A FELICIDADE É... ESTRADA roteiro de Jorge Furtado versão de maio de 1995 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre ***************************************************************** CENA 1 - BANHEIRO / INTERIOR, DIA A água morna de uma banheira que se enche cobre lentamente o corpo de MARIA. LUIS (OFF) Você acredita no destino? Ah, o destino, sequência imprevisível de fatos que fazem a vida do homem, independentes de sua vontade. Alguns o chamam de sorte, fado, fortuna, sina. Seja com que nome for, destino é aquilo que acontecerá com você, no futuro. Maria tem os olhos cobertos por uma pequena toalha branca e parece dormir enquanto a água morna envolve seu corpo. LUIS está ao seu lado, sentado no chão sobre uma grande almofada, costas apoiadas na parede. Ele veste uma velha camiseta de dormir e lê um jornal, seção "Horóscopo". É uma edição de domingo, com seus muitos cadernos espalhados pelo chão. O sol invade o banheiro através de um pequeno vitral, jogando tons de azul e verde nos azulejos brancos que cobrem as paredes. LUIS (lendo) Gêmeos. Negócios: domingo é um bom dia para fazer planos, mas tenha cuidado com pessoa invejosa. Saúde: boa em geral. Apenas sua vista está um pouco frágil. Pessoal: organize um encontro amigável que será muito animado. LUIS Amor: sentimentalmente, você se sentirá relaxada e cheia de confiança. Maria sorri. MARIA Humm... relaxada... LUIS Vamos ver o seu. Capricórnio. Luis pára de ler, pega um frasco de espuma para banho e começa a derramar um fio líquido sobre o corpo de Maria. LUIS Negócios. Não esqueça de dividir seus inesperados lucros financeiros com companheiro fiel. Maria sorri. LUIS Saúde. Pare de fumar. Amor: garota, você tem sorte. Maria agora ri alto. Luis fecha e larga o frasco. Luis mexe na água, formando um monte de espumas e fazendo cócegas na barriga de Maria. Ela se contorce na banheira, derramando água e molhando o jornal. LUIS Maria! MARIA Bem feito. LUIS Você não queria levar o jornal? Eu já li, o azar foi seu. MARIA Liga para Sandra, vê se ela já está pronta. Luis recolhe os restos do jornal e sai do banheiro. MARIA Pede para ela levar o jornal. CENA 2 - QUARTO DE SANDRA / INTERIOR, DIA Um quarto quase às escuras, com pequenas frestas de sol na janela. O telefone toca. EDUARDO ergue a cabeça do travesseiro e procura um relógio ao lado da cama. Vê a hora, larga o relógio e volta a deitar. SANDRA, ao seu lado, dorme profundamente. A secretária eletrônica atende o telefone. VOZ DE SANDRA Oi, aqui é a Sandra. Deixe o seu recado depois do sinal. LUIS Sandra? É o Luis. (pausa) Alô Sandra... (pausa) Sandra... Sandra ergue a cabeça com dificuldade, tateia a mesa de cabeceira em busca do telefone. SANDRA Humrg. (pausa) Hum-hum. (pausa) Já são nove? (pausa) Vocês já estão prontos? (pausa) Levo. Pergunta para a Maria se precisa levar cobertor. CENA 3 - BANHEIRO / QUARTO Maria continua na banheira, mas já não tem os olhos cobertos. Luis está parado na porta, de pé, com o telefone na mão. LUIS Precisa levar cobertor? MARIA Não. Diz para ela vir de carro e deixar o carro aqui. LUIS (no telefone) Não precisa levar cobertor. SANDRA Eu estava pensando em ir de carro até aí e deixar o carro na garagem de vocês. LUIS Ótimo. Sandra passa a mão na cabeça de Eduardo. Eduardo vira-se na cama, com dificuldade. EDUARDO Como é que está o tempo? LUIS Tá ótimo. Maria sai da banheira e começa a secar-se. MARIA Pergunta como é que foi ontem. LUIS Como é que foi ontem? SANDRA Foi legal. MARIA Legal? SANDRA Muito legal. MARIA Muito legal? SANDRA MUITO legal... MARIA Mas... MUITO legal como? LUIS Só um pouquinho, só um pouquinho. Luis entrega o telefone para Maria e sai. Maria, de roupão, fala ao telefone enquanto cuida das unhas dos pés e das mãos. MARIA E aí? (...) Não consegui acordar mais cedo. (...) Não, a gente chegou em casa eram quase três horas. (...) Estava ótimo. (...) É. (...) Um pouco, eu sempre fico. Tem