O HOMEM QUE COPIAVA roteiro de Jorge Furtado versão junho/2001 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre ******************************************************************* CENA 1 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA ANDRÉ, 18 anos, magro, roupas simples, mochila nas costas, está na fila de um caixa de supermercado. Atrás dele, um HOMEM, 50 anos, com dois pacotes na mão. Atrás do homem, uma SENHORA, 40 anos, e uma CRIANÇA de 5 anos, com um carrinho cheio de compras. André tira do bolso sua a carteira de dinheiro enquanto a MOÇA do caixa, 18 anos, vai passando as compras de André: esponja para lavar pratos, detergente, leite, pão, margarina, fósforos. André confere o dinheiro na carteira. ANDRÉ Quanto deu até agora? MOÇA Oito e vinte e cinco. ANDRÉ Tudo bem. Ela passa a carne e registra. ANDRÉ Quanto? MOÇA Onze e trinta. ANDRÉ (surpreso) Quanto é a carne? MOÇA Três e cinco. ANDRÉ Não vai dar. Eu só tenho onze e cinqüenta. MOÇA Deu onze e trinta. ANDRÉ É que eu preciso levar o álcool. Quanto é o álcool? MOÇA Um e vinte. ANDRÉ Pois é, não vai dar. Desculpe, mas é que eu preciso levar o álcool. MOÇA Eu já registrei a carne. Ao fundo, um CASAL entra na fila. ANDRÉ Não dá para tirar o detergente? Quanto é o detergente? MOÇA Eu já registrei o detergente. ANDRÉ Eu sei, desculpe. Mas é que eu preciso levar o álcool. A mulher e o homem na fila estão visivelmente irritados com a demora dele. MOÇA O que eu faço? ANDRÉ É que... eu preciso levar o álcool mesmo, desculpe. A moça, mal contendo a irritação, toca uma campainha que acende uma luz sobre o caixa. O homem na fila troca de caixa, resmungando, irritado. O SUB-GERENTE, 30 anos, camisa branca, crachá e calça de tergal cinza, chega ao caixa. MOÇA Tenho que abrir. SUB-GERENTE O que foi? Uma VELHINHA chega e entra na fila. ANDRÉ Desculpe, mas eu preciso levar o álcool. Não vi que a carne era tão cara. SUB-GERENTE Quanto é que você tem? ANDRÉ Tenho onze e cinqüenta. O sub-gerente examina a conta. SUB-GERENTE A conta deu onze e trinta. ANDRÉ É que eu preciso levar o álcool, que ainda não está na conta. SUB-GERENTE Quanto é o álcool? MOÇA Um e vinte. O Sub-Gerente, visivelmente irritado, examina André enquanto tira uma chave do bolso mexe na registradora. MOÇA Você vai tirar o quê? ANDRÉ Quanto é o detergente? MOÇA Um e quinze. Se deixar a carne, dá. ANDRÉ E a esponja? MOÇA A esponja é quarenta. André pensa um pouco, faz contas. MOÇA E aí? ANDRÉ Tudo bem, deixa a carne. A Moça separa a carne, registra o álcool. MOÇA Nove e quarenta e cinco. André paga. A Moça dá o troco em moedas. André pega o troco e sai, sob o olhar irritado do gerente e dos outros clientes. CENA 2 - TERRENO BALDIO - EXTERIOR/DIA André sai do supermercado, caminha pela calçada até um terreno baldio ao lado do supermercado. Ele olha para os lados, abre a mochila, revelando uma grande quantidade de dinheiro, notas de cem e cinqüenta. Despeja o dinheiro no chão. Derrama álcool sobre o dinheiro e acende um fósforo. O dinheiro queima. Créditos Iniciais CENA 3 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Uma pequena papelaria e livraria de subúrbio. Estantes com revistas e balcões com material escolar. No fundo da loja, André opera uma máquina fotocopiadora. ANDRÉ (VS) O meu nome é André. Era o nome do meu pai. Foi ele quem escolheu o meu. Minha mãe me chamava de Zinho. Ele não gostava, só me chamava de André. Depois ele desistiu, começou a me chamar de Zinho também. CENA 4 - SEQ. DE MONTAGEM: RUAS DO QUARTO DISTRITO + TABLE-TOP - EXTERIOR-INTERIOR/DIA Imagens do Quarto Distrito, um antigo bairro operário de Porto Alegre: casas de classe média-baixa, fábricas fechadas, depósitos. ANDRÉ (VS) Eu moro em Porto Alegre, uma cidade no sul do Brasil. Moro no Quarto Distrito, na Presidente Roosevelt, que é essa rua. Gravuras do Presidente Roosevelt e de sua mulher, num trabalho escolar, na fotocopiadora. ANDRÉ (VS) Roosevelt foi presidente dos Estados Unidos, era casado com uma gordinha que era prima dele. Ele ficou conhecido por causa da Doutrina Roosevelt, que não deu tempo de eu ler o que era. Desenho de André: uma velha parecida com Eleanor Roosevelt. ANDRÉ (VS) Nem sei direito o que é doutrina, acho que é um monte de regras. Parece nome de uma velha. Vó Doutrina. A fachada do prédio do Clube Gondoleiros, ANDRÉ (VS) Da janela do meu quarto eu vejo um clube, o Gondoleiros... Uma festa no salão do clube, casais dançando. ANDRÉ (VS) ...onde tem umas festas. No teto do prédio tem uma gôndola. Não sei se em Porto Alegre já teve alguma gôndola. Na caixinha de música da mãe de André uma pequena gôndola gira. ANDRÉ (VS) Minha mãe tem uma caixinha de música com uma gôndola que rodeia. CENA 5 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André trabalhando, tirando cópias na fotocopiadora. Detalhes da máquina fazendo cópias. ANDRÉ (VS) Eu trabalho nesta papelaria, sou operador de fotocopiadora. Aqui você liga e desliga a máquina. Está vendo? Liga. Desliga. Liga. Desliga. Liga, desliga. Não é bom ficar fazendo isto muitas vezes, pode queimar. Liga. Desliga. SEU GOMIDE, 50 anos, está sentado próximo a entrada da loja, no caixa. Interrompe a leitura de uma revista para dar uma olhada no espelho côncavo pelo qual controla a loja. ANDRÉ (VS) É melhor parar, o Bolha acaba me vendo pelo espelho bolha dele. Ele diz que o espelho é para a segurança da loja. O Bolha pensa que eu sou otário. Considerando o que ele me paga, ele não deixa de ter uma certa razão. O nome do bolha é seu Gomide. DONA MARIA, 40 anos, entra na loja acompanhada de GUIGO, um menino de dois anos. ANDRÉ (VS) A dona bolha se chama Maria. Só aparece aqui na loja para ver revista e pegar dinheiro. O nome do bolhinha é Rodrigo. Ou Diogo. Eles chamam o bolhinha de Guigo, acho que é Rodrigo. André pega folhas de ofício num pequeno armário. Dentro do armário, uma lâmpada acesa. Guigo, atraído pela luz, tenta abrir o armário dos papéis. ANDRÉ (VS) Ele fica abrindo o armário do papel, por causa da luz. Isso é outra coisa que você tem saber. O papel da máquina deve ser bem seco e por isso fica guardado num armário com uma luz dentro que o bolhinha adora ficar abrindo. Não mexe aí, bolhinha. André segura o braço de Guigo. ANDRÉ Não pode... MARIA Deixa ele, André. ANDRÉ É que depois o papel gruda e o seu Gomide reclama de mim, Dona Maria. SEU GOMIDE Tira esse guri daí, Maria. Maria pega Guigo pela mão e o afasta do armário. MARIA Vem Guigo, vem, não mexe. Eu já vou. Maria e Guigo saem da loja. ANDRÉ (VS) Isso, dona Bolha, vá em frente. Adeus, bolhinha. André prepara as folhas para a máquina. Põe o papel na máquina. ANDRÉ (VS) Quando o papel acaba, você abaixa este troço, tira esta gaveta e põe o papel. Primeiro você solta bem o papel, para não grudar. É só segurar, dobrar, soltar. Segurar, dobrar, soltar. Mais uma. Aí você arruma o papel e põe na gaveta. Põe a gaveta na máquina e levanta o troço. Aqui você controla a cópia, mais escura ou mais clara. CENA 6 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Seu Gomide orienta André a operar a máquina. SEU GOMIDE É melhor deixar sempre no meio. CENA 7 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André opera a máquina: aperta botões, prepara a cópia de uma gravura. Põe o original sobre o vidro da máquina. ANDRÉ (VS) Certo bolha. Sempre no meio. Aqui você diz para ela quantas cópias você quer. Aí você levanta esta tampa e põe o papel que você quer copiar, o original, aqui. Você tem que pôr no limite desta marca no vidro. Aí você fecha a tampa, cuidando para não tirar o papel do lugar. Apertando este botão aqui você está dizendo: vá em frente, minha filha, está tudo certo. E ela vai. A máquina faz a cópia da gravura. A luz da máquina varre o rosto de André. ANDRÉ (VS) Essa luz é a melhor parte. A cópia sai na gaveta da máquina. ANDRÉ (VS) Pronto. Você já sabe tudo que é preciso saber para fazer o que eu faço. Operador de fotocopiadora. Grande merda. É o que eu digo para as gurias se elas me perguntam. Só se elas me perguntam. CENA 8 - PARQUE - EXTERIOR/DIA André e uma Guria, num parque, sentados. GURIA O que é que você faz? ANDRÉ Eu? Eu sou operador de fotocopiadora. GURIA Que que é isso? ANDRÉ Eu opero uma máquina de fotocópias. GURIA Tipo assim, xerox? ANDRÉ É. Só que é de outra marca. GURIA Você trabalha no xerox de uma firma? ANDRÉ Não, não. Numa loja. GURIA Ah. Legal. CENA 9 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André opera a máquina. ANDRÉ (VS) Muito legal. Liga, desliga, o papel com a luz, a gaveta, o botão sempre no meio, quantas cópias e vai minha filha. Quantos neurônios um sujeito precisa para fazer essa merda? CENA 10 - PARQUE - EXTERIOR/DIA André e a Guria continuam sentados. ANDRÉ É uma merda. GURIA Bom... ANDRÉ É só pra ganhar uma grana. Eu trabalho com ilustrações, mandei um material para uma revista. ANDRÉ (VS) "Material". Acho que ela não caiu nessa. Gurias são espertas. CENA 11 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André ocupa uma pequena escrivaninha, coberta de papéis soltos, desenhos e canetinhas. Ele desenha gurias, gurias de todos os tipos, magras, gordas, altas, bonitas e feias. ANDRÉ (VS) Quando eu não estou trabalhando eu fico em casa desenhando. É divertido porque não serve para nada, só para dizer para as gurias. Não tem dado muito certo. Gurias reconhecem um operador de fotocopiadora em poucos segundos. Desenhos de gurias na praia, gurias num carro, gurias cheias de jóias. ANDRÉ (VS) Gurias não sonham em passar a vida ao lado de um operador de fotocopiadora, viajar pelo mundo com um operador de fotocopiadora, ter filhos de um operador de fotocopiadora. Pelo menos eu, até agora, não encontrei nenhuma guria que sonhasse isso. CENA 12 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Através do binóculo, a sala do apartamento de Sílvia. ANTUNES, 60 anos, está no sofá, apalermado frente à televisão. Na televisão, um programa de auditório. ANDRÉ (VS) Ela ainda não chegou. Ela mora com o pai. Acho que é pai, só pode ser. Ela chega em casa onze meia. Um dia ela atrasou, fiquei preocupado, ela chegou quase meia noite. Deve ter ido comer alguma coisa depois do cursinho. André observa o apartamento: mesa para quatro pessoas, sofá, televisão ligada, na parede da sala, um quadro com uma paisagem dos Alpes Suíços e uma Santa Ceia. ANDRÉ (VS) Pelos móveis, eles não devem ter grana, são tão duros quanto eu. André observa Antunes. ANDRÉ (VS) Só que o pai dela trabalha, tem um uniforme, uma camisa que tem aquelas coisinhas no ombro, presas por um botão, parece um policial civil, ou agente sanitário, estes que matam mosquito. Nunca vi ele trazendo para casa aquela máquina de matar mosquito, mas acho que eles não levam mesmo para casa, aquilo é veneno. Talvez ele seja agente sanitário. SILVIA, 20 anos, entra em casa. Vai até a cozinha, pega uma fruta na geladeira e cruza a sala, passando por Antunes sem falar com ele. Ele também não tira os olhos da televisão. ANDRÉ (VS) Ela chegou. Linda. Ela vai direto para o quarto, acho que janta na rua. As vezes ela pega alguma coisa na cozinha. Só as vezes, quase nunca. Ela chega sempre depois das onze e vai direto para o quarto. CENA 13 - APARTAMENTO DE SÍLVIA/BINÓCULO - INTERIOR/NOITE A luz do quarto de Sílvia se acende. Há apenas uma fresta no vidro da janela, o resto está coberto de papel decorado. ANDRÉ (VS) O vidro é quase todo coberto com um papel. No vidro têm também três adesivos, antigos, por trás do papel, e um papel colado, na fresta. Sílvia se aproxima do papel colado no vidro e o examina. ANDRÉ (VS) O papel colado tem três linhas de cola, pode ser um cartão postal, pelo tamanho. As vezes ela pára e fica olhando para o papel. Deve ser uma foto. Ela tinha uma veneziana, mas apodreceu e eles tiraram, nunca mais colocaram. Deve ser caro, uma veneziana. Sílvia desaparece no quarto outra vez. Sua mão reaparece abrindo a porta do armário. ANDRÉ (VS) Pela fresta dá para ver só um pedaço do armário, mas as vezes ela deixa a porta do armário aberta e na porta tem um espelho. Dependendo do jeito que a porta fica aberta dá para ver um pedaço diferente do quarto, pelo espelho. CENA 14 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE (TRUCAGEM) Os vários fragmentos do quarto de Sílvia montam um painel - como um código de barras de imagens. ANDRÉ (VS) A cama tem um edredon floreado. Tem um abajur numa mesinha ao lado da cama. Uma televisão no quarto, só dá para ver a luz, ela fica vendo filme até tarde. Uma escova, cabo de madeira redondo. Uma latinha que acho que era de biscoitos, com umas flores. A luz se apaga. ANDRÉ (VS) Pronto. Acabou. CENA 15 - SEQ. DE MONTAGEM: QUARTO DE ANDRÉ + RUAS + TABLE-TOP - INTERIOR-EXTERIOR/NOITE-DIA André em seu quarto, fazendo contas. Detalhes de suas contas no papel, detalhes do contracheque. ANDRÉ (VS) Eu ganho dois salários mínimos, são trezentos e dois reais por mês, duzentos e noventa com os descontos. André caminhando na calçada. ANDRÉ (VS) Não gasto em transporte, vou a pé para a loja e não saio nunca. Mãe de André abrindo a geladeira. Detalhe do carnê da imobiliária. ANDRÉ (VS) Minha mãe paga o supermercado com a pensão dela, eu pago metade do aluguel... Planta baixa do apartamento de André. Detalhe do quarto de empregada. ANDRÉ (VS) ... dois quartos com dependência de empregada, se a gente tivesse empregada e ela conseguisse dormir de pé. Sala do apartamento, a janela aberta. ANDRÉ (VS) Sala, vista para o prédio em frente, tudo isso por apenas... Detalhe dos recibos. ANDRÉ (VS) ... trezentos e trinta reais, trezentos e oitenta com o condomínio. Detalhes das contas de André. ANDRÉ (VS) Sobram cem. Televisão na vitrine, com anúncio de preço. televisão na sala de André. ANDRÉ (VS) Pago metade da prestação da tv, quatorze polegadas, controle remoto, sessenta e quatro reais, trinta e dois a minha parte, sobram sessenta e oito. André tomando uma cerveja num bar. ANDRÉ (VS) Gasto com bobagens: uma revista, uma cerveja... André desenha uma guria. ANDRÉ (VS) ...uma caneta. André com o binóculo, na janela. ANDRÉ (VS) Para comprar o meu binóculo em precisei economizar um ano: pentax, doze por cinqüenta cpf. Não sei o que significa este cpf, sei que não tem nada a ver com aquele cpf da carteirinha, certificado de pessoa física. CENA 16 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André lê um gibi. Detalhes do gibi. ANDRÉ (VS) Pelo menos sobra tempo para ler na loja. André faz cópias. ANDRÉ (VS) A maior parte do tempo eu fico lendo as coisas que as pessoas trazem para copiar. Enquanto eu estou tirando as cópias, só consigo ler algumas linhas de cada folha. Já é alguma coisa. CENA 17 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Ilustrações de um trabalho sobre Shakespeare e Cervantes. ANDRÉ (VS) Shakespeare e Cervantes morreram no mesmo dia: vinte e três de abril de mil seiscentos e dezesseis. Eles nem se conheceram e morreram bem pobres. Cervantes foi enterrado numa vala comum, porque eu não sei. Nem sei bem o que significa vala comum. Que diferença faz? Nunca li nada que eles escreveram. Já vi uns filmes. CENA 18 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA O soneto de Shakespeare por escrito, em detalhe. ANDRÉ (VS) Uma outra folha. Tinha um poema do Shakespeare. "Quando a hora dobra em triste e tardo toque e em noite horrenda vejo escoar-se o dia, quando vejo esvair-se a violeta, ou que a prata a preta têmpora assedia; quando vejo sem folha o tronco antigo que ao rebanho estendia a sombra franca, e em feixe atado agora o verde trigo, seguir no carro, a barba hirsuta e branca; sobre a tua beleza então questiono, que há de sofrer do tempo a dura prova, pois as graças do mundo em abandono morrem ao ver nascer a graça nova. Contra a foice do tempo é vão combate..." Cai outra folha sobre o poema. CENA 19 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Uma Mulher está no balcão. André fecha o trabalho e entrega a ela. ANDRÉ (VS) A guria chegou para buscar o trabalho. Não consegui ler a última linha. E não sei o que é hirsuta. MARINÊS, 20 e poucos anos, muito bonita, roupas justas, entra na loja, Entrega recibos de pagamento ao Seu Gomide e vai para trás do balcão do material escolar. ANDRÉ (VS) Eu não falei da Marinês. Ela tinha ido ao centro, pagar uma conta. A Marinês também trabalha na loja, nas revistas e nas coisas do balcão. Lápis, borrachas, cola. Gostosa. O pior é que ela sabe