A FOME E A VONTADE DE COMER episódio da série CONTOS DE INVERNO 2002 roteiro de Tomás Creus Versão 27/03/2002 argumento de Cíntia Moscovich, baseado em seu conto homônimo coordenação de texto da série Jorge Furtado e Giba Assis Brasil produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para RBS TV ******************************************************************* CENA 1 - EXT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA Na rua, vemos um cartaz meio dilapidado: "ARMARINHO A PREFERIDA". Uma porta aberta. Pessoas passam pela frente, mas ninguém entra ou mesmo se detém. CENA 2 - INT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA SARA, uma senhora de uns 60 anos, e sua filha, RAQUEL, de 25, uma moça magra, olham com expressão aborrecida para as pessoas que passam e passam sem entrar. SARA Ninguém em toda a manhã... RAQUEL Nem pra pedir informação. Sara suspira, pega um baralho de cartas. SARA Quem deu a última? RAQUEL Eu. Sara dá as cartas. As duas começam a jogar. Raquel olha a sua mão, abaixa alguma carta, escolhe outra do monte. Nisso entra alguém, mas elas não notam, seguem jogando. Depois de ficar alguns segundos esperando que elas o notem, o jovem, VASCO, bate no balcão come se fosse à porta. VASCO Com... com licença? As duas, apressadas, escondem o baralho e se levantam. SARA Sim, em que posso ajudar? VASCO Bom... Eu... Eu estava procurando uma peruca. SARA e RAQUEL Uma peruca?!? RAQUEL Seria pro senhor mesmo? Sara censura Raquel com o olhar, como dizendo "Isto é pergunta que se faça?" Depois sorri para Vasco, enquanto Sara vai dar uma olhada nos fundos. SARA A gente vai dar uma procurada. Raquel volta com uma longa barba postiça nas mãos. RAQUEL Olha, tem esta barba aqui. Será que não serve? Sara pega alguma outra coisa de baixo do balcão. A apresenta a Vasco: é um óculos com nariz e bigode, daquele tipo "Groucho Marx". SARA Tem isto aqui também. É pra festa a fantasia? Vasco sacode a cabeça negativamente. VASCO Não... Teria que ser uma peruca mesmo... É pro meu pai... Tudo bem, obrigado. Ele sai. As duas se entreolham desanimadas, uma segurando a barba postiça, a outra o óculos do Groucho Marx. Suspiram. CENA 3 - EXT. RUA NO BOM FIM - FIM DE TARDE Sara e Raquel caminham pela rua. Passam por um par de jovens, um cabeludo e um de cabelo curto. Eles cumprimentam Sara e Raquel mas passam reto sem se deter a falar. JOVEM CABELUDO Ué, porque não falou com ela? Não era tu que estava a fim da Raquel? JOVEM DE CABELO CURTO Eu não. Muito magra... Sara e Raquel chegam em casa. Uma casinha ou apartamento com a pintura desbotada. Na porta, uma "mezuzá" [objeto cilíndrico com rolinho do Talmud dentro, por vezes usado por seguidores da religião judaica]. Elas beijam os dedos e passam a mão na mezuzá. Entram, fecham a porta. CENA 4 - INT. CASA - QUARTO DE RAQUEL - NOITE Raquel senta na sua cama, exausta. Na parede, um poster do Woody Allen. No porta-retrato da mesa, foto dela criança, também magrinha. SARA (VS) Raqueel! O jantar tá na mesa! RAQUEL Eu não tou com fome. Silêncio. Raquel pega o porta-retrato com sua fotografia. SARA Raquel, vem logo, vai esfriar! Raquel suspira, levanta e sai. CENA 5 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - DIA Sara e Raquel moram num pequeno apartamento de dois quartos, velho e gasto, que já viu dias melhores. A geladeira e o fogão são velhos, os móveis carcomidos. Sara coloca um prato sobre a mesa. RAQUEL Mãe, eu disse que não estou com fome. SARA Você disse a mesma coisa no almoço. Alguma coisa tem que comer, minha filha, senão vai desaparecer! RAQUEL Mas eu comi no almoço. SARA Comeu uma salada, salada não é comida. Senta aí. RAQUEL Não... Talvez depois. Eu não estou com fome mesmo. Tou meio com dor de cabeça, acho que vou me deitar um pouco. Ela se dirige para o quarto. Sara pega um pedaço de