HOUVE UMA VEZ DOIS VERÕES roteiro de Jorge Furtado versão de 15 de Março de 2001 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre ******************************************************************* CENA 1 - PRAIA - EXTERIOR/DIA Uma praia se perde no horizonte, quase vazia. O vento surge e some em linhas de areia branca, o céu é branco e o mar quase marrom. Muito ao longe, um HOMEM se aproxima. CHICO e JUCA, 16 anos, estão sentados numa duna quase na beira da praia, olhando para o mar. Chico está de boné. Juca tem uma tala no pescoço. Chico dá uma olhada na direção do Homem que se aproxima: quarenta anos, copo de cerveja na mão, relógio. CHICO (OFF) Esta é a maior praia do mundo, trezentos e cinqüenta e três quilômetros, está no livro dos recordes. Talvez seja também a pior praia do mundo, principalmente em março. Em janeiro e fevereiro pode até ser divertido, mas em março é um saco. A gente tem que inventar coisas para fazer todo tempo. Não é fácil. O homem se aproxima e, quando chega exatamente na frente dos dois, pisa num buraco. O Homem quase cai, derramando um pouco de cerveja. Chico e Juca ficam imóveis. O homem examina o buraco, tapado por jornais e areia, uma evidente armadilha. O homem, furioso, olha para os lados, olha para os dois, volta a olhar para os lados. Juca e Chico não movem um músculo do rosto. O homem olha fixamente para os dois. Uma lágrima escorre pelo rosto de Juca. CHICO (OFF) Quando eu estou louco para rir mas não posso, penso em coisas muito tristes. Minha mãe reclamando da casa. Meu pai tentando nos convencer que esta é a melhor praia do mundo. Meu pai fazendo contas para pagar nossas férias. Um filho que eu posso ter um dia me olhando fazer contas para pagar as férias dele. Eu tentando convencer um filho que eu posso ter um dia que esta é a melhor praia do mundo. Quase sempre funciona. O homem recua, de olho fixo em Chico e Juca, pisa no buraco e cai para trás. O homem se estatela na areia, derrama toda a cerveja na própria cara. Juca dá uma gargalhada. CHICO (OFF) Quase sempre. Os dois se levantam e saem correndo, rindo. O homem grita, tenta se levantar. Juca e Chico correm pelas dunas. Créditos Iniciais. CENA 2 - PLAYLAND - INTERIOR/NOITE Um flíper (uma casa de diversões eletrônicas). Chico e Juca estão jogando fla-flu (pebolim). Duas meninas entram. Juca olha para as duas. Uma é MORENA, cabelo curto e nariz fino. A outra é RUIVA, sardas, olhos claros. Pedem duas cocas. Juca olha para Chico. Juca pega a bolinha do fla-flu e, disfarçando, joga na direção delas. Vai atrás. JUCA Com licença? Juca se abaixa e pega a bolinha junto aos pés das duas. As meninas ficam olhando para ele, de tala no pescoço. JUCA Obrigado. MORENA O que aconteceu? JUCA A bolinha caiu. MORENA No pescoço. JUCA Ah. Desloquei a terceira vértebra cervical. Eu estava pegando onda, fui dar um drop, meu parceiro estava no tubo, pranchou. Mas tudo bem, já estou pronto para outra. Vocês estão aqui? MORENA Estamos, né? JUCA Quero dizer, estão passando o verão aqui? MORENA Não. Meu namorado está botando gasolina, estamos indo para o Rosa. Sabe a praia do Rosa? Fica em Santa Catarina depois do... JUCA Então tchau. Ele se vira, dá as costas, deixa ela falando sozinha. Volta para o jogo. CHICO E aí? JUCA Namorado de carro, não dá para meter. Ainda mais com cachumba. CHICO Tu disse que estava com cachumba? JUCA Claro que não. Eu estou na fase de maior contágio. Se eu cuspir em ti tu tá frito. CHICO Eu já tive cachumba. Todo mundo já teve cachumba. O centroavante segura a bola, toca sutilmente de lado para o ponteiro esquerdo que, numa roleta precisa, acerta o canto direito do gol, sem chances para o arqueiro. Gol de Chico. Termina o jogo. CHICO Cinco a três. (vão saindo) Vamos pro outro? JUCA Não, vou dormir. O médico disse que a cachumba pode descer pro saco, já pensou? Eu de sunga, na praia, caminhando de perna aberta. CHICO Não, não pensei. Os namorados das meninas entram. MENINA (para Juca) Esse é o meu namorado. Juca fica olhando para o cara algum tempo. Sorri, abraça o sujeito, fica abraçado nele. JUCA Aí, brother. Tudo certo? Firmeza. (tosse sobre o cara, tosse, tosse) É isso aí. Boas ondas. Vão saindo. Juca pára. JUCA (para o cara) Tu já teve cachumba? O cara faz que não. Juca sorri e sai. O cara fica se apalpando no pescoço, preocupado. CENA 3 - PLAYWORLD - INTERIOR/NOITE Chico entra em outro flíper, este com mais brinquedos eletrônicos e menos jogos de mesa. Chico compra duas fichas. Vai para um brinquedo de tiro ao pato. CHICO (OFF) Meu recorde nos patos é setenta e dois. Meu vice- recorde é cinqüenta e quatro. Quase sempre eu faço entre quarenta e cinco e cinqüenta, cinqüenta e dois. O dia dos setenta e dois patos foi um acontecimento, eu estava em estado de graça, atirava nos patos antes deles aparecerem. Eu estava integrado em alguma força cósmica, sabia que o pato ia subir, o anjo da guarda do flíper estava pousado no meu ombro e dizia: lá vem um pato. No dia em que eu conheci a Roza o anjo da guarda do flíper não estava me dizendo nada sobre os patos. Sorte dos patos e também sorte minha. No game-over a luz da máquina se apagou e ela apareceu no reflexo. Chico vê o reflexo de Roza na máquina. Vira-se. (Cena em câmera lenta.) ROZA, 18 anos, vestido de alcinha e cabelo preso, tenta colocar uma ficha no pimbal. Chico fica admirando a beleza da moça, só comparável a sua inaptidão para lidar com a máquina. Roza põe a ficha no lugar errado, não entra. Põe a ficha no lugar certo mas aperta o botão errado e a máquina devolve a ficha. Chico se aproxima. CHICO É no outro buraco. ROZA Já tentei, não deu. CHICO Tu apertou no botão errado. Põe de novo. Ela põe a ficha no buraco certo. CHICO Agora aperte o botão "play". ROZA Qual é? CHICO O grande, com a luz vermelha, escrito "play". Ela aperta e a máquina se acende. ROZA Deu! Obrigado. Ela joga. Ele põe outra ficha na sua máquina e finge atirar nos patos. Uma CRIANÇA se aproxima e fica olhando Chico atirar. Chico nem olha para os patos, não tira os olhos de Roza. Ela é péssima, mal consegue botar a bola em jogo. Quando consegue, perde a bola sem tocar nela nenhuma vez. Joga outra bola e perde. Chico erra nos patos. Roza perde mais uma bola. Chico erra nos patos. Roza perde mais uma bola, e mais uma. As duas máquinas informam game-over quase ao mesmo tempo. A criança olha para Chico. CRIANÇA Tu é horrível. Chico sorri. Vai comprar mais fichas, encontra-se com Roza no caixa. ROZA Vou eu botar mais dinheiro fora. CHICO Quer churros? ROZA O quê? CHICO Tu... quer comer um churros? Eu pago. ROZA Já comprei uma ficha. CHICO Depois a gente volta. Roza observa Chico alguns segundos. ROZA Tudo bem. CENA 4 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE Chico e Roza observam o vendedor de churros preparando a massa. CHICO Meu nome é Chico. Francisco. ROZA O meu é Roza. Roza com z. CHICO Por que com z? ROZA O cara do cartório era meio analfabeto. Só descobri que era com z há três anos. Achei legal. Rosa com "s" tem muitas. Com z, só eu. CHICO O meu Chico é com "x" e com "q". ROZA É? CHICO Mentira, é Chico mesmo. Tu quer doce de leite ou creme? ROZA Doce de leite. CHICO Os dois com doce de leite. ROZA Eu nem sei porque existe churros com creme, nunca vi ninguém pedir com creme, doce de leite é muito melhor. CHICO É bom que exista o de creme. É mais legal comer pensando "eu estou comendo o melhor" do que comer pensando "eu estou comendo o único que tinha para comer". ROZA Isso é. CHICO Sua casa é por aqui? ROZA Não. Lá perto não tem flíper. Vamos comer na praia? CENA 5 - PRAIA - EXTERIOR/NOITE Chico e Roza caminham pela praia, comendo churros. ROZA Por que tu tira férias em março? CHICO É mais barato. ROZA Tá perdendo aula? CHICO Só uma semana. Na primeira semana nunca acontece muita coisa. E tu? ROZA Eu gosto de praia em março. Tem menos gente. CHICO Tu vai à praia que horas? ROZA De tarde. Acordo para almoçar. Teve uns dias que eu não fui, mas essa última semana eu