EM FRENTE DA LEI TEM UM GUARDA roteiro de montagem de Ana Luiza Azevedo julho de 2000 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre *************************************************************** Desenhos ilustram o texto como HQ. LOCUTOR Em frente da Lei tem um guarda. Uma mulher vinda do campo pede para entrar. O guarda diz que, de momento, não pode lhe permitir a entrada. A mulher pergunta se poderá entrar mais tarde. "É possível", responde o guarda. Rápido clip de fotos de guardas, portas imponentes com guardas na frente, exército. HQ continua contando a história. LOCUTOR A mulher inclina-se para olhar através da entrada. "Não tente entrar sem a minha autorização", diz o guarda. "Repare que sou muito forte, e a cada sala, a cada porta encontrará um guarda mais possante que o anterior." A mulher vinda do campo não podia entender, devendo a lei, segundo ela, ser acessível a todos em qualquer altura. Fotos de filas, pessoas esperando sentadas na calçada, esperando para entrar em algum lugar. HQ continua contando a história. No final, em movimento, a porta se fecha. LOCUTOR O guarda dá-lhe um banco e deixa-a ficar sentada ao lado da porta. Ali se conserva à espera durante dias e anos. Finalmente, já quase sem enxergar, percebe o brilho que jorra da porta da Lei. Antes de morrer, chama o guarda com um gesto. O guarda curva-se para ouvi-la. "Que é que deseja saber agora", pergunta o guarda. "Todos procuram alcançar a lei", responde a mulher; "como se explica, portanto, que, durante todos estes anos, ninguém, a não ser eu, tenha procurado o acesso a ela? " O guarda lhe segreda ao ouvido: "Ninguém, exceto você, pode entrar por esta porta, pois esta porta foi-lhe destinada. Agora vou fechá-la." Kafka - "O Processo" TARCÍSIO TOLEDO DA SILVA Se eu tivesse que procurar a justiça? ELSON DA CRUZ Eu não tenho nem idéia de como se faz. TARCÍSIO TOLEDO DA SILVA Não sei. SILVANA Eu tive que procurar, fui no Foro, no Foro me mandaram em outro lugar, até achar, daí eu tive que conseguir uma advogada pra me dar as informações. Porque eu não sabia. LUÍS EDUARDO FLORES Pra pobre, a lei não existe. SILVANA Porque tu vai muitas vezes no mesmo lugar e eles te falam "ah, traz isso", aí tu leva e falta mais isso, falta mais aquilo, sempre falta alguma coisa. IARA Porque a justiça realmente é muito demorada. SILVANA Demorou um ano pra sair a curatela, dois anos pra me dar a resposta, daí eu vou ter que aguardar mais dois meses pra pegar um documento, pra depois então dar entrada de novo e esperar quanto tempo mais eles me darem um OK? ADILSON EUGÊNIO PINTO A Justiça que funciona é só a justiça divina. Câmara entrando numa vila. Câmara se aproxima de uma mulher com chimarrão na mão. PERGUNTA OFF A senhora sabe onde mora a Jane? Mulher aponta. Chicote para a direita. Câmara se aproxima de Homem fazendo churrasco. PERGUNTA OFF O senhor sabe onde mora a Jane? HOMEM Lá no fim da rua. Chicote. SEU WALMOR É a segunda quadra. Passando a avenida aqui, né, que tem uma vila com a avenida principal que sai no barro vermelho, né, que é asfaltada, é a segunda quadra é a dela. Chicote. Gurizinho da rua da Jane. PERGUNTA OFF Tu nos leva na casa dela? Gurizinho acena positivamente com a cabeça. Tela dividida, à esquerda câmara seguindo gurizinho enquanto no outro Ivone dá depoimento. IVONE Um dia ele confessou que tinha ciúme até da minha sombra. Daí, bah, aquilo eu adorava, mas por outro lado me sufocava. / Daí, agora por último ele extrapolou comigo a ponto de dizer que ia me matar, me jogou um