pão, um dos pratos da mesa, estendendo-os em direção à filha. SARA Mas minha filha! Come um pão que seja! Um ovinho! Pega um outro prato, com uma espécie de bolinhos de peixe. SARA Um ghefilte fish! Mas a filha já foi, ouvimos a porta do quarto fechando. Sara ergue as mãos para o céu. SARA Ai meu Deus do céu... O que eu vou fazer com esta menina... Óióiói... Ela resmunga algo incompreensível em ídiche. CENA 6 - INT. COZINHA MARAVILHOSA - DIA Uma cozinha de luxo, de comercial de margarina, com fogão e móveis novos. Vemos o rosto de Raquel, com lágrimas nos olhos. Ela limpa a lágrima, depois vemos que está picando cebolas. Há um alho picado num pratinho, junto a outros ingredientes. Depois ela pica uma linguiça e coloca tudo numa enorme caçarola de ferro que está no fogo, com uma feijoada borbulhante. Pronta a feijoada, Raquel apaga o fogo. Coloca a panela na mesa da própria cozinha, e serve-se uma generosa porção no prato. Começa a comer desesperadamente. Logo o prato parece ser insuficiente, ela começa a comer vorazmente a colheradas da própria panela. CENA 7 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE Raquel acorda repentinamente na cama, debaixo das cobertas. Ergue-se na cama, acende a luz. Leva à mão à barriga, sentindo-se mal. Arrota. Faz uma careta, sai da cama de camisola, abre a gaveta e retira um pacotinho de sal de frutas. Sai de quadro, ouvimos o som da torneira, ela volta com um copo de água. Mistura o sal de frutas e bebe. Fica sentada na cama, expressão pensativa. CENA 8 - INT. ARMARINHO - DIA Raquel está sozinha na loja, lendo uma revista de moda. Entra uma moça, FAUSTINA, 25 anos. Ela usa roupas formais. FAUSTINA Oi. Eu estou procurando um sutiã. RAQUEL Que tipo? Faustina deixa a revista de moda sobre o balcão. Pega uma caixa com sutiãs, põe sobre o balcão. FAUSTINA Um tipo que me faça parecer um pudim de leite condensado. As duas ficam algo desanimadas, olhando os sutiãs, muito caretas. RAQUEL Pode ser diet? FAUSTINA Melhor não. Estou precisando engordar meu salário. RAQUEL Desculpe. Acho que não posso te ajudar. Não quer ver uma camisola? FAUSTINA Não, obrigado. Faustina sai, apressada. Raquel acena, depois volta a se concentrar na revista. CENA 9 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE Raquel, de camisola, prestes a se deitar. Olha para a cama, algo hesitante. Coloca um copo de água sobre a mesinha e um pacotinho de sal de frutas ao lado. Depois se deita, apaga a luz. CENA 10 - INT. COZINHA MARAVILHOSA - DIA Raquel prepara um molho de tomate: tomate picado, cebola, alho, tudo frita na frigideira. Ao lado, uma panela com água fervente: ela coloca um pacote de espaguete, que lentamente amolece no contato com a água quente. Com agilidade, ela mexe o molho enquanto a massa cozinha. À mesa, ela se serve um enorme prato de espaguete e, mais uma vez, come como uma condenada, sugando os fios de espaguete que caem pela boca e respingando molho. CENA 11 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE Raquel acorda sobressaltada. Leva à mão ao estômago. Curva-se sobre a cama, quase a ponto de vomitar, mas sem chegar a tal ponto. Prepara o sal de frutas rápido e bebe tudo de um gole. Exala longamente. CENA 12 - INT. ARMARINHO - DIA Raquel e Sara no armarinho. Raquel com cara triste. SARA Que desânimo é esse? Tá certo que as coisas vão mal, mas... RAQUEL Não é isso. É que eu... Eu... Ando tendo uns sonhos estranhos. SARA Sonhos estranhos? RAQUEL É. Com comida. SARA Ora, não tem nada de estranho. Nunca come nada, tem mais é que sonhar com comida mesmo. RAQUEL Mas não é só isso... É que... Bom, eu sonho que eu cozinho um prato, mas bem mesmo, como uma cozinheira profissional. Reúno todos os ingredientes, preparo certinho, o prato fica perfeito... Imagina, no outro dia até chrein preparei. SARA Chrein? RAQUEL É. Beterrabas