que é gostosa, fica usando aquela calça bem justa. Ela me disse uma vez que só consegue vestir a calça deitada, com as pernas para cima. CENA 20 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Marinês se observa no reflexo do balcão. MARINÊS Não dá nem para usar calcinha, senão fica marca. CENA 21 - QUARTO DE MARINÊS - INTERIOR/DIA Marinês faz acrobacias sobre a cama para entrar numa calça muito justa. ANDRÉ (VS) Fiquei imaginando aquela cena, ela deitada, de pernas para cima, sem calcinha, tentando entrar naquela calça justa. CENA 22 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André volta a fazer cópias. Marinês vai atender uma mulher que entrou na loja, mas ela só dá uma olhada nas revistas e vai embora. ANDRÉ (VS) É melhor nem imaginar muito, não é para a minha bolinha. CENA 23 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Uma foto do Alemão, na mão de Marinês. ANDRÉ (VS) Ela namorou um alemão e o cara escreveu para ela, duas vezes. O cara é alemão mas mora em Den Haagen, na Holanda. CENA 24 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Marinês e André conversam enquanto folheiam revistas: ele, uma revista de futebol; ela, uma revista de colunismo social. MARINÊS Den Haagen quer dizer "A Haia". ANDRÉ A-aia? MARINÊS Haia. O nome da cidade, a capital da Holanda, onde ele mora. É como se fosse "a Brasilia", entendeu? A Haia. Den Hageen. ANDRÉ Ah. ANDRÉ (VS) Eu disse "ah" para não estender aquela conversa. MARINÊS Pai pobre é destino, marido pobre é burrice. Pobreza é isso: destino ou burrice. ANDRÉ (VS) Além de gostosa, filósofa. ANDRÉ Pois é. ANDRÉ (VS) Destino ou burrice. No meu caso, um pouco dos dois. CENA 25 - SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André-Criança está sentado em frente a uma televisão. ANDRÉ (VS) Meu pai foi embora quando eu tinha quatro anos. Essa é a parte do destino. Eu estava vendo um programa de televisão. CENA 26 - SEQ. DE MONTAGEM / ARQUIVO Imagens de arquivo da família Trapo. Cópia - na máquina, da capa do livro "A Vida, Modo de Usar": ilustração de um prédio sem uma das paredes, revelando o interior dos apartamentos. ANDRÉ (VS) O cenário era uma casa cortada ao meio, sem as paredes para a gente poder ver dentro. Vi a capa de um livro que era assim. CENA 27 - SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA O Pai de André, na porta do apartamento. PAI Guarda a correspondência para mim? ANDRÉ A-hã. André-Criança guarda correspondências em caixas. ANDRÉ (VS) Ele não recebia muita carta, era mais cobrança e anúncio de um monte de coisas. Eu guardava tudo numa caixa de camisa. Depois a caixa ficou pequena e eu passei tudo para uma caixa de sapato. Depois para três caixas, dividindo as cobranças, os anúncios e as cartas. CENA 28 - ANIMAÇÃO Desenho animado. O pátio de uma escola, crianças brincam. André e Mairoldi estão sentados numa escada. André toma um refrigerante. ANDRÉ (VS) No outro dia, na escola, eu disse para o Mairoldi, um gordinho que tinha uma mancha vermelha na cara, que eu achava que o meu pai não ia mais voltar. ANDRÉ Eu acho que o meu pai não vai mais voltar. MAIROLDI Ele viajou? Crianças passam jogando bola. ANDRÉ É. MAIROLDI Quando? ANDRÉ Faz sete anos. Mairoldi sorri. Ri. Gargalha. ANDRÉ Ele começou a rir, a rir muito. André quebra a garrafa de refrigerante na cara de Mairoldi. Sangue, professores em pânico, ambulância. ANDRÉ (VS) Então eu peguei uma garrafa e quebrei na cara dele. Ele ficou cego de um olho. Essa foi a parte da burrice. André se afasta da escola. ANDRÉ (VS) Foi meu último dia na escola. Eles me expulsaram, e eu também não queria mais ir. André faz uma fogueira na área de serviço do apartamento. ANDRÉ (VS) Eu queimei tudo no tanque, fez uma fumaceira, a vizinha de cima reclamou. André vê umas cartas parcialmente queimadas, dentro de uma caixa. ANDRÉ (VS) Guardei só umas que eram cartas mesmo. CENA 29 - QUARTO/SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André da uma espiada na sala. Sua mãe vê tv. Ele volta ao quarto, senta e começa a desenhar. ANDRÉ (VS) Enquanto minha mãe vê novela eu fico no quarto, lendo ou desenhando. CENA 30 - QUADRINHOS Quadrinhos de André com os personagens Zeca Olho e Vó Doutrina. Zeca Olho tem um olho só, bem grande. Vó Doutrina é uma colagem de desenho e foto, com a cara da Eleanor Roosevelt. ANDRÉ (VS) Zeca Olho mora com Vó Doutrina. VÓ DOUTRINA Você tem que prestar atenção na aula. Preste atenção no que os professores ensinam. Se você não entender, pergunte, pergunte! PROFESSOR Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil no dia 22 de abril de 1500. ZECA OLHO Por quê? Todo mundo morre de rir dele. GAROTA Dãããã... CENA 31 - QUARTO, SALA E COZINHA - INTERIOR/NOITE A Mãe se movimenta pela casa, arrastando o chinelo. Mexe na geladeira. ANDRÉ (VS) Minha mãe arrasta o chinelo do banheiro para a cozinha. Schlac, schlac, schlac, schlac. Abre o armário, pega um copo, põe o copo na pia, fecha o armário, abre a geladeira, pega a garrafa d'água, fecha a geladeira, enche o copo, não todo, a metade, abre a geladeira, guarda a garrafa, pega o copo, abre o filtro, enche o copo, fecha o filtro, arrasta o chinelo da cozinha para o quarto e diz; boa noite, meu filho, eu vou deitar. Televisão me dá um sono... A Mãe passa pela porta do quarto. André desenha. MÃE Boa noite, filho, eu vou me deitar. Televisão me dá um sono... ANDRÉ Boa noite, mãe. André vai até a cozinha. ANDRÉ (VS) Aí eu vou na cozinha, pego alguma coisa na geladeira e vou para a sala. Ligo a tevê e fico zapeando, vendo bem pouco de tudo. Quase só tem chatice. Vejo futebol, uns filmes, nada que eu me lembre depois. Lembro mais das cópias que eu leio. Tevê a gente esquece logo. André senta no sofá da sala e fica desenhando. ANDRÉ (VS) Tiro o som e fico desenhando, com aquela tevê ligada. É como se fosse uma lareira, ou um aquário iluminado. Só aquela luz e movimento. CENA 32 - SALA E QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André apaga a luz do quarto e senta em frente a janela, binóculos na mão. Apoia os cotovelos sobre o parapeito da janela. ANDRÉ (VS) Onze horas eu desligo, vou para o quarto e pego o binóculo. Uma coisa que eu descobri, olhando os vizinhos, é que gordos dormem tarde. Não sei porque, é só uma estatística. Entre os últimos caras a dormir, pelas duas da manhã, sempre tem pelo menos um gordo. CENA 33 - QUARTO DO GORDO/BINÓCULO - INTERIOR/NOITE Um Gordão, sem camisa, dançando na sala de um apartamento. ANDRÉ (VS) Tem um gordão no Montes Claros que não dorme antes da uma da manhã. Ele fica de pé, balançando de um lado para o outro, ouvindo música. Queria saber que música ele ouve. CENA 34 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE A fresta da janela do quarto de Sílvia se ilumina. ANDRÉ (VS) Outra coisa importante que eu descobri, além do fato dos gordos dormirem tarde, é que, se você quer ver alguma coisa de binóculo, não adianta ficar pulando de uma janela para a outra, atrás da ação. Você tem que se fixar numa janela e esperar. É como pescar. Sílvia passa rapidamente, de calcinha e sutiã, pela fresta da janela. ANDRÉ (VS) O máximo que eu já vi foi um pedaço da perna dela, de calcinha. Ela só passou. Sílvia passa outra vez, em câmera lenta. ANDRÉ (VS) Eu estava esperando há quase uma hora e ela passou. Acho que durou uns... dois segundos. Valeu a pena. CENA 35 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André tira cópias na máquina. ANDRÉ (VS) Quando a gente faz alguma coisa que não precisa pensar muito acaba usando o tempo para pensar outras coisas. Eu gosto de ficar pensando naqueles dois segundos, em câmera lenta. CENA 36 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Sílvia passa, em câmera lenta. CENA 37 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA André empacota compras num supermercado, o mesmo da cena 1. ANDRÉ (VS) Teve uma época, isso foi antes da loja, quando eu trabalhava de empacotador no supermercado, que é outra coisa que não precisa pensar muito, que eu só pensava em ser famoso. Normalmente eu pensava em ser famoso jogando futebol. Ficava imaginando mil gols maravilhosos que eu fazia, um mais decisivo que o outro. CENA 38 - ARQUIVO/DESENHOS André jogando futebol, torcida vibrando num estádio lotado. Desenhos dos esquemas dos gols. ANDRÉ (VS) Um gol em que eu driblava quatro caras e encobria o goleiro era um dos meus preferidos. Outro era um gol de cabeça, bem no finzinho do jogo. Também gostava muito de um sem-pulo, o cara cruzava e eu dava um chutão, de peito de pé, de primeira, bem no ângulo, sem chances para o goleiro. A bola batia no alto da rede. A rede estufava e a bola caía, lá no fundo. Aí eu corria, de braços abertos, quarenta e quatro do segundo tempo, a torcida delirando. Acho legal correr de braços abertos, dá um desequilíbrio, a gente quase cai, ao mesmo tempo que parece que você quer abraçar todo mundo. CENA 39 - ARQUIVO Imagens de arquivo: Pelé comemorando vários gols. Reinaldo comemorando um gol. Romário comemorando um gol. ANDRÉ (VS) Aquele pulinho com um soco no ar do Pelé eu nunca imaginei. Só dava certo com o Pelé, se outro cara vai fazer parece uma bichice. Eu gostava também do jeito que o Romário e o Reinaldo, um que jogava no Atlético, comemoravam os gols: parados, com o braço erguido, dentro da área do adversário. Legal. Uma mulher aparece no meio do campo de futebol. MULHER Você podia tirar o azeite de cima das frutas? CENA 40 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA André no supermercado, no caixa. A sua frente, a Mulher irritada. ANDRÉ Como? MULHER A lata de azeite. É pesada, você colocou em cima das frutas. Põe o azeite junto com as caixas. ANDRÉ Desculpe. MULHER Depois as frutas chegam todas amassadas. ANDRÉ Eu já pedi desculpas. MULHER Não precisa se irritar. Não é você que paga as frutas. ANDRÉ Eu já pedi desculpas, já troquei o saco do azeite, o que mais a senhora quer que eu faça? O Gerente se aproxima. GERENTE Qual é o problema? MULHER Este menino colocou o azeite em cima das minhas frutas, eu reclamei e ele ficou irritado. ANDRÉ Eu já pedi desculpas. GERENTE A senhora desculpe, ele é assim meio irritadinho. Não se preocupe, não vai acontecer outra vez. CENA 41 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André tira cópias. ANDRÉ (VS) Foi até melhor, eu tinha que pegar o ônibus para chegar no supermercado. Aqui eu ganho o mesmo e não preciso ficar o dia inteiro de pé, não preciso fazer força e ainda leio todas aquelas coisas. André folheia uma revista com fotos de gente famosa em suas casas maravilhosas. ANDRÉ (VS) Eu não penso em ser famoso jogando futebol. Só as vezes, quando eu estou caminhando pela rua. Agora eu penso muito mais em ganhar dinheiro, muito dinheiro. Também nem quero mais ser famoso. Não tem nada mais idiota do que estes ricos que ficam mostrando suas casas nas revistas para todo mundo ficar babando. Sempre que eu vejo estes ricos de revista eu penso que os ricos mesmo não iam se mostrar em revista nenhuma. Eu sonho em ser rico mesmo, não estes de revista. André larga a revista para atender um cliente. CENA 42 - SEQ. DE MONTAGEM: RUAS + TABLE-TOP André vê num trabalho de faculdade os desenhos de Keith Harring. Detalhes de seringas. Travestis fazendo ponto na Farrapos. ANDRÉ (VS) Eu li que um cara que desenhava uns bonecos vendeu os desenhos dele por um monte de dinheiro. Só que ele só ficou bem famoso depois de morto. André vê num trabalho de faculdade os desenhos de Van Gogh. ANDRÉ (VS) O cara se rala trabalhando a vida inteira para deixar a grana para sei lá quem, que nem filho o sujeito teve tempo para ter. O negócio é ficar rico logo, o mais rápido possível, e se mandar. O problema é: como? CENA 43 - SEQ. DE MONTAGEM Letras desenhadas por André: "Agarre se puder". Imagens de arquivo do programa de televisão. ANDRÉ (VS) Eu lembro de um programa na televisão. Chamava "Agarre se puder". Uma criança tinha um minuto para segurar todos os brinquedos que conseguisse. Uns deixavam a bicicleta para o final, outros pegavam logo no começo. André no programa "Agarre se puder". Ele segura uma pilha de brinquedos numa mão e, com a mão livre, ergue uma bicicleta do chão. ANDRÉ (VS) Eu deixaria para o final, depois de pegar o autorama e os outros jogos, empilhados em ordem crescente do tamanho das caixas. E quando faltasse dez segundos eu levantaria a bicicleta, com a mão livre. Isso, é claro, se eu tomasse Nescau, colecionasse os rótulos, mandasse pelo correio e minha carta fosse sorteada no meio daquela montanha. CENA 44 - ANIMAÇÃO Letras desenhadas por André: Ficar rico logo, o mais rápido possível, e se mandar. ANDRÉ (VS) Mandei uma história do Zeca Olho e da Vó Doutrina para uma revista. VÓ DOUTRINA Você não pode ficar fazendo só o que quer. Você tem que fazer uma coisa que lhe dê dinheiro! ZECA OLHO Por quê? VÓ DOUTRINA Porque sem dinheiro não dá para fazer nada do que você quer! André desenha. ANDRÉ (VS) Eles nunca responderam. Mandei mais uma vez, com uma carta dizendo para eles me responderem ou então me devolverem logo, que tinha outras revistas interessadas. Até agora, nada. CENA 45 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André desenha um carro. ANDRÉ (VS) Depois que eu acabar de pagar a televisão vão me sobrar cinqüenta e cinco reais por mês. Se eu não gastar nada, em um ano eu tenho seiscentos e sessenta. Em dez anos eu tenho seis mil e sessenta, já dá para comprar um carro usado, daqui a dez anos, se eu não gastar nada. André desenha uma arma. Colagem de fotos de armas. ANDRÉ (VS) Mais fácil é comprar uma arma. CENA 46 - CAIS DO PORTO - EXTERIOR/NOITE André e FEITOSA, 30 anos, caminham pelos túneis sob uma avenida na zona portuária. FEITOSA Comprando cinqüenta reais de maconha tu pode revender por cem, cento e cinqüenta, dependendo do estado do otário. Uma vez eu vendi dez reais de maconha, misturado com um monte de tempero verde seco por cem reais. E o cara que comprou ainda achou ótimo, pediu mais. Experimentei, para ver. Tinha gosto de pizza. Juntando uns quinhentos reais tu pode comprar uma roupa mais legal para vender cocaína. Pó dá muita grana, principalmente se você tem um acerto com a polícia. Tu tá marcando passo naquela loja. André e Feitosa se aproximam da escadaria da ponte do Gauíba. ANDRÉ (VS) Pode ser. Só que eu não estou nem um pouco a fim de ser preso, como ele já foi, várias vezes, nem estou a fim de usar cocaína. Ele cheira todo dia. O Feitosa diz que eu sou um cagalhão. FEITOSA Otário e cagalhão. CENA 47 - ESCADARIAS DA PONTE - EXTERIOR/NOITE André e Feitosa, de pé na escada da ponte do Guaíba, olham para um monte de areia, lá embaixo. Os outros dois caras estão lá embaixo, olhando para eles. ANDRÉ Daqui está bom. FEITOSA Vamos subir mais uma. ANDRÉ Não. Daqui está bom. FEITOSA Eu vou subir mais uma. Feitosa sobe mais um lance da escada. Olha André lá de cima. André pula. André cai sobre o monte de areia, enterrando-se até o joelho. Desce do monte e olha para cima. ANDRÉ É muito alto. FEITOSA Tu é muito cagalhão. Feitosa pula, gritando. FEITOSA Cagalhão! Feitosa cai sobre o monte de areia, se enterrando quase até a cintura. Desce da areia sem problemas. FEITOSA (olha para cima) Dá para pular lá da ponte. ANDRÉ Tá maluco? Um homem que trabalha nas dragas vê os dois. HOMEM DAS DRAGAS Ei! André sai, apressado, quase correndo. Feitosa se afasta mais devagar. FEITOSA Te arrumo uma arma por trezentos reais. Quinhentos, se você quiser uma pistola, (mostra a arma) mais fácil de atirar. CENA 48 - SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE - ARQUIVO André assiste televisão, um programa de colunismo social, sem som. O programa mostra uma festa. ANDRÉ (VS) Com uma arma eu podia assaltar alguém e conseguir uma grana. Só que isso não resolve o problema, a não ser que eu assaltasse alguém com muita grana, para poder assaltar uma vez só. Quando você começa a assaltar todo dia, é óbvio que uma hora dessas você dança. O negócio é fazer um grande assalto só e cair fora. O bom mesmo é roubar um banco. CENA 49 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA em paralelo com CENA 50 - FRENTE DO BANCO - EXTERIOR/DIA - BINÓCULO André no binóculo observa o banco. ANDRÉ (VS) Da minha janela, eu vejo os fundos de um banco. Antes de trabalhar na loja, depois que eu saí do supermercado, eu passava um tempão em casa. Sabia todos os horários do banco, a hora e os dias em que o carro forte