prato no rosto, eu saí fora, não chegou a pegar. Câmara se aproxima de rapazes sentados. PERGUNTA OFF Vocês sabem onde mora a Maria Salete? RAPAZES Lá no final da rua onde tá aquela criança. Chicote. Tela dividida, à esquerda câmara seguindo gurizinho e seu Walmor, enquanto no outro Jurema dá depoimento. JUREMA Então eu já sei que, eu mesmo indico. As vezes as pessoas me perguntam: O que é que eu tenho que fazer? " Eu digo: "Olha, vai lá na Lena, vai lá na promotora que elas vão resolver prá ti. Lá elas vão te ajudar". Câmara seguindo Seu Walmor. SEU WALMOR Agora entramos à esquerda aqui e já logo em seguida já é a casa da Carmem. Gurizinho chega na frente da casa de Jane e grita. GURIZINHO Jane! IONE E eu insistia, a trouxa, né, pensando que filho ia mudar. Não, quem sabe mais uma filha, né. Daí resumo: eu tenho uma, que ele me conheceu eu já tinha, e três dele. São quatro filhas no total. Daí quando eu procurei a Salete eu coloquei tudo pra ela, né, Câmara chegando na casa da Salete PERGUNTA OFF Oi, tudo bom? A gente tá procurando a Salete? LIZ ÂNGELA (FILHA DA SALETE) Tu encontra ela lá no SIM ou na feira. Ione chegando com a filha no SIM e falando com a Salete. IONE (OFF) "eu disse: "Olha, Salete, não dá, eu quero separação, só que ele não sai de dentro de casa, fica me ameaçando. " Daí a Salete: "Não Ione, vamos providenciar. " Naquele mesmo dia, ela tava quase encerrando aqui, ela disse, eu vim aqui no SIM mulher, daí ela disse: "Ione, eu vou te dar um papel, tu vai ali na delegacia, registra a violência, daí com o registro dali, tu vai lá no Fórum, fala com a doutora Maria da Graça e que ela vai te atender ainda hoje. Se ela não te atender, daí tu volta aqui. Porque ela faz atender, né. Daí fui lá e fui muito bem atendida. Daí a doutora já resolveu, já passou pro juiz. Não levou quatro dias, já teve separação de corpos. Ele saiu de dentro de casa, tudo. Na frente da casa da Salete. ANA E ela não volta pra casa agora, então? LIZ ÂNGELA (FILHA DA SALETE) Não, provavelmente só de noite, porque elas vão fazer uma passeata, vão passear na feira lá, eu não sei te dizer o horário. Câmara seguindo Seu Walmor. SEU WALMOR Psiu! (se dirigindo às promotoras que estão saindo da casa da Carmem) Não precisa se enfeitar que vocês são feia assim mesmo. Não precisa se enfeitar. (Nós não tamo se enfeitando...) Não, tão toda ó, ó... não precisa. (Ai, coitado...) (Pelo menos um dia na semana a gente tem um direito de passar um batom.) Não sei, a gente veio pegar vocês tudo no fragrante! (risos) A Carmem já tava preparada e se pintou toda. CARMEM Sim, pelo menos, né. Pena que eu não sabia que ia ser aqui senão tinha mandado pintar a casa! (fala enquanto dá beijinhos no Valmor) Carmem entrando na casa. CARMEM (OFF) Essa é minha mansão, Alfredo. Equipe chegando na casa da Jane Pinheiro. Jane convida para entrar. Na frente da Casa da Salete. LIZ ÂNGELA (FILHA DA SALETE) E tu é quem? ANA (OFF) Eu tô fazendo um trabalho sobre as promotoras legais populares. Promotoras sendo preparadas para dar entrevista. Making of: Alex colocando microfone em Carmem, Alfredo preenchendo ficha do marido da Salete, Lourdes saindo de casa e cumprimentando Ana... CARMEM Sou de uma família de pai, mãe, quator... nove irmãos vivos, sou a décima quarta filha desse casamento, tive uma boa educação com meus pais, me casei e passei a ser esposa e logo em seguida mãe e era isso, apenas isso. D. ELVIRA Eu sempre fui líder comunitária, SALETE Eu era faxineira, né, fazia faxina sete dias por semana, né. JANE eu antes de