raladas, raiz forte, mostarda, um beliscão de sal e gotas de vinagre de vinho branco. É isso, não é? SARA É, isso mesmo... Mas desde quando você sabe preparar o chrein? RAQUEL Aí é que tá. Não sei, nunca aprendi. Mas no sonho foi como se soubesse. Como se tivesse nascido sabendo... SARA Chrein... Mas que coisa. E ghefilte fish? SARA Piava fresca moída, ovos, pão amolecido em água, cebola miúda frita em azeite, molho encorpado com cenoura, tomates? Claro, fiz também... Mas isso não é o problema. O pior do sonho é que depois de preparar, eu mesma como tudo sozinha, como uma desaforada. Ontem mesmo foi spaghetti, comi uma panela cheia. Semana passada então? Foi uma feijoada completa. Com todos os ingredientes: toucinho, linguiça, paio... SARA Você comeu carne de porco?!? RAQUEL Bom, era sonho, né? Não posso controlar os próprios sonhos... SARA Lá isso é... Ela olha para a filha agora com mais atenção. SARA Mas... Peraí... Vem cá... Ela segura o queixo da filha, aproximando e examinando o seu rosto. SARA Olha, eu estou te achando menos pálida, mais saudável... Se não te conhecesse, diria até que engordou. RAQUEL Pois é, acho que são os sonhos também... Eu acordo me sentindo cheia, estufada. Como se tivesse comido mesmo, sabe? É horrível... A mãe sorri, como se não tivesse ouvido o último comentário. SARA É, você tá melhor mesmo. Muito melhor. Espera aí. A mãe vai aos fundos da loja, volta com uma balança daquelas de banheiro. Faz Raquel se pesar. A balança indica 55 quilos. SARA Não é sonho não. Você tá pesando mais mesmo! A mãe sorri, feliz. RAQUEL Mas mãe... Você não acha muito estranho isso tudo? Essa coisa dos sonhos... SARA Ora, sonhos, sonhos... E o que é a vida senão um sonho? Foi o modo como Deus encontrou de fazer você comer, porque de outro jeito... Seu pai sempre dizia, de um modo ou de outro, Deus sempre há de prover. Ela olha para cima. SARA É, isto só pode ser um sinal divino... Um anúncio dos céus... Ela ergue os braços ao céu, em agradecimento. Mas Raquel não parece nada feliz. CENA 13 - EXT. RUA - FRENTE DO ARMARINHO - DIA Vemos a entrada de "A Preferida", com a placa. Caem alguns flocos de neve: está começando a nevar sobre Porto Alegre. CENA 14 - INT. CASA DE RAQUEL E SARA - NOITE Sara faz contas com a calculadora. Ao seu lado, a filha a ajuda. SARA Ai ai... Já estamos com dois meses de atraso no aluguel. E ó... Ela mostra uma carta impressa. SARA Tão dizendo que se não pagarmos a conta da luz, eles vão cortar. Eu não sei mais o que fazer... Se os negócios não melhorarem logo... Raquel coloca a mão sobre o ombro da mãe, confortando-a. Sara segura a sua mão. SARA Tá, não te preocupa. Algum jeito vai surgir. Você vai dormir, vai. Amanhã a gente pensa. RAQUEL Não, eu... Eu não estou com sono. Seu rosto com olheiras, entretanto, desmente a informação. Ela reprime um bocejo. SARA Que é isso, minha filha. Vai, que amanhã tem que acordar cedo. Eu também já vou dormir daqui a pouco. Ela beija a testa de Raquel. Depois a filha vai para a porta. RAQUEL Tá bom. Boa noite, mãe... CENA 15 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE Raquel olha para a cama. A cama "olha" para Raquel. É um confronto de inimigos, como naqueles duelos de olhares nos filmes do Sérgio Leone. Raquel coloca uma termolar de café sobre a mesinha. Também vários livros. Uma pilha de livros. CENA 16 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - NOITE A mãe abre um gabinete fechado a chave. Sobre o gabinete, a foto do finado marido de Sara, pai de Raquel. Raquel abre uma caixinha. Há uma pulseira de prata com diamantes. Ela a pega. Também um colar de jóias, rubis. Ela olha para a foto no retrato, que parece observá-la. SARA Pois é... Eu sei que prometi nunca tocar nessas coisas. Eu sei que são coisas que você me deu de presente, e que você ficaria triste se eu