chegava, os guardas, tudo. Os guardas descarregam malotes de dinheiro do carro forte. ANDRÉ (VS) É perigoso, mas um cara armado, esperando no estacionamento, podia fugir com um saco daqueles. Ou dois. Quanto será que tem de grana num saco daqueles? Talvez um dia eu descubra. CENA 51 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA em paralelo com CENA 52 - SALA DE SÍLVIA - INTERIOR/DIA - BINÓCULO André olha pelo binóculo a casa de Silvia. Silvia toma café da manhã. ANDRÉ (VS) Eu me desinteressei pelos horários do banco quando descobri a Sílvia. Teve um domingo que ela tomou café de pijama de flanela. Ela comia bolacha maria e tomava café com leite. Ela molhava a bolacha maria no café e comia. O pijama estava um pouco aberto. Me apaixonei. CENA 53 - FRENTE DO PRÉDIO DE ANDRÉ - EXTERIOR/DIA André sai do seu prédio. ANDRÉ (VS) Eu passei a olhar para a casa da Silvia todos os dias. Sabia a hora em que ela acordava e chegava. André atravessa a rua. ANDRÉ (VS) Um dia eu resolvi descobrir onde ela trabalhava. André caminha pelas calçadas lotadas de gente. ANDRÉ (VS) Existem pessoas que não saem na rua, nunca. Chama síndrome do pânico, acho que era um trabalho de faculdade. Elas ficam em casa porque não conseguem sair na rua. É ao contrário de "ficar rico logo e se mandar, o mais rápido possível". Um Velho muito velho, amparado num andador, arrasta os pés pela calçada. ANDRÉ (VS) O problema que você acaba ficando velho. Melhor enfrentar a rua. CENA 54 - FRENTE DO PRÉDIO DE ANDRÉ - EXTERIOR/DIA André se aproxima do prédio de Sílvia. ANDRÉ (VS) Eu esperei na frente do prédio dela, o nome do edifício é Santa Cecília. CENA 55 - SEQ. DE MONTAGEM: TABLE-TOP + RUAS - EXTERIOR- INTERIOR/DIA Ilustrações da vida de Santa Cecília, na máquina fotocopiadora. Fachada da fábrica de móveis Santa Cecília. Igreja. ANDRÉ (VS) Os romanos cozinharam Santa Cecília numa sala com vapor mas ela não morreu. Aí eles cortaram a cabeça dela, não conseguiram pensar em nada mais divertido. CENA 56 - FRENTE DO PRÉDIO DE SÍLVIA - EXTERIOR/DIA Sílvia sai do prédio, apressada. André a segue de longe. Ela corre para a parada de ônibus. Ele a segue. ANDRÉ (VS) Achei melhor ficar do outro lado da rua, perto de uma banca de revistas. Ela saiu na hora de sempre, comendo alguma coisa e correndo. Tive que correr também para pegar o mesmo ônibus. CENA 57 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA André procura um lugar para sentar no ônibus. ANDRÉ (VS) Ela passou a roleta. Eu sentei atrás, para não dar muita bandeira. Ela nem me viu, ficou lendo uma coisa, acho que de um cursinho. Sílvia pára de ler, André passa na roleta. Ela levanta e toca a campainha. Ele passa na frente dela. ANDRÉ (VS) A pessoa nunca vai achar que está sendo seguida se você estiver na frente dela, eu vi isso num filme. O cara do filme tinha uns óculos especiais, com uns espelhos. Eu tinha que ficar dando umas viradinhas de pescoço, mas tudo bem. CENA 58 - RUA - EXTERIOR/DIA André caminha pela calçada, olha vitrines. ANDRÉ (VS) Desci antes dela e fiquei me fazendo de perdido, com um papel na mão. Ela saiu caminhando, apressada. Eu fui atrás. Ela entrou numa loja que ainda não estava aberta ao público. Loja Silvia. Eu ainda não sabia que era uma coincidência. CENA 59 - BAR/CAFÉ - EXTERIOR/DIA André toma um café no balcão de um bar, em frente a Loja Sílvia. ANDRÉ (VS) Esperei num bar. Tomei só um cafezinho. A loja abriu, paguei o cafezinho, cinqüenta centavos. Entrei. CENA 60 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA André entra na loja. Procura por Sílvia. Uma MULHER se aproxima. MULHER Pois não? ANDRÉ Eu... estou só dando uma olhada. MULHER Se precisar de ajuda... ANDRÉ Obrigado. André caminha pela loja, examina um rolo de tecido. ANDRÉ (VS) Talvez ela trabalhe no estoque, escritório, estas coisas. Só se o dono da loja for muito idiota para deixar ela no estoque e essa outra atendendo. Essa outra nem é feia, mas usa muita maquiagem e perfume. Será que ela usa perfume? Sílvia se aproxima. SÍLVIA Já foi atendido? ANDRÉ Eu? Não, eu não. SÍLVIA Posso lhe ajudar? ANDRÉ É. Pode ser. SÍLVIA É um presente para a namorada? ANDRÉ Não, é para mim... André olha em torno. É uma loja de lingerie e artigos femininos. ANDRÉ ... nha mãe. SÍLVIA Uma camisola, um chambre. Aniversário? ANDRÉ É. Pode ser. SÍLVIA Esse chambre está com um preço ótimo, trinta e oito reais. Olha que bonito. É de chenile. ANDRÉ É, bonito. Como é o seu nome? SÍLVIA O meu? Silvia. ANDRÉ Silvia? SÍLVIA Não, eu não sou a dona da loja. Quando eu vim trabalhar aqui a loja já se chamava Silvia. ANDRÉ Ah. Coincidência. Olha, obrigado, mas eu vou dar mais uma volta, dependendo... eu volto aqui. Achei bonito este chambre. SÍLVIA Você não quer ver as camisolas? ANDRÉ Não, obrigado. Vou ver se eu não encontro assim, uma coisa para a casa. SÍLVIA Você pode me dar dois pré-datados pelo chambre. ANDRÉ É? Hmm, legal. De repente... eu volto. Obrigado, hein? SÍLVIA Obrigado a você. CENA 61 - SEQ. DE MONTAGEM: RUAS + TABLE-TOP + VITRINES - EXTERIOR-INTERIOR/DIA André caminha pela calçada. ANDRÉ (VS) Obrigado a você. Ela já disse aquilo dobrando o chambre, foi uma coisa assim, automática. Obrigado a você. Dezoito reais, ela deve ganhar dez por cento, um e oitenta. Cálculos num caderno, mão de André. ANDRÉ (VS) Digamos que ela venda dez coisas por dia, mais ou menos neste preço. Dezoito reais. Por mês, dezoito vezes trinta, se fosse vinte era seiscentos, menos dois vezes trinta, sessenta, quinhentos e quarenta, só em comissão. André caminha pela calçada. ANDRÉ (VS) Se bem que não é vezes trinta, que ela não trabalha domingo. Vamos deixar por quinhentos. Talvez ela não venda dez coisas por dia, e talvez as coisas que ela venda não sejam tão caras como este chambre. Roupas numa vitrine, etiquetas de preço. ANDRÉ (VS) Calcinha, camiseta, estas coisas, devem ser bem mais baratas. CENA 62 - BAR MAMA GRAVE - EXTERIOR/DIA André conversa com DIRCEU, 40 anos, no balcão de um bar. ANDRÉ Quanto custa uma calcinha? DIRCEU Uma calcinha? Sei lá. Por quê? ANDRÉ Só para saber. Obrigado pelos convites. CENA 63 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André tira cópias. Marinês, que lê revistas ao seu lado. ANDRÉ (VS) Digamos que ela ganha quatrocentos. Fora o salário, que deve ser no mínimo igual ao meu, duzentos e pouco. Seiscentos e pouco, por mês. Razoável. André troca o papel da máquina. ANDRÉ Eu recebi uns convites para inauguração de um bar. Você quer? MARINÊS Que bar é? ANDRÉ De um amigo meu. Chama Mama Grave. Tem direito a duas cervejas. MARINÊS Posso levar um amigo? ANDRÉ Pode. Te dou dois convites. MARINÊS Você vai com alguém? ANDRÉ Ainda não sei. CENA 64 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA André dá uma conferida no seu visual no reflexo de uma vitrine. ANDRÉ (VS) Não deu certo com a Marinês. Eu nem queria ir com ela mesmo. Entra na loja. ANDRÉ Sílvia? SÍLVIA Sim? ANDRÉ Lembra de mim? Eu estive aqui outro dia, vendo um presente para a minha mãe. SÍLVIA Ah. Lembrei. Encontrou? ANDRÉ Encontrei. Mas depois me arrependi, devia ter comprado aquele chambre que você me mostrou. Você já vendeu? SÍLVIA Não. Quer dar uma olhada? ANDRÉ Não, não, era só para saber se ainda tinha. SÍLVIA Tem. ANDRÉ Que bom. Caso eu resolva comprar, eu volto aqui. SÍLVIA Tá certo. ANDRÉ Você gosta de cerveja? SÍLVIA Eu? ANDRÉ É. SÍLVIA Não muito. Por quê? ANDRÉ Não. Por nada. Só para saber. SÍLVIA Ah. ANDRÉ Bom... Então eu vou indo. Meu horário de almoço. CENA 65 - RUA - EXTERIOR/DIA André caminha pela calçada. Inserts da cena anterior. ANDRÉ Você gosta de cerveja? SÍLVIA Cerveja? Sou louca por cerveja. CENA 66 - ESTÚDIO DE TV - INTERIOR/DIA Cena de um programa de televisão, em vídeo. ANDRÉ (VS) E o prêmio de idiota do mês vai para: André! André recebe uma torta na cara. CENA 67 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE André, Marinês e CARDOSO, 30 anos, se encontram no Mamaïs Grave. Algumas mesinhas circundam uma pista de dança. MARINÊS Esse é o André, da loja, que me arrumou o convite. Esse é o Cardoso. CARDOSO Prazer, André. Cardoso. ANDRÉ E aí? André, Marinês e Cardoso na mesa. MARINÊS Eu vou gastar a minha primeira cerveja. Com licença. Marinês sai. CARDOSO Interessante aqui. Eu não gosto é destas mesinhas de lata. ANDRÉ É. CARDOSO Uma vez eu larguei um copo de uísque numa mesa de lata, tava molhada, o copo começou a andar sozinho. Sabe quando fica aquela camadinha de água entre o vidro e o copo e o copo anda sozinho? As vezes acontece em casa, no inox da pia, até com o copo virado de boca para baixo. É um fenômeno físico, tem a ver com atrito. ANDRÉ Sei como é. CARDOSO Pois então. O meu copo de uísque começou a andar, eu achei que estava bêbado, não fiz nada, fiquei só olhando. Eu estava mesmo. ANDRÉ O quê? CARDOSO Bêbado. Mas nem tanto. O copo TAVA andando sozinho. Caiu no chão e quebrou. Coisa triste é ver uísque derramado no chão. ANDRÉ É. CARDOSO Não gosto destas mesinhas de lata. E esse nome? Mama Grave? ANDRÉ É. CARDOSO O pessoal tem mania de botar nome em inglês em bar. Você faz o quê? ANDRÉ Eu? Eu sou operador de fotocopiadora. Pausa. ANDRÉ Xerox. Trabalho no xerox. CARDOSO Da loja? ANDRÉ Da loja. CARDOSO Ah. Legal. ANDRÉ E você? CARDOSO Eu? Eu trabalho com antiguidades. Peças de mobiliário, porcelana, estas coisas. Pena que aqui não tenha uma mesinhas na calçada. ANDRÉ É que passa ônibus, muita fumaça. Você tem que trabalhar de gravata? Cardoso observa Marinês, no balcão. CARDOSO Não. E você e a Marinês... ANDRÉ Gostosa, não é? CARDOSO Nossa senhora! Vocês... ANDRÉ Não, não. A gente trabalha na loja, só isso. CARDOSO Sei. ANDRÉ E você... CARDOSO Acho que vou dar uma conferida. Mas não pode dar mole. Mulher gostosa assim tem sempre um monte de cara babando no pescoço delas. Elas enjoam. Gostosa assim tem que dar um gelo. Marinês chega. MARINÊS Trouxe três copos. Essa primeira é minha, a próxima é de vocês. ANDRÉ Eu já tomei uma, antes de vocês chegarem. Só tenho mais uma. MARINÊS Saúde. CARDOSO Saúde. ANDRÉ Saúde. CARDOSO Acabou a bateria do meu celular. Eu vou ali dar um telefonema para uma amiga minha, já volto. Cardoso sai. Marinês e André ficam alguns segundos sem assunto. ANDRÉ Legal, o Cardoso. MARINÊS Usa perfume. É mais baixo que eu. E aquela camisa dele... ANDRÉ É. Fora isso... Cardoso se aproxima. MARINÊS (para André) Vamos dançar? Marinês arrasta André para a pista. Marinês e André dançam. Cardoso fica olhando. André não dança muito bem mas se solta logo. Marinês dança muito bem, exagera nos trejeitos sensuais da dança, provocando Cardoso. Cardoso se aproxima dos dois, ensaiando uma dança. CARDOSO Querem cerveja? MARINÊS Sua vez de buscar. Cardoso mostra o ticket e sai. Marinês e André continuam dançando. Cardoso volta com as cervejas. André e Marinês pegam os copos. CARDOSO Saúde. Os três bebem. Marinês entrega o seu copo a Cardoso. MARINÊS Põe ali na mesa para mim? André também dá seu copo a Cardoso. Continuam dançando. Cardoso larga os copos na mesa, volta dançando. Começa uma música lenta. Marinês abraça André. Marinês fala ao ouvido de André. MARINÊS Ele se acha o máximo. ANDRÉ Quem? MARINÊS O Cardoso. O sapato dele já foi reformado. A sola é mais nova que o resto. Você viu? ANDRÉ Não reparei. MARINÊS Vamos sentar. Marinês e André vêm para a mesa. CARDOSO Deve estar choca. André e Marinês bebem. MARINÊS É mesmo. CARDOSO (para André) Sua vez. André sai. MARINÊS E sua amiga? CARDOSO Que amiga? MARINÊS Você não foi telefonar para uma amiga? CARDOSO Ah... Fui. Tudo bem. Ela estava meio doente. MARINÊS Ah. CARDOSO (olha em torno) Mais ou menos isso aqui. MARINÊS Achei legal. CARDOSO Não estou muito para dança hoje. MARINÊS Pois eu vou dançar até me acabar. CARDOSO Normalmente eu gosto de dançar. É que esse lugar aqui... Eu comprei uma coleção de cds, Rock Greatest Hits, muito boa. Chuck Berry, Little Richards. Mais tarde, se você quiser, a gente passa lá em casa e eu te mostro. MARINÊS Tem My Ding A Ling? CARDOSO O quê? MARINÊS Na coleção. Aquela música do Chuck Berry: (canta) My, Ding a Ling... CARDOSO Deve ter. São quatro cds. Uma caixinha, super legal. MARINÊS Eu vou lá com você. CARDOSO Vai? MARINÊS Vou. Mas eu quero deixar bem claro que eu não vou dar para você. CARDOSO Como é? MARINÊS Nós não vamos transar. CARDOSO Bom... Isso a gente nunca sabe. MARINÊS Você não entendeu, é isso que eu estou tentando dizer. EU sei. Em primeiro lugar, você fuma. Não é nem pela fumaça, nem pelo câncer, essas coisas. É que eu detesto gosto de cigarro na hora do beijo. CARDOSO Bom... Eu estou pensando em parar. MARINÊS Você é legal, mas é um duro. Como eu. Não tenho nada contra, mas acontece que... eu não vou sentir tesão. Não o suficiente para transar. CARDOSO Ah, entendi. Você só dá se o cara for rico. MARINÊS Não. Ainda não encontrei o cara. Eu sou virgem. CARDOSO Você é virgem? MARINÊS Sou. CARDOSO Tá bom. MARINÊS Não precisa acreditar. Muita gente não acredita. CARDOSO Você nunca... MARINÊS Não. Nunca. O resto todo eu já fiz. CARDOSO Sei. MARINÊS Só vou dar pro cara que mudar a minha vida. Ou um lindão maravilhoso, brilhante, engraçado, romântico, um que me faça esquecer de tudo e me transformar numa idiota. Como o personagem do George Clooney naquele filme com a Michelle Pfeifer, eu vi em vídeo, esqueci o nome. Desculpe a franqueza, mas não é o seu caso. CARDOSO Não, tudo bem.. MARINÊS Ou um cara que vai me dar a vida que eu quero. CARDOSO Mas você... não sente vontade? MARINÊS Claro que sim. CARDOSO E aí? MARINÊS Eu faço como você. Eu me masturbo. Quer dançar? Marinês levanta, arrastando Cardoso para a pista. André chega com três copos. CENA 68 - RUA - EXTERIOR/NOITE André caminha pela rua. ANDRÉ (VS) Tomei a minha cerveja e eles continuavam dançando. Tomei a segunda, já estava meio choca. Saí. Eram dez para as onze. CENA 69 - ÔNIBUS - EXTERIOR/NOITE André entra no ônibus, quase vazio. Sílvia está lá. ANDRÉ (VS) Entrei no ônibus, ela estava lá. O ônibus estava um pouco vazio, não dava para eu sentar do lado dela. Se eu sentasse atrás, ela não ia me ver. Passei, sentei um pouco na frente. Dei uma olhadinha rápida e voltei a olhar, como se tivesse levado alguns segundo para me dar conta que ela era ela. ANDRÉ Oi. Tá lembrando de mim? SÍLVIA Acho que sim. ANDRÉ Estive na sua loja hoje. SÍLVIA Ah... ANDRÉ Vou passar lá amanhã para comprar a camisola SÍLVIA Não era o chambre que você queria? ANDRÉ Chambre, isso. Se não der amanhã, até o final da semana. SÍLVIA Tudo bem. André senta. Vê Sílvia pelo reflexo do vidro dianteiro do ônibus. ANDRÉ (VS) Não sei pra que eu fui dizer uma merda daquelas. Acho que foi porque ela disse aquilo, "não era o chambre que você queria?" com um jeito de quem não estava acreditando muito quer eu fosse aparecer lá e pagar trinta e oito reais pelo chambre. Agora eu ia ter que conseguir trinta e oito reais e comprar o chambre ou esquecer para sempre que a Sílvia existe. Só que eu não tinha trinta e oito reais sobrando nem tinha onde conseguir, não até o final da semana. CENA 70 - SALA DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André, na frente da televisão sem som, desenha uma nota de cem dólares. ANDRÉ (VS) Pensei em pedir ao Bolha, mas ia ter que dizer pra que eu precisava do dinheiro. Se dissesse que era para comprar um chambre para a minha mãe, que estava de aniversário, ele talvez emprestasse. E se ele encontrasse a minha mãe por aí e cumprimentasse pelo aniversário. O que eu ia fazer com um chambre? A Mãe de André passa em direção ao quarto. ANDRÉ (VS) Minha mãe ia achar que eu estava louco, dando um chambre assim para ela, sem mais nem menos. Melhor era esconder o chambre até o aniversário dela mesmo. CENA 71 - SEQ. DE MONTAGEM: PAPELARIA - INTERIOR/DIA André faz cópias de um trabalho de química. Observa Marinês. ANDRÉ (VS) Pensei em pedir para a Marinês, mas era muito humilhante. Nunca mais ia poder me masturbar pensando nela colocando aquela calça justa, de pernas para cima, sem calcinha, sabendo que eu devia trinta e oito reais para ela. E ela também não devia ter trinta e oito reais sobrando assim, no meio do mês. CENA 72 - PONTE - EXTERIOR/DIA André, sentado na escada da ponte, come um cachorro quente. ANDRÉ (VS) Pensei em pedir para o Feitosa. Ele não ia me emprestar, mas talvez pudesse me dar alguma maconha para vender. Era só eu misturar com tempero verde e vender para algum otário pelo dobro do preço. Só