fazer o curso eu era... era e ainda sou, né, funcionária pública. Eu trabalhava aqui no conselho tutelar. Tela dividida de um lado Maria Helena, de outro ela em afazeres domésticos. MARIA HELENA Eu era uma pessoa, assim, só dentro de casa, né, pro marido, pros filhos, né, e depois eu separei, né. Porque eu achava que eu tava muito, sendo muito, como é que eu vou te dizer... escravizada por ele, né, que tinha que ficar só dentro de casa e tudo. Câmara passando por fotos das promotoras em situações domésticas, fotos de casamento, amamentando, festa de aniversário de criança, primeira comunhão,... SALETE Aí... surgiu o convite, né. Pra que... Tinham aberto, algumas mulheres, algumas advogadas tavam fazendo um projeto pra formar Promotoras Legais dentro das comunidades e que seriam mulheres que tivessem algum trabalho com a comunidade, que fossem lideranças, que tivessem... IARA Aí aonde a dona Elvira, ela tem uma creche comunitária aqui na vila, aí ela falou sobre esse curso, né. Que estava abrindo um curso de Promotoras Legais Populares que era pra trabalhar com mulheres vítimas de violência. Daí, eu digo: "Ah, então essa é pra mim mesmo, porque eu sou vítima de violência. " Fotos de mulheres vítimas de violência com manchetes e notícias de jornal, com dados sobre a violência sofrida pela mulher hoje. SALETE Como eu, naquela época, devido a quantidade de filhos que eu tenho, né, que eu tenho oito filhos, é... eu vivia muito dentro dos conselhos escolares... E eu era muito lutadora né, nessa questão da educação, aí fui convidada pra fazer o curso de promotoras legais populares Edição de fotos dos cursos da Restinga, Partenon, Norte,... mostrando as coordenadoras e as promotoras. LOURDES O primeiro dia veio a Denise, a Márcia e a Lelê, explicar como é que seria o curso, tá. JANE Como as gurias disseram assim que elas iam nos dar o curso básico, né, os direitos básicos, não era uma coisa assim de dizer que nós ia sermos advogadas... Mas aí a gente começou a se empenhar, se empenhar... LOURDES Era todos os sábados, a gente tinha, se reunia das duas da tarde as cinco da tarde, na Escola Fátima. Sobre uma foto de uma das aulas, imagens em vídeo que documentaram os cursos, como juiz dando aula. Mão escrevendo num quadro negro palavras e frases que dêem uma idéia do que é o curso: VIOLÊNCIA,... MARLI Nós tínhamos oficina de auto-estima, nós tínhamos oficina de planejamento familiar, nós tínhamos diversas coisas, né. MARIA FAVORINA BORGES Olha eu fiquei sabendo de leis que eu não sabia, eu aprendi a lidar com a minha comunidade, quando eles vêm me procurar pra socorrer, pra dar alguma orientação, eu aprendi a orientar elas. JANAÍNA A gente aprende direitos, né... tudo sobre o código penal a gente aprende também um pouco, né. Coisa que nem era do meu ramo de saber, eu fiquei aprendendo. LOURDES ... como encaminhar um Habeas Corpus, como orientar as mulher sobre a pensão alimentícia, caso de violência, que a gente tinha que orientar elas, o que elas tinham que fazer. MARLI Uma mulher, por exemplo, que ia denunciar o marido, algum tipo de violência, duas vezes na semana, o próprio cara, não sei como a gente chama, o cara da delegacia, o escrivão lá, que dizia, ele já desrespeitava a mulher, dizia: "olha, tu já esteve aqui e eu não vou ficar gastando papel contigo, porque tu já vai vir de novo, tu vive se queixando do fulano, mas tu tá sempre lá, tu gosta mesmo, tu gosta, tu é sem- vergonha, tu é vagabunda! " HQ conta a mesma história com alguma diferença, guarda a atende e manda de