vendesse. Mas... Os tempos são difíceis, entende? É preciso fazer sacrifícios. E depois, eu só vou penhorar, não vender. Quando a situação melhorar, eu recupero... CENA 17 - INT. QUARTO DE RAQUEL - NOITE Raquel lendo, começa a se adormentar: seus olhos se fecham sozinhos. Irritada, ela pega um pouco de fita adesiva e cola as pálpebras puxando-as para cima, de modo a que os olhos fiquem permanentemente abertos. Ela lê, lê, lê. Começa a ficar com sono, boceja. Os olhos começam a tentar se fechar, mas são impedidos pela fita adesiva, e ela retorna à leitura. Mais uma vez a cena se repete, ela resiste. Na terceira vez as pálpebras são mais fortes e se fecham desgrudando a fita adesiva. O pescoço despenca, o corpo amolece, Raquel cai no sono. CENA 18 - INT. COZINHA MARAVILHOSA DE RAQUEL - DIA Sequência de cenas rápidas: Raquel cortando um pepino em várias rodelas. Raquel colocando no forno um peixe assado. Raquel batendo ovos. Raquel servindo-se ensopado. Raquel comendo um frango inteiro com as mãos. Raquel tragando uma enorme fatia de bolo de chocolate. CENA 19 - INT. QUARTO DE RAQUEL - MANHÃ Raquel acorda com uma cara terrível, tenta se levantar, rola e cai da cama com um baque surdo. CENA 20 - INT. ARMARINHO "A PREFERIDA" - DIA Agora Raquel está visivelmente mais gorda e mais desanimada. Sentada no balcão do armarinho, suspira. SARA Não fica assim, filha. Tua saúde nunca esteve melhor, meinmeidale. Eu já disse, foi o modo que Deus achou de te ajudar neste período difícil para a gente... RAQUEL Pois podia ter achado outro modo, porque eu não me sinto nada bem. Ela arruma um pouco as coisas sobre o balcão. Vira-se novamente para a mãe. RAQUEL Eu... Estou pensando em ir no psiquiatra. A Faustina me recomendou um, o Dr. Finkelstein. Diz que ele faz milagres. Sara sacode a cabeça, não parece convencida. SARA Dr. Finkelstein?!? Mischigas! Dizem que ele passa o tempo inteiro só querendo saber histórias sobre a mãe do paciente. E depois, sabe o quanto custa uma consulta? Não, que nada... Você precisa é ver um profissional competente, de eficiência comprovada e ampla cultura e saber. Alguém de conhecimento milenar e habilidades suficientes para ajudar você com o seu problema. RAQUEL Ué, mas quem? CENA 21 - EXT. CÉU DE PORTO ALEGRE - DIA O rabino Malevich voa, planando, sobre os céus de Porto Alegre. Ele sorri, feliz. Ouvem-se batidas a uma porta: seu sorriso se desfaz. As batidas continuam, ele cai do céu. Ouve-se um baque. CENA 22 - INT. APTO DO RABINO MALEVICH - DIA Batidas à porta. Recostado sobre o sofá, o rabino abre lentamente os olhos. RABINO Já vai, já vai... Ele abre a porta. Vemos Raquel que entra, meio sem jeito. RAQUEL Bom dia, rabino... O rabino a cumprimenta com um gesto da cabeça (não apertam as mãos, aparentemente não se faz) e com um gesto oferece um sofá. RABINO Bom dia, minha jovem. Sente, por favor. O que a traz aqui? RAQUEL Bem, eu... Ela senta, enrola as mãos, sem saber por onde começar. Cobre os joelhos com o vestido, vemos suas coxas já mais roliças. Depois ergue os olhos, dirige-se ao rabino. RAQUEL Eu vim porque preciso de um conselho... Estou tendo uns sonhos muito estranhos ultimamente. Sonho que cozinho um praro e como, cozinho outro prato e como... Toda noite, e cada vez um prato diferente. RABINO Cozinha, é? Mas... Que tipo de comida? RAQUEL Tudo que é tipo! A primeira vez foi feijoada. Depois teve spaghetti al sugo, pizza, frango ao molho pardo, quiche Loraine... RABINO (algo chocado) Mas peraí? E da nossa milenar culinária, nada? RAQUEL Claro que sim, também! Preparei ghefilte fish, conhece a receita? Peixe fresco moído, ovos, pão amolecido em água... RABINO ...cebola miúda frita em azeite, molho encorpado com cenoura, tomates... Ora, e como não vou conhecer! Um dos meus pratos preferidos, hummm... Delícia! E beigales de batata, não me diga