vou aproveitar. Em janeiro e fevereiro tu fica em Porto Alegre? CHICO Fico. E tu? ROZA As vezes eu viajo. Tu viu como as tatuíras brilham com a lua? São fluorescentes. CHICO Fosforescentes. ROZA Qual a diferença? CHICO Fluorescentes é de flúor, fosforescentes é de fósforo. As lâmpadas são fluorescentes, as tatuíras são fosforescentes. ROZA Tu tá com doce de leite no queixo. Ela passa o dedo no queixo dele, tirando o doce de leite. Ele fica olhando para ela, recortada contra a lua cheia. Ela oferece o dedo para ele. Ele chupa o dedo dela. CHICO Tu tá cheia de açúcar. Ela limpa o açúcar com a mão, ele segura o braço dela. Beijam-se, um beijo longo e silencioso, iluminado pela lua e pontilhado por tatuíras fosforescentes. CENA 6 - CASINHA DO SALVA-VIDAS - EXTERIOR/NOITE Chico e Roza estão sentados na casinha do salva-vidas olhando para o mar. ROZA Tu vai fazer vestibular? CHICO Ano que vem. ROZA Para quê? CHICO Não sei ainda. Comunicação ou letras. Ou desenho industrial. Se bem que eu gosto de computação também. ROZA Eu fiz para arquitetura mas não passei. Este ano nem me inscrevi. Quero viajar, tô guardando dinheiro. Acho que vou para a Austrália. CHICO Por que para Austrália? ROZA Tenho uma amiga que foi para lá. Austrália é bom que é bem longe. Tu fica lá, na Austrália, bem longe, todo mundo pensando que tu deve estar muito feliz. CHICO Tu fala inglês? ROZA More or less. E tu? CHICO Estou no cultural. ROZA Tu é virgem? CHICO Não. Quer dizer, mais ou menos. ROZA Como assim? CHICO Acho que sou. ROZA Acha? CHICO É que eu tive umas histórias, mas nada muito, assim, profundo. ROZA Sei como é. Quer deixar de ser? CHICO Quero, claro. Pausa. Roza fica olhando para Chico. CHICO Tu quer dizer, agora? ROZA Pode ser. Quer? CHICO Bom... acho que sim. ROZA Acha? CHICO Claro que sim. Beijam-se. A lua reflete no mar, as tatuíras passeiam pela areia. CENA 7 - CASINHA DO SALVA-VIDA - EXTERIOR/DIA Chico acorda, sol na cara suja de areia. Roza não está. Ele encontra a ficha do flíper. Olha para a praia, quase deserta. Chico desce da casinha e vê as pegadas de Roza se afastando. CENA 8 - PRAIA - EXTERIOR/DIA Chico segue as pegadas. As pegadas de Roza se dirigem para a grama na beira da praia. Chico ainda consegue seguir um pouco as pegadas de areia na grama mas logo elas desaparecem, misturadas com outras. CENA 9 - PRAÇA - EXTERIOR/DIA Chico procura Roza pela praça vazia. Guarda a ficha de flíper. CENA 10 - EDIFÍCIO QUEBRA-MAR - EXTERIOR/DIA Juca e Chico saem do apartamento e caminham pelos corredores do prédio. Juca carrega uma sacola com pão e leite. JUCA Tu comeu? CHICO Comi. JUCA Mentira. CHICO Juro. JUCA Jura por Deus? CHICO Juro. JUCA Pela alma da tua mãe? CHICO Juro. JUCA Pela bunda da Silmara? CHICO Juro. JUCA Não acredito. CHICO Comi. Juro. Na verdade, ela é que me comeu. JUCA Tá brincando? Que rabo! Será que ela dá para mim? CHICO Tá louco? JUCA O que que tem? Vocês tão namorando? CHICO Não. Não sei. Não falei com ela ainda. JUCA Mas tu tá a fim? CHICO Tô. JUCA Que rabo! Será que ela não tem uma amiga? CHICO Não sei. JUCA Deve ter. E a amiga deve dar também. Se uma dá, as outras também dão. CHICO Por quê? Eu já transei e tu não. JUCA Transou ontem. Se tu tivesse transado há tempo eu também já tinha. É melhor que punheta? CHICO É totalmente diferente. JUCA Como assim? CHICO É diferente. JUCA Diferente como? CHICO Muito melhor. É outra coisa. JUCA Não sei. Acho que vou morrer de vergonha de me acabar na frente de alguém. Fico ridículo, já me vi no espelho. (faz a careta) A guria vai me ver me acabando é vai ter um ataque de riso, tenho certeza. CHICO Não vai. É muito bom. Juca pega um pão na sacola e come um pedaço. JUCA Bom como? CHICO Tu pára de pensar, isso é o melhor. Parece que... tu tá explodindo e ficando inteiro ao mesmo tempo. É quente, molhado. Juca come mais um pedaço de pão. JUCA Continua. CHICO Não enche o saco. JUCA Que cor era a calcinha? CHICO Juca, não enche o saco. CENA 10A - EDIFÍCIO QUEBRA-MAR - EXTERIOR/DIA Chico e Juca saem do prédio, caminham na direção da praia. CHICO Não sei onde ela mora. JUCA A gente acha. Não tem ninguém nessa praia. Vamos procurar. Tenho que passar em casa, deixar o pão e trocar de camisa. CHICO Por quê? JUCA Não sei o que está escrito nessa camisa. E se a guria pergunta o que está escrito? Elas adoram perguntar essas coisas. Se ela pergunta o que está escrito na minha camisa e eu não sei, não dá para trepar. CHICO Quem vai trepar? A gente só vai procurar por ela na praia. JUCA Nunca se sabe. Vou botar a branca da zoomp. Ou então a listada da forum. Não, a listada da forum é meio gay. A branca da zoomp. Merda, por que eu não cortei meu cabelo ontem! Se soubesse que hoje eu ia trepar... CHICO Tu nem sabe se ela tem alguma amiga. E se tiver, pode ser um trubufu. JUCA Hoje eu como até gorda. Chico e Juca fazem a curva da esquina e se afastam. CENA 11 - PRAIA - EXTERIOR/DIA Chico e Juca caminham pela praia, agora mais cheia que das outras vezes. Juca está vestindo uma camisa com a cara do Shakespeare e um texto escrito: ...But love is blind and lovers cannot see the pretty follies that themselves commit. Shakespeare Crianças brincam, alguns homens jogam futebol. Passa um sorveteiro. CHICO Vamos voltar? JUCA Outra vez? CHICO Ela pode ter chegado agora. JUCA Vamos perguntar. CHICO Perguntar como? JUCA Se alguém conhece a Roza. Roza com z. CHICO Para todo mundo? JUCA Não, só para as gurias. Deixa que eu pergunto. Juca se aproxima de VIOLETA, 16 anos. Ela está sentada sob o guarda-sol, lendo uma revista, de camiseta e biquini. JUCA Oi. Tudo bem? Por acaso, tu não conhece uma menina chamada Roza? Roza com z. Ela está numa casa por aqui. VIOLETA Conheço. JUCA Conhece? VIOLETA Conheço. Chico se aproxima. JUCA (para Chico) Ela conhece. CHICO Ó. VIOLETA Oi. CHICO Tu sabe onde ela mora? VIOLETA Não, só encontro na praia. CHICO Sabe de alguém que conhece ela? VIOLETA Não. Acho que ela vem sempre sozinha. JUCA Meu nome é Juca. Esse é o Chico. VIOLETA Oi. JUCA Seu nome como é? VIOLETA Violeta. JUCA Posso te chamar de Vi? VIOLETA Não. JUCA Desculpe. VIOLETA Tudo bem. CHICO E tu... não viu ela hoje? VIOLETA Não. CHICO Bom... então tá, obrigado. A gente vai dar mais uma procurada. Violeta larga a revista, levanta-se, tira a camisa. VIOLETA Eu vou com vocês. JUCA Vai? Boa, vamos. Os três caminham pela praia. Juca no meio, caminha sem tirar os olhos de Violeta. VIOLETA Legal essa camisa. JUCA Ah, brigado. VIOLETA O que está escrito? JUCA O amor é cego e os amantes não podem ver as bonitas folias que eles mesmo cometem. VIOLETA Bonitas folias? JUCA É. É do Shakespeare. VIOLETA Faz tempo que tu não corta o cabelo? JUCA É, tava deixando. Mas vou cortar. VIOLETA Achei legal. JUCA Vou cortar um dia. Não sei quando. Talvez eu deixe. CHICO A Roza te disse onde mora em Porto Alegre? VIOLETA Não. Vocês moram onde? CHICO Tristeza. JUCA Floresta. VIOLETA Onde na Floresta? JUCA Perto da Cristóvão. VIOLETA Eu moro na Cristóvão. JUCA Tá brincando? Perto dos bombeiros? VIOLETA Não, mais para cima. Sabe o Hospital Militar? Juca e Violeta param de caminhar. Chico pára também. CHICO A Roza te disse se ia a algum lugar? VIOLETA (para Chico) Eu só vi a Roza uma vez. (para Juca) O que aconteceu no teu pescoço? JUCA Tu já teve cachumba? VIOLETA Já. Tu tá com cachumba? JUCA Não, não, é que eu tô fazendo uma pesquisa. Desloquei a terceira vértebra cervical. Eu estava pegando onda, fui dar um drop, meu parceiro estava no tubo, pranchou. Mas tudo bem, já estou pronto para outra. VIOLETA Tu surfa? JUCA Surfo. E tu? Chico vai saindo. CHICO Eu vou procurar mais um pouco. JUCA Isso aí. VIOLETA Tchau. Chico caminha pela praia. Ao fundo, Juca e Violeta seguem conversando. CENA 12 - PRAIA - EXTERIOR/DIA Passagem de tempo, Chico caminha entre as árvores na beira da praia, procurando Roza. Vê uma MENINA DE COSTAS, parecida com ela, namorando com um RAPAZ, sentados no chão. Chico faz a volta para tentar ver o rosto da menina. Ela