que eu não conheço nenhum otário interessado em maconha com tempero verde. CENA 73 - SEQ. DE MONTAGEM: PAPELARIA - INTERIOR/DIA André faz cópias de um trabalho sobre os incas. ANDRÉ (VS) Foi ai que eu me lembrei do Cardoso. Ele tinha grana, poderia estar interessado em maconha ou poderia me emprestar trinta e oito reais até o final do mês. Foi o plano de conseguir trinta e oito reais com mais chance de dar certo que eu pude inventar numa tarde, enquanto tirava cópias de um trabalho sobre os incas, uma tribo que dominava o Peru. Ilustrações da cultura inca e do massacre dos incas pelos espanhóis. ANDRÉ (VS) Eram doze milhões de pessoas, que falavam vinte línguas diferentes. A palavra inca quer dizer "chefe". Os espanhóis é que chamavam os incas de incas, mas ninguém sabe como eles mesmos se chamavam ou se eles se chamavam de alguma coisa. Morreram todos. CENA 74 - RUA DO BRIC - EXTERIOR/DIA Um desenho Asteca, entre outras quinquilharias, na vitrine de uma loja. André confere o endereço. ANDRÉ (VS) A Marinês me deu o telefone da loja onde o Cardoso trabalhava, que eu disse que queria convidar para jogar futebol, só para ela não ficar perguntando. Um bric, cheio de velharias e móveis em mal estado. ANDRÉ (VS) Achei o endereço. Voltei e olhei bem, para ver se eu não tinha me enganado. Eu não tinha me enganado. Entrei. CENA 75 - BRIC - INTERIOR/DIA Cardoso está catalogando coisas da loja, velho liquidificadores, computadores velhos, panelas. ANDRÉ Cardoso? CARDOSO Sim? ANDRÉ Tá lembrando de mim? CARDOSO Não. ANDRÉ Eu sou amigo da Marinês. Ela nos apresentou, lá no Mama Grave. CARDOSO Ah, sim. Lembrei. Você trabalha na loja com ela, não é? ANDRÉ Trabalho. E você... CARDOSO Só um momento. Cardoso experimenta tampas numa panela. ANDRÉ Você me disse que trabalhava... como era mesmo? CARDOSO Ô... como é mesmo o seu nome? ANDRÉ André. CARDOSO André, você podia me dar um minutinho para eu terminar isso aqui? ANDRÉ Tudo bem. ANDRÉ (VS) Antiguidades. Não eram muito antigas. Ele deve ganhar o mesmo que eu, talvez um pouco mais. Cardoso encontra uma tampa que serve na panela. CARDOSO Você quer o quê? ANDRÉ Você disse que trabalhava com antiguidades. CARDOSO Tá vendo alguma coisa nova por aqui? ANDRÉ Não. CARDOSO Então? O que você quer? ANDRÉ Nada, estava só passando. Pode sair para tomar um café? CARDOSO Você paga? ANDRÉ Não dá. Cardoso tenta encaixar copos num velho liquidificador. CARDOSO Melhor não. Parei de fumar. ANDRÉ Ah, é? CARDOSO Parei. Não fumei um cigarro hoje. ANDRÉ Hoje? CARDOSO Parei ontem. Engraçado que eu não estou sentindo falta nenhuma. Mas é melhor não provocar. Cigarro é um vício desgraçado. Aquela coisa na mão, a fumaça, o cigarro na boca depois de um cafezinho. Também, que mal tem eu tomar um cafezinho? Não posso deixar de fazer tudo que eu gosto só porque parei de fumar. Eu também adoro fumar depois de trepar, por exemplo. E aí? Já imaginou? A guria querendo dar pra ti e tu, "não posso, desculpe, vai me dar vontade de fumar". Vamos tomar um cafezinho. Eu pago. O meu. CENA 76 - BAR - INTERIOR/DIA Cardoso e André no balcão, tomam café. ANDRÉ Achei que você tinha grana. CARDOSO Por quê? ANDRÉ É que do jeito que você falou, que trabalhava com antiguidades. CARDOSO E você quer que eu diga para uma mulher gostosa daquelas que eu trabalho numa loja que vende ferro de passar usado? E não foi você que veio com um papo de operador de sei-lá-o-quê? ANDRÉ Fotocopiadora. CARDOSO Ela me disse que você tira xerox. ANDRÉ É isso aí. Mas é melhor do que ficar... CARDOSO Já sei. Você está a fim dela. É isso? ANDRÉ Eu? Eu não. CARDOSO Então porque é que você tá botando areia? ANDRÉ Não estou botando areia nenhuma. Você é que quis dar uma, de terno e gravata. CARDOSO Tudo bem, tudo bem. Mas se você não tá a fim dela, podia me ajudar. Vai dizer que você nunca aplicou aquela de operador de fotocopiadora para cima de nenhuma garota. ANDRÉ Já tentei. CARDOSO Pois então. Se você quiser, te apresento uma garota, a gente pode até sair os quatro juntos. ANDRÉ Não, obrigado. Meu problema é outro. CARDOSO Qual? ANDRÉ Eu preciso de trinta e oito reais. CARDOSO É para isso que você veio aqui. Para me pedir dinheiro. ANDRÉ Achei que você tinha. CARDOSO Trinta e oito? Não sai. Um HOMEM acende um cigarro ao lado de Cardoso. Ele fica fissurado, tentando aspirar a fumaça. ANDRÉ Tudo bem. Eu dou um jeito. CARDOSO Um jeito de quê? ANDRÉ De conseguir o dinheiro. CARDOSO Para que você precisa? ANDRÉ Para comprar um chambre. CARDOSO Um chambre? ANDRÉ De chenile. CARDOSO Para quem? ANDRÉ Minha mãe. CARDOSO Aniversário? ANDRÉ Mais ou menos. CARDOSO Preciso parar de fumar. ANDRÉ E eu preciso de trinta e oito reais. CARDOSO Paga o meu café que eu resolvo o teu problema. CENA 77 - BRIC - INTERIOR/DIA Cardoso tira do armário um anjinho barroco e entrega para André. CARDOSO Dez reais, pode me pagar no fim do mês. ANDRÉ Não dá. Tem que ser o chambre. CARDOSO Mãe se amarra em anjo. Muito mais que chambre. Chambre é presente pra vó. ANDRÉ Eu preciso de trinta e oito reais. CARDOSO Leva o anjo. Se ela não gostar, me devolve. André observa o anjo. ANDRÉ Que anjo é este? CARDOSO Acho que é o anjo da guarda. Olha a espada. CENA 78 - ÔNIBUS - INTERIOR/DIA André examina o anjo. ANDRÉ (VS) Simpatizei com o anjo. Fiz um pedido. Trinta e oito reais. Eu preciso de trinta e oito reais. CENA 79 - FRENTE DA PAPELARIA - EXTERIOR/DIA Um caminhão descarrega uma grande caixa. ANDRÉ (VS) O milagre estava descendo do caminhão quando eu cheguei na loja. André pára na porta da loja. Marinês se aproxima. ANDRÉ O que é isso? MARINÊS Xerox colorido. Você vai ter que usar avental. Seu Gomide se aproxima. GOMIDE Para proteger sua roupa. Fica mais profissional. ANDRÉ Claro. CENA 80 - SEQ. DE MONTAGEM: PAPELARIA - INTERIOR/DIA André, de avental, experimenta a máquina colorida. Lê o manual. Faz as primeiras cópias coloridas. ANDRÉ (VS) Essa é um pouco mais complicada. Não é só deixar sempre no meio, é cheia de regulagens. O avental é horrível, quente, pinica no pescoço. Mas a máquina é ótima. Dá até para fazer dinheiro. Trinta e oito reais. Podia copiar uma nota de cinqüenta. Se eu tivesse uma nota de cinqüenta não precisaria copiar. Posso pedir emprestado. Não o dinheiro, só a nota. CENA 81 - SEQ. DE MONTAGEM: FRENTE DE UM COLÉGIO + TABLE-TOP + DESENHOS - EXTERIOR/DIA Desenho e colagem: Mairoldi segurando uma nota de dez, novinha. ANDRÉ (VS) Uma vez o Mairoldi me emprestou 10 cruzeiros, no colégio. André é arrastado pela mãe pela calçada. ANDRÉ (VS) Minha mãe me deu o dinheiro para pagar a dívida, duas notas de cinco. Notas de cinco e dez cruzeiros. ANDRÉ (VS) Acontece que ele tinha me emprestado uma nota de dez, e eu expliquei para a minha mãe que eu tinha que devolver uma de dez e não duas de cinco. André é arrastado pela mãe pela calçada. ANDRÉ (VS) Ela me disse que não fazia a menor diferença, mas para mim fazia toda a diferença. CENA 82 - ANIMAÇÃO Vó Doutrina tenta enfiar um pulôver em Zeca Olho. O pulôver tranca no meio do olho dele. ZECA OLHO (aos gritos) Ele me emprestou uma nota de dez, azul! Eu não vou devolver duas notas velhas e vermelhas! VÓ DOUTRINA Cinco mais cinco é dez! O que é que te ensinam em matemática? ZECA OLHO Eu não quero ir a aula! VÓ DOUTRINA Eu ligo para a Dona Hirsuta e explico. Aparece a Dona Hirsuta, uma velha horrível, peluda, com Mairoldi ao seu lado. ZECA OLHO Não! A Dona Hirsuta não! Não liga! Eu não quero ir a aula. André continua sendo arrastado. ANDRÉ (VS) Minha mãe foi comigo até o colégio. CENA 83 - ANIMAÇÃO Mairoldi, mancha na cara de bobo, pega o dinheiro. ANDRÉ (VS) Entregou as duas notas para o Mairoldi, na minha frente. VÓ DOUTRINA O dinheiro que ele estava te devendo. MAIROLDI Tudo bem. VÓ DOUTRINA Eu não disse? Mairoldi fica rindo, sem entender. ANDRÉ (VS) O Mairoldi é um idiota. CENA 84 - ANIMAÇÃO Seu Gomide se aproxima de André com uma nota de cinqüenta e uma conta de luz. GOMIDE Pague para mim, amanhã, antes de vir para a loja. ANDRÉ Claro. GOMIDE Vamos embora. São seis e cinco. Gomide fecha a máquina registradora, pega os jornais, uma revista e começa a fechar a loja. André fica olhando para a nota. ANDRÉ Seu Gomide? GOMIDE Sim. ANDRÉ Se o senhor não se importar que eu feche a loja, eu podia ficar até mais tarde hoje, para aprender a usar melhor a máquina, ler o manual. GOMIDE Chegue mais cedo amanhã e leia. ANDRÉ Tenho que passar no banco, para pagar sua conta. Gomide vê o anjo na mão de André. GOMIDE O que é isso? ANDRÉ Um anjo. Comprei para minha mãe. GOMIDE Aniversário? ANDRÉ Não, não. Achei que ela ia gostar. É um anjo da guarda. GOMIDE Parece o anjo Gabriel. Olha a espada. ANDRÉ É? Bom, ela vai gostar assim mesmo. GOMIDE Claro. Gomide entrega a chave para André. GOMIDE Pode fechar a loja. Não vá sair muito tarde. Depois das dez fica cheio de veado aqui na frente. Cuidado. ANDRÉ Claro, pode deixar. André fica com a chave, a nota de cinqüenta e o anjo na mão. Gomide sai. André fecha a porta da loja. CENA 85 - SEQ. DE MONTAGEM: PAPELARIA - INTERIOR/NOITE Loja. André faz várias tentativas de copiar a nota. Examina as cópias e guarda todas, mesmo as defeituosas, numa pasta de papelão. ANDRÉ (VS) A maior dificuldade de fazer uma nota de dinheiro aqui é que você tem que imprimir dos dois lados e é muito difícil ficar certinho, uma nota em cima da outra. Outro problema é o papel. O papel do dinheiro é mais grosso, mais áspero. Procurei um tipo de papel mais parecido, experimentei passar uma lixa antes de imprimir, levei umas cinco horas fazendo isso. Consegui uma nota bem parecida com a verdadeira. André observa a nota. ANDRÉ (VS) Claro que se você olhasse com atenção percebia logo que era uma cópia. CENA 86 - RUAS - EXTERIOR/NOITE André fecha a loja. ANDRÉ (VS) Eu não posso pagar a Sílvia com a nota falsa. Ela pode se dar mal. Ou eu posso ser descoberto na loja dela, ser preso, e aí acabou tudo. André caminha pela calçada. Passa por um travesti. CENA 87 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE em paralelo com CENA 88 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO Quarto de André. Ele observa Silvia pelo binóculo. Larga o binóculo e examina as duas notas de cinqüenta, a verdadeira e a falsa. ANDRÉ (VS) Tenho que trocar o dinheiro. O problema é onde trocar o dinheiro. CENA 89 - BANCO - INTERIOR/DIA André está na fila do caixa. Segura na mão direita a conta e a nota de cinqüenta. Troca a conta e mão e, na esquerda, tem outra nota de cinqüenta. Olha para a mulher do caixa. Ela conta dinheiro com habilidade, rapidamente. A fila anda. Ainda há uma Senhora e um Homem na frente de André. Ele segura outra vez a conta com a mão direita. Olha para as duas notas. Olha para a mulher do caixa. A Senhora paga uma conta e sai. O Homem está sendo atendido. André troca outra vez a conta de mão. Segura as duas notas na mão esquerda e a conta na direita. O Homem paga uma conta. A Mulher do Caixa examina com atenção uma nota de cem reais que o Homem lhe deu. André dá mais uma olhadinha para as suas duas notas. O Homem pega o recibo e sai. André se aproxima do caixa. André sorri para a mulher e lhe entrega a conta. A Mulher do Caixa examina a conta. André segura as duas notas com as duas mão. Fecha os olhos e "embaralha" as notas na mão. De olhos fechados, André põe uma das notas no bolso da jaqueta e outra sobre o balcão. A Mulher do Caixa pega a nota e, sem qualquer exame, a coloca no caixa. Dá o troco para André, seis reais. André agradece com um sorriso e se afasta lentamente do caixa. Guarda a conta num bolso e tira do outro, junto com o anjo, a nota de cinqüenta que ficou com ele. É a nota falsa. ANDRÉ (VS) Acho que foi o anjo que me fez entregar a nota verdadeira. Banco é o pior lugar para tentar trocar esse dinheiro. CENA 90 - RUAS - EXTERIOR/DIA André caminha pela calçada, observando as lojas. Dá uma olhada num boteco. Há um homem na caixa. ANDRÉ (VS) Posso tentar neste bar. Vou sacanear o cara, um duro como eu. E dinheiro grande eles não gostam. Se ele resolve examinar? CENA 91 - CASA LOTÉRICA - INTERIOR/DIA Casa lotérica. André vê uma fila de gente com dinheiro na mão. Uma placa indica: sena acumulada, último dia para apostar. Ele entra na loja, finge que examina os resultados e observa como os caras do caixa lidam com dinheiro. ANDRÉ (VS) O dinheiro vai para uma caixa única, mistura tudo rapidinho. Todo mundo com pressa. E nenhuma prova de que fui eu que entreguei aquela nota. Posso fazer um jogo de 9 reais e levar 41 de troco, dinheiro de verdade. André pega um volante da sena e faz o jogo rapidamente, escolhendo alguns números, entra na fila. Olha para a cara da menina no caixa, troca de fila. Há três pessoas na sua frente. ANDRÉ (VS) Tenho que perguntar alguma coisa para ela na hora de entregar o dinheiro. Alguma coisa para distrair a atenção dela, eu vi isto num filme. Já usei com porteiro e deu certo. Sabe em quanto está acumulado o prêmio? A que horas é o sorteio? André examina a nota. Confere o volante. Olha para a menina do caixa. Ela recolhe e guarda o dinheiro de um OFFICE-BOY sem prestar muita atenção no que faz, conversando com a menina da caixa ao lado. O Office-Boy sai. André chega ao balcão. Entrega o volante e a nota. Tira o anjo do bolso e põe sobre o balcão. ANDRÉ Você entende de anjo? MENINA Como é? ANDRÉ É que eu comprei este anjo para a minha mãe, de aniversário, e o cara da loja diz que é o anjo da guarda. Mas o meu chefe diz que é o anjo Gabriel, por causa da espada. A Menina examina o anjo. MENINA Não entendo muito de anjo não. Parece mais um arcanjo. MENINA DO OUTRO CAIXA Acho que é São Miguel. ANDRÉ Qual a diferença? MENINA DO OUTRO CAIXA Olha a armadura. ANDRÉ Não tinha reparado. MENINA Sua mãe vai gostar. ANDRÉ Obrigado. MENINA Seguinte. A Menina lhe entrega os 41 reais de troco. André sai carregando o anjo e os quarenta e um reais. Põe o dinheiro no bolso, fica com o anjo na mão, sai da loja. CENA 92 - RUAS - EXTERIOR/DIA André caminha pela calçada. Caminha cada vez mais rápido, quase corre. Pára na esquina. Vê que o ônibus está na parada e corre para alcançá-lo. Sobe no ônibus. ANDRÉ (VS) Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador... CENA 93 - RUAS - EXTERIOR/DIA André senta no fundo do ônibus. ANDRÉ (VS) ... se a ti me confiou, a piedade divina sempre me rege, me guarde, governe... CENA 94 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA Loja. André entra, vê Sílvia atrás do balcão. ANDRÉ (VS) ...ilumine. Amém. ANDRÉ Oi. SÍLVIA Oi. ANDRÉ Vim buscar o chambre. SÍLVIA Ah, claro. Para sua mãe. Sílvia pega o chambre, abre sobre o balcão. SÍLVIA Tem azul e bege. ANDRÉ Qual você acha melhor? SÍLVIA Gosto do azul. ANDRÉ Eu levo o azul então. SÍLVIA Quer ver mais alguma coisa? ANDRÉ Não, hoje não. É só o chambre mesmo. SÍLVIA Vai pagar à vista? ANDRÉ Quanto é mesmo? SÍLVIA Trinta e oito. ANDRÉ À vista. André põe os quarenta reais sobre o balcão. SÍLVIA Você pode pagar no caixa. Retira ao lado. ANDRÉ Claro. André recolhe o dinheiro. SÍLVIA Vou fazer para presente. André vai até o caixa. Paga enquanto observa Sílvia escolher o papel e fazer o pacote. André entrega a nota para Sílvia e ela lhe entrega o pacote. ANDRÉ Bonito. SÍLVIA Se precisar trocar, é só trazer a notinha. ANDRÉ Obrigado. SÍLVIA Imagina. Obrigado a você. CENA 95 - RUAS - EXTERIOR/DIA André caminha pela calçada. ANDRÉ (VS) Imagina. Obrigado a você. Este foi totalmente diferente, ela disse obrigado a você me olhando nos olhos. Ela me olhou e me chamou de você. Mas o melhor foi aquele imagina. CENA 96 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE em paralelo com CENA 97 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO André esconde o pacote com o chambre no fundo do seu armário. Pega o binóculo e olha para o apartamento de Sílvia. Ela está chegando em casa. CENA 98 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Sílvia olha diretamente para a câmera e diz. SÍLVIA Imagina. CENA 99 - QUADRINHOS Uma história em quadrinhos. O título é: IMAGINA ANDRÉ (VS) Imagina um monte de dinheiro. Um cara deitado num monte de dinheiro. ANDRÉ (VS) Imagina um monte de coisas que dá para comprar com esse dinheiro. Um cara deitado num monte de dinheiro cercado de livros, discos, gibis, eletrodomésticos. ANDRÉ (VS) Imagina como as pessoas vão tratar você depois que comprar esse monte de coisas. Um cara deitado num monte de dinheiro cercado de livros, discos, gibis, eletrodomésticos, cercado