volta para casa. LOCUTOR Em frente da Lei tem um guarda. Uma mulher vinda do campo pede para entrar. O guarda diz que, de momento, não pode lhe permitir a entrada. A mulher pergunta se poderá entrar mais tarde. "É possível", responde o guarda. A mulher inclina-se para olhar através da entrada. "Não tente entrar sem a minha autorização", diz o guarda. LENA E acabava ficando nisso mesmo, assim, quando a gente descobriu que não, que a gente descobriu que não, que eles tinham a obrigação de registrar, de mandar pro IML, né, e tudo, e a gente começou a apertar eles, eu acho que eles meio que se assustaram um pouco, mas... Tela divida em dois, enquanto Lourdes fala de como era quando chegavam na delegacia, no outro Maria Favorina mostra o crachá. LOURDES Ah, a gente chegava na delegacia e tinha muita resistência do pessoal: "Ah, que Promotoras Legais populares. Quem são essas Promotoras Legais Populares? LENA ... eles começaram a descobrir que a gente conhecia a lei e sabia, né. Porque, claro, teve aquela coisa, "não tá no artigo tal, diz que vocês tem que fazer", né. Mesmo que... "Ah, mas ela vai, daqui a quinze dias ela vai voltar pro marido, tu ainda vai te incomodar! " "Não, mas eu quero que tu registre". Então essas coisas assim. MARIA FAVORINA BORGES Olha, antes a pessoa me procurava e eu digo vamos dar parte, e eu ia numa delegacia com elas e deixava elas lá e voltava, porque aí eu não entendia nada, né. Porque eu ficava com medo de falar e a polícia ainda vir contra mim, não é. E agora não, agora eu sei que eu tenho o meu direito, posso falar como cidadã brasileira eu posso defender qualquer semelhante meu. HQ continua contando a história. Mulher acompanhada pela promotora. LOCUTOR Em frente da Lei tem um guarda. Uma mulher vinda do campo pede para entrar. O guarda diz que, de momento, não pode lhe permitir a entrada. A mulher pergunta se poderá entrar mais tarde. "É possível", responde o guarda. LENA E uma coisa interessante, que a gente descobriu, assim ó, dependendo do caso, eles nos ligam, né, assim, todos eles tem, aqui da décima quinta, eles tem o telefone da gente, e eles nos ligam: "Olha, não dá pra encaminhar pra aí, não dá pra encaminhar pro Partenon? ", que é mais perto pra eles, né. "A gente tem uma mulher que sofreu um caso de violência, tá precisando de assistência", então, isso é muito bacana, assim, né. Mutirão - Grupo de Promotoras entram em uma delegacia e se apresentam para a delegada. Tela dividida, de um lado Lourdes, do outro Lena e Lourdes caminhando pela vila. LOURDES ... Aí nós fomos pra... conversamos com a coordenação do Themis e começamos: "Nós temos que ter um lugar pra atender, nós precisamos atender essas mulheres. " Aí foi, surgiu a idéia do SIM, Serviço de Informação a Mulher. Câmara acompanha Lena e Lourdes chegando no SIM LENA Esse é o SIM, só não tá mais organizado porque a sala não é mais só nossa, LOURDES Aí, na época, o primeiro SIM foi a Restinga, o Leste e o Partenon. Aí depois foram criados os outros, outros três. Maria Salete atende Ione no SIM e diz o que ela deve levar para o Forum LENA Esse aqui é o nosso guia de atendimento. (mostrando) Desde 96. Nós fazemos plantão todas as segundas-feiras (?). O ano passado a gente atendeu... (procura)... 