muita gente, uma pessoas estranhas. (...) Quase todos. Um dos que eu mais gosto não vendeu, achei ótimo. Em compensação aquele Cândido nojento comprou um que eu adoro. Ele me disse que tinha tudo a ver com o "loft" dele. Quando ele disse "loft" soltou perdigoto que caiu bem no meu braço. Que nojo! (...) É., azar, era um dos mais caros, também. Tudo bem. (...) E vocês? (...) Achei ele ótimo. (...) Eu vi, vocês saíram cedo. (...) E aí, foi legal? Sandra fala ao telefone e arruma roupas sobre a cama. SANDRA Hum-hum. (...) Sim. (...) Sim. Eduardo levanta com dificuldade e fica sentado na cama. SANDRA Sim. (...) Sim. Eduardo sai. SANDRA (falando baixo) Foi. Totalmente, completamente, inteiramente... legal. (...) Não, nunca tinha sido tão legal. (...) É exatamente o que eu estou querendo dizer. (...) Pois é. Legal, né? (...) Claro. (...) Sim. (...) Sim! Eduardo volta. SANDRA É. (...) Sim. (...) Sim. CENA 4 - QUARTO DE MARIA Maria está terminando de se vestir. MARIA Tá bom, depois a gente fala. Tomem café aqui. (...) Claro. (...) Nenhum, só descansar, por quê? Vocês estão levando trabalho? Ah... (...) O Luis me jurou que não disse nem para onde ia. LUIS Namorar, comer, dormir e ler gibi. MARIA Uma semana nesse ritmo e a gente vai descer a serra rolando. LUIS Não, a gente vai caminhar muito. Vamos acordar cedo todos os dias e caminhar até a cachoeira, fazer exercício... MARIA Ha! Tá bom. SANDRA Levo travesseiro? (...) Tudo bem. (...) Até. Sandra desliga o telefone. Eduardo a abraça e começa a beijar o seu pescoço. Ela se aconchega no corpo dele. Ele mergulha para baixo das cobertas e passa a beijá-la por todo corpo. Ela se espreguiça, movimenta a cabeça de um lado para o outro e também mergulha para baixo das cobertas. CENA 5 - GARAGEM, COZINHA, QUARTO (Esta cena é intercalada com momentos da transa de Sandra e Eduardo) Maria e Luis preparam o carro para a viagem e escutam música. Maria coloca coisas no porta-malas. É um carro conversível e Luis tem alguma dificuldade em abaixar a capota. Eduardo passa os dedos pela nuca e pelos cabelos de Sandra. Maria vai enchendo uma caixa de papelão com delícias de comer e beber: vinho do Porto, champanhe, chocolate, licores, frutas. Sandra beija as costas de Eduardo. Luis agora separa revistas em quadrinhos antigas: Asterix, Superboy, Fantasma, Ken Parker. Vai colocando tudo numa valise. Maria escolhe alguns CDs: Billie Hollyday, Caetano, Glenn Miller, Chico, Nei Lisboa. Eduardo beija os pés de Sandra. Maria coloca alguns jogos na caixa das revistas: baralho, War, bloquinho de Batalha Naval, lápis e canetas. Sandra está com a cabeça reclinada no travesseiro. Eduardo movimenta-se sobre ela. Luis está cuidando o leite no fogo. Maria o abraça por trás. Ele se vira. Beijam-se. Ela espia o leite e avisa. Ele volta a cuidar do leite que está subindo. Ele desliga rapidamente o fogo. Os dois ficam torcendo que o leite não derrame. O leite não derrama. Sandra sorri. Aparentemente, ela está gostando muito da transa. Aos poucos, o sorriso vai se transformando numa expressão de surpresa, como se algo inesperado estivesse começando acontecer. Sandra agora parece um pouco tensa, assustada. Aos poucos ela relaxa, o sorriso começa a voltar, primeiro sutilmente, depois aberto, um sorriso maravilhoso. O rosto de Sandra se ilumina, seus olhos brilham e ela se entrega num prazer profundo, intenso e inteiramente novo. CENA 6 - COZINHA Maria dá uma mordida numa goiaba madura. Maria, Luis, Eduardo e Sandra numa mesa de cozinha, tomam café. É um café da manhã completamente íntimo, as embalagens de leite e manteiga sobre a mesa. Luis cata e come as passas de um bolo de passas semi-devorado. Maria come goiaba. Eduardo lê o jornal. EDUARDO Olha essa aqui: EDUARDO Um estudo vienense concluiu que a ativação do lado direito do cérebro através da respiração só pelo orifício esquerdo no nariz, retarda o orgasmo e aumenta o prazer do casal. LUIS Como