que você também sonhou com beigales de batata? RAQUEL Sim, claro. A massa se faz com três ovos, farinha, fermento e água morna. Aí para o recheio pega dois quilos de batatas, quatro cebolas grandes. Pica tudo bem picado, condimenta com pimenta do reino... Muito fácil. Também fiz os beigales de queijo. RABINO (surpreso) Queijo? RAQUEL É. No recheio, em vez de batata, você pega duzentas gramas de queijo, mistura com... O Rabino pega um bloco de papel e uma caneta. RABINO Peraí, peraí. Esse eu quero anotar. Como é que é? Duzentas gramas de queijo... CENA 23 - INT. CASA DE SARA E RAQUEL - DIA Sara sentada na mesa da sala, cercada de envelopes abertos, todos contas impressas, pagamentos a ser feitos, etc. Ela tira todas as moedas de centavos de um pote, começa a contar. Suspira, olha para cima. Agora a foto de seu marido, Benjamim, está num pequeno móvel, algo espremida entre dois vasos de flores. Sara olha para a foto com pena. SARA Pois é, Benjamim, meu querido. Eu sei que você preferia ficar sobre a mesinha da cômoda. Mas levaram embora por causa do atraso no aluguel, por enquanto você tem que ficar aí. Eu sei que não tem muito espaço, mas fazer o quê? É. Até os móveis já começaram a levar... E o pior é que nem assim está dando. Olha só, o gelt que tem aqui, dá pra pagar só uma das contas qua a gente está devendo. Tem que escolher qual pagar, a luz ou telefone. Ela ergue as duas contas em direção à fotografia em preto e branco. SARA O que você acha, meu amor? Qual eu pago? A luz ou o telefone? Nesse momento, a luz apaga. O quarto fica na penumbra. Ela olha para cima, depois de novo para a fotografia. RAQUEL É, você tem razão... Luz. CENA 24 - INT. APTO DO RABINO - DIA Raquel e o rabino continuam a sua conversa. O Rabino circula pela sala, depois senta de novo. RABINO Olha... Não é por nada não, mas eu pessoalmente não vejo nada de mal nesses sonhos. Não vejo por que a preocupação. Se eu soubesse cozinhar assim, ainda que fosse em sonhos... RAQUEL Mas não é esse o problema. O que acontece é que com tantos sonhos com comida eu estou realmente engordando... Olha como eu estou ficando! E eu praticamente só como em sonhos, não entendo como isso pode acontecer... O rabino fica pensativo. Olha para a moça, depois sorri benevolamente. RABINO "Senhor do Universo: eu sou Teu e meus sonhos são Teus. Um sonho eu tive mas não sei o que seja." Ele sorri. Raquel o olha com atenção. RABINO Você não é única a ter problemas desse tipo. A preocupação com os sonhos e seu significado é muito antiga. De acordo com o Talmud, os sonhos podem ser mensagens divinas. Disse Deus: "Ainda que eu tenha escondido Minha face de Israel, eu me comunicarei através de sonhos." RAQUEL Mas então qual a mensagem de Deus? Que eu devo me transformar em uma gorda asquerosa? O rabino pigarreia constrangido. RABINO Bom... Nem sempre é fácil descobrir o que as mensagens divinas significam... Nem todos possuem o dom de José. Você conhece a história de José do Egito, não conhece? RAQUEL Lembro vagamente... Alguma coisa a ver com vacas, né? RABINO Exato. Certa noite, o Faraó do Egito sonhou com sete vacas gordas que pastavam à beira do rio. Chegaram sete outras vacas, magras e feias, que engoliram as sete primeiras, mas continuaram tão magras como antes. Como o Faraó não soubesse o que aquilo queria dizer, mandou chamar José. Ele explicou que as sete vacas gordas representavam sete anos de fartura que viriam, e as vacas magras que as engoliam, os sete anos de fome e escassez que se seguiriam. Uma fome tão terrível que faria o povo esquecer que alguma vez houve fartura. Raquel olha atenta para o Rabino, assentindo com a cabeça. RABINO José, então, aconselhou que se guardasse um quinto dos produtos da terra para sobreviver ao período de fome. A interpretação do sonho revelou-se correta, e o Faraó ficou tão satisfeito que transformou José no seu segundo em comando. O Rabino faz uma pausa de efeito. Olha para Raquel. RABINO Também o seu sonho pode ter um significado bom, que só será revelado no devido tempo. Eles ficam em silêncio alguns momentos. Se entreolham. De repente, Raquel deixa escapar um arroto. Leva a mão à boca, constrangida. RAQUEL Desculpa... O rabino sorri, faz um gesto para deixá-la a vontade. Raquel levanta, já mais calma. RAQUEL Bom... Obrigado pela ajuda. E pela história. Aperta a mão do rabino, dirige-se até a porta. Quando ela está do outro lado da porta, ele se dirige novamente a ela. RABINO Ah, e não esquente tanto a cabeça tentando achar significados. Nem todos os sonhos são mensagens. Alguns são... apenas sonhos. Certo? Shalom, minha filha. Vá em paz. Ele fecha a porta. Senta novamente sobre o sofá, fecha os olhos. Em poucos minutos está dormindo de novo, e sorrindo, feliz. Sonhando, de olhos fechados, move as mãos como se conduzisse um carro de corrida, imitando o som com um murmúrio. CENA 25 - INT. CASA DE RAQUEL - NOITE A mãe de Raquel está na mesa da cozinha, iluminada apenas pela luz de uma vela. Espalhadas pela mesa, seguem várias conta e papéis. Ela desesperada com a calculadora e a caneta. Som de porta batendo, ela nem se mexe. Vemos Raquel que entra. SARA Cento e vinte, cento e trinta, cento e cinquenta... Ela levanta o olhar, vê Raquel. SARA Ah, oi minha filha. Sua mãe continua aqui com os cálculos... Como foi com o rabino? RAQUEL Bem... Ele disse para eu não me preocupar. Disse que os sonhos podem ser mensagens divinas, e contou a história de José do Egito. SARA Aquela história das vacas? RAQUEL É, o sonho das vacas gordas e magras, os sete anos de fartura e os sete de fome... De repente o rosto de Sara se ilumina, como se estivesse tendo uma idéia brilhante. SARA Peraí... Vacas... Vacas... Ela ri e bate palmas, ergue as mãos para o céu, dramaticamente. A filha olha estranhada. SARA Vacas!! CENA 26 - EXT. RUA DO BOM FIM - DIA O Rabino caminha pelo Bom Fim. Passa por uma fila que dá a volta à quadra e chega até o armarinho, que não é mais armarinho. Agora está tudo renovado, bonito, e há um enorme letreiro: VACA'S - RESTAURANTE COZINHA KOSHER E INTERNACIONAL O Rabino sacode a cabeça, aprovando. CENA 27 - INT. RESTAURANTE "VACA'S" (COZINHA) - DIA Na cozinha, Raquel, agora gorda como uma pipa, gira o conteúdo de uma panela com a colher de pau. Experimenta um pouquinho. Sorri feliz, lambe os lábios. Apaga o fogão e serve alguns pratos. CENA 28 - INT. RESTAURANTE "VACA'S" (MESAS) - DIA Raquel serve os pratos aos dois jovens do começo. Sorri, depois sai. Um jovem cutuca o outro. JOVEM CABELUDO Por que não falou com ela? Tu tava a fim da Raquel, não tava não? JOVEM DE CABELO CURTO Eu não. Muito gorda... Enquanto isso, no caixa, Sara contabiliza os pedidos. Ao lado da caixa, um cartaz: INTERPRETA-SE SONHOS - TRATAR COM SARA O movimento no caixa sossega um pouco. Sara tira uma parte do dinheiro do caixa e se abaixa para pegar algo de baixo do balcão. Tira a caixinha de madeira, a abre: lá estão, novamente, as jóias. Há também, na mesma caixa, um envelope: ela coloca o dinheiro dentro deste. Ao colocá-lo novamente na caixinha, vemos que no envelope está escrito "Vacas Magras", e tem o desenho de uma vaca magérrima. Sara fecha a caixinha com um sorriso. CENA 29 - EXT. RUA DO BOM FIM - DIA Vemos num plano aberto o Restaurante Vaca's e a fila que praticamente dobra a esquina. O rabino entra no restaurante, ouvimos em som baixo a sua voz. RABINO (VS) Tem ghefilte fish? RAQUEL (VS) Tem, claro. RABINO (VS) Então me vê uma porção aí. Não, duas... A música toma o lugar das falas. Créditos finais. FIM ******************************************************************* (c) Tomás Creus, 2002 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br