de gente babando em volta dele, especialmente mulheres bonitas. CENA 100 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André desenhando o quadrinho. ANDRÉ (VS) E agora imagina que você é um otário imaginando um monte de coisas. CENA 101 - RUA - EXTERIOR/DIA Frente da loja Sílvia. André, com um saquinho de papel na mão, espera do outro lado da rua, finge olhar uma vitrine. É uma loja de brinquedos. André se distrai, viaja olhando os brinquedos. A vitrine está claramente dividida em dois. De um lado, os brinquedos de meninos. Carrinhos, monstros, armas, brinquedos de aventura. Do outro, brinquedos de menina. Casinhas, panelinhas, eletrodomésticos, bonecas. Refletida na vitrine, no meio das bonecas, Sílvia sai da loja. André se vira e a segue. Sílvia entra num restaurante. CENA 102 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA André no restaurante, com um prato já servido na mão, procura lugar para sentar. Sílvia está no balcão. André senta na outra ponta. Silvia está comendo e lendo um livro. Um cara senta lado de André, encobrindo a visão de Sílvia. Ele muda de lugar. Uma mulher senta, ele troca de lugar de novo. Há apenas um banco vago entre os dois, mas ela está bastante concentrada no livro. Um sujeito senta entre os dois. ANDRÉ Me passa o sal? Sílvia olha para ele. ANDRÉ Oi. SÍLVIA Oi. (passa o sal) ANDRÉ Obrigado. Comem. ANDRÉ Você almoça sempre por aqui? SÍLVIA Seguido. ANDRÉ É bom aqui. Barato. SÍLVIA E limpo. ANDRÉ É. Comia num lugar aqui perto que era meio sujo. SÍLVIA Não era um por peso? ANDRÉ Perto do ponto de táxi? SÍLVIA Ai! Aquilo é um nojo! ANDRÉ E mais caro que aqui. SÍLVIA Você acredita que lá uma vez eu fui me servir de feijão e tinha uma bruxa boiando? ANDRÉ Uma bruxa. SÍLVIA Bruxinha. Sabe estas mariposas? ANDRÉ Sei. SÍLVIA Eu reclamei com o cara ele me disse: "Caiu, o que é que você quer que eu faça?". E ficou parado! Eu disse: "Quero que o senhor troque o feijão". Sabe o que ele fez? Pegou a concha, tirou a bruxa do feijão, jogou na pia e botou a concha no feijão de novo. Nem lavou a concha! Dava para ver aquele pozinho que elas soltam boiando no feijão, junto com a linguiça. Você acredita? ANDRÉ Acredito. SÍLVIA Imagina se eu como uma coisa daquelas? Pode ser até venenoso. ANDRÉ Acho que essas não são. Essas que vivem na cidade. SÍLVIA É, acho que não. Mas no feijão... ANDRÉ É, no feijão não dá. SÍLVIA Viva! Imagina aquela gosma na sua boca? O homem que estava sentado entre os dois pega o prato e muda de lugar. André e Sílvia acompanham a saída do cara, mas não mudam de lugar. Comem em silêncio. André esboça um sorriso. Sílvia sorri. Param de rir. Comem em silêncio. SÍLVIA Você trabalha aqui perto? ANDRÉ Mais ou menos. Comem. SÍLVIA O que você faz? ANDRÉ Eu... faço ilustrações. Desenho. SÍLVIA Hmm. Legal. Ela termina de comer. SÍLVIA Bom... ANDRÉ Eu terminei também. SÍLVIA Tenho que voltar. Caixa. Ela paga com vale refeição. Ele paga em dinheiro. Saem. SÍLVIA Você vai para lá? ANDRÉ Não, para lá. (abre o saquinho, tira um figo). Você quer um? SÍLVIA Obrigado. Eu não sou muito de figo. André guarda o figo. SÍLVIA Tchau. ANDRÉ Tchau. CENA 103 - RUA - EXTERIOR/DIA André caminha. ANDRÉ (VS) Ela não usa perfume, não é muito de figo, tem nojo de bruxa no feijão e um brilho nos olhos, quando ri. Isso tudo não dá para ver de binóculo. CENA 104 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE Mama Grave. André e Cardoso numa mesa. Cardoso tem uma semente no lóbulo da orelha. CARDOSO Convida ela para sair, nós quatro. ANDRÉ Tô sem dinheiro. CARDOSO Só um cinema. Vá que a gente convença as duas a ir lá para casa, pedir uma pizza. ANDRÉ Tô sem dinheiro nenhum. CARDOSO Uma pizza, cinema. Não vai dar mais que 15 reais para cada um. ANDRÉ Não dá. CARDOSO Você é duro mesmo. ANDRÉ Agora que você reparou. O que é isso na sua orelha? CARDOSO Uma semente. ANDRÉ De que? CARDOSO Isso não importa. O importante é a semente. É para parar de fumar. Te falei que eu parei de fumar? ANDRÉ Falou. CARDOSO A semente pressiona um ponto na orelha, passa a vontade de fumar. Não tô sentindo falta nenhuma. Impressionante. Antes eu subia uma escada, passava mal. Agora, sem problema. E o sabor dos alimentos? É outra coisa. ANDRÉ Quantos dias faz que você parou? CARDOSO Quatro. Mas já faz diferença. Pra não dizer que eu não sinto falta nenhuma, nenhuma, depois do almoço, me dá uma vontadezinha, pouca. Aquele cigarrinho, sabe como é? Aquele cigarrinho. ANDRÉ Sei. CARDOSO Sabe nada! Você não fuma! Você não sabe o que é um cigarrinho, depois do almoço. Um cafezinho. Ou numa festa, tomando um chopinho. Aquele cigarrinho. ANDRÉ É, não sei mesmo. CARDOSO Não sei porque eu fui parar de fumar. Mulher é uma merda! E ela nem é tão gostosa assim. ANDRÉ Ela não disse que o cara precisava ser rico e não fumante? CARDOSO Disse. ANDRÉ Porque você não espera ficar rico para parar de fumar? CARDOSO É que tem um detalhe: quando eu perguntei se ela nunca tinha dado mesmo ela disse: "Nunca. Mas o resto todo eu já fiz". "O resto todo". Eu fiquei pensando que resto todo é esse que ela já fez. Parei de fumar para conferir. Vá que no meio do resto todo, dependendo do que for, ela se empolgue e eu pá! ANDRÉ Entendi. CARDOSO Convida a sua amiga. De duas elas se soltam mais, ficam tentando se exibir uma para outra, para mostrar que são gostosas, a gente pega o rastro. ANDRÉ Vou pensar. CENA 105 - BAR - INTERIOR/DIA André e Sílvia, sentados lado a lado, comem. ANDRÉ Você gosta de quadrinhos? SÍLVIA Tipo gibi? ANDRÉ É. SÍLVIA Quando eu era pequena gostava. Gosto mais de livro. ANDRÉ Você sabe o que é hirsuta? SÍLVIA Hirsuta? Com agá? ANDRÉ É. SÍLVIA Não. Como era a frase? ANDRÉ A barba hirsuta e branca. SÍLVIA Hirsuta e branca. Não sei. Tem que olhar no dicionário. ANDRÉ Tem uns quadrinhos de adulto. SÍLVIA De adulto como? ANDRÉ Para adulto. As histórias. SÍLVIA Assim, de sexo? ANDRÉ Bom... Alguns sim. Mas não só. Você conhece esse aqui? (entrega uma revista em quadrinhos a ela) SÍLVIA Não. O desenho é legal. ANDRÉ Eu empresto para você. SÍLVIA Você já leu? ANDRÉ Já. Umas três vezes. SÍLVIA É tão bom assim? ANDRÉ Eu acho. SÍLVIA Legal. E os seus desenhos? ANDRÉ O que é que tem? SÍLVIA Não vai me mostrar? ANDRÉ Não tenho nenhum assim, muito bom, pronto. SÍLVIA Faz um para mim? ANDRÉ Agora? SÍLVIA É. ANDRÉ Não, aqui não dá. SÍLVIA Por que não? ANDRÉ Porque não. Eu faço um desenho para você. SÍLVIA Vai fazer mesmo? ANDRÉ Claro. O que você quer que eu desenhe? SÍLVIA Você é que sabe. Uma coisa que você goste, que seja boa de ficar olhando. ANDRÉ Tá bom. CENA 106 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE em paralelo com CENA 107 - QUARTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO André vê Sílvia chegando em casa. ANDRÉ (VS) Ela entrou em casa levando na mão a revista que eu emprestei. Acho que veio lendo no ônibus. Ela entrou em casa, na casa dela, com a minha revista. Ela caminhou até a cozinha, voltou comendo uma coisa e lendo a minha revista CENA 108 - QUADRINHOS Folha de papel em branco sobre a mesa de André. ANDRÉ (VS) Uma coisa boa de ficar olhando. André faz alguns desenhos. Uma paisagem. Um rosto. Um peixe. André põe de lado o desenho do peixe. Pensa. Pega uma nova folha. CENA 109 - RESTAURANTE Sílvia devolve a revista em quadrinhos que André lhe emprestou. SÍLVIA Obrigado. ANDRÉ Você gostou? SÍLVIA Muito legal. Olha o que eu trouxe para você. (lendo) Hirsuto, de pêlos longos, duros e espessos; cerdoso. "Ao sorrir mostrava através da barba hirsuta de mulato uns dentes brancos, pontudos". Ribeiro Couto, Largo da Matriz e Outras Histórias, página 47. CENA 110 - RESTAURANTE - INTERIOR/NOITE ANDRÉ Você quer casar comigo e sair daqui? SÍLVIA Claro que sim. Beijam-se. CENA 111 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA ANDRÉ Obrigado. SÍLVIA De nada. Barba hirsuta é uma barba de pelos longos. De onde você tirou aquela frase, a barba hirsuta e branca? ANDRÉ De um poema. Do Shakespeare. Um livro de sonetos. SÍLVIA Você gosta? ANDRÉ Só li este. Quando a hora dobra em triste e tardo toque. Parece o som de um relógio. SÍLVIA É. Como é que a barba entra no poema? ANDRÉ Não sei. Não entendi nada. Nem li até o fim. Tenho um presente para você também. André lhe entrega um papel. É um desenho de uma menina em seu quarto. Lembra bastante o quarto dela. SÍLVIA O meu desenho! Bonito. Sou eu? No meu quarto? ANDRÉ Parece? SÍLVIA Mais ou menos. Tenho uma foto grudada no vidro, assim. ANDRÉ Eu sei. Sei como é. Que foto é? SÍLVIA Um cartão postal. Do Rio. E no meu quarto não tem televisão. ANDRÉ Não? SÍLVIA Não. E eu tenho um aquário. O resto é parecido. Cama, abajur, armário. Legal, obrigado. É o meu presente de aniversário. ANDRÉ Você está de aniversário? SÍLVIA Fiz semana passada. ANDRÉ Parabéns. CENA 112 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE em paralelo com CENA 113 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO Sílvia cola o desenho de André no vidro, ao lado do cartão postal. A luz do quarto torna o papel transparente e o desenho visível. Por alguns segundos André fica observando Sílvia em seu quarto vendo o desenho que André fez de Sílvia em seu quarto. CENA 114 - BRIC - INTERIOR/DIA Cardoso transforma rapidamente uma caixinha nova numa caixinha velha. CARDOSO Você emprestou um quadrinhos de sacanagem para ela, ela gostou e pediu outros? Ela tá a fim. ANDRÉ Não é de sacanagem. Tem umas cenas de sexo. Cardoso dá uma olhada no gibi. CARDOSO Olha aqui! Nossa senhora! Pelo amor de deus, é óbvio que ela tá a fim! ANDRÉ Quero comprar um presente para ela. Ela fez aniversário. CARDOSO Eu tenho uma coisa que ela vai adorar. Cardoso abre um armário e tira uma caixa de papelão. ANDRÉ O que é isso? CARDOSO Olha só... Cardoso tira da caixa, com exagerado cuidado, uma caixinha de madeira. CARDOSO Cuidado... ANDRÉ Uma caixinha. CARDOSO Para guardar coisinhas. Mulher adora uma caixinha para guardar coisinhas. Isso é uma antiguidade mesmo, nada a ver com essas porcarias aqui. (mostra uma caixinha velha que ele acabou de fazer) Português, do século passado, mil oitocentos e pouco. Te vendo por 100 reais. ANDRÉ O quê? Acha que eu vou dar 100 reais por uma caixinha deste tamanho? CARDOSO Deixa de ser ignorante, rapaz! O que tem o tamanho a ver com o presente? Eu posso vender isso aí por 150, até 200. Te faço por oitenta. ANDRÉ Só posso gastar trinta. CARDOSO Trinta nem pensar. Setenta. ANDRÉ Tenho que ir. CARDOSO Tudo bem. Sessenta. CENA 115 - PAPELARIA - INTERIOR/NOITE André faz cópias das sobras das cópias da nota de cinqüenta. ANDRÉ (VS) Eu não tinha mais uma nota de cinqüenta, só umas cópias, de um lado e de outro. A cópia da cópia não fica tão boa. CENA 116 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE Cardoso está no balcão, bebendo. André se aproxima. ANDRÉ (VS) Esperei a gente se encontrar num lugar sem muita luz. ANDRÉ Cinqüenta. CARDOSO O quê? ANDRÉ Te dou cinqüenta pela caixinha. CARDOSO Cinqüenta? Fora de questão. O mínimo é oitenta. ANDRÉ Você já tinha chegado a sessenta. CARDOSO Já? ANDRÉ Já. CARDOSO Sessenta é o mínimo. ANDRÉ Só tenho cinqüenta. (mostra a nota) Cardoso olha a nota, olha para André. Pega a nota. CARDOSO Tudo bem. Passa lá amanhã que eu te dou a caixinha. Quer uma cerveja? Cardoso vai até o bar. CARDOSO Ô Dirceu, vê duas cervejas aí. Desconta os vinte e quatro que eu te devia. André se aproxima para interromper Cardoso mas ele põe a nota de 50 sobre o balcão. CARDOSO E vê meu troco. Dirceu pega a nota, põe no caixa sem nem olhar para ela e dá o troco a Cardoso. ANDRÉ Dirceu... Um bêbado apressado chega ao balcão com uma nota de cem. BÊBADO APRESSADO O meu, troca cem aí? Dirceu pega duas notas de cinqüenta e dá ao cara que sai. Cardoso pega as cervejas. André pega a sua cerveja e tenta seguir o homem que pegou o troco. O sujeito sai do bar, entra num carro e parte. CENA 117 - BRIC - INTERIOR/DIA André se aproxima de Cardoso. CARDOSO Vamos lá para trás. Cardoso entrega a caixa a André. CARDOSO Olha, eu não tou a fim de te sacanear. Quando você me pagou cinqüenta pela caixinha, eu tive que me controlar para não rir na sua cara. Essa caixinha não é antiguidade porra nenhuma, tem duzentas no depósito. Te vendo por dez. Tá aqui os teus quarenta de troco. Eu não vou me aproveitar da tua ingenuidade te passando um negócio falso. André fica olhando os quarenta reais e a caixinha. ANDRÉ É que, tem uma coisa. CARDOSO O quê? André puxa Cardoso para um canto da loja. ANDRÉ Aquela nota que eu te dei ontem, cinqüenta reais? CARDOSO O que é que tem? ANDRÉ Era falsa. CARDOSO Como assim? Como é que você sabe? ANDRÉ Fui eu que fiz. Na máquina. CARDOSO Você tá maluco? ANDRÉ Eu só queria saber se você ia cair. Não sabia que você ia pagar a cerveja. CARDOSO Se o cara descobre... Você que fez? Tem mais? ANDRÉ Não, só aquele. CARDOSO Nem reparei. É parecido. ANDRÉ Mais ou menos. Assim, sem olhar muito de perto. CARDOSO Você pode fazer mais? ANDRÉ É difícil. CARDOSO Difícil por quê? ANDRÉ Gasta muito papel. E tem que ser à noite, não dá para demorar muito. E eu também não tenho notas de cinqüenta para ficar copiando. CARDOSO Por que você não faz cópias das cópias? ANDRÉ Já experimentei. Não fica tão bom. CARDOSO Eu te consigo as notas. ANDRÉ Como? CARDOSO Eu consigo. Você pode amanhã de noite? CENA 118 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Loja. Cardoso tira da carteira seis notas de cinqüenta. CARDOSO Pedi emprestado para devolver amanhã. André junta as seis notas, com durex, põe na máquina. Fazem várias experiências até conseguir uma cópia com registro. Cortam as notas. André põe as seis notas de cinqüenta, sobre a mesa. CARDOSO Metade para cada um? ANDRÉ Tudo bem. Experimentam o tato, examinam, comparam com as verdadeiras. CARDOSO O que você vai fazer com a sua parte? ANDRÉ Comprar um presente. CARDOSO Numa loja. ANDRÉ Vou trocar o dinheiro antes. CARDOSO Como? CENA 119 - CASA LOTÉRICA - INTERIOR/DIA Fila de pagamento das aposta de uma casa lotérica. CARDOSO Que números você escolheu? ANDRÉ Os primeiros. CARDOSO Como assim? ANDRÉ Um, dois, três, quatro, cinco, seis. CARDOSO Tá brincando? ANDRÉ Por quê? CARDOSO Ela vai desconfiar! ANDRÉ Desconfiar por quê? CARDOSO Porque é absurdo jogar assim! Ninguém joga assim, seis números seguidos. Não tem chance alguma de dar seis números seguidos. ANDRÉ A mesma chance de dar qualquer número. A chance é mínima, de todo jeito. CARDOSO Mas com seis números seguidos é menor. ANDRÉ É igual. CARDOSO É impossível dar seis números seguidos. ANDRÉ Tão impossível como dar qualquer outros números. CARDOSO Eu não vou discutir uma coisa tão óbvia assim. O que você vai fazer com o seu dinheiro? CENA 120 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE em paralelo com CENA 121 - APARTAMENTOS - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO André olha pelo binóculo a sala iluminada de um apartamento. Ele pode ver detalhes da sala, através de uma cortina japonesa fechada: um som, discos, livros. ANDRÉ (VS) Imagina tudo que você pode comprar com 123 reais. Um walkman. Roupas. Cds. André fica olhando para a sala alguns segundos. ANDRÉ (VS) Melhor. CENA 122 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA Sílvia abre um pacote. É uma cortina japonesa. ANDRÉ É uma cortina, japonesa. SÍLVIA Cortina? ANDRÉ Para o seu quarto. SÍLVIA Deve ter sido caro. ANDRÉ Não. Troquei por umas ilustrações que eu fiz. SÍLVIA Obrigado. Muito legal. Quando é o seu aniversário? ANDRÉ Já foi. SÍLVIA Vou te dar um presente também. ANDRÉ Faz tempo, não precisa. SÍLVIA Eu quero. Tenho que voltar. Obrigado. ANDRÉ De nada. CENA 123 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE em paralelo com CENA 124 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO André olha o apartamento de Sílvia de binóculo. O pai está na sala, vendo tevê. A cortina já está colocada no quarto dela, mas a luz está apagada. ANDRÉ (VS) Ela levou uma semana para instalar a cortina. Devia ter pago a instalação também. Mas não deve ser difícil, só prender com uns preguinhos. Acho que ela mesma pregou. Sílvia entra em casa. (Trilha: Mozart, Sinfonia 41 "Jupiter", Sexto Movimento, Andante Cantabile) Sílvia pega uma correspondência, dá uma olhada, larga. Vai até a cozinha, examina a geladeira. Fecha a geladeira. Sílvia caminha para o quarto. Pára no corredor, lendo a correspondência. A luz se acende revelando, pela primeira