marido. MONNA Se me ajudam, prometido: o quarto só para vocês! Um fim-de-semana por mês! Uma folga por semana e um aumento de salário. TESSA Uma hora mais na cama? MONNA Podemos pensar no horário. TESSA Por mim, o trato está feito. CALANDRINO Aceito. Tessa se afasta para terminar de se vestir. Calandrino se oferece a Monna. CALANDRINO Sem bancar o oferecido, querendo somente ajudar... Pode lhe faltar marido: homem não vai lhe faltar. Prometo não comentar, prometo não ser metido, e deixo já prometido: eu meto só se deixar. Tessa chega já batendo em Calandrino. TESSA Pois meta-se em seu serviço! Sai já daqui! Fora, peste! Calandrino sai, sob os tapas de Tessa, que fecha a porta do quarto. Monna deita-se. TESSA Na minha cara! Cafajeste! Homem é bicho sacana, e pior se for casado! Levar Tofano para cama não há de ser complicado. MONNA Porém se for eu quem chama, não deita nem amarrado. TESSA (pensando) Que falta de sorte! Mas para tudo existe um jeito. Já dei nó em pingo d'água, enfiei beijo em cordão. Já sequei o mar com a mão, já fiz o sul virar norte. Só não dei jeito pra morte. Mas não desisti 'inda não. CENA 15 – PÁTIO – EXT/DIA Calandrino ajuda Tessa a recolher cobertores que estão quarando ao sol. CALANDRINO Eu durmo embaixo da escada, durmo no chão, estou farto! Seria melhor casar e dormir no mesmo quarto. TESSA É melhor deixar assim: à noite você me visita. Eu lhe espero bem bonita, um quarto todo para mim... E se você me aborrece, corre demais ou demora, a sua cama nem aquece: eu boto você para fora! Calandrino agarra Tessa e a joga sobre os cobertores. CALANDRINHO Primeiro bote para dentro... TESSA E isso é lugar e hora? CALANDRINO Agora! Já! Não agüento! Ela começa a ceder. TESSA Mas... e se alguém aparece? CALANDRINO Esquece! Aqui não passa gente. TESSA Se agüente! Hoje o quarto é nosso. CALANDRINO Vou ter um troço... A hora é essa! Parece que finalmente eles vão começar a transar. TOFANO (OFF) Tessa! Ela empurra Calandrino, levanta, se recompõe. TESSA E o pior é que é o patrão! Olha! Lá vem! Não disse? Tessa sai correndo. CALANDRINO Fiquei outra vez na mão. CENA 16 - COZINHA DOS SPINELLOCHIO – INT/DIA Tessa entra, esbaforida, carregando roupas, Tofano a espera. TOFANO Por onde a senhora andava? Eu grito como um demente! TESSA Busco a roupa que quarava, antes que a chuva aumente. Tofano olha pela janela. TOFANO Não há uma nuvem no céu. TESSA Sempre é melhor ser prudente. Tofano baixa o tom de voz, puxa Tessa a um canto. TOFANO Nisso tens bem razão. Conheces Dona Isabel? TESSA E não? Sempre encontro no caminho. Parece moça direita, é doida pelo marido. TOFANO Não passa de um presumido, o tal senhor Filipinho, uma vaidade enorme! E mal com ela se deita, vira de lado e dorme. Não está a sua altura. TESSA Para cada mal, uma cura. Desses detalhes, não sei, se ronca, se usa pijama. Ela bem há de saber com quem dividir a cama. TOFANO Pois quero que seja comigo. Quero hoje! Quero já! Prometo que, se eu consigo, sua vida vai mudar. TESSA É preciso mais que sorte para levar alguém ao leito. Tofano dá a ela um dinheiro. TESSA Mas, com exceção da morte, para tudo existe um jeito. TOFANO Pois encontre! E nada tema! Não deixe ponto sem nó! Tofano sai. Tessa fica, pensativa, Calandrino entra, carregando roupas. TESSA Às vezes mais de um problema resolve de um jeito só. Tessa guarda as roupas, pega o casaco de Calandrino, entrega a ele. Pega sua capa, veste. Passa batom, bem vermelho. TESSA Pro careca tem peruca, pro pecado, confissão. Pro corno existe a ilusão. Pro pobre, o dia de sorte. Só não vi jeito pra morte, mas não desisti 'inda não. CALANDRINO Onde cê vai, hora dessas, nesse batom tão vermelho? TESSA A hora não interessa. Eu preciso de um conselho. Arrasta Calandrino para fora, ele a segue sem entender. CENA 17 - CASA