o vê, se assusta e fecha o zíper da calça. CHICO (OFF) Procurei Roza todos os dias. Na praia e no flíper. Ela sumiu. Chico desce para a praia e passa por Juca, já sem tala no pescoço, e Violeta, que estão se agarrando sob um guarda-sol. Abana. Eles abanam. CHICO (OFF) Juca passou três dias chamando a Violeta de Vi, Vivinha, Viviquinha, essas coisas. E ainda não comeu. CENA 13 - BAR DE PRAIA - INTERIOR/NOITE Juca dá um beijinho em Violeta e sai da mesa, arrastando Chico, que estava entrando no bar, pelo braço. Juca está de jaqueta, boné e echarpe. CHICO Que roupa é essa? JUCA Depois te explico. Ela tá sozinha em casa, a mãe só volta no fim-de-semana. Tu tem que me ajudar. CHICO Quer que eu segure ela pra ti? JUCA Tu tem que ir junto, com outra guria. A gente come uma pizza aqui, depois vai para casa dela. Aí a gente joga carta, toma um vinho. O resto deixa comigo. Gravei uma fita só com umas baladas, não tem erro. Tu tem que ir. Com outra guria. CHICO Que guria? JUCA Qualquer uma. Convida alguém. CHICO Quem? JUCA Sei lá. Te vira. Pelo amor de deus, Chico. CHICO Eu não tenho grana, tô duro. JUCA Eu pago o jantar e o vinho. CHICO Não. Eu não estou a fim de arrumar uma guria assim. JUCA Assim como? CHICO Eu vou procurar a Roza. Acho que ela tá em outra praia. JUCA A Roza sumiu, Chico, deve ter voltado para Porto Alegre. CHICO Ela disse que ia aproveitar essa última semana na praia. Deve ser outra praia. JUCA E como é que tu vai procurar ela em outra praia se tu não tem dinheiro nem pra jantar? Te dou cem reais. CHICO Cem reais? Tá louco? JUCA Cem reais. (mostra duas notas de cinqüenta) Olha aqui. Por favor, Chico. Amanhã tu procura a Roza. Chico pega as duas notas, põe no bolso. CHICO Tá, vou ver. JUCA Se tu não for quero o dinheiro de volta. CHICO Vai para lá. Juca volta para a mesa com Violeta. Chico dá uma olhada pelo bar. Vê uma guria sozinha. Se aproxima. O namorado dela chega, beijam- se. Chico desvia, disfarça. Chico vê CARMEM, 18 anos, saia curta, mini-blusa, conferindo o cardápio numa mesa da calçada. Chico se aproxima. CHICO Oi. Carmem olha para ele desconfiada. CARMEM Oi. CHICO Tá sozinha? CARMEM Por quê? CHICO Eu estou. Quer jantar comigo? CARMEM Não, obrigado. Chico dá outra olhada pelo bar, mas só vê meninas acompanhadas. CHICO Olha, é o seguinte. Está a fim de ganhar cinqüenta reais? CARMEM (mais desconfiada) A troco? CHICO O meu amigo ali está com uma namorada. Ele quer comer uma pizza e depois jogar carta na casa dela. E quer que eu vá junto. Me pagou cem reais. Te dou cinqüenta para tu ir comigo. CARMEM Cinqüenta reais para comer uma pizza, tomar vinho e jogar carta com vocês? CHICO É. CARMEM Até que horas? CHICO Meia-noite, no máximo. CARMEM Só isso? CHICO Só. Prometo. Comer e jogar carta. Depois a gente vai embora e deixa os dois. Ela abre a bolsa e mostra um tubo de spray. CARMEM Sabe o que é isso aqui? CHICO Não. O que é? CARMEM Spray repelente para urso. É feito de pimenta. Se eu jogar isso na tua cara tu fica sem enxergar uns dois dias. CHICO Não te preocupa. É só para comer e jogar carta mesmo. Eu prometo. CARMEM E quem paga a conta aqui? CHICO Ele paga. CARMEM Tudo bem. Cadê o dinheiro? CENA 14 - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE Juca abre o vinho sempre olhando de forma romântica para Violeta. Ela, um pouco bêbada, gostando. Carmem, achando ridículo, observa. Chico olha pra ela meio que se desculpando pelo amigo. Juca serve o vinho no copo com a boca virada para baixo. CENA 14A - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE Chico e Carmem estão na mesa. Carmem está com a bolsa na mão, desconfiada. Violeta pega copos e Juca abre a segunda garrafa de vinho. JUCA Vocês sabem jogar dorminhoco? CARMEM Dorminhoco? Não. Sei jogar pôquer, escova, buraco. Violeta, que evidentemente já bebeu mais do que devia, arruma as cartas. VIOLETA É fácil. Dezessete cartas, às, rei, dama e valete dos quatro naipes. JUCA E um coringa. VIOLETA E um coringa. JUCA Quatro cartas para cada um e um recebe cinco. VIOLETA Tem que formar os quartetos, cada um passa uma carta por vez. JUCA Quem pega o coringa tem que ficar uma rodada, não pode passar de primeira. VIOLETA É fácil. JUCA Quem formar primeiro baixa as cartas na mesa. O último a baixar é o dorminhoco. VIOLETA (para Juca) Queima a rolha pra marcar. Carmem põe a mão na bolsa. CARMEM Rolha? Que rolha? (para Chico) Tu não falou em rolha. VIOLETA A gente queima uma rolha e marca o dorminhoco de preto. Sai com água. JUCA Melhor! Vamos fazer assim: quem perder tem que tirar uma peça de roupa. VIOLETA Isso! Melhor que rolha! JUCA Combinado? CARMEM (larga a bolsa) Pode ser. É melhor que rolha. JUCA Ótimo! Violeta põe as cartas na mesa. Juca serve o vinho. VIOLETA (para Carmem) Corta. Carmem corta o baralho, Violeta dá as cartas. CENA 15 - CASA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE Passagem de tempo. Chico, só com um pé do tênis, está sem camisa, de calça. Violeta, quase dormindo, está de sutiã e saia. Carmem está completamente vestida. Juca está só de cueca e meias. CHICO (OFF) Com cinqüenta reais dá para comer quatro dias, dormindo na barraca. Posso ir de ônibus e voltar de carona, parando em cada praia. Ela diz que vai a praia de tarde, eu viajo de manhã e procuro na praia de tarde. Carmem baixa as cartas. Chico baixa as cartas. Juca baixa as cartas. Violeta continua de cartas na mão, fecha os olhos, cabeceia de sono. JUCA Violeta! VIOLETA O quê? Ela acorda e baixa as cartas. JUCA Violeta! A saia! VIOLETA Ainda tenho as meias. JUCA Duas? VIOLETA Duas. Com licença. Violeta levanta. Cambaleia, quase cai. Chico levanta para segurá- la. Ela caminha para o sofá. Deita. Tenta tirar a meia mas não consegue. Deita a cabeça no sofá, fica com a meia pela canela. CHICO E agora? JUCA Deixa que eu tiro. Juca levanta e puxa a meia-calça de Violeta. Ela adormeceu profundamente. JUCA (tentando acordá-la) Violeta! Violeta! CARMEM Deixa ela dormir. (olha o relógio) Acabou o jogo. Meia-noite. Obrigado pelo jantar e pelo vinho. Chico veste a camisa. CHICO Eu vou contigo. CARMEM (para Juca) Tu não é colega do Gustavo? JUCA Que Gustavo? CARMEM O Cabeça, da Praça da Matriz. JUCA Sou. Por quê? CHICO Eu vou levar ela para a cama. Chico ergue Violeta e a arrasta para o quarto. CARMEM Eu sabia que te conhecia. Eu sou prima do Gustavo. JUCA Prima? Do Cabeça? CARMEM É, prima. JUCA Olha só. Legal. E o Cabeça vai bem? CARMEM Faz tempo que eu não vejo. JUCA Pois é. CARMEM Bom, a gente se vê por aí. Obrigado pela pizza. E pelo vinho. JUCA Ainda é cedo. CARMEM O combinado foi meia-noite. JUCA Que combinado? CARMEM Ele me pagou cinqüenta reais para eu ficar até a meia-noite. JUCA Ah, é? CARMEM É. JUCA Quanto tu quer para ficar mais um pouco? CARMEM (ela sorri) Se for para jogar esta bobagem, quinhentos. (insinuando-se) Agora, se tu quiser fazer alguma coisa mais interessante... cento e cinqüenta. CENA 16 - QUARTO DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE Chico larga Violeta na cama mas um botão da gola de sua camisa fica preso no sutiã, um daqueles que prende pela frente. Chico fica debruçado sobre Violeta na cama e tenta soltar o botão da camisa. Não consegue. Puxa o botão mas ele não se solta. Chico tira a camisa. Tenta soltar o botão mas ele está muito preso. Chico tenta arrancar o botão e ele fica preso por um fio de linha no sutiã. Chico resolve partir o fio de linha com os dentes. Quando ele está mergulhado entre os seios de Violeta ela acorda, sem entender muito o que está acontecendo. VIOLETA Chico? Chico consegue soltar o botão. CHICO Oi? VIOLETA Chico, eu acho que eu bebi demais. CHICO Acho que sim. A gente já vai. VIOLETA Tá. Eu vou dormir. Pede desculpas pra eles. Diz pra eles que eu acho que bebi demais. CHICO Tá bom. Dorme. Violeta vira de lado e dorme. Chico veste a camisa. Juca entra. JUCA Cadê aquele dinheiro que eu te dei? CHICO Só tenho cinqüenta. Por quê? JUCA Me empresta. CHICO Para quê? JUCA Para dar para a Carmem. Fim