vez, o quarto inteiro: o aquário sobre uma cômoda com muitos livros, um quadro de fotografias com desenhos, uma cadeira com roupas. André se maravilha com os detalhes revelados. O quebra-cabeças do quarto se completa, luminoso. Sílvia larga suas coisas, vai até o banheiro, liga o chuveiro. Volta para o quarto e começa a tirar a roupa. Tira a camisa, fica lendo alguma coisa no caderno, só de sutiã e saia. Abre a saia, sem parar de ler. Fica de calcinha e sutiã. Começa a soltar o sutiã enquanto vai para o banheiro. Fecha a porta do banheiro enquanto tira o sutiã. André respira, abaixa o binóculo. Volta a olhar para o quarto. André examina os detalhes do quarto. As fotos no mural. Um calendário atrás da porta. O trinco da porta se move. O pai de Sílvia entra no quarto. Abre a bolsa de Sílvia e pega algum dinheiro. Fecha a bolsa. Aproxima-se da porta do banheiro. Abaixa-se e, abrindo a calça, espia pelo buraco da fechadura do banheiro. A calça desce um pouco, revelando o rego de uma bunda peluda e a barra de uma cueca velha. André larga o binóculo. Levanta-se. Fica parado alguns segundos no meio do quarto. Calça os tênis. Pega a chave e a carteira. Sai do quarto. CENA 125 - RUAS - EXTERIOR/NOITE André caminha decidido pela rua, sem olhar para os lados. Atravessa uma avenida sem prestar muita atenção no trânsito. Caminha em passos rápidos. Vê o edifício de Sílvia, Santa Cecília. CENA 126 - DESENHO ANIMADO André cozinha o pai de Sílvia, como nas ilustrações da vida de Santa Cecília. André corta a cabeça do pai de Sílvia. CENA 127 - RUAS - EXTERIOR/NOITE André diminui o passo ao se aproximar da portaria. Pára. Fica olhando para o porteiro eletrônico. É um prédio de muitos apartamentos. André fica olhando para cima, para as várias janelas iluminadas. Um porteiro se aproxima. André olha para o porteiro. Afasta-se da portaria. Caminha pela calçada, mãos nos bolsos. CENA 128 - BRIC - INTERIOR/NOITE Cardoso transforma caixinhas de madeiras novas em caixinhas de madeiras antigas. André observa. CARDOSO O que você vai fazer? ANDRÉ Não sei. CARDOSO Você não pode dizer para a guria que o pai dela é um tarado. Até pode, mas ela vai perguntar como é que você sabe. ANDRÉ É. CARDOSO "Eu sei que o seu pai é um tarado porque eu também sou". Melhor não. Você talvez possa sugerir que tem muito pai tarado, mais do que a gente imagina, e que ela devia tapar o buraco da fechadura do banheiro, só por precaução. Mas ela vai achar estranho. ANDRÉ Vai. CARDOSO Você pode dar uma surra no cara, dizer para ele que sabe que ele é um tarado. Aí ele é que vai achar estranho. Não resolve muito. ANDRÉ Não. CARDOSO Ou você pode pedir ela em casamento. E tirar ela de lá. ANDRÉ É. CARDOSO Mas para isso você precisa ter para onde ir. Precisa de dinheiro. ANDRÉ Eu sei. CARDOSO Bastante dinheiro. É melhor que seja dinheiro de verdade. ANDRÉ É. CARDOSO E você tem alguma idéia de onde conseguir bastante dinheiro de verdade? ANDRÉ Tenho. CENA 129 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA André observa o banco. Três guardas descem do carro forte, carregando os malotes com dinheiro. André faz um desenho do banco, com anotações de horários. CENA 130 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Marinês tira o avental e entrega para André. MARINÊS Você vai me dar metade do seu salário? ANDRÉ Desculpe. Tive que levar minha mãe ao médico. MARINÊS Tem um monte de trabalho aí. Dois livros grandes. Tudo para amanhã de manhã. ANDRÉ Eu fico até mais tarde. Obrigado. André começa a fazer cópias. CENA 131 - PAPELARIA - INTERIOR/NOITE A loja já está fechada. André faz cópias de notas de cinqüenta. Seis notas. Examina as notas. Amassa as notas, dobra ao meio. Enrola o dinheiro com uma borracha. Põe no bolso. CENA 132 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA Sílvia está almoçando. André chega. SÍLVIA Oi! Tá sumido. ANDRÉ Trabalhando muito. Você já almoçou? SÍLVIA Tô terminando. Mas eu te acompanho. ANDRÉ Já comi. Quero conversar com você. Não aqui. Você pode se atrasar um pouco, depois do almoço? CENA 133 - PRAÇA NA BEIRA DO RIO - EXTERIOR/DIA André e Sílvia caminham, perto do rio. SÍLVIA Quanto tempo? ANDRÉ Não sei ainda. Depende do trabalho. SÍLVIA Mais que... um ano? ANDRÉ Não. Seis meses, no máximo. SÍLVIA Eu sempre quis conhecer o Rio. ANDRÉ Quem sabe você me visita? Nas férias? SÍLVIA Falta ainda. Caminham em silêncio. Ela lhe entrega um livro. SÍLVIA Seu presente. É o livro de sonetos, do Shakespeare. Você leva na viagem. Está marcado na página daquele que você leu. (lê) "Quando a hora dobra em triste e tardo toque". ANDRÉ Você entendeu? SÍLVIA Entendi. É bonito. ANDRÉ (lendo) "Quando a hora dobra em triste e tardo toque e em noite horrenda vejo escoar-se o dia, quando vejo esvair-se a violeta..." SÍLVIA A flor. Esvair-se é evaporar. Murchar. Morrer. ANDRÉ "Ou que a prata a preta têmpora assedia". SÍLVIA Sabe a prata escurecendo? ANDRÉ "Quando vejo sem folha o tronco antigo que ao rebanho estendia a sobra franca". SÍLVIA A árvore sem folhas, onde os bois e as vacas tomavam sombra, quando ela tinha folhas. ANDRÉ "E em feixe atado, agora o verde trigo, seguir no carro, a barba hirsuta e branca." O trigo cortado, indo embora numa carroça. SÍLVIA A barba hirsuta e branca. É tudo sobre o tempo. O tempo passando. ANDRÉ "Sobre a tua beleza então questiono, que há de sofrer do tempo a dura prova". SÍLVIA Isso é... ANDRÉ Eu entendi. "Pois as graças do mundo em abandono morrem ao ver nascer a graça nova. Contra a foice do tempo é vão combate, salvo a prole, que o enfrenta se te abate". O que é isso? SÍLVIA É o jeito de ganhar do tempo, de enganar a morte. A prole. Os filhos. ANDRÉ Entendi. É bonito mesmo. Obrigado. SÍLVIA Eu tenho que ir trabalhar. ANDRÉ Claro. Pausa. ANDRÉ Você me espera? SÍLVIA Espero. ANDRÉ Você quer casar comigo e sair daqui? SÍLVIA Claro que sim. Beijam-se. ANDRÉ Pode demorar, uns seis meses. SÍLVIA Eu espero. Espero mais até. Te cuida. Ela sai. André fica parado alguns segundos. Olha o relógio. CENA 134 - ESCADAS DA PONTE - EXTERIOR/NOITE André entrega o rolinho de dinheiro para Feitosa. Ele guarda rapidamente no bolso. Feitos tira do bolso um revólver. Faz mira. Entrega uma arma para André. André pega a arma com um saco plástico, sem tocá-la. FEITOSA Boa idéia. Olha o que você vai fazer com isso. ANDRÉ E as balas? FEITOSA Dentro. Tem seis. Feitosa vai saindo. ANDRÉ Só seis? FEITOSA Se tu precisar mais que seis, tu tá ferrado. Acho até que se tu precisar de uma tu já tá ferrado. Feitosa se afasta. CENA 135 - FRENTE DO BANCO - EXTERIOR/DIA Cardoso está parado na frente do banco, de costas para a rua. Olha para os lados. André sai rapidamente de uma lavanderia ao lado do banco e toca as costas de Cardoso. Ele se vira. CARDOSO Onde é que você estava? ANDRÉ Na lavanderia. Você nem me viu chegar. Vamos sair daqui. André e Cardoso saem caminhando pela calçada. CARDOSO E o outro cara? ANDRÉ Eu vou estar com uma arma, apontando para as costas de um. O outro não vai atirar. CARDOSO E se ele atirar? ANDRÉ Eu atiro também. CARDOSO Você vai matar o cara? ANDRÉ Espero que não. Dobram a esquina. CARDOSO Eu não sei de nada desta história. Só vou dirigir o carro. Se der problema eu digo que te dei uma carona e não sabia o que tinha na sacola. ANDRÉ Certo. CARDOSO E se der tiro, eu me mando. ANDRÉ Certo. Você vai ficar estacionado aqui. CARDOSO E se der certo, metade da grana é minha. ANDRÉ Certo. CARDOSO Quando? ANDRÉ Amanhã. Consegue o carro. CENA 136 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE em paralelo com CENA 137 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE André, de binóculo, vê o pai de Sílvia entrando no quarto. Larga o binóculo. Volta a desenhar. É um desenho de Zeca Olho, com uma arma na mão, atirando. Examina a arma, dentro do saco plástico. Desenha vários furos de balas em Zeca Olho, a roupa toda manchada de sangue. CENA 138 - LAVANDERIA - INTERIOR/NOITE André vê a roupa que gira dentro de uma máquina. André está de jaqueta. Com a mão esquerda, segura uma grande sacola vazia. A mão direita está no bolso da jaqueta. André vê, ao seu lado, o Gordo dançarino do edifício Montes Claros. (INSERT: QUARTO DO GORDO, INTERIOR/NOITE. Gordo do Montes Claros, dançando.) O Gordo está tirando as roupas lavadas da máquina. André se aproxima. ANDRÉ Bom dia. Eu estou fazendo uma pesquisa. GORDO O quê? ANDRÉ Uma pesquisa. Para o colégio. Sobre música. GORDO Que pesquisa? ANDRÉ Sobre o tipo de música que as pessoas preferem. O senhor poderia me responder algumas perguntas? GORDO Sobre o tipo de música que eu prefiro? ANDRÉ É GORDO Rock. ANDRÉ Rock. Alguma banda preferida? GORDO Credence. Conhece? ANDRÉ Acho que sim. Obrigado. GORDO De nada. O Gordo pega as roupas e se afasta. (INSERT: QUARTO DO GORDO/BINÓCULO, INTERIOR/NOITE. Gordo do Montes Claros, dançando agora ao som de "Travellin' Band", do Credence, música que segue nas próximas cenas, do assalto.) André dá uma olhada na calçada e vê que o carro forte já chegou. Olha para os lados. Tira as mãos do bolso, está com luvas de borracha, azuis. Pega uma meia. Olha para os lados. Sai da lavanderia enquanto põe a meia na cabeça. CENA 139 - FRENTE DO BANCO - EXTERIOR/DIA André se aproxima do guarda pela costas do guarda. Sua figura, de meia na cabeça e luvas azuis, é um tanto ridícula. André tira a arma do bolso. A arma tranca e dispara. Os dois guardas se voltam para André, se apavoram e largam as armas. ANDRÉ Larguem as armas! Os guardas ficam parados até que André perceba que eles já largaram as armas. ANDRÉ Entra no carro! E deixa o dinheiro aí no chão! Os guardas largam a sacola de dinheiro no chão e entram no carro- forte. André pega a sacola, tenta fechar a porta do carro-forte, segurar a sacola e a arma, tudo ao mesmo tempo. Se atrapalha. Um homem chega por trás de André e arranca a meia de sua cabeça. André se vira. O homem é ANTUNES, 60 anos, o pai de Sílvia. André olha para ele. (INSERT: Antunes acocorado em frente ao banheiro de Sílvia). André atira. Antunes faz uma cara de dor e cai. André deixa cair a arma. Pessoas correm pela calçada. Antunes, com a mão segurando a perna que sangra, olha para André. André põe a sacola de dinheiro dentro da sua sacola vazia e sai correndo. CENA 140 - RUA - EXTERIOR/DIA André, tirando a luva, dobra a esquina. Algumas pessoas saem das lojas, para ver o que aconteceu. Cruzam com André, sem reparar nele. CENA 141 - GALERIA - INTERIOR/DIA André entra numa galeria com algum movimento. Dobra uma esquina da galeria. CENA 142 - RUA - EXTERIOR/DIA André sai da galeria. Aproxima-se de Cardoso, que está parado do lado de fora do carro. Cardoso faz gestos para André. André percebe que há um GUARDA MUNICIPAL multando o carro de Cardoso. André encara Cardoso. CARDOSO Era zona de parquímetro, eu não tinha moeda. Um ônibus pára na frente deles. Eles olham para o ônibus. CENA 143 - ÔNIBUS - INTERIOR/DIA André e Cardoso entram no ônibus. Ninguém dá atenção a eles. Eles param na roleta, ofegantes. O COBRADOR tira os olhos do jornal e fica olhando para os dois. Cardoso põe a mão no bolso, pega a carteira, Está vazia. Olha para André. André, com a cabeça, faz sinal que não. Cardoso olha para o saco e para André. André olha para o saco e para Cardoso. Faz outra vez sinal que não. Cardoso faz um gesto com a cabeça: alguma outra idéia? André suspira, abre um pouco o zíper da sacola, enfia a mão, procura algo. O Cobrador segue olhando para os dois. Cardoso sorri ao cobrador. O Cobrador volta a ler o jornal. André tira da sacola uma nota de cem reais. O Cobrador fica olhando para a nota, com cara de tédio. André guarda a nota de cem e procura outra. Acha uma de cinqüenta. Dá ao cobrador com uma expressão de quem pede desculpas. O cobrador suspira, pega a nota de cinqüenta, dá o troco ao dois. Eles passam na roleta. Sentam. Cardoso dá uma olhadinha para trás. Vê que o cobrador já voltou a ler o jornal. André toca a campainha para descer. Levanta-se. ANDRÉ Volta mais tarde lá para pegar o carro. CARDOSO Tô sem dinheiro pro táxi. André dá uma olhada em torno, mete a mão na sacola e tira um punhado de notas de cinqüenta e cem. Põe na mão de Cardoso. Ele fica bobo olhando para as notas. CARDOSO E depois? ANDRÉ Depois a gente vê. CENA 144 - RUA - EXTERIOR/DIA André desce do ônibus. Vê Cardoso, na janela, se afastar. CENA 145 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André, deitado em sua cama, coberta de dinheiro. O chão também está coberto de dinheiro. O quarto todo está coberto de dinheiro, notas de cinqüenta e cem reais. CENA 146 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA Marinês lê o jornal. André se aproxima. ANDRÉ Deixa eu dar uma olhada? André folheia rapidamente o jornal, páginas policiais. Vê um retrato falado sob o título: Assaltante foge a pé com 2 milhões. O retrato falado não é nem vagamente parecido com ele. André lê a matéria enquanto Marinês fala. MARINÊS Pensei em cortar o meu cabelo assim, bem curto, e vender o resto. Os caras pagam até quinhentos reais por uma cabelo assim como o meu. Já me ofereceram 300, mas eu não topei. Só vendo por seiscentos. Fiz a conta: meu cabelo leva uns três meses para crescer, se eu cortar na lua certa e comer bastante cenoura e pepino. Vendo por seiscentos, dá duzentos por mês. Duzentos por mês, só para criar cabelo. É mais do que ele me paga aqui. Já pensou? Profissão: jardim de cabelo. André vê uma outra notícia: Traficante preso com dinheiro falso. Uma foto de Feitosa. André fica parado, olhando o jornal. CENA 147 - BRIC - INTERIOR/DIA Cardoso lê o jornal. André está sentado a sua frente. CARDOSO Qual é o problema? Não é nem parecido contigo. Parece o Romário. ANDRÉ A notícia do lado. CARDOSO Resultado da sena? ANDRÉ A outra! CARDOSO Traficante preso com dinheiro falso. ANDRÉ Essa. CARDOSO Jerfeson Antonio Feitosa, o Feitosa, foi preso ontem ao tentar passar uma nota falsa de cinqüenta reais na boate Frequence, na avenida Farrapos. Jerfeson? O traficante estava de posse de mais cinco notas falsas de cinqüenta, vários papelotes... Pausa. CARDOSO Seis notas de cinqüenta? André faz um sinal de positivo com a cabeça. CARDOSO A arma que você comprou. André faz um sinal de positivo com a cabeça. CARDOSO E as impressões digitais na arma... são dele. André faz um sinal de positivo com a cabeça. CARDOSO Se a polícia comparar as impressões digitais dele com a da arma... ANDRÉ Eles não têm porque ligar uma coisa com a outra. Pausa. CARDOSO Tem cartão de telefone? CENA 148 - BAR - INTERIOR/DIA André está numa mesa, ao fundo de um bar. Cardoso chega. ANDRÉ Ligou? CARDOSO Liguei. ANDRÉ E disse o quê? CARDOSO Que eu vi a foto dele no jornal e que parecia o cara que eu vi correndo do assalto no banco. ANDRÉ Eles não perguntaram teu nome? CARDOSO Perguntaram. ANDRÉ E você disse o quê? CARDOSO Nada. Desliguei. Viu que no jornal dizem que as notas eram "falsificações grosseiras"? ANDRÉ Não. CARDOSO Na legenda do foto, aqui: Falsificações grosseiras levam traficante à prisão. André olha o jornal e fica paralisado. CARDOSO Sem a minha ajuda, seu desempenho de falsário cai muito. André não se move. CARDOSO O que foi? André mostra outra notícia a Cardoso. Cardoso pega o jornal e lê: CARDOSO Sena saiu para oito apostadores, um de Porto Alegre. Os números sorteados foram uma incrível sequência: um, dois, três, quatro, cinco e seis. Cardoso e André ficam parados, se olhando. Cardoso vai gritar. André tapa sua boca. ANDRÉ Aqui não. CENA 149 - BEIRA DO RIO - EXTERIOR/FIM DE TARDE André e Cardoso gritam, pulam e gritam. CENA 150 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André e Cardoso estão sentados, cercados de dinheiro por todos os lados. CARDOSO E se a gente devolver o dinheiro do assalto? ANDRÉ Como? CARDOSO Pelo correio. ANDRÉ O que adianta? Roubei um banco. Dei um tiro no cara. Já imaginou, minha foto no jornal, o novo milionário da sena? CARDOSO Só tem um jeito. É você dar o bilhete para alguém. Alguém que saiba lidar com dinheiro, que aja naturalmente, com classe. Alguém em que você confia. Alguém que você tem certeza absoluta que não vai te sacanear. ANDRÉ Tem razão. CENA 151 - BANCO - INTERIOR/DIA Um GERENTE de banco termina de assinar alguns papéis. Sorri e põe um cartão e um talão de cheque sobre a mesa. GERENTE Você quer algum dinheiro vivo? Para as despesas menores? MARINÊS Seis mil reais. Só para as despesas menores. CENA 152 