é? EDUARDO Segundo o estudo, 85 por cento dos problemas sexuais se devem a má manipulação do cérebro. LUIS Respirar só pelo orifício esquerdo do nariz? Isso não será erro de tradução? MARIA Luis, a primeira coisa que a gente vai fazer quando chegar em Canela é experimentar essa teoria vienense. LUIS A primeira coisa que eu vou fazer quando chegar... CENA 7 - JARDIM DA CASA NA SERRA Luis, sem sapatos, toma água de uma torneira na rua. LUIS (OFF) ... é tirar os sapatos e tomar água da bica, com aquele barrinho entrando entre os dedos do pé. CENA 8 - BALANÇO Maria, num balanço de madeira, come pitanga e observa o movimento das árvores MARIA (OFF) Eu vou ler e comer pitanga no balanço. CENA 9 - QUINTAL DA CASA Eduardo deitado sobre um lençol, na grama, Sandra ao seu lado. EDUARDO (OFF) Eu vou fazer um piquenique. Tomar um vinho, dormir, ficar namorando... Sandra levanta e puxa Eduardo pela mão. CENA 10 - CASSINO Sandra caminha pelas ruínas do cassino, Eduardo ao seu lado. Sobem as escadarias da entrada. SANDRA (OFF) Vou levar você para conhecer as ruínas do cassino. EDUARDO (OFF) Que cassino é esse? LUIS (OFF) Os caras estavam construindo um enorme cassino, quando proibiram o jogo. MARIA (OFF) O mato tomou conta de quase tudo. É lindo. Sandra e Eduardo descem as escadas que levam ao salão principal, uma caverna de concreto tomada por gigantescas samambaias. A luz entra no salão pelas estreitas aberturas das janelas. Ouve- se apenas o som das gotas que pingam do teto no lago formado sobre o chão. CENA 11 - ESTRADINHA Luis caminha por uma estrada aberta no meio do mato. LUIS (OFF) Depois de tomar água na bica, eu vou caminhar e me deprimir. Eu estou louco pra ficar triste, nunca posso, tem sempre alguém perto de mim que merece ficar triste mais do que eu. Agora que está todo mundo bem, eu vou aproveitar e me deprimir. Luis olha para a copa das árvores. CENA 12 - REDE Luis na rede, deprimido. LUIS (OFF) Mas não se preocupem, é coisa de uma hora, no máximo. Eu caminho, me deprimo, deito na rede, durmo, acordo morto de fome... CENA 13 - BALANÇO Luis senta ao lado de Maria, no balanço. Luis come uma pitanga e logo começa a beijar e agarrar Maria. LUIS (OFF) ... aí vou pro balanço comer pitanga e te agarrar. CENA 14 - COZINHA Termina de passar uma água na louça. MARIA Acontece que a esta altura eu já terminei de comer as pitangas. Vamos embora? Luis fecha o gás do fogão. CENA 15 - FRENTE DA CASA DE LUIS O carro de Luis está na frente da casa. Sandra põe o carro na garagem. Eduardo ajuda a fechar a garagem. Maria tranca a porta da frente. Sandra e Eduardo passam as malas para ao carro de Luis. Os quatro se reunem em torno do carro de Luis, já pronto para a viagem. Maria e Sandra percebem que cada uma trouxe um escorredor de massa. Luis revela a intenção de abrir a casa para deixar um escorredor. Todos o convencem rapidamente que não é necessário, que um escorredor de massa não ocupa tanto espaço assim, que Sandra aproveitou seu escorredor para trazer, dentro dele, quatro taças de cristal, e que o sol já está alto e que eles estão loucos para pegar finalmente a estrada. Os quatro entram no carro, Luis ao volante, Maria ao seu lado, Eduardo atrás de Maria, Sandra atrás de Luis. O carro parte. Sandra, que ficou com o escorredor de massa com quatro taças na mão, põe o escorredor no banco, ao seu lado, delicadamente. CENA 16 - FERRO VELHO Um enorme, sujo, velho e pesado motor, carregado por um guindaste velho e barulhento cai, com um estrondo, na carroceria de um grande, velho e sujo caminhão. MUTUCA (indignado) Puta que o pariu, caralho, que buceta, Gaúcho! Puta que o pariu! É foda! MUTUCA, dono do caminhão, um sujeito sujo e suado, acompanha a operação. GAÚCHO, o dono do ferro velho, opera o guindaste. GAÚCHO (descendo do guindaste) Não fode, Mutuca! Se essa bosta desse teu caminhão não aguentar uma porrinha de merda dessas então tu tem que te fuder. Gaúcho entra