de semana meu pai chega e eu te pago. CHICO Vou precisar do dinheiro amanhã. JUCA Chico, tu não tinha dinheiro nenhum, esse dinheiro eu te dei para tu me fazer um favor que tu devia fazer de graça. Eu preciso do dinheiro agora e tu não quer me emprestar? CHICO Tá bom. Chico entrega o dinheiro a Juca. JUCA Fica aí. Juca sai. Chico olha Violenta dormir. Senta e pega uma revista. CENA 17 - SALA DE VIOLETA - INTERIOR/NOITE Juca entra na sala. Carmem está sentada no braço do sofá. Juca se aproxima, mostra a nota. JUCA O resto eu te dou depois. Carmem sorri, pega o dinheiro, guarda. Põe a mão no ombro de Juca. Ele sorri. Ela se aproxima e beija-lhe a boca. Afasta-se. Ele abre os olhos. CARMEM O resto eu te dou depois. Tchau. Ela sai. Juca fica parado no meio da sala. Chico aparece na porta do quarto. CHICO Ela já foi? JUCA Já. CHICO E o dinheiro? JUCA Eu gastei. CENA 18 - PRAIA - EXTERIOR/DIA Chico e Juca caminham pela praia. Vêem o Surfista, de camisa e pescoço enrolado numa echarpe, sentado numa cadeira na beira da praia. A Morena está sentada no chão, ao lado dele. Juca esconde o rosto. Vêem Carmem com um SUJEITO. Ela abana para eles. Chico abana, Juca vira a cara. CHICO (OFF) Passei os últimos dias de praia procurando a Roza. Não encontrei. Voltei para Porto Alegre. CENA 18A - PORTO ALEGRE - EXTERIOR/DIA Imagens de Porto Alegre, muitos edifícios, muita gente na rua, muitas garotas da idade de Roza. CENA 19 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/DIA Chico em seu quarto, observa a tabela periódica de elementos químicos. Fecha o livro, vira-se para um pequeno teclado (Cassio). Sobre uma das teclas está a ficha de flíper. Ele toca alguma coisa sem usar a tecla com a ficha. Pára. Examina a ficha. CHICO (OFF) Eu podia descobrir as impressões digitais dela na ficha, se eu já não tivesse segurado e esfregado esta ficha mil vezes. E se não tivesse que estudar para a prova de química orgânica. Ligações covalentes, pra que eu vou usar isso na vida? Talvez ela já esteja na Austrália. Toca o telefone. Ele atende. CHICO Alô? CHICO É. CHICO Claro. CHICO Tudo. CHICO Como é que tu conseguiu meu telefone? CHICO Sei. CHICO Não, estava estudando. CHICO Química orgânica. CHICO Quero, claro. CHICO Sei. Que horas? CHICO Tudo bem. CHICO Tá. CHICO Outro. Chico desliga o telefone, fica parado alguns segundos e dá um grito. CENA 20 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Chico fala olhando para si mesmo no espelho enquanto experimenta várias camisetas. Juca vai alcançando camisetas e jogando as já experimentadas na gaveta. CHICO Ela disse alô, eu disse alô, já achando que era ela mas não podia ser ela. Ela disse é o Chico? e eu disse é, aí já achando que era ela mesmo. Aí ela disse é a Roza. Com z, lembra? Eu disse, claro. Ela disse, tudo bom?, eu disse tudo. Aí ela disse que queria me ligar mas não tinha o meu número. Eu perguntei como ela conseguiu. Ela disse que encontrou uma amiga da praia que tinha, deve ser a Violeta. JUCA Argh. CHICO Eu disse sei e ela perguntou se estava interrompendo alguma coisa, eu disse não, eu estava estudando química orgânica. Aí ela perguntou se eu queria encontrar com ela, eu disse que sim, claro, é lógico. Não, eu acho que eu só disse quero, claro. Aí ela perguntou se eu sabia de um bar na Nilópolis, um que tem umas mesinhas brancas e um toldo amarelo, perto do posto. JUCA O Coquinho. Camiseta azul, gola redonda. CHICO O Coquinho. Eu disse sei e perguntei que horas. Ela disse oito, oito e meia. Eu disse tudo bem, ela disse então a gente se vê lá. Eu disse tá. Ela disse um beijo. Eu disse outro. JUCA Vai com a azul. No Coquinho só tem moinhos, a azul é mais moinhos. O que tu vai dizer? Tem camisinha? Camiseta preta, gola vê. CHICO A gente não vai trepar no Coquinho. JUCA (dá uma camisinha para Chico) Leva camisinha. CHICO Uma só? JUCA Ué? Não ia trepar e agora quer duas? CHICO Só se der algum problema. Tudo bem, uma chega, a gente não vai trepar. JUCA Tu sabe o que vai dizer para ela? CHICO Sei. CENA 21 - MESA - INTERIOR/NOITE Chico, de camiseta vermelha, toma um gole de guaraná. CHICO Eu pensei muito naquela noite. Claro que eu nunca vou esquecer, tu sabe disso. Talvez tenha sido mais importante para mim do que para ti, deve ter sido. Mas eu queria que fosse importante para ti também. Queria não, eu quero. Eu não quero que aquela seja nossa única noite. Quero que seja a primeira. Juca olha para Chico. JUCA Tá legal. Esse "queria não, quero", parece que tu errou e corrigiu na hora. Mas a camiseta azul é melhor. CENA 22 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/NOITE Chico, de camisa azul, está sentado numa mesa de rua no Coquinho. Bebe um guaraná, de canudo. O guaraná tem aquele gelos furados, Chico espeta um gelo e larga o canudo sobre o copo, com o gelo pendurado como um anel. Chico fica olhando o gelo derreter pendurado no canudo. O gelo pinga magicamente no exato ritmo da música. O anel de gelo está quase se partindo. Chico passa os olhos pelo bar, nada de Roza. O anel de gelo se movimenta, vai cair. O gelo cai no copo. ROZA Oi. CHICO Oi. Chico se levanta. Beijam-se de maneira meio atrapalhada. Sentam. Chico sorri, Roza também. CHICO Bom te ver. ROZA Também queria te ver. CHICO Legal. Eu pensei muito naquela noite. ROZA Eu não pensei nada, acho que estava louca. A gente nem usou camisinha. CHICO Não, eu quero dizer que eu pensei muito sobre aquela noite. Claro que eu nunca vou esquecer, tu sabe disso. ROZA Nem eu vou esquecer. Eu estou grávida. Chico fica olhando para Roza. Ela sorri. CENA 23 - PRAÇA - EXTERIOR/NOITE Roza mostra a Chico uma tabela de cores de um teste de gravidez. ROZA Olha aqui. Se ficar vermelho, ou cor de rosa, é porque tu não tá. Se der verde, ou azul, é porque tu tá. Quanto mais azul, mais é certo que tu tá grávida. CHICO E aí? Ela mostra, numa agenda, uma tirinha de papel, metade branca, metade verde, bem clarinho. Chico examina a tirinha na luz. CHICO É meio verde mesmo. ROZA Essa foi a primeira que eu fiz, semana passada. Esta eu fiz ontem. Ela mostra uma tirinha metade branca e metade muito azul. CHICO E tu fez mais de uma vez? Ela mostra a ele um folha da agenda com várias tirinhas, todas muito azuis. Uma PAI e uma MÃE com seus DOIS FILHOS estão comprando pipocas. Chico olha para as crianças enquanto fala com Roza. ROZA Eu vou tirar. CHICO Como? ROZA Vou abortar. CHICO Mas como? ROZA Numa clínica. Uma amiga minha conhece. CHICO Não é perigoso? ROZA Sempre é, um pouco. Ela disse que é um lugar chique, sala de espera, cheio de gente. Na zona sul. CHICO Como é que faz? ROZA É uma máquina, um tubo, tipo um aspirador. O cara enfia o tubo, liga a máquina e pronto. CHICO Pode ser perigoso. ROZA Se eu fizer logo, não é tanto. Quanto mais cedo, menos perigoso. CHICO Eu posso te ajudar? ROZA Não sei. Tu tem mil reais? CHICO Mil reais? Custa mil reais? ROZA Custa dois mil reais. Eu acho que consigo mil, já tenho seiscentos. Se tu não tiver, tudo bem. CHICO Mil reais? ROZA Mil reais. Eu posso conseguir mais um pouco se vender o celular. CHICO Tu tem celular? ROZA Tenho, mas é de cartão. (anota o número, dá o papel a ele) Me liga. Se eu conseguir mais que mil, te aviso. Se tu me ligar e outra pessoa atender é porque eu vendi o celular. CHICO Tá. CHICO Eu acho que ia ser legal ter um filho contigo. ROZA É. Quem sabe, mais tarde. CHICO É. CENA 24 - BRIC - INTERIOR/DIA Objetos variados expostos num bric: um carrinho de bebê, um cavalinho, uma cadeirinha de bebê. Chico entrega um amplificador para um VENDEDOR. O cara testa o amplificador. Chico examina sapatinhos cor-de-rosa. Chico fica olhando para os objetos à venda. CHICO (OFF) O filho que eu não vou ter com Roza nunca vai mentir para a mãe que o amplificador estragou para poder vender por seiscentos um amplificador que vale mil e juntar com o dinheiro da poupança para pagar um aborto. CENA 25 - PRAÇA - EXTERIOR/DIA Chico e Roza num banco de praça. Ela chora, ele conta o dinheiro. Termina de