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE André examina os papéis do banco. Cardoso conta dinheiro. ANDRÉ Acho que está tudo certo. MARINÊS Não, não está nada certo. Eu quero saber exatamente TUDO que vocês fizeram. André e Cardoso olham para ela alguns segundos. CENA 153 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André e Cardoso olham para Marinês, sentada na cama com todo o dinheiro do banco. Cardoso olha para ela, fascinado. MARINÊS O que você vão fazer com esse dinheiro? CARDOSO Com esse, nada. Eles devem ter o número das notas. MARINÊS E com o do prêmio? ANDRÉ Gastar. CENA 154 - SEQUÊNCIA DE MONTAGEM/SHOPING - INTERIOR/DIA André, Cardoso e Marinês sobem as escadas rolantes de um shoping. Marinês entra num salão de beleza. Cardoso entra numa loja de artigos e roupas esportivas. É um santuário de marcas famosas, Nike, Umbro, Adidas, Reebok. Marinês, já com o cabelo cortado, entra numa loja de roupas, aparentemente muito caras. DUAS VENDEDORAS metidíssimas olham para ela de cima a baixo. Ela sorri. André está numa grande livraria. Escolhe caixas de pastel, tinta, canetas. Marinês sai da loja, seguida das duas vendedoras que carregam sacolas. Entra noutra loja. Cardoso, um verdadeiro mostruário ambulante de marcas, passeia entre os carros de uma revenda. Para ao lado de um modelo esportivo preto. O vendedor dá a ficha do carro. VENDEDOR Motor dois ponto zero, dezesseis válvulas independentes, quatro air bags frontal e lateral, freios abs, bancos de couro auto reguláveis, computador de bordo, sistema de som para oito cds. Cardoso examina o carro. CARDOSO Tem azul? Estacionamento. Cardoso estaciona o carro, azul. Abre o porta- malas. André põe as caixas de suas compras no porta-malas. Entre elas, uma grande luneta, com tripé. Cardoso liga o som do carro, num volume altíssimo. Os dois tentam diminuir o volume mas não conseguem. Cardoso consegue desligar o som. Param, olhando para frente, boquiabertos: Marinês, maravilhosa numa roupa muito chique, está parada na frente do carro, sacolas de compras pelo chão. Marinês olha para o carro. MARINÊS (expressão de desdém) Azul? Não tinha preto? Cardoso ainda não conseguiu fechar a boca. Os três, no carro, saem do estacionamento. CENA 155 - FRENTE DA LOJA SÍLVIA - EXTERIOR/DIA André desce do carro. ANDRÉ Você vai dizer o que para o Bolha? MARINÊS Que eu vou me casar, na Holanda. E você vai junto, para ser meu padrinho. ANDRÉ Diz para ele que eu passo lá, para me despedir. Tenho que resolver uns assuntos. CARDOSO Nós também temos que resolver uns assuntos. Cardoso liga o som do carro e parte. Marinês abana para André. André olha para a loja. CENA 156 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA André e Sílvia, na loja. ANDRÉ Oi. SÍLVIA Oi... Quando foi que você voltou? ANDRÉ Hoje. Você pode sair para o almoço? CENA 157 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA Sílvia e André comem. SÍLVIA Como é o Rio? Bonito? ANDRÉ É. Quero que você vá para lá, comigo. SÍLVIA Meu pai não vai deixar a gente sair assim. Ele vai atrás. ANDRÉ A gente casa. SÍLVIA Mesmo assim. ANDRÉ Qual é o problema? Eu falo com ele. SÍLVIA Fala? Pausa. ANDRÉ Falo. CENA 158 - INTERIOR/NOITE Saguão de um hotel de luxo. Cardoso e Marinês se aproximam do guichê de reservas. O RECEPCIONISTA do hotel, um senhor de 60 anos, sorri, amigavelmente. CARDOSO Boa tarde. RECEPCIONISTA Boa tarde. CARDOSO Você tem um suíte presidencial? RECEPCIONISTA Não senhor. O senhor fez reserva? CARDOSO Não. Mas posso fazer agora. RECEPCIONISTA Eu acho que não vai ser necessário. Nós temos três tipos de quarto, todos muito bons. CARDOSO Que tipos? RECEPCIONISTA Temos o apartamento luxo, gran luxo e a suíte gran luxo especial. CARDOSO Nós queremos uma suíte gran luxo especial. RECEPCIONISTA Pois não. Quanto tempo vocês vão ficar? Cardoso e Marinês se olham. CARDOSO Quais são as opções? RECEPCIONISTA Um dia, dois, três... CARDOSO Um dia. Para começar. RECEPCIONISTA Boa idéia. O recepcionista entrega uma ficha para Cardoso preencher. RECEPCIONISTA Fumantes? CARDOSO Não senhor. Eu não ponho um cigarro na boca há quatorze dias! RECEPCIONISTA Bem que o senhor faz. O recepcionista entrega a chave a Cardoso. RECEPCIONISTA O senhor tem bagagem? CARDOSO No carro. Um azul bem escuro, praticamente preto. RECEPCIONISTA Perfeitamente. (entrega a chave) A bagagem sobe em seguida. O apartamento é o onze zero dois. Boa estadia. CARDOSO A cama é de casal? RECEPCIONISTA Duplo casal. CARDOSO Duplo casal? RECEPCIONISTA Duplo casal. É bem grande. CARDOSO (um pouco assustado) Obrigado. CENA 159 - QUARTO DE HOTEL - INTERIOR/NOITE Carsoso, deitado nu sob os lençóis de uma cama enorme. Afofa os travesseiros. Ergue-se e examina os dentes na superfície espelhada de uma luminária. Volta a deitar. Respira fundo. A porta do banheiro se abre. Marinês, ainda de camisa e calça jeans, sai do banheiro. Pára na frente da cama, encarando Cardoso. Marinês abre a calça jeans. Tira a calça jeans, ficando só de camisa. Cardoso está petrificado. Marinês puxa o lençol, descobrindo Cardoso. Ela abre a camisa. Tira. Fica só de sutiã, sem calcinha, parada na frente de Cardoso. Ela sorri para ele. Ele não consegue mover um músculo. CARDOSO Posso tomar uma aguinha? MARINÊS Não. Ela avança sobre a cama. CENA 160 - RESTAURANTE CHIC - INTERIOR/NOITE Sílvia e André estão numa mesa, há um lugar pronto para mais uma pessoa. ANDRÉ Será que ele vai simpatizar comigo? SÍLVIA Espero que não. ANDRÉ Por quê? SÍLVIA Ele é um cretino. ANDRÉ Seu pai? SÍLVIA Puxei a minha mãe. ANDRÉ Que tipo de cretino? SÍLVIA O pior tipo. Antunes entra no restaurante. André o encara. Antunes se aproxima. Sílvia olha para o pai. Antunes não tira os olhos de André. SÍLVIA Este é o André. André levanta-se para cumprimentar Antunes. ANTUNES Mas você... é... muito jovem. Antunes cumprimenta André, sorridente. ANDRÉ Nem tanto. ANTUNES Que idade você tem? ANDRÉ Dezoito. ANTUNES Você trabalha em quê? SÍLVIA O André desenha. Para revistas. Desenha super bem. ANTUNES Pelo restaurante, parece que isso dá dinheiro. ANDRÉ As vezes. ANTUNES Vocês se conheceram como? SÍLVIA Na loja. Ele foi comprar um presente. Para a mãe dele. ANTUNES (examinando o cardápio) Vamos beber o quê? ANDRÉ O senhor que sabe. CENA 161 - QUARTO DE HOTEL - INTERIOR/NOITE Marinês dorme sob os lençóis. Sentado na cama, ao seu lado, Cardoso "fuma" uma caneta bic amarela, soltando longas baforadas imaginárias. CENA 162 - RESTAURANTE - INTERIOR/NOITE O garçon retira do balde uma garrafa de vinho vazia e coloca outra. Serve o copo de Antunes. Vai servir o de André, mas ele faz sinal que não quer. Sílvia está bebendo água. ANTUNES Quinhentos anos de quê? Isso é só mais uma coisa que inventaram para ganhar dinheiro, para tirar dinheiro dos otários como nós. Nem foram os portugueses que descobriram! O espanhol aquele já tinha chegado aqui muito antes. É verdade, eu li numa revista. Tá provado. Só que os portugueses se deram bem aqui, escreveram os livros e não se fala mais nisso. É que nem os vikings. Os vikings já tinham chegado na américa muito antes que o Colombo. Muito antes! ANDRÉ Viking quer dizer assaltante. ANTUNES É? ANDRÉ É. Em Dinamarquês. Pirata, assaltante. Mas também pode querer dizer baía, uma baía de mar. Ou acampamento. Ou soldado. ANTUNES É? ANDRÉ É. ANTUNES Você fala dinamarquês? ANDRÉ Eu? Não. Eu li isso. ANTUNES Ah. SÍLVIA Eu vou no banheiro. Sílvia sai. ANTUNES Como é seu nome mesmo? ANDRÉ André. ANTUNES Olha aqui, André. Eu sei muito bem que foi você quem assaltou aquele banco. Foi você que me deu aquele tiro, na perna. Eu posso te entregar e você vai ficar quinze anos no presídio central. Só que isso para mim não ia ajudar em nada. Eu sei que você está com o dinheiro. E eu nem quero todo. Se você quiser casar com a Sílvia o azar é o seu. Se eu tivesse a tua idade e a tua grana procurava coisa melhor. Sílvia volta. Senta. SÍLVIA Eu não posso dormir muito tarde. ANTUNES Vamos pedir a conta? Antunes faz sinal para um garçon. CENA 163 - FRENTE DO RESTAURANTE - EXTERIOR/NOITE André vê Sílvia e Feitosa se afastando na calçada. Ela dá uma olhadinha para trás e abana. Ele abana. Ele se vira para ir embora e dá de cara com Feitosa. FEITOSA E aí André? Roupa nova. André vê que Feitosa tem uma arma na cintura. FEITOSA (olhando para Sílvia, que se afasta) É sua namorada? ANDRÉ Não. Amiga. FEITOSA Não? Melhor... Posso dar uma conferida. Gostosinha. Ela mora no Santa Cecília, não é? É perto da sua casa. Feitosa arrasta André para um canto da rua, sem muita luz. ANDRÉ Li no jornal que você estava preso. FEITOSA Saí logo. Quem tem amigos, tem tudo. ANDRÉ É. FEITOSA Por exemplo... você. Você era meu amigo. Foi por isso que eu te vendi aquela arma, baratinho. Seis notas de cinqüenta, lembra? ANDRÉ Eu precisava muito da arma. FEITOSA Eu fiquei sabendo. Dois milhões. Sabe, eu achei incrível eles ligarem meu nome com aquela arma do assalto. Perguntei para uns amigos, me disseram que foi um telefonema, vê só. Tem gente ruim neste mundo. ANDRÉ O que você quer? FEITOSA O dinheiro do assalto, claro. Por que você acha que ainda tá vivo? ANDRÉ Eu te dou. FEITOSA Eu sei que sim. Vamos na sua casa buscar. ANDRÉ O dinheiro não está na minha casa. Acha que eu sou otário? FEITOSA Acho. Otário e cagalhão. ANDRÉ Está na casa de um amigo. Não dá para buscar agora. Eu te entrego amanhã. FEITOSA Você acha que EU sou otário? ANDRÉ Você acha que eu vou fugir? Você sabe onde eu moro, onde minha mãe mora. FEITOSA Onde a sua amiga mora. ANDRÉ Pois é. Eu não vou fugir. Te dou o dinheiro amanhã. FEITOSA Lá na ponte, na escada. ANDRÉ Não. Deste lado passa muita gente. É uma mala de dinheiro. Do outro lado. Na ponte, do outro lado. FEITOSA Que horas? ANDRÉ Nove da noite. Nove e quinze, no máximo. FEITOSA Te espero até nove e meia. Se você não aparecer, eu te busco. Busco todo mundo. Você, sua mãe e sua amiguinha. ANDRÉ Eu vou estar lá. FEITOSA Eu sei que sim. Você sempre foi cagalhão. Otário e cagalhão. Feitosa sorri para André e se afasta. André fica parado na calçada. CENA 164 - APARTAMENTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André entra em casa. Sua mãe está vendo televisão. André pega uma correspondência sobre a mesa e examina. ANDRÉ Mãe... APRESENTADORA Um lobo marinho pesando mais de meia tonelada foi a atração da praia no Cassino nesta quinta-feira. Imagens do lobo encalhado, banhistas em volta. APRESENTADORA (VS) Pescadores acreditam que ele se perdeu numa corrente ou ficou trancado em alguma rede. ANDRÉ Mãe, eu vou viajar. APRESENTADORA (VS) Banhistas mantiveram a pele do visitante protegida do sol até a chegada dos bombeiros. MÃE Quando? ANDRÉ Amanhã. MÃE Para onde? APRESENTADORA (VS) Com cordas e tábuas, e muito esforço, pescadores e banhistas devolveram o morador a sua casa. ANDRÉ Para a Holanda. Tudo pago, vou ser padrinho de casamento da Marinês, lá da loja. O noivo dela mandou as passagens, ele é muito rico. MÃE Você volta quando? ANDRÉ Volto logo. São só uns dias. Mas eu vou deixar dinheiro para a senhora. Para o aluguel. PESCADOR Nossa senhora! O bicho tá precisando de um regime! MÃE E você tem roupa? APRESENTADORA (sorrindo) Boa noite. ANDRÉ Tenho. Mãe se ergue, sai arrastando chinelo. MÃE Na Holanda é muito frio. ANDRÉ Eu tenho roupa. MÃE Você faz supermercado para mim, antes de viajar? ANDRÉ Faço. MÃE Esponja para lavar pratos, detergente, leite, pão, margarina, fósforos. Fiz uma lista, está na geladeira. ANDRÉ Eu compro. MÃE Boa noite, meu filho. Vou me deitar. Televisão me dá um sono. ANDRÉ Boa noite, mãe. CENA 165 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE em paralelo com CENA 166 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE - BINÓCULO André, em sua mesa, termina de fazer um desenho. Um desenho de um triângulo com riscos verticais. André fica examinando o desenho. Larga o desenho. Pega a luneta e olha para o apartamento de Sílvia. Ela está sentada na cama, escrevendo alguma coisa com uma canetinha colorida. André tira o olho da luneta e abre a correspondência. É um cheque, de 50 reais. Junto com o cheque, uma carta e uma revista. A revista tem uma página marcada. Ele abre e vê, publicado, o desenho que ele fez do quarto de Sílvia, o desenho que ele deu de presente a ela. André fica examinando o cheque, feliz. Pega outra vez a luneta. Sílvia larga a canetinha. Ergue o papel e olha diretamente para a câmera. No papel está escrito: eu sei tudo André leva um susto, fecha sua janela, apaga a luz e esconde a luneta. Fica parado alguns segundos. Volta a olhar pela janela. Sílvia abana para ele. Mostra outro papel. André pega a luneta. Olha. No papel está escrito: quero te ver agora Sílvia troca o papel. Posso ir aí? Sim: pisque sua luz 3 vezes Não: pisque sua luz 15 vezes André sorri, pensa um pouco. Se aproxima do interruptor. CENA 167 - EDIFÍCIO DE ANDRÉ - EXTERIOR/NOITE Entre dezenas de janelas, acesas e apagadas, a luz do quarto de André pisca três vezes. A rua está quase deserta. Um táxi passa, vazio. Um ônibus passa, quase vazio. Outro ônibus se aproxima e pára. Desce um casal. Se despedem de outro casal, que segue no ônibus. O casal que desceu do ônibus atravessa a rua, se afasta na direção do edifício de Sílvia. Sílvia se aproxima. Atravessa a rua. André está na calçada, esperando por ela. Eles sorriem. Se beijam. CENA 168 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE André e Sílvia estão na cama de André. Silvia conta dinheiro. ANDRÉ Ele te contou? Ou você descobriu? SÍLVIA Ele me contou. ANDRÉ O que ele disse? SÍLVIA Que você era o assaltante. O cara que deu o tiro na perna dele. ANDRÉ E você? Ela vai até a janela e, pela luneta, vê seu pai vendo televisão. SÍLVIA Não disse nada. Foi aí que eu entendi a sua cara, lá no restaurante. Ele te falou que sabia, não falou? ANDRÉ Falou. SÍLVIA Ele vai ficar atrás de nós. Não adianta fugir. ANDRÉ É melhor dar o dinheiro para ele. SÍLVIA Ele vai gastar o dinheiro, vai acabar sendo preso e te entregando. ANDRÉ Não tô falando do dinheiro do assalto. A gente pode dar o dinheiro do prêmio. Ficam se olhando, alguns segundos. SÍLVIA Eu prefiro matar ele. ANDRÉ Ele é seu pai. SÍLVIA E aí? ANDRÉ Como, e aí? Você não pode matar seu pai. SÍLVIA Por que não? ANDRÉ Porque ele é seu pai. Sem ele, você não existia. SÍLVIA Gratidão. É isso? Eu tenho que ser eternamente grata a ele por ter dormido com a minha mãe, há trinta anos. Ele nem queria que ela me tivesse. E ela queria que eu não fosse dele. Ela era louca por outro cara, um lindo. Ela tinha uma foto dele, que ela recortou do jornal. Ele era artista. Se mudou para o Rio. Minha mãe achava que eu era filha dele. Eu também acho. Mas ele foi embora. Ela estava noiva. Casou. Ela morreu moça, quarenta e dois. Fumava muito. Ele é um escroto. Você acredita que ele me espia pelo buraco da fechadura quando eu entro no banho? ANDRÉ Acredito. SÍLVIA E eu posso matar ele, sim. Sílvia volta para a cama. SÍLVIA Esse dinheiro é seu. Vamos matar ele e fugir. Para o Rio. O que é que você faz? Além de desenhar e assaltar bancos. ANDRÉ Eu sou operador de fotocopiadora. SÍLVIA Hummm... que bonito. Você quer casar comigo? Eu sempre sonhei em me casar com um operador de fotocopiadora. ANDRÉ Caso. SÍLVIA Quando? ANDRÉ Depois de amanhã. SÍLVIA Por que não amanhã? ANDRÉ Amanhã tenho que resolver um problema. CENA 169 - ESCADARIAS DA PONTE - EXTERIOR/NOITE André está parado em frente a uma placa. Tem uma sacola na mão. Olha a placa. Olha o relógio. Sai caminhando, começa a subir as escadas. Na placa se lê: horários de abertura da ponte: 06:30 / 11:30 / 16:30 / 21:30 CENA 170 - PONTE, LADO DE GUAÍBA - EXTERIOR/NOITE André caminha pela ponte. Se aproxima da cabeceira da ponte. Vê Feitosa, escondido perto de um mato. Olha para os lados e se aproxima de Feitosa. FEITOSA Você está atrasado. ANDRÉ Achei que tinha alguém me seguindo. FEITOSA Trouxe? ANDRÉ Quer conferir? FEITOSA Claro. Feitosa pega a bolsa com o dinheiro. Abre. Examina, mas o local é um pouco escuro. ANDRÉ Está tudo aí. Eu vou embora. André começa a se afastar. FEITOSA Calma aí. Feitosa examina o dinheiro. Um navio se aproxima pelo rio. O navio apita. ANDRÉ Eu tenho que ir. FEITOSA Aqui não têm dois milhões. André sai correndo. FEITOSA Ei! Feitosa sai correndo atrás dele. Feitosa atrasa-se fechando a mala. Volta a correr. As cancelas da ponte abaixam. André ganhou uma boa dianteira e continua correndo. O navio está próximo