numa casinha de madeira, uma espécie de escritório, pega alguns papéis. Mutuca se aproxima da porta aberta. MUTUCA Porra, Gaúcho, tu também é um cu mesmo, puta que o pariu! Se eu tiver que deixar essa porra lá em Santa Terezinha eu tô fudido, Gaúcho! Tu sabe que horas eu vou conseguir voltar daquele cu de mundo, Gaúcho? Santa Terezinha fica na casa do caralho! Porra, Gaúcho, hoje é aniversário daquela puta da irmã da minha mulher, a festa é lá em casa, sogra, sogro, o caralho. Sou eu que vou fazer o churrasco, Gaúcho, se eu não chegar até às sete a minha mulher jurou que dava pro vizinho, Gaúcho. Eu levo essa merda amanhã cedo. Gaúcho terminou de conferir os papéis, uns recibos sujos de graxa que dobra e entrega para Mutuca. GAÚCHO No cu. MUTUCA Porra, Gaúcho, não fode! Gaúcho sai, dá as costas para Mutuca, que o segue. GAÚCHO No cu, Mutuca, no cu. Aquele corno disse que se eu não entregar essa merda em Santa Terezinha até às oito, hoje, que eu podia socar no cu. E vai ser no teu. MUTUCA E pra acabar de fuder com tudo o freio do caminhão tá uma bosta, Gaúcho. Amanhã cedo eu levo esta merda. Porra Gaúcho, eu... GAÚCHO Porra é o caralho, Mutuca. Não fode. Se tu não fizer a entrega até às oito, daqui tu não tira mais nem um peido de anão. Gaúcho continua a caminhar, sem nem olhar para Mutuca. Mutuca pára, confere a nota. Sai em direção ao caminhão, furioso. GAÚCHO Puta que o pariu! Puta que o pariu! Que caralho, buceta. Me fudi, caralho. Que merda! Gaúcho entra no caminhão, bate a porta e dá o arranque. O caminhão, velho e sujo, carregado de ferro velho, movimenta-se pela estrada esburacada. CENA 17 - CARRO O carro de nossos amigos flutua pelo asfalto perfeito da estrada, por entre alamedas floridas de hortênsias azuis e rosas. Os quatro, sol e vento no rosto, escutam um som maravilhoso. O carro se aproxima de um ônibus escolar. Luis começa a ultrapassar o ônibus. A saia de Maria levanta, com o vento, deixando suas calcinhas brancas à mostra por alguns segundos. Os meninos e meninas do ônibus apontam para o carro e gritam muito, batem na lataria do ônibus. CENA 18 - ESTRADA DE TERRA O caminhão está parando, com um pneu furado. Mutuca bombeia o freio, mas o caminhão pára só depois de muitos metros. Mutuca desce do caminhão e olha para o pneu furado. MUTUCA Puta que me pariu. Puta que me pariu, caralho! Caralho, caralho, caralho, caralho! Que buceta! Mutuca abre uma caixa de ferramentas e pega uma chave de roda. CENA 19 - ESTRADA / CENA 20 - ESTRADA DE TERRA O carro sobe uma colina, onde sol ilumina uma igrejinha. Casas antigas de madeira denunciam a colonização alemã de uma pequena vila. O carro pára em frente a uma barraca. Um dos parafusos da roda não quer soltar. Mutuca faz força. Os quatro estão numa barraca de beira de estrada. Brinquedos coloridos de madeira e bonecos coloridos de gesso ocupam todas as prateleiras. Mutuca faz força no macaco do caminhão. Luis quer comprar um anão, o Dunga. Mutuca machuca a mão ao tentar apertar o último parafuso da roda. O carro flutua pela estrada e agora é Maria quem dirige. O carro vence mais uma colina. Mutuca põe outra vez o caminhão em marcha. Ele tem a mão enfaixada com um curativo improvisado, muito sujo. CENA 21 - CARRO / CENA 22 - CAMINHÃO (A partir daqui, imagem e som das duas cenas se alternam) Maria e Luis examinam um mapa rodoviário. Mutuca examina um mapa rodoviário. O dedo de Luis percorre uma estrada (vermelha) no mapa, de baixo para cima. LUIS (OFF) A gente está aqui. A mão enfaixada de Mutuca percorre uma estrada (preta) no mapa, da direita para a esquerda. MUTUCA (OFF) Que caralho, que caralho... O dedo de Luis percorre a estrada vermelha. MARIA (OFF) Vamos pela 116 ou pela 112? SANDRA (OFF) Vamos pela 112. É mais bonita. O dedo de Mutuca percorre a estrada preta. O dedo de Luis percorre a estrada vermelha, que cruza com a preta. LUIS (OFF) Aqui a gente pega a 112. O dedo de Mutuca percorre a estrada preta, que cruza com a vermelha. MUTUCA (OFF) Aqui eu cruzo a 112. Eduardo olha o relógio. Mutuca olha o relógio. MUTUCA Puta que pariu, caralho! O carro segue pela estrada ladeada de flores. O caminhão de Mutuca segue aos solavancos pela estrada esburacada. Mutuca liga o rádio. É um programa policial mundo- cão. Uma MULHER chora enquanto um APRESENTADOR conduz a entrevista. APRESENTADOR (OFF) ... e o rapaz, sem saber que o Velhinho era o seu próprio pai, imobilizou o coitado e o estuprou, ali mesmo na enfermaria do hospital. Uma barbaridade! O cafajeste estuprou o próprio pai numa cama da enfermaria do setor de queimados do Hospital São Judas Tadeu, minha gente! O velho todo esfolado e o covardão ali, pimba no velho! O caminhão passa por uma horrível cidadezinha de beira de estrada. Igreja evangélica. Bares. Parada de ônibus lotada. Comércio popular. Luis põe a mão sobre a coxa ensolarada de Maria. Um dos parafusos do pára-choque dianteiro do caminhão parece um pouco solto. Sandra faz cafuné em Eduardo que, de olhos fechados, repousa em seu colo. Sob o barro que cobre o sacolejante pára-lamas traseiro do caminhão pode se ler a frase: "Mulher boa é a dos outros". O pneu do carro desliza no asfalto. Os copos de cristal tilintam. O pneu do caminhão trepida nos buracos. Luis olha a paisagem. LUIS (OFF) Você acredita no destino? Eu não. Eu acredito que o ser humano tem poder e totais condições para estragar sua própria vida sem a ajuda de ninguém, tomando as decisões erradas nas horas impróprias, aliando-se a canalhas diversos, acreditando em heróis, crentes e outros farsantes, apaixonando-se por pessoas doentes ou de péssimo caráter e, principalmente, acreditando cegamente em sua própria inteligência, bondade, charme, sanidade e senso de justiça. Um grave erro. Da cabine do caminhão já se pode ver, ao longe, a estrada e o carro de Luis. No rádio, a Mulher chora muito. APRESENTADOR ... e o Velhinho estava com o corpo praticamente todo em carne viva, é isso? MULHER (chorando) É, ele perdeu a pele na explosão de um fogareiro à querosene no barraco onde morava, ele e mais nove pessoas lá na vila... Mutuca muda de estação. Mutuca olha pela janela lateral. O caminhão passa por outra vila de beira de estrada. PREGADOR ... nas estradas do senhor! Aleluia! E este homem, que estava mergulhado em pecado, nas drogas, na bebida e na pederastia, este homem foi salvo pela luz do senhor, aleluia! E você também pode ser salvo. Escreva para a caixa postal um cinco nove... Do carro já se pode ver, ao longe, o caminhão de Mutuca. LUIS (OFF) O ser humano tem tudo para dar errado, mas eu não consigo me envolver emocionalmente com vegetais ou minerais. Uma vez eu tive um cachorro e o cheiro dele era muito estranho. Normal. O caminhão agora já está bastante próximo da estrada. Os cristais tilintam. Do carro já se pode ver claramente o caminhão que se aproxima. LUIS (OFF) As leis da probabilidade, no entanto, permitem que você possa contar com alguns momentos bastante bons. Que podem ser ampliados, se você tiver alguém para dividir ou lembrar deles. Que podem ser em maior número, se você tiver a capacidade de planejá-los. O caminhão está muito perto de cruzar a estrada por onde o carro de Luis se aproxima. O pára-choque dianteiro do caminhão trepida tanto que parece que vai se soltar. As quatro taças de cristal tilintam no banco traseiro do carro. Mutuca tira os olhos da estrada para olhar o mapa. Maria tira os olhos da estrada para olhar a paisagem. LUIS (OFF) Acho que é isso: alguns amores recíprocos, algum dinheiro, trabalho, muitos planos... O caminhão cruza a estrada, por cima de um viaduto. Por baixo passa o carro com Maria, Luis, Eduardo e Sandra. LUIS (OFF) E alguma sorte. O carro segue em direção ao horizonte. FIM ***************************************************************** (c) Jorge Furtado, 1995 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br