contar, põe o dinheiro na agenda dela. CHICO Falta duzentos. Vou pedir para o Juca, talvez ele tenha. ROZA Melhor não dizer para ninguém. Eu consigo. CHICO Quer que eu vá contigo? ROZA Não precisa. A minha amiga vai, ela tem carro. CHICO Quando tu vai? ROZA Logo que der. Acho que amanhã. Eu te ligo. CHICO Liga? ROZA Ligo. Ela dá um beijo nele, enxuga as lágrimas e sai. CENA 26 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/DIA Chico em sua casa, sentado, olha o telefone. Ele pega o telefone e confere o botão que regula a altura do toque, põe no volume máximo. Larga o telefone. Levanta-se, caminha pelo quarto. Vai até o teclado e toca a mesma música, agora com um som fraquinho. Vai até o telefone. Confere o fio do telefone, verifica se está bem conectado na parede. Pega o fone e escuta rapidamente. Desliga e fica olhando para o telefone. Pega o telefone e disca. CHICO Roza? CHICO Tu tá com a Roza? CHICO Ah, é? Quando? CHICO E... tu conhece a Roza de onde? CHICO Ah, é? CHICO Não, ela me falou que ia vender o celular, mas não pensei que fosse tão rápido. Ela não te deixou nenhum número? CHICO Bom, se ela ligar tu podia dar um recado? CHICO Tudo bem, eu sei que ela não vai ligar, mas SE ela ligar, tu pode dizer que o Chico telefonou? CHICO Tá bom, obrigado. CENA 27 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Juca está jogando tetris no computador. Chico está na cama. JUCA Quem disse que o filho era teu? CHICO Não enche o saco. JUCA Tô falando sério. Quem disse que era teu? Juca tem um espaço certinho para uma pedra comprida de quatro, vermelha. Mas ela não vem. CHICO Eu sei que era meu. Ela sabia. JUCA Sabia que precisava de mil reais, isso é que ela sabia. Pode ter pedido pro outro cara, ele não deu, ela te procurou. CHICO Era meu. Eu sei que era. O espaço da pedra de quatro continua vago, Juca empilha as outras pedras nos cantos. JUCA Ela vendeu o celular. CHICO Ela disse que ia vender. Surge uma pedra vermelha. Cai e se encaixa na buraco. JUCA Ela não te ligou, não te deu endereço. Tu não acha estranho? Quatro fileiras desaparecem. CENA 28 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/NOITE Chico no bar, sozinho. Olha entre as mesas. CHICO (OFF) Achei estranho. Passou uma semana e eu achei muito estranho. Passou um mês e eu tive certeza que ela estava na Austrália, rindo da cara do idiota que pagou o aborto para ela. CENA 29 - PLAYWORLD - INTERIOR/NOITE Chico joga pimbal. CHICO (OFF) Passou um ano e eu estava no mesmo flíper, jogando na mesma máquina, na mesma praia, a maior e pior do mundo. Felizmente era dezembro, o meu pai juntou uma grana este ano. Prometeu que no ano que vem nós vamos tirar férias em janeiro. Meu recorde no pimbal era quarenta e oito mil e eu já estava com cinqüenta e seis. Sessenta! Sessenta e dois mil. Sessenta e quatro! CHICO Setenta mil! Juca se aproxima. JUCA Setenta mil? CHICO Setenta e dois! A bola passa. Game over. CHICO Merda! Acende-se o placar: record! JUCA Recorde da máquina! O cursor do placar dos recordes está piscando no décimo lugar. O primeiro, segundo, terceiro, quinto e sétimo lugares estão ocupados por Roza, com z. O placar também indica as datas dos recordes. Chico e Juca ficam olhando para o placar. CENA 30 - RODOVIÁRIA - EXTERIOR/DIA Chico, de mochila, na fila para comprar passagens da rodoviária. Confere o dinheiro na carteira, olha para o quadro de avisos. CHICO Ela sabia jogar, sabia jogar muito bem. Ela fingiu que não sabia para eu ajudar. JUCA Talvez o filho fosse teu. CHICO Que filho? Ela nem tava grávida. Chico chega no balcão. CHICO (ao vendedor) Noiva do Mar. Só ida. JUCA Tu disse que viu o exame. Chico pega a passagem e sai. CHICO Vi umas tirinhas de papel, podia ser qualquer coisa. Ela me fez vender meu pioneer. Eu vou matar aquela guria. Chico está entrando no ônibus. JUCA Esquece. CHICO Esquece um cacete. Ela deve estar numa praia, procurando idiotas como eu. Chico embarca no ônibus interpraias. Senta e abre a janela. JUCA Ela pode estar na Austrália. CHICO Eu encontro. CENA 31 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA O ônibus passa pela estrada entre dunas e lagoas. Chico, com a cara grudada o vidro, olha os fios que correm ao lado da estrada. Parece que é o fio que se move, descendo e subindo, uma linha preta embarrigando sobre um céu azul e nuvens ralas. CENA 32 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA Chico, de mochila nas costas, caminha perto de um parque de diversões, vazio. Vê um HOMEM, arrumando a máquina de um carrossel. Chico se aproxima para falar com o homem mas ele desaparece. CENA 33 - BAR - EXTERIOR/NOITE Chico caminha por uma calçada cheia de gente, mesas nas calçadas. Uma guria está chorando, outra guria consola. Um gordo ri alto. Um garçom traz dois chopes. CENA 34 - CHAFARIZ - EXTERIOR/DIA Chico lava os pés na fonte de uma praça. CENA 35 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA Chico passa de ônibus e vê Carmem num treiler. Ela está comendo um chesseburger. CENA 36 - FLÍPER - INTERIOR/NOITE Chico caminha entre as máquinas de um flíper. CENA 37 - CALÇADA - EXTERIOR/NOITE Chico está sentado sobre o capô de um carro. Um HOMEM chega e entra no carro. Chico levanta, faz menção de falar com o homem mas ele liga o carro e parte. CENA 38 - PRAIA - EXTERIOR/DIA Chico caminha pela praia, observando as meninas. Uma MENINA se parece com Roza, de costas. Ele se aproxima e vê que é outra menina. CENA 39 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA Chico está sentado num muro. Um VELHO, carregando um cão fila pela coleira, fica parado, encarando Chico. Chico levanta e vai saindo de fininho. CENA 40 - ESTRADA - EXTERIOR/DIA Chico pede carona. Uma kombi, dirigida pára. Ele embarca na kombi. CENA 41 - KOMBI - EXTERIOR/DIA Chico, com uma cara de enjôo, tenta sorrir para seus companheiros de viagem, QUATRO PESCADORES. Chico olha um balaio cheio de peixes. Um pescador oferece a Chico uma garafa de cachaça com ervas e uma cobra dentro. Chico bebe um gole. A kombi balança. Chico olha o balaio. Um Pescador fuma. Chico vomita no balaio de peixes. CENA 42 - ESTRADA - EXTERIOR/DIA Chico desce da kombi no meio da estrada. Os pescadores partem, xingando. Chico, enjoado, sai caminhando pela estrada. CENA 42A - LOJA DE BUJIGANGAS - INTERIOR/DIA Chico, viajandão, passa entre as bujigangas das lojas. CENA 43 - BAR DE CALÇADA - EXTERIOR/NOITE Chico, no bar, come um sanduíche. Ouve o barulho de um pimbal, alguém jogando muito bem. Chico interrompe a mordida no meio. Entra no flíper. CENA 44 - FLÍPER - INTERIOR/NOITE Chico se aproxima por trás da máquina onde há alguém marcando muitos pontos. Chico, de longe, espia quem está jogando. É uma criança. Chico morde o sanduíche. Chico pára de mastigar, parece ter reconhecido a criança. Aproxima-se. CHICO Oi. CRIANÇA Não atrapalha. CHICO Eu te conheço. CRIANÇA Sorte tua. CHICO A gente não se viu no ano passado? CRIANÇA Game-over! Tu me atrapalhou. Tu me fez perder uma ficha! CHICO Eu te compro outra. Chico vai até o caixa. Pede uma ficha a moça do caixa. É Roza. ROZA Ó. CHICO Ó. CENA 45 - HOTEL - INTERIOR/NOITE A Criança está dormindo no sofá de um pequeno apartamento de hotel. Roza tira o som de uma televisão portátil. Chico está na sala, Roza vai até o quarto, pega a carteira, tira o talão de cheques. Chico pára na porta do quarto. ROZA Quer os juros da poupança? CHICO Quero. Quanto dá? ROZA Tu me deu oitocentos, faz um ano. Acho que dá uns mil. CHICO Tá bom. Ela faz o cheque. Ele entra no quarto, tira a ficha do flíper do bolso. CHICO Essa ficha é tua. Lembra? ROZA Pode deixar aí. Ela estende a mão com o cheque. CHICO Esse cheque tem fundo? ROZA Vou botar o telefone atrás. Tá bom assim? Ela escreve o telefone e entrega o cheque a ele. CHICO (ele pega o cheque e confere) Outro celular. É teu mesmo? ROZA (mostra o celular) Quer conferir? CHICO Quero. Chico senta na cama, pega o telefone do quarto olha o número no cheque e disca. O celular dela