DE FILIPINHO E ISABEL/SALA - INT/DIA Tessa conversa com Isabel, conversam enquanto cozinham, preparando compotas de doces. ISABEL Conselho, Tessa, de quê? TESSA De amor, Dona Isabel. Que mais que podia ser? ISABEL Beleza, dinheiro e amor: não há quem não queira ter. TESSA Já não é mais como antes, viver de amor não me basta. ISABEL Beleza, dinheiro e amor: com o tempo tudo se gasta. TESSA Mas você com seu marido... ISABEL Estou igualzinha a você: não vejo mais graça na coisa. TESSA Ah! Então deve ser por isso... ISABEL (desconfiada) "Deve ser por isso" o quê? TESSA O Senhor é testemunha que eu não queria dizer. ISABEL Agora eu quero saber, já fiquei desconfiada. TESSA Seu Filipinho... ele anda... pisando na minha calçada. ISABEL Você tá dando a entender...? TESSA Tô. Mas eu quis ser educada. ISABEL Não acredito! TESSA Eu juro. Se a senhora quer ver... CENA 18 – CAMPO – EXT/DIA Calandrino com Filipinho já no meio da conversa, falam enquanto preparam armadilhas de passarinhos. CALANDRINO Rapaz, mulher quando esfria: cuidado, é chifre na certa. FILIPINHO Cê acha? CALANDRINO Me dê um dia e meio e ela tá com as perna aberta. FILIPINHO Pra quem? Pr' ocê? CALANDRINO Hum-hum. FILIPINHO Só sendo! CALANDRINO Pois olhe, fique sabendo que eu sou o rei da conquista. A mulher na minha vista, geme, pede, cai tremendo. FILIPINHO Não se meta com Isabel. CALANDRINO Vou provar que ela é infiel e aceita encontrar comigo. Filipinho segura Calandrino pelo colarinho. CALANDRINO Mas como sou seu amigo você vai em meu lugar. Sete e cinco esteja lá, o lugar depois eu digo. (sacaneando) A sua testa hoje está correndo sério perigo. Calandrino vai saindo, Filipinho fica grilado. CENA 19 - CASA DE FILIPINHO E ISABEL/ EXT NOITE Isabel vem saindo de casa. Tessa chega, apressada, encontra Isabel, vão andando. TESSA Ligeiro, Dona Isabel. Eu marquei às sete lá. A senhora chega antes e fica no meu lugar. Quando ele vir a senhora não vai ter o que falar. CENA 20 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE Tofano e Calandrino olham Tessa e Isabel vindo pelo quintal e entrando no quarto dos criados. Calandrino abre uma garrafa de vinho e serve um copo para Tofano. CALANDRINO Primeiro ela disse "não". Quando eu disse "é seu Tofano", respondeu "eu vou correndo, por esse homem eu me dano". TOFANO Não há mulher que resista ao charme napolitano. Tofano bebe, Calandrino vai tomar um gole de vinho no gargalo mas Tofano tira-lhe a garrafa da mão. CALANDRINO E agora preste atenção. Segunda parte do plano: Monna vai sair de casa, só volta de madrugada. (vai conduzindo Tofano pro quarto) Você vai se recolher fingindo que não quer nada e espera Dona Isabel, mas com a luz apagada. Foi ela que me pediu, pois é muito recatada. Calandrino empurra Tofano no quarto e fechou a porta. Imediatamente Monna aparece de camisola e caminha até a porta de entrada falando. MONNA (alto) Já estou indo, Calandrino. Não me esperem pra jantar. Vou em busca do destino... Monna abre e fecha a porta da frente, fica dentro de casa. MONNA (baixinho) ... sem sair do meu lugar. CENA 21 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE Dentro do quarto Tofano escuta a porta bater e se deita na cama. CALANDRINO (OFF) Tá certo, pode deixar. Tofano vê a porta do quarto se abrir revelando a silhueta de Monna que caminha pra ele. TOFANO Isso sim é que é mulher. A minha é uma desgraçada. Monna despe-se, entra na cama, provoca. MONNA (mudando a voz) É que a mulher do vizinho é sempre mais desejada. A sua esposa, eu conheço, é muito bem apanhada. TOFANO A senhora é carne fresca, a Monna já está passada. CENA 22 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE Filipinho chega no quarto dos fundos e encontra Isabel. FILIPINHO Surpresa! ISABEL Surpresa o que?! Eu vim aqui lhe esperar. FILIPINHO (Irônico) Eu também: era você que esperava encontrar. ISABEL (Idem) É mesmo? Então foi você que marcou comigo! FILIPINHO (Sempre irônico) Foi não. ISABEL Coincidência, então? FILIPINHO Era justamente isso que eu vim lhe perguntar. ISABEL Eu soube por um amiga. FILIPINHO Não terá sido um "amigo? ISABEL (Ainda contida) Passemos logo pra briga. (Começa a gritar) Você pensa que eu sou boba! Pare já de disfarçar. FILIPINHO Você que está disfarçando pra poder me despistar. CENA 23 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE O barulho da briga chega ao quarto abafado, sem que reconheçamos as vozes. Tofano diz pra "Isabel" que os criados vivem brigando. TOFANO Não ligue, o Calandrino vive apanhando, coitado. CENA 24 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE Isabel e Filipinho seguem brigando. ISABEL/FILIPINHO Eu sei de tudo, safado (a), não adianta enrolar. Você namora a (o) criada(o) . Entram Tessa e Calandrino. TESSA/CALANDRINO Calma. A gente vai explicar. Tessa e Calandrino viram-se um para o outro. TESSA/CALANDRINO Deixa eu falar!...Tá bom, fala... Faço questão... Por favor... Não, fala você... Acho melhor, então, tirar "uni-duni-tê". Eles falam juntos mas cada um começa indicando a si próprio. TESSA/CALANDRINO Uni-duni... (Desistem) Assim ninguém vai vencer. Tessa tapa a boca de Calandrino e começa a explicar. TESSA Ninguém aqui traiu ninguém. Foi tudo só invenção. FILIPINHO Mentira, você quer dizer! TESSA Mas foi com boa intenção. ISABEL E vocês não têm piedade? Vocês não têm compaixão? Calandrino que esteve querendo falar este tempo todo solta a mão. CALANDRINO Pior se fosse verdade. FILIPINHO Que horror! Mas com que objetivo? ISABEL Pra que tamanha maldade? TESSA Pra esquentar vosso amor. CALANDRINO Deixar o fogo mais vivo! ISABEL Assim? Fazendo sofrer? TESSA A gente só dá o valor se tem medo de perder. FILIPINHO (Pra Isabel) Pensei que ia morrer. ISABEL (Pra Filipinho) E eu botei pra chorar. Os dois começam a namorar. Calandrino e Tessa vão saindo. CALANDRINO Agora vocês se perdoam sem ter o que perdoar. CENA 25 – FRENTE DA CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE Calandrino agarra Tessa embaixo da árvore, encostado no tronco, ela resiste. TESSA Se aquiete! Ficou maluco? Aí vem chegando o monge. CALANDRINO São sete e cinco, tá longe. Mal agora ouvi o cuco. Combinado é sete e meia. TESSA Dá tempo o quê, Calandrino? Eu sou mulher de hora cheia! Dez minutos só de beijo, mais quinze pra me esquentar. É meia hora no mínimo pro relógio despertar. Ele insiste, ela vai amolecendo. CALANDRINO Aproveita que eu sou moço e a gente apressa o ponteiro. Ele passa o dedo indicador pelo decote dela. CALANDRINO O dos segundos é fino e caminha bem ligeiro... Ele passa o dedo médio pelos lábios dela. CALANDRINO O dos minutos, comprido, e faz a volta primeiro... Ele dá um güenta, prensa o corpo dela contra o tronco da árvore. CALANDRINO O das horas é bem grosso, é pequeno mas certeiro. Ela acaba cedendo. CENA 26 – QUARTO GRANDE / CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE Tofano abraça Monna, transam. TOFANO Que a beleza maior fique no escuro, configura crime contra a natureza, pois o belo, visto, e lembrado no futuro, provoca no homem o amor mais (p)duro, revisitado, gera mais beleza. MONNA Engano seu. O amor nasce das sombras. Do que se imagina entre o escuro e a luz. Se queres o meu corpo e aos meus pés tu tombas, é só porque não podes ver quem te seduz. CENA 27 – QUARTO DOS FUNDOS - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE Isabel e Filipinho transam. ISABEL Ardor em firme coração nascido... FILIPINHO Pranto por belos olhos derramado... ISABEL Incêndio em mares de água disfarçado... FILIPINHO Rio de neve em fogo convertido... CENA 28 – FRENTE DA CASA DOS SPINELLOCHIO – EXT/NOITE Calandrino e Tessa transam. CALANDRINO Quando te vejo, Tessa, a minha vergonha cessa, o sangue na veia apressa, meu corpo todo se entesa, e mal a coisa começa... Masetto chega, eles interrompem a transa, sem jeito. TESSA Seu Padre... CALANDRINO Aqui? Mas já? Ora essa... Sete e um quarto... Não chegou antes da hora? MASETTO Depende. Se lá no quarto houve o mesmo que aqui fora... TESSA Acho que não... São casados... Por lá a coisa demora. MASETTO Ou não acontece nada. A luz continua apagada. CALANDRINO No escuro, não há o que ver. Entramos quando acender. CENA 29 - CASA DOS SPINELLOCHIO – INT/NOITE Beijam-se. Tofano está em êxtase. TOFANO Te amo... Te quero... És tudo... Por favor, quero te ver... MONNA Desejarás ter ficado mudo, no momento exato em que me conhecer. TOFANO Socorro! MONNA Vai... TOFANO Aaaaiii... Aaaiii... Monna acende a luz. Calandrino, Tessa e Masseto entram. Tofano vê que a mulher em sua cama é Monna. Não entende nada. TOFANO Você? Como? Mas de que jeito? MONNA Eu mesma, Monna, prazer. Sua esposa de direito, agora também de fato. TOFANO Como foi que entrou no quarto? Isabel e Filipinho chegam, param na porta. MONNA Pela porta, e por que não? (aponta) Meu marido, minha casa, minha cama, meu colchão... Quem esperava chegar? TOFANO Esperava... Esperava... (para Monna) Esperava não lhe amar. Esperava morrer triste, sem nunca o amor achar. Da vida esperava pouco, queria nem esperar... Tudo mudou no momento em que eu descobri lhe amar. MONNA Mesmo? (sorri amarelo) Que coisa boa... Parece uma outra pessoa... TOFANO Sou mesmo! Outro, por completo! A morte não foi em vão: a vontade de meu pai finalmente vem à tona. (animado) Casei com a senhora Monna, lhe dei um chão e um teto. Agora: filhos e netos! Monna olha para Masetto, para Tessa, surpresa. MONNA Que bom... Vindo de um marido... Isso hoje em dia é tão raro... Tofano a segura pelos ombros, decidido. TOFANO Seu amor me dá sentido, só agora vejo claro. FILIPINHO Paixão não é planta de roça, só cresce no natural. ISABEL Tantas voltas para encontrar o que tinha no quintal. MASETTO (abençoando) Que a paz, a concórdia e a alegria, brotem nos três casamentos. Masetto abençoa os casais Monna e Tofano, Isabel e Filipinho, Calandrino e Tessa. Monna bate três vezes na madeira da cama. CALANDRINO São bons ventos... MONNA Quem diria... Tessa vai empurrando Filipinho, Isabel e Masetto para fora do quarto. TESSA Diria que o amor é arte de ficar quando se parte e ver inteiro o que é parte. Que primeiro não é quinto, que parte do ovo é pinto e o pinto é parte do galo. Falo somente o que sinto, se falo é o mesmo que pinto e, se eu não sinto, me calo. Calandrino pega a garrafa de vinho, quase vazia, sobre a cômoda, arrasta Tessa para fora, vão todos saindo da casa. Monna faz menção de sair também mas Tofano a segura, a envolve pela cintura. Massetto vai saindo. CALANDRINO Do vinho restou um quinto, para nós sobrou um quarto, depois de rezar um terço, vai cada um pro seu berço, que nessa noite eu me farto! Eu muito falo e não minto, só digo o que é verdadeiro: a metade do que sinto já faz um amor inteiro. Masetto se afasta da casa e, do jardim, vê Monna na janela. Tofano fecha a janela. Filipinho e Isabel partem, abraçados, apaixonados. Calandrino e Tessa correm para o seu quarto. MASETTO Metade de zero é nada. Espero a mulher amada, que já de mim nada espera. Se o amor é uma quimera, melhor é ganhar a estrada, que o dobro de zero é nada e nada é o dobro de zero. Já não tendo o que mais quero, vale tratar de viver de forma mais reduzida: comer, amar e morrer, é bom resumo da vida. Masetto se afasta pela estrada, sozinho. FIM ***************************************************************** (c) TV Globo e Casa de Cinema de Porto Alegre, 2009 http://www.casacinepoa.com.br