537 mulheres foram atendidas. Detalhe do dedo de Lourdes procurando um caso no livro. Imagem de atendimento no SIM. Grupo de promotoras entram num posto de saúde, falam com o médico e reagem quando o médico diz que "em POA não tem delegacia da mulher". MARLI NAVEGANTES a promotora legal popular é aquela pessoa qualificada pela Themis, que fez o curso e que se recicla sempre, através de palestras, de aulas, de seminários, que está sempre a par das novas leis, CARMEM O que as promotoras têm, é esse conhecimento da constituição. É assim, ó, é saber pegar o artigo lá da constituição, ler o artigo e entender em que situação esse artigo está encaixado naquele problema. JANE do Partenon dá um exemplo mostrando um artigo da constituição. MARIDO SALETE Elas tem que falar a linguagem da comunidade. Que não adianta vir uma advogada lá do centro aqui na Restinga, bem bonitinha, bem embecada, se não falar a língua das mulheres daqui. LENA Nós já fazia um trabalho comunitário. A gente sempre fez, eu sempre fiquei mais envolvida com os adolescentes, a Lourdes com as mulher, a Clélia com os idoso... e a... o que a Themis nos fez foi nos lapidar, né. Nos ensinar mais, a como chegar nos órgãos públicos, essas coisas assim. IONE e olha eu não sabia que existia um atendimento tão bom aqui dentro da Restinga, porque vários lugares eu procurei aqui, mas nenhum eu fui tão bem atendida, assim tratada como um ser humano, sabe, a pessoa dizer, "não eu to entendendo o teu problema, eu to sentindo o teu problema". MARIDO SALETE Hoje não, elas tem essas promotoras legais que conversam e se abrem e elas sabem como vão chegar nas autoridades e levarem aqueles casos. Então a função delas é essa. Essa é a função delas. E os marido em casa ficam de mãe e pai. MARLI NAVEGANTES Então esta pessoa tem que estar pré-disposta a doar um período do seu tempo em favor deste trabalho Câmara acompanha Maria Favorina entrado no Fórum. Juiz dá uma sentença incompreensível, câmara corrige para Maria Favorina que traduz a sentença do juiz. CARMEM Na verdade, o trabalho que as promotoras fazem é uma ponte entre a mulher da comunidade e o Poder Judiciário, né. E a única coisa que as promotoras não tem é o curso de Direito. MARIA GUANECI Pergunta: E tu já falava assim, antes? Eu sempre fui faladeira porque eu sou catequista, né, e eu trabalho muito na liturgia das missas e tu sabe que lá na frente lendo aquelas palavras difícil do evangelho, com o microfone na mão, tu aprende a falar, né. MARLI Hoje mesmo eu tava lá conversando com o advogado da Justiça do Trabalho e eu comecei e ele foi lá a perguntou assim: "Dona Marli, a senhora me desculpa fazer uma pergunta, mas até que ano a senhora estudou? " Aí eu disse: "Olha eu não tirei o ginásio" na época era o ginásio "Eu não completei o ginásio", aí ele disse: "Ah, mas a senhora tem, a senhora fala como se a senhora tivesse tido um grau superior, né. " MARIA GUANECI Agora eu tenho segurança no falar, né, agora eu sei o que eu tô falando, né. E é interessante porque quando a gente fez o curso e começou a se apresentar nos lugares... quando a Themis nos convidava pra ir nos seminários com juizes, promotores... eu pensava assim: "Bah, mas ter que falar no meio de juiz, promotor... " Aí montava a mesa lá: "Doutor fulano, promotor fulano, juiz de tal... Promotora Legal da Restinga... " Aí eu pensei um dia assim: "Olha, tsc, eu vou falar do meu jeito porque eles são formados, eles têm a técnica. Eu não tenho estudo e eu tenho a vivência, porque eu tô com o pé no barro, lá na vila. MARLI Essas grandes conferencistas que vem e falam, né eu tive o prazer de me encontrar com uma delas em Caxias do Sul e ela começou a relatar a estatística, só que na estatística de violência, de estupro, darara, de não sei o que, tá lá, esbarra num determinado ano que termina, e aí elas lêem o livro, né, mas sô eu quem sei que foi a minha vizinha que foi ontem a noite foi estuprada, hoje de manhã eu tava correndo com ela pro IML, então aquele número já não é mais o mesmo, se eu demorar muito aqui falando contigo, os número tão mudando a cada momento. MARIA GUANECI A gente fala aquilo que a gente vive, né, a nossa realidade. Então, fica mais fácil. Aí eu não tenho medo de falar perto do juiz, do promotor... Apesar que o meu sonho ainda era Direito... é Direito, né. Poder me formar, vestir uma toga, subir num tribunal, aí, fazer justiça. (risos) Sobre uma imagem de uma sala de júri, trechos do júri simulado (curso da Cruzeiro). Angelina e Jane fazendo a defesa. JANE Quando eu tava fazendo o curso, ele dizia: "Ah, agora tu tá metida a advogada... " E ficava furioso quando eu me envolvia nessas situações... "Tu não tem que se meter na vida das pessoas, não sei o que... " Porque, nos traziam essa cultura da família dele: "Ah, fulano tá batendo na fulana, deixa, é marido dela, ninguém tem que se meter. " E eu não admitia isso. RUBEM PEÑA (Marido de Carmem) ... é uma lógica, né, que se acabou aquela de eu te bato e vale tudo, né, hoje em dia ela me bate e... Deus me livre, né?... A dificuldade tá é no homem entender que a mulher tem seu direito, MARLI Era assim, eu era freqüentemente violentada nos meus direitos, só que eu não sabia que eu tinha direitos. Eu achava que o que o meu marido dizia era o certo: "Lugar de mulher é em casa, tu tem que ficar... que que é isso, tu vive só dentro das reuniões, tu não tem mais hora pra chegar, não tem hora pra sair, RUBEM Então quer dizer, só se ela tá, né. Antes não, eu chegava às 11... do boteco, né. Eu chegava às 11, e ela tava em casa. (Carmem: O boteco tinha forma de mulher.) E ela tava em casa, né. Agora eu não vou mais no boteco, então ela chega às 11 e eu chego as 7, entendeu. (Carmem: O boteco tinha forma de mulher.) Aí existe a mudança. Só que a gente se adapta, a gente se... tem que se... se evoluir. Entendeu? CARMEM A partir do curso das promotoras eu aprendi que, como mulher, eu tenho o meu valor e que, se eu não sirvo pra uma determinada pessoa, tem outras pessoas que vão me valorizar e que vão me receber muito bem. MARLI eu comecei a me enxergar, o meu 1m52cm passou a ter 1m80cm, a minha pele escura passou a ter um brilho que antes não tinha, né, a minha visão foi ampliada e eu comecei a me enxergar como mulher, como,... me separei, em seguida tive um namorado maravilhoso, lindo assim. JANE Porque tu descobre que tu pode bancar algumas coisas, entendeu? Claro, eu nunca tive medo de dizer: "Olha, disso eu não gosto e aquilo eu não quero... " Eu sempre disse, mas não funciona. Porque tu não tem firmeza daquilo que tu tá dizendo. Tela dividida, de um lado Rubem, de outro Carmem saindo de casa, Carmem no Mutirão. RUBEM, MARIDO DE CARMEM né, nunca fui um menina moça, sempre fui meio bandido, mas é que não entendia o fator que agora me prende a minha família o que não me prendia antes. O que agora me faz lutar por ela, pensar nela, entender as coisas como são realmente... eu sempre tentei ajudar, sempre tentei ajudar mas não entendia o motivo. E agora eu entendo o motivo, a luta dela. Eu não entendia, eu ajudava, mas sempre por fora. Entendeu? Salete chegando numa casa de família. MARIDO DA SALETE ... às vezes eu acho até que ela faz demais. Né, que ela se ocupa demais em defesa da mulher, sabe. Às vezes esquece a casa pra abranger outras áreas... Às vez que "pá, tu esquece a nossa casa e vai ajudar... ", tanto que a gente também às vezes precisa, a gente... a gente acha falta dela aqui. Nós temos cinco filha mulher e três homem, temo quatro neto. Não é fácil, ontem, você vê, ontem ela chegou meia noite. Ela oito hora da manhã ela tava na escola, reunião de pais e mestres, né. E agora foi lá pro SIM, lá em cima, fazer uma campanha contra a violência da mulher. E amanhã de novo, e segunda feira de novo, e assim vai. SALETE Às vezes eu sentava e, de noite assim, depois que todas as crianças tinham ido dormir, eu dizia assim: "Pô, essa é a vida que eu vou levar até o final! " (risos) "É o futuro que me espera, né? " Mas... hoje não. Hoje, uma coisa eu tenho certeza, né? Detalhes de Mulheres se pintando JANE (pintada e fantasiada para o carnaval) Ah, e depois do curso a gente mudou, abriu assim, como é que eu vou te dizer, como se uma luz, assim, no fundo do túnel. MARLI (pintada e fantasiada para o carnaval) Quando a gente descobre, né e passa a saber dos nossos direitos, parece que o mundo todo se abre, né. D. ELVIRA (pintada e fantasiada para o carnaval) ... antes a gente era discriminado e ficava na tua, né, deixava a pessoa passar por cima LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval) ,... cada dia a gente fica mais, assim, desinibida, cada vez a gente desinibe mais. MARIA HELENA (pintada e fantasiada para o carnaval) Eu mudei, eu mudei o jeito de falar, o jeito de ser, o jeito de tratar meus filhos, tudo eu mudei. LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval) Primeiro a gente começa, né, não tem coragem nem de falar com ninguém, né, depois a gente vai acostumando, vai indo, vai indo. D. ELVIRA (pintada e fantasiada para o carnaval) Hoje em dia eu bato perna e exijo meus direitos e grito e não adianta. Enquanto eu não tiver os meus direitos eu tô gritando sempre... protestando sempre. LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval) Agora eu tô aqui na avenida. Imagens do bloco. Imagens de carnaval. D. ELVIRA (pintada e fantasiada para o carnaval) Pergunta: A senhora já tinha saído no carnaval? Eu saio há vinte anos no carnaval. JANE (pintada e fantasiada para o carnaval) Já, eu saí cinco anos na Imperador. Depois parei. LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval) Ai, é a primeira vez na minha vida! Adorei! MARLI (pintada e fantasiada para o carnaval) é a primeira vez. Eu saí porque eu sou outra mulher, hoje, né. Porque antes eu era toda fechada, toda tímida. Quando que eu ia sair assim, toda pelada, né. LOURDES (pintada e fantasiada para o carnaval) Meu marido tá lá na arquibancada, puto da cara: "o que que tu me inventa! " Digo: "agora meu filho, já era, tô lá. (risos) Música e imagens das promotoras no carnaval. Close das promotoras no carnaval. LOCUTOR Lena, Carmem, Maria Salete, Angelina, Lourdes, Marli, Jane, Dona Elvira, Maria Guanacy, Iara... Em Porto Alegre são cento e cinqüenta Promotoras Legais Populares. São cento e cinqüenta mulheres tentando exigir que a justiça seja um direito de todos. HQ continua contando a história, Mulher com promotora na frente do Juiz. LOCUTOR Em frente da Lei tem um guarda. Uma mulher vinda do campo pede para entrar. FADE OUT CARTÃO DE ENCERRAMENTO: O PROGRAMA FORMAÇÃO DE PROMOTORAS LEGAIS POPULARES FOI CRIADO PELA THEMIS ASSESSORIA JURÍDICA EM 1993 E JÁ ESTÁ SENDO IMPLANTADO EM ... CIDADES BRASILEIRAS. PORTO ALEGRE, JUNHO DE 2000. ************************************************************** (c) Ana Luiza Azevedo, 2000 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br