toca. ROZA Quer que eu atenda? Ele desliga o telefone. Ela guarda o celular. CHICO O que tu ganhou com isso? ROZA No verão passado? Catorze mil reais. Vinte e dois caras, quinze caíram. Estou devolvendo mil. Ganhei catorze mil. CHICO Vinte e dois caras? ROZA Vinte e três, na verdade. Mas um eu nem procurei, ele trabalha de office-boy, sustenta a mãe e o irmão, só descobri depois. Deixei para lá. Eu preciso dormir. Roza pega um vidro de mertiolate, abre. Roza senta numa cadeira e apoia o pé sobre a cama. Começa a passar mertiolate entre os dedos do pé. CHICO Tu não ficou com medo de engravidar de verdade? ROZA Eu tomo pílula. CHICO E a aids? Se o cara usa camisinha, não funciona. ROZA É, eu sei. Mas eu só escolho caras de pouca experiência. Ou nenhuma, como tu. CHICO Dava para ver assim, de longe? ROZA Quase sempre dá. Mais alguma coisa? Ela troca o pé. CHICO Ele é teu filho? ROZA Meu irmão. CHICO E a tua mãe? ROZA Não sei onde anda. CHICO Teu pai? ROZA Morreu. CHICO Não tem mais ninguém? ROZA Onde? CHICO Tua família. ROZA Tenho um tio. Um idiota, casado com uma imbecil. Ela abaixa o pé e fecha o vidro de mertiolate. CHICO Isso tudo não dá muito trabalho? Porque tu não cobra para transar? É mais prático. ROZA E tu acha que alguém ia pagar mil reais para transar comigo? Chico olha para ela. Pega o cheque e rasga e pedacinhos. Joga os pedacinhos do cheque sobre cama. Ela fecha e larga o vidro de mertiolate. Chico tira os tênis e joga no chão. Roza vai até a porta do quarto e se certifica que a criança está dormindo na sala. Fecha a porta do quarto. Roza, tirando a blusa, olha para Chico e sorri. Chico também sorri. A blusa de Roza cai no chão, junto aos tênis de Chico. A colcha da cama cai e provoca uma revoada de pedacinhos de cheque pelo quarto. CENA 45A - FACHADA DO HOTEL - EXTERIOR, DIA Fachada do hotel - A luz de um quarto se apaga. CENA 46 - MINIGOLFE - EXTERIOR/DIA Manhã/quase ninguém na rua. Chico caminha por um campo de minigolfe. Entra numa das pistas. A pista, de cimento, tem como obstáculo um grande calombo. Chico chuta uma tampinha, posiciona a tampinha no centro da pista. Chico observa o trajeto que a tampinha deverá fazer para chegar no buraco, além do calombo. Chico olha para a tampinha e dá um chute, seco. A tampinha sobe e desce o calombo e cai exatamente no buraco. Chico sorri. CENA 45B - QUARTO DE HOTEL - INTERIOR/AMANHECER Roza faz as malas. A Criança dorme. Roza guarda suas roupas e as roupas da criança. Junta tralhas variadas, pega a televisão portátil. Acorda a Criança. Roza, cheia de bagagem e carregando a Criança (ou arrastando pela mão), sai do quarto. CENA 47 - FLÍPER - INTERIOR/DIA Chico entra no flíper. INÁCIO, 30 anos, está no balcão conferindo um livro caixa. Chico se aproxima. CHICO Oi. A Roza tá aí? INÁCIO Tu conhece ela? CHICO Conheço. Inácio marca o livro e fecha. INÁCIO Sabe onde ela mora? CHICO Aqui na praia sei. Num hotel. Por quê? INÁCIO Não mora mais. CHICO Eu estive lá ontem. INÁCIO Ela se mandou, hoje. Sem pagar a conta. Eu estive lá, procurei no quarto. Tu não tem um telefone, um endereço dela em outro lugar? CHICO Não. Acho que ela mora em Porto Alegre. Ela não deu o endereço no hotel? Inácio volta para o balcão e abre o livro caixa. INÁCIO Deu, deve ser falso, claro. O telefone que ela deu é de uma gráfica. Ela te deu um cano também? CHICO Deu. INÁCIO Quanto? CHICO Mil reais. INÁCIO Vagabunda. Daqui ela tirou seiscentos e cinqüenta, do caixa. Mais duzentos que eu emprestei. E mais uma televisão portátil. Colorida. Se tu encontrar com ela, dá um recado para mim? CHICO Dou. INÁCIO Diz que eu confiei nela. Ajudei quando ela estava precisando, dei pra ela um dinheiro que eu não podia dar. Eu vi que ela não valia nada mas mesmo assim ajudei. Eu gostava dela. E ela me sacaneou. Diz pra ela que ela é uma vagabunda. Que o Inácio mandou dizer que ela é uma vagabunda. CHICO Pode deixar. Eu digo. CENA 47A - PIER - EXTERIOR/FIM DE TARDE Chico come churros sozinho. Limpa a boca e sai. CENA 48 - QUARTO DE CHICO - INTERIOR/NOITE Chico em seu quarto, larga a mochila. Pensa. Tira os tênis. Fica olhando para os tênis no chão, pensativo. Dentro do tênis tem um pedacinho do cheque. Chico pega o pedacinho do cheque, vira. No lado de trás, com a letra de Roza, estão anotados os seis primeiros números de um telefone celular. Chico fica olhando para aqueles números. (Montagem de cenas muito curtas, pessoas dos mais variados tipos, nos mais diferentes lugares, atendendo telefones celulares. Todas atendem e dizem "alô". Sobre as cenas, OFF de Chico e Juca). CENA 49 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA Homem de terno e gravata atende o celular. JUCA (OFF) Faltavam dois números? CENA 50 - SUPERMERCADO - INTERIOR/DIA Mulher fazendo compras atende o celular. CHICO (OFF) Dois números. Os últimos. Não consegui lembrar. CENA 51 - CARRO - EXTERIOR/DIA Mulher dirigindo atende o celular. JUCA (OFF) Noventa e nove possibilidades. CENA 52 - ESCRITÓRIO - INTERIOR/DIA Homem atende o celular. CHICO (OFF) Cem. CENA 53 - SALA DE AULA - INTERIOR/DIA Professor, no quadro negro, atende o celular. JUCA (OFF) Cem? CENA 54 - CONSULTÓRIO DENTÁRIO - INTERIOR/DIA Dentista atende o celular. CHICO (OFF) Claro. O zero-zero também conta. CENA 55 - SALA - INTERIOR/NOITE Mulher atende o celular. JUCA (OFF) Cem. Tu ligou pra cem celulares? CENA 56 - PÁTIO DE ESCOLA - EXTERIOR/DIA Menina atende o celular. CHICO (OFF) Quarenta e oito. Tive sorte. CENA 57 - LOJA DE ROUPAS - INTERIOR/DIA Homem atende o celular. JUCA (OFF) E o que foi que ela disse? CENA 58 - LOJA DE DISCOS - INTERIOR/DIA Roza atende o celular. CHICO (OFF) Ela disse alô. ROZA Alô. CENA 59 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/FIM DE TARDE Chico e Juca numa mesa. JUCA Chico, eu acho que eu não conheço ninguém mais idiota do que tu. Tu gastou uns cinqüenta reais em telefone pra achar uma guria que roubou teu amplificador e cobra mil reais pra transar! A prima do Cabeça cobra cento e cinqüenta! CHICO Eu não estou a fim da prima do Cabeça. JUCA Vai dizer que tu tá a fim dessa guria? CHICO Não sei. É diferente. JUCA Pode ser diferente, mas não pode ser oitocentos e cinqüenta reais de diferença. Tu pagou mil reais por uma trepada. CHICO Quinhentos. Mil por duas. JUCA É. Mesmo assim é trezentos e cinqüenta reais mais caro que a prima do Cabeça. O que que ela faz? CHICO Como assim? JUCA O que ela faz por quinhentos reais? CHICO Não enche o saco. JUCA Sabe o que a prima do Cabeça faz por cento e cinqüenta? CHICO Sei, tu já me contou mil vezes. JUCA Tu acha que ela vem? CHICO Não sei. Disse que vinha. JUCA Será que ela não tem uma amiga mais em conta? CHICO Pode ser. Pergunta para ela. Roza chega. ROZA Ó. CHICO Ó. JUCA Oi. CHICO Esse é o Juca. ROZA Oi. JUCA Posso te fazer uma pergunta? ROZA O quê? JUCA Tu aceita vale refeição? ROZA Gracinha. Juca levanta e vai saindo. JUCA (para Roza) De repente, te ligo. ROZA (para Juca) Isso. Vai guardando tua mesada e me liga no ano que vem. (para Chico) O que tu quer? CHICO Queria te ver. ROZA Já viu. O que mais? CHICO O que que foi? ROZA Não posso demorar, meu irmão tá sozinho. CHICO Eu te levo. ROZA Tá de carro? CHICO Te levo de táxi. ROZA E como tu volta? Eu moro longe, na zona sul. CHICO Volto de ônibus. Vamos. CENA 60 - TÁXI - EXTERIOR/NOITE Chico e Roza no banco traseiro de um táxi. CHICO Tu tá trabalhando onde agora? ROZA Numa loja. CHICO E o dinheiro? ROZA Que dinheiro? CHICO O dinheiro que tu tem guardado? Por que não usa? ROZA Não posso, tenho que guardar. CHICO Para ir pra Austrália? ROZA É, isso, para ir para a Austrália. (ao motorista) A próxima o senhor entra à direita. CHICO Quanto custa duas passagens para a Austrália? ROZA Porque duas? CHICO O teu irmão. ROZA Não vou levar o meu irmão para a Austrália. (ao motorista) O senhor cuide que a próxima é preferencial. CHICO Ele vai ficar com quem? ROZA Com o meu tio. CHICO Tu disse que ele era um idiota, casado com uma imbecil. ROZA Disse. Ele