da ponte, que começa a subir. Feitosa pega a arma. Vê o vigia da ponte, ao longe. Feitosa guarda a arma. André pula a primeira cancela. O vigia põe a cara para fora da janela. André pula sobre o vão móvel da ponte, que continua subindo. Feitosa pula a primeira cancela. André salta do vão erguido da ponte, do outro lado. Feitosa salta e consegue subir no vão, que continua subindo. André pula a cancela do outro lado. André corre na direção da escada. Feitosa salta do vão móvel, deixa cair a sacola. O navio passa sob a ponte e apita. Feitosa recolhe a sacola. André chega na escada. Começa a descer, correndo. Feitosa chega na escada, já com a arma em punho. André continua descendo mas ainda não chegou nem no meio da escada. Feitosa vê o monte de areia, lá embaixo. Feitosa olha para André e sorri. Feitosa olha para o monte de areia e salta. André pára de correr e olha para Feitosa. Feitosa, enquanto cai, olha para André e sorri. André, sério, olha para Feitosa e para o monte de areia. André olha outra vez para Feitosa. Feitosa fica sério e olha para o monte de areia. Volta a olhar, sério, para André. André olha para Feitosa. Feitosa grita: FEITOSA Cagalhão! CENA 171 - QUADRINHOS Insert do desenho de André, o monte de areia, recheado de varas de madeira (aquele triângulo com listas verticais) visto de lado e de cima. Mairoldi está espetado nas varas, morto, o sangue jorrando, misturado com o dinheiro. CENA 172 - PONTE, LADO DE PORTO ALEGRE - EXTERIOR/NOITE André caminha, mãos no bolso. Na escada da ponte, ao fundo, o vigia desce as escadas. ANDRÉ (VS) Cagalhão eu até posso ser, mas otário eu não sou. Eu disse que era perigoso pular. Mesmo sem as varas dentro da areia, era perigoso pular. Ele pulou porque quis. CENA 173 - MAMA GRAVE - INTERIOR/NOITE André, Sílvia e Marinês estão sentados. Cardoso chega, mascando um chiclete. CARDOSO Não achava um lugar para estacionar. Marinês puxa-o pela manga. Ela cheira a boca dele. CARDOSO Que foi? MARINÊS Faz assim: Rááh... (ela abre a boca e exala o ar sobre o nariz dele). CARDOSO Para quê? MARINÊS Faz! Ele solta o ar, pela boca, sobre o nariz dela. Ela cheira, desconfiada. ANDRÉ Essa é a Sílvia. CARDOSO Oi. SÍLVIA Oi. CARDOSO Você fuma? SÍLVIA Não. CARDOSO Nem eu. Vinte dias, amanhã. SÍLVIA Parabéns. CARDOSO Obrigado. ANDRÉ Eu tenho um plano. Não é muito bom. Mas eu não consegui pensar em nada melhor. CARDOSO Por que a gente simplesmente não dá o dinheiro para o pai dela? Não o nosso dinheiro. O dinheiro do banco. ANDRÉ Metade eu nem tenho mais. MARINÊS E a polícia tem o número das notas. Se ele começa a gastar, acabam prendendo ele. CARDOSO Me desculpe, mas... e aí? A gente já vai estar longe. ANDRÉ E é claro que ele me entrega, se for preso. Não quero ficar fugindo. A outra opção é dar a ele parte do nosso dinheiro. O dinheiro do prêmio. CARDOSO Não. SÍLVIA Nem pensar. Ele vai querer mais. Vai querer tudo. Pausa. MARINÊS Como é o seu plano? CENA 174 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/DIA Silvia escreve uma carta. Cardoso põe a carta num envelope, fecha o envelope, escreve um bilhete e põe tudo dentro de um outro envelope. André põe o envelope no correio. ANDRÉ (VS) A Silvia escreve uma carta para o pai dela, como se estivesse no Rio. A gente põe a carta num envelope, fecha o envelope, ela escreve um bilhete para um amigo no Rio mandar a carta de lá, para ter o carimbo do correio do Rio, com a data. CENA 175 - CASA DE ANDRÉ - INTERIOR/DIA André pega algumas cópias ruins do dinheiro falso. Mistura o dinheiro falso ao dinheiro roubado do banco que ainda resta e põe tudo numa sacola. ANDRÉ (VS) Eu pego algumas cópias bem ruins do dinheiro falso. Misturo o dinheiro falso com um pouco do dinheiro roubado do banco. CENA 176 - TERRENO BALDIO - EXTERIOR/DIA Despeja o dinheiro no chão. Derrama álcool sobre o dinheiro e acende um fósforo. O dinheiro queima. ANDRÉ (VS) O resto do dinheiro roubado eu queimo. CENA 177 - LOJA DE CARDOSO - INTERIOR/DIA Cardoso põe dinheiro numa maleta. Pega uma galinha. ANDRÉ (VS) O Cardoso põe o dinheiro numa maleta. E consegue uma galinha. CARDOSO (VS) Pra que essa galinha? ANDRÉ (VS) Calma. CENA 178 - BAR - INTERIOR/FIM DE TARDE Marinês veste uma roupa ultra sexy e conversa com Antunes no bar. Ele faz menção de ir embora mas ela o detém. ANDRÉ (VS) A Marinês segura o velho no bar o maior tempo possível. CENA 179 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/FIM DE TARDE Sílvia abre a porta do apartamento para Cardoso e André. Os dois estão de luvas. Sílvia, na cozinha de sua casa, esvazia a geladeira. André experimenta o botão que acende a luz da geladeira. Liga e desliga a luz. Desliga a geladeira da tomada e quebra a lâmpada. Cardoso vai até o fogão, desliga o registro do botijão de gás e corta o cano plástico que liga o botijão ao fogão. Cardoso e André pegam o botijão e põe dentro da geladeira. Silvia abre o registro do botijão, fecha bem a geladeira. André, com cuidado, liga a geladeira na tomada. ANDRÉ (VS) Sílvia abre a porta para nós e esvazia a geladeira. Eu preparo a bomba. O Cardoso corta o cano do botijão. A gente põe o botijão dentro da geladeira, abre o registro do botijão, fecha bem a geladeira. E liga a geladeira na tomada. Com cuidado. Silvia esconde todo o conteúdo da geladeira na máquina de lavar roupas, menos uma lata de cerveja que ela coloca no chão, bem em frente à porta. Cardoso põe a galinha dentro do armário da sala. André e Cardoso saem. Sílvia dá uma última olhadinha para a sala e cospe no sofá de Antunes. sai e fecha a porta. ANDRÉ (VS) Tudo que está na geladeira a gente esconde na máquina de lavar. Menos uma coisa qualquer que ele goste, que a gente deixa na frente da geladeira, no chão. A gente põe a galinha na sala, dentro do armário. E vai embora. CARDOSO (VS) Para que a galinha? ANDRÉ (VS) Você vai ver. CENA 180 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Antunes chega em casa, entra na cozinha e fareja o cheiro de gás. Vai até o fogão, mas todos os registros parecem fechados. CENA 181 - CASA DE SÍLVIA - EXTERIOR/NOITE André, Cardoso, Sílvia e Marinês se encontram na frente do prédio. ANDRÉ (VS) A gente se encontra os quatro na frente do prédio e liga para os bombeiros. Na frente do prédio, André fala num telefone e público. ANDRÉ ... um cheiro de gás fortíssimo! (...) Obrigado. Os quatro se aproximam do carro. ANDRÉ (VS) E aí a gente se manda para o Rio. MARINÊS Deixa que eu dirijo. CARDOSO A chave está com você. MARINÊS Não, a chave está na sua bolsa, junto com a sua carteira. Eles param e se olham. Ninguém carrega bolsa nenhuma. CENA 182 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Antunes vê a lata de cerveja no chão, ao lado da bolsa de Cardoso. Estranha e examina a lata e a bolsa. Vai abrir a geladeira. Toca o interfone. Ele vai até o interfone. Atende. CARDOSO (VS) Não faça nada! Não se mova! ANTUNES Quem é? CARDOSO (VS) É o Cardoso, o senhor não me conhece. A Sílvia está subindo. Não saia do interfone. Fique parado! ANTUNES Por quê? Sílvia entra correndo na cozinha, seguida de André. Antunes desliga o interfone. ANTUNES O que está acontecendo? SÍLVIA Vamos para a sala. ANDRÉ Nós precisamos conversar. Os três. Cardoso e Marinês chegam. CARDOSO Minha bolsa. Cardoso pega a bolsa. ANDRÉ Os cinco. Desculpa, eu não lhe apresentei o Cardoso e a Marinês. Eles são meus... sócios. ANTUNES O que vocês querem? ANDRÉ Uma cerveja. A gente esqueceu esta cerveja. Junto com a bolsa. E o Cardoso esqueceu a geladeira ligada. ANTUNES A geladeira ligada? ANDRÉ Exatamente. A gente viu que a geladeira está com um problema. ANTUNES Que tipo de problema? ANDRÉ Um problema no motor, tem que deixar ela desligada. A geladeira está vazando gás. Não sentiu o cheiro? E é por isso que a gente voltou. Para pegar a cerveja, a bolsa. E para o Cardoso desligar a geladeira. Com cuidado. CARDOSO Eu? ANDRÉ É. Com cuidado. Cardoso, sem alternativa, se abaixa para desligar a geladeira. Segura a flecha, junto a tomada. Fecha os olhos. Puxa o fio, desligando a geladeira. O motor pára. Cardoso suspira aliviado André pega a cerveja e a bolsa e vai saindo. ANDRÉ É melhor deixar assim, desligada, e chamar a assistência técnica. Nós vamos indo. Vamos? Os quatro vão saindo. ANTUNES E quando é que a gente resolve aquele nosso assunto? ANDRÉ Amanhã. Amanhã sem falta. Boa noite. SÍLVIA (para Antunes) Não precisa me esperar. CENA 183 - CASA DE SÍLVIA - EXTERIOR/NOITE Os quatro se aproximam do carro. ANDRÉ (para Sílvia) Como é que você vai explicar que a comida foi parar dentro da máquina de lavar... CENA 184 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Antunes entra na cozinha, com a lata de cerveja na mão. Aproxima- se da geladeira. ANDRÉ (VS) ...e o botijão de gás dentro da geladeira? CENA 185 - CASA DE SÍLVIA - EXTERIOR/NOITE Os quatro se acomodam no carro. CARDOSO E a galinha? SÍLVIA Eu não vou explicar nada. Liguei a geladeira outra vez. CENA 186 - CASA DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE O fio da tomada, ligado. Antunes abre a geladeira. A luz, quebrada, acende e incendeia. CENA 187 - CASA DE SÍLVIA - EXTERIOR/NOITE Uma grande explosão, ao fundo, destrói o apartamento. SÍLVIA Vamos embora? O carro se afasta, cruzando com os bombeiros que se aproximam. CENA 188 - APARTAMENTO DE SÍLVIA/INTERIOR - DIA O inspetor Cecílio verifica a cena do crime, um apartamento completamente destruído. CARDOSO (VS) "Segundo o inspetor Cecílio, foi encontrado no local parte do dinheiro roubado na agência da Presidente Roosevelt, além de falsificações de cinqüenta reais e uma galinha. A galinha, que estava dentro do armário da sala, sobreviveu a explosão". Eles falam mais da galinha que do morto. ANDRÉ (VS) Eles adoram história com bicho. CENA 189 - ALTO DO CORCOVADO - INTERIOR/DIA Cardoso fecha o jornal. Os quatro ficam parados, lado a lado, olhando para frente alguns segundos. CARDOSO O que você achou? Legal, né? MARINÊS Interessante. Um pouco ventoso. ANDRÉ Vamos embora? Os quatro estão no alto do Corcovado, o Rio numa tarde de sol ao fundo. Eles sobem as escadas na direção da estátua. Sílvia fica para trás. André olha para cima, para o Cristo. Nuvens esparsas cruzam o céu por trás do Redentor, braços abertos sobre a Guanabara. Fade-Out. Letreiro: A História de Sílvia em Seis Minutos. CENA 190 - ALTO DO CORCOVADO - INTERIOR/DIA Sílvia caminha no alto do Corcovado, olhando para cima. SÍLVIA (VS) Meu nome é Sílvia Maria, mas o Maria eu não uso. CENA 191 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Sílvia de pijama, em sua sala, luz apagada. Ela vê André na janela do seu quarto, de binóculo. SÍLVIA (VS) A primeira vez que eu vi o André ele estava me espiando da janela do quarto dele. Eu fui até a sala, no escuro, e vi que ele estava na janela, de binóculo, olhando para o meu quarto. CENA 192 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Sílvia em seu quarto, desfila de calcinha e sutiã. SÍLVIA (VS) Voltei para o quarto, abri uma fresta na janela, botei uma calcinha nova e passei na fresta, bem devagar. Depois corri para a sala para ver se ele tinha visto. Ele tava durinho na janela. CENA 193 - FRENTE DO PRÉDIO DE ANDRÉ - EXTERIOR/DIA Sílvia na rua, seguindo André, que sai de seu prédio. SÍLVIA (VS) No outro dia acordei cedo e fiquei esperando ele sair do prédio. Segui ele até a papelaria. CENA 194 - PAPELARIA - INTERIOR/DIA André está fazendo cópias e lendo algo. Marinês vem atender Sílvia, mas ela finge que olha uma revista e sai. SÍLVIA (VS) Entrei, mas ele não me viu. Estava lendo, concentrado. Achei bonitinho. Fui embora. CENA 195 - FRENTE DO PRÉDIO DE SÍLVIA - EXTERIOR/DIA Sílvia vê que André a segue pela rua. SÍLVIA (VS) Uns dias depois achei que ele estava me seguindo na rua. Corri para pegar o ônibus, só para confirmar. CENA 196 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA Sílvia percebe que André a segue dentro do ônibus. SÍLVIA (VS) Estava mesmo. Subi um pouco a saia e abri um botão da blusa. Passei roçando nele. CENA 197 - LOJA SÍLVIA - INTERIOR/DIA Sílvia, através da vitrine da loja, vê André rondando pela calçada. SÍLVIA (VS) Ele me seguiu até a loja. Ficou horas fazendo volta para entrar. Sílvia atende André na loja. SÍLVIA (VS) Acabou entrando e inventando um presente para a mãe. Achei mais bonitinho ainda. SÍLVIA Você pode me dar dois pré-datados pelo chambre. ANDRÉ É? Hmm, legal. De repente... eu volto. Silvia, não é? SÍLVIA Isso. ANDRÉ Tá bom. Obrigado, hein? SÍLVIA Obrigado a você. SÍLVIA (VS) Ele disse um "Obrigado" assim, automático, sem olhar para mim. Tive certeza que ele não ia aparecer nunca mais. Respondi "Obrigado a você", assim olhando para baixo, para ele não perceber que eu estava interessada. CENA 198 - RESTAURANTE - INTERIOR/DIA Sílvia vê André pelo reflexo da vitrine e entra no restaurante. SÍLVIA (VS) Passei a almoçar perto da loja, para ele poder me seguir até o restaurante. CENA 199 - ÔNIBUS - EXTERIOR/NOITE Sílvia vê que André está entrando no ônibus e disfarça, finge que está lendo um livro. SÍLVIA (VS) Troquei de ônibus, para ver se me encontrava com ele. Deu certo CENA 200 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Sílvia, em sua cama, lê. SÍLVIA (VS) Eu queria namorar alguém que me tirasse daquela casa. Minha mãe morreu quando eu tinha onze anos. Sílvia, entra no banheiro. O pai se aproxima para espiar. SÍLVIA (VS) Meu pai era tarado e ficava me olhando no banho. CENA 201 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Ponto de vista de Antunes, pelo buraco da fechadura, parece ser uma mulher nua. Na verdade, é a mão fechada de Sílvia, muito próxima da fechadura. SÍLVIA (VS) Felizmente ele era bastante míope. Sílvia cobre a fechadura com uma toalha. SÍLVIA (VS) O pior é que ele pegava dinheiro na minha bolsa. CENA 202 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Sílvia, na loja, vê a foto de Paulo no jornal.. SÍLVIA (VS) Minha mãe tinha um namorado, que eu queria que tivesse sido o meu pai. Para mim ele foi. CENA 203 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Sílvia, na janela de seu quarto, olha o cartão postal do Corcovado. SÍLVIA (VS) Acho que para ela também. Ele mora no Rio. CENA 204 - PRAÇA NA BEIRA DO RIO - EXTERIOR/DIA Sílvia e André se beijam na beira do rio. SÍLVIA (VS) Tudo o que eu queria é que o André tivesse dinheiro para me tirar dali e me levar para o Rio. CENA 205 - RESTAURANTE CHIC - INTERIOR/NOITE André - Sílvia e Antunes jantam no restaurante. SÍLVIA (VS) Aí aconteceram três coisas ótimas: o André assaltou um banco, deu um tiro na perna do meu pai e me convidou para ir para o Rio. CENA 206 - FRENTE DO RESTAURANTE - EXTERIOR/NOITE Antunes e Sílvia - na calçada do restaurante, se afastam de André. Sílvia se vira, chega a ver Feitosa que se aproxima de André, ao fundo. SÍLVIA (VS) Aí ele quis tirar o dinheiro do André. CENA 207 - QUARTO DE ANDRÉ - INTERIOR/NOITE Sílvia e André na cama. SÍLVIA (VS) Eu disse para o André que sabia de tudo, mas não contei que já sabia que ele era operador de fotocopiadora. Ele me contou do assalto e que ganhou na loteria. Pedi ele em casamento. Ele aceitou. CENA 208 - APARTAMENTO DE SÍLVIA - INTERIOR/NOITE Sílvia escreve o bilhete para Paulo. SÍLVIA (VS) Escrevi para o namorado da minha mãe. Marquei com ele no Rio, no alto do Corcovado, para não dar desencontro. CENA 209 - ALTO DO CORCOVADO - INTERIOR/DIA Sílvia caminha no alto do Corcovado. PAULO, 60 anos, se aproxima. SÍLVIA (VS) Achei que ele não vinha mais. PAULO Sílvia? SÍLVIA Paulo. Se abraçam, carinhosos. PAULO Menina, você é a cara da sua mãe! SÍLVIA Ela falava muito do senhor. PAULO Senhor não, pelo amor de deus. (aponta para o Cristo) Senhor é ele. SÍLVIA Ela tinha uma foto sua. Eu guardei. Mostra a velha foto de Paulo no jornal. PAULO Olha como eu tinha cabelo, que beleza! André, Cardoso e Marinês se aproximam. SÍLVIA Esse é o André, meu namorado. Este é o Paulo, amigo da minha mãe que eu te falei. Esta é a Marinês... e o Cardoso. CARDOSO Tudo bem? PAULO Chegaram quando? MARINÊS Ontem. PAULO Estão com fome? CARDOSO Um pouco. PAULO Querem comer o quê? Gostam de peixe? Os cinco descem as escadas na direção do estacionamento. Nuvens esparsas cruzam o céu por trás do Redentor, braços abertos sobre a Guanabara. FIM ******************************************************************* (c) Jorge Furtado, 2001-2003 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br