é um idiota casado com uma imbecil. Vou fazer o quê? Também, nem sei se eu estou a fim de ir para a Austrália. (ao motorista) Atrás daquela Brasília o senhor pára. O táxi. Pára. ROZA Ele vai continuar. CHICO Não, eu pego um ônibus. ROZA Não tem ônibus aqui esta hora, só lá embaixo. Vai com o táxi, eu pago até aqui. CHICO Eu caminho até lá embaixo. (ao motorista) Quanto foi? CENA 61 - CALÇADA - EXTERIOR/NOITE O táxi vai embora, Chico fica com Roza na calçada. Ela abre a porta do prédio, acende a luz do corredor. ROZA É melhor tu não subir, o meu irmão tá dormindo. CHICO O que que tem? A gente não faz barulho. ROZA Chico, olha. Vai embora. Eu gosto de ti, tu é legal, legal mesmo. Mas vai embora. CHICO Eu não quero ir embora. ROZA Eu não quero complicar tua vida. Esquece. Já foi. CHICO Eu não tô a fim de esquecer. Complicar minha vida por quê? ROZA Chico. Eu estou grávida. A luz do corredor se apaga. CENA 62 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/NOITE Roza lava a louça. Chico seca. CHICO Tu acha que pode ser meu? ROZA Chico, por favor. Acho que não. CHICO Acha ou não? ROZA Não sei, não importa. Eu não estou te pedindo nada. CHICO Não sabe? E se for? ROZA Se for, é. Eu não quero nada. É meu. CHICO Tu vai tirar? ROZA Não sei. E melhor tu ir embora. CHICO Eu não quero ir embora. E não sei se quero que tu tire. Tu tem dinheiro guardado. ROZA Que dinheiro, uma merreca. CHICO Eu posso trabalhar. ROZA Não viaja, Chico. CHICO Estou falando sério. ROZA Não, não tá, tu tá viajando. Tu quer trabalhar, casar e criar dois filhos que não são teus? CHICO Um pode ser meu. ROZA Não interessa, pode não ser. Acho que não é. CHICO Não interessa mesmo. Mas eu não quero ir embora. Eu gosto de ti. Gosto muito de ti. ROZA Eu também gosto de ti. CHICO Pois então? ROZA Pois então o quê? CHICO Eu gosto de ti, tu gosta de mim. Por que que eu tenho que ir embora? Tá esperando alguém? ROZA Não, não estou. Roza desliga a luz da cozinha. ROZA Vamos pro meu quarto. CENA 63 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/NOITE Chico, na janela, observa a rua. CHICO (OFF) Se eu tivesse batido o recorde no tiro ao pato no dia em que eu conheci a Roza talvez eu não tivesse conhecido a Roza e a gente não teria um filho. Chico observa Roza dormir. CHICO (OFF) Eu posso ter um filho por ter errado num pato. Eu não sei o que isso significa, mas deve significar alguma coisa. Chico vai para a cama. CENA 64 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA Amanhece. Chico acorda, a cama vazia. Senta-se na cama. Levanta. Vê a bolsa de Roza na mesinha de cabeceira, ao lado de uma televisão portátil. CENA 65 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA Chico entra na cozinha. Vê um bilhete. "Fui levar o guri no colégio. Esquenta o leite. Já volto." Chico vê a leiteira no fogo, com leite. Na mesa da cozinha há duas xícaras limpas e um copo plástico, com um resto de chocolate. Farelos de pão sobre a toalha. Chico, movendo-se no ritmo da música, pega o copo plástico e lava. Limpa o farelo de pão da mesa, junta o farelo na mão. No meio do farelo há um pequeno pedaço de alumínio. Chico examina o alumínio e lê: TER. Chico joga o farelo e o pedacinho de alumínio no lixo. Tenta acender o fogão, mas não consegue. Procura fósforos. Não encontra. CENA 66 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA Chico vai até o quarto e vê a bolsa de Roza. Despeja a bolsa sobre a cama: carteira, algum dinheiro solto, cigarro, presilha de cabelo, caixa de remédio, óculos escuros, um isqueiro cor de rosa, a ficha do flíper. Chico pega a ficha do flíper, sorri. Começa a dançar mais animadamente. Pega o isqueiro. CENA 67 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA Chico, na cozinha, acende o fogo sob a leiteira. Volta ao quarto. CENA 68 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA Chico guarda o isqueiro na bolsa. Guarda o cigarro, a ficha do flíper, a carteira, os óculos, examina a caixa de remédio. Pára de dançar. Chico abre a caixa de remédio e vê a bula. Lê. Examina uma cartela de pílulas, parcialmente vazia. As pílulas tem os dias marcados: QUA, QUI, SEX. CENA 69 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA Chico volta a cozinha, procura o pedacinho de alumínio no lixo. Encontra. Compara o pedacinho de alumínio onde está escrito TER com a cartela de pílulas. O pedaço de alumínio se encaixa perfeitamente. Toca o telefone. Chico fica parado no meio da cozinha, com as pílulas na mão. A secretária eletrônica atente o telefone. ROZA (OFF) (gritando) Chico! Chico acorda! Atende Chico! Chico! Tu tem que sair daí agora! O dono do apartamento tá chegando. Chico! Sai daí, rápido! CENA 70 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA Chico vai até o quarto e atende o telefone. CHICO Alô. CENA 71 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA (em paralelo com cena 70) Roza, num orelhão em frente ao prédio, do outro lado da rua. Ao fundo, na calçada do prédio, Inácio e uma MULHER de casaco vermelho, 25, descarregam malas de um táxi. ROZA (ao telefone) Chico, sai daí. Rápido. CHICO (ao telefone) Tu tá tomando pílula. O Homem paga o táxi. ROZA O quê? Chico, tu tem que sair daí agora. CHICO Responde. Tu tá tomando pílula? Pílula anticoncepcional? ROZA E aí? Pega a minha bolsa e sai daí, Chico. CHICO Tu tomou uma hoje de manhã, terça. Por que tu tá tomando pílula? Tu tá grávida. Pausa. CHICO Tu não tá grávida? O táxi parte. Inácio, na porta do prédio, procura as chaves. ROZA Pode ser. Pára com essa conversa e me escuta. Pega a minha bolsa e sai daí, correndo. Agora. CHICO Como, pode ser? Tá ou não tá? ROZA Acho que não estou. CHICO Não está ou pode ser? ROZA Não estou. Me escuta... CHICO Não está? ROZA Eu descobri que não estava, agora de manhã. CHICO E já está tomando pílula? ROZA É. Não. CHICO Fala a verdade, uma vez na vida. Inácio abre a porta do prédio, tem alguma dificuldade com as malas. ROZA Eu menti. Menti que estava grávida. Não quero mais mentir pra ti, mas ontem eu menti. Eu não estou grávida. CHICO Por quê? ROZA Não estou porque não estou. CHICO Por que tu mentiu? Inácio e a Mulher entram no prédio. ROZA Eu queria que tu fosse embora. Agora cala a boca e me escuta! Essa casa não é minha. Era emprestada. Eu estou aqui na frente, o dono está chegando, já entrou no prédio, deve estar entrando em casa. Pega a minha bolsa e te manda daí agora! A porta do prédio se fecha. CHICO Tu é louca! Tu não tinha outro jeito de me mandar embora? Tinha que dizer que estava grávida e que o filho podia ser meu? ROZA Eu disse para tu ir embora, tu não foi. E disse que o filho não era teu. CHICO Disse que achava que não era. ROZA Pois então? CHICO Se achava que não era, podia ser. ROZA Não interessa. Eu não estou grávida. O Inácio vai te pegar aí, tu não tá entendendo? Pega a minha bolsa e sai! CHICO Tu é louca. Tu é completamente louca. Tu acha que pode fazer isso com as pessoas, dizer que elas vão ter um filho, depois dizer que não, depois dizer que sim e dizer que não outra vez? ROZA Eu gosto de ti. Eu gosto muito de ti, Chico. Gosto de verdade, Chico. Eu juro! Eu não vou mais mentir para ti. Mas sai daí agora! O dono do apartamento tá entrando. Ele não sabia que eu estava usando o apartamento, nem sabe que eu tenho a chave. Ele vai te matar. Sai daí agora! CHICO O leite. ROZA Chico, eu te amo. CHICO Vai te fuder! Chico bate o telefone. CENA 72 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA O leite está subindo, vai derramar. CENA 73 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA Na sala, gira o trinco da porta. CENA 74 - COZINHA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA Chico, na cozinha, desliga o leite. CENA 75 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA A porta se abre. Inácio e a Mulher entram na sala. Largam as malas. Inácio fecha a porta, tranca a correntinha. A Mulher tira o casaco. CENA 76 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA No quarto, Chico, pega a bolsa de Rosa. Enfia as meias e os tênis. Escuta as vozes. MULHER (OFF) Tu deixou leite no fogão? INÁCIO (OFF) Deixei? Pode ser. MULHER (OFF) Ai! INÁCIO (OFF) O que foi? MULHER (OFF) Tá quente. INÁCIO (OFF) O quê? MULHER (OFF) A leiteira. Tá fervendo. CENA 77 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA Mulher olha para dentro da casa. MULHER Tem alguém aí? INÁCIO Não, claro que não. MULHER Mas alguém saiu daqui faz pouco. INÁCIO Que estranho. Inácio caminha para o quarto. CENA 78 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA Inácio entra no quarto. Vazio. A cama está desarrumada. Ele corre e arruma rapidamente a cama. A mulher entra no quarto. MULHER Quem mais tem a chave? INÁCIO Minha mãe. Mas ela quase nunca vem aqui. Só se veio limpar. Mulher vê um celular sobre a cômoda. Pega. MULHER De quem é esse celular? INÁCIO Deixa eu ver. Inácio pega o celular. INÁCIO É o meu. Onde estava? MULHER Estava aqui. Tu não disse que tinha perdido? INÁCIO Tinha. Procurei pela casa toda. MULHER Sei. INÁCIO Que estranho. MULHER Muito estranho. Eu te liguei várias vezes, tu não atendeu e depois me disse que tinha perdido o celular. E ele estava bem aqui. INÁCIO Não sei como. Será que estava com a minha mãe? Mulher tira os sapatos e joga para baixo da cama, quase acertando Chico que, com a bolsa na mão, está de olhos fechados. INÁCIO (OFF) Quer tomar alguma coisa? MULHER (OFF) Um banho. Inácio se aproxima dela. Chico abre os olhos. INÁCIO (OFF) Depois. MULHER (OFF) Não, estou suada. Inácio puxa a Mulher para a cama. INÁCIO (OFF) Melhor. MULHER (OFF) Ai... INÁCIO (OFF) Tira isso. As roupas dos dois vão caindo no chão. Camisas, saia, calça. MULHER (OFF) Calma. INÁCIO (OFF) Vem aqui... MULHER (OFF) Ai... INÁCIO (OFF) Olha só como eu estou. MULHER (OFF) Hummm. INÁCIO (OFF) Vem. MULHER (OFF) O que é isso? INÁCIO (OFF) O quê? MULHER (OFF) De quem é esse sutiã, Inácio? INÁCIO (OFF) Não é o seu? Chico fecha os olhos. MULHER (OFF) Claro que não. Vai dizer que é da sua mãe. INÁCIO (OFF) Não. Não sei. MULHER (OFF) Tem uma mulher dormindo aqui? INÁCIO (OFF) Claro que não. Imagina. MULHER (OFF) Imaginar o quê? Leite quente no fogão, o celular que tu disse que tinha perdido, um sutiã na cama. INÁCIO (OFF) Eu não sei. Não sei mesmo. MULHER (OFF) Tá bom. INÁCIO (OFF) Onde é que tu vai? MULHER (OFF) Vou tomar um banho. A mulher joga o sutiã no chão e sai. Chico abre os olhos. INÁCIO (OFF) Vem cá. MULHER (OFF) Me deixa. Inácio, de cueca e camiseta, senta na cama. Pega o sutiã e joga para baixo da cama. Som do chuveiro sendo ligado. Inácio vai até o banheiro, entreabre a porta. INÁCIO Talvez eu tenha esquecido o telefone na minha mãe, ela veio trazer, esquentou o leite. Talvez ela tenha dormido aqui. MULHER (OFF) Sei. E tua mãe usa aquele sutiã. INÁCIO Pode ser de uma amiga. MULHER (OFF) Claro. Tua mãe é sapata, por acaso? Quer fazer o favor de fechar a porta? Tá frio. Ele fecha a porta. Aciona a secretária eletrônica e veste as calças. Inácio vai até a sala. A secretária transmite os recados. Recado 1: (voz da Mulher) Inácio. Ináaacio. Sou eu. Oi? Já saiu? Estou na porta do prédio já faz quinze minutos. Alô? Que saco! Recado 2: (voz de Roza) Inácio, sou eu, a Roza, com Z. Lembrou? Da praia. Alô? Alô... Inácio, com uma faca de pão na mão, surge na porta, escuta o recado. Recado 3: (voz de Roza) Alô. Inácio, sou eu de novo, a Roza, da praia. Oi? Quero devolver a televisão. Tu esqueceu o seu celular comigo, quero devolver também. Alô? Inácio corre e baixa o volume da secretária. Olha para a porta do banheiro, senta na cama e ouve os recados. Recado 4: (voz de mulher) Sou eu meu filho. Tu já voltou? Me liga quando chegar. Recado 5: (voz de Roza) Chico! Chico acorda! Atende Chico! Chico! Tu tem que sair daí agora! O dono do apartamento tá chegando. Chico! Sai daí, rápido! Inácio se ergue, assustado, faca do pão na mão em posição de ataque. Dá uma olhada em torno e fixa-se no armário. Aproxima-se do armário. Aproxima o ouvido do armário. Escuta. Afasta-se um pouco. Abre a porta do armário. Nada, só roupas. Inácio examina o quarto, olha para a cama. Vai se abaixando, faca em punho. Ajoelha-se. A mulher, secando-se, sai do banheiro. MULHER O que foi? INÁCIO Nada. Uma barata. MULHER E tu vai matar a barata com a faca do pão. INÁCIO Não. Só estou olhando. Ela acende um cigarro, larga a toalha e sai. Inácio se abaixa perto da cama, faca em punho. Ele dá um grito e olha sob a cama. INÁCIO Há! Não há ninguém embaixo da cama. Inácio vê um bilhete amassado no chão. CENA 79 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA A mulher, nua, fumando, entra na sala. Dá de cara com Chico, com a bolsa e sutiã na mão, perto da porta. CHICO Bom dia. MULHER Aaaaah! CENA 80 - QUARTO DE ROZA - INTERIOR/DIA Inácio, que estava tentando pegar o bilhete ergue-se rapidamente e bate a cabeça na cama. CENA 81 - SALA DO AP. DE ROZA - INTERIOR/DIA Chico tenta abrir a porta, mas ela está trancada com a correntinha. A mulher grita. MULHER Aaaaaaah! Chico fecha a porta, tira a correntinha, abre a porta e sai correndo. Inácio surge na sala, de faca na mão. Mulher aponta para a porta. MULHER Aaaaaaaaah! INÁCIO Aaaaaaah! CENA 82 - CORREDOR - INTERIOR/DIA Inácio sai para o corredor, a Mulher o segue. Chico desce as escadas, voando. A Mulher sai ao corredor para acender a luz. Inácio vê Chico descendo as escadas e chama o elevador. A porta do apartamento bate. A Mulher tenta abrir, mas a porta não abre por fora. MULHER Cadê a chave? INÁCIO Lá dentro. MULHER Aaaaaaaah! INÁCIO Calma. Eu te dou minha roupa! Ele tira a calça. MULHER Aaaah! INÁCIO Fica quieta! A luz do corredor se apaga. TRÊS GAROTAS abrem a porta do elevador e vêem Inácio sem calça, de faca na mão, e a Mulher nua. TRÊS GAROTAS Aaaaahhh! MULHER Aaaaaah! INÁCIO Aaaaaaah! CENA 83 - CALÇADA - EXTERIOR/DIA Chico, de bolsinha e sutiã na mão, sai do prédio correndo. Ouve uma sirene. Chico diminui o passo, enfia o sutiã na bolsinha e a bolsinha no braço, disfarça. Um camburão chega. DOIS POLICIAIS descem correndo e entram no prédio. Chico vê o orelhão. Olha em volta. Ninguém. Chico se afasta caminhando. CENA 84 - ÔNIBUS - EXTERIOR/DIA O ônibus Tristeza se aproxima e pára. Chico sobe no ônibus. JUCA (OFF) Quando foi isso? CHICO (OFF) Faz mais de um mês. CENA 85 - BAR COQUINHO - EXTERIOR/DIA Juca come batatinhas fritas. Há dois copos vazios sobre a mesa. JUCA E ela te ligou a troco de quê? CHICO Quer conversar. E quer a bolsa. JUCA Tem dinheiro na bolsa? CHICO Tem um pouco. JUCA Então ela vem. Ela disse "eu te amo"? CHICO Disse. JUCA E tu disse "vai te fuder". CHICO Disse. JUCA Legal. Tu não é tão idiota como eu pensava. CHICO Sou mais idiota do que eu pensava. Sabe o que eu devia ter dito? JUCA O quê? O GARÇOM (o HOMEM da cena 1) chega, põe dois copos de suco na mesa. Chico se aproxima de Juca. CHICO Eu também te amo. O Garçom fica olhando para Juca. JUCA (para o Garçom) O senhor podia trazer a nossa continha? O Garçom sai, levando os copos vazios. JUCA Tu acha que ela vem? CHICO Foi ela que ligou. Disse que vinha. JUCA Pelo menos dois sucos ela vai nos pagar. Dá aqui esta bolsa. Juca pega a bolsa. O Garçom chega com a nota. Juca abre a bolsinha, tira a presilha de cabelo, o sutiã, o isqueiro cor-de-rosa, pega o dinheiro. O Garçom fica olhando para a bolsinha de Juca. Juca mantém a pose e paga. JUCA Pode ficar com o troco. O Garçom pega o dinheiro e sai. JUCA Chico, essa guria tem um irmão para criar, dá para qualquer um por quinhentos reais, roubou o teu amplificador e fica grávida toda quarta-feira. CHICO Eu sei. Mas eu te juro que se ela disser que me ama eu caso com ela. JUCA Por quê? CHICO Ela guardou a ficha do flíper. ROZA (OFF) Chico. CHICO Oi. ROZA Oi. CHICO Esse é o Juca. ROZA Eu sei. JUCA Já sei. Tu tá grávida! CHICO Juca, não enche o saco. JUCA Olha, eu vou ao banheiro, rapidinho, se ela ficar grávida nesse meio tempo vocês não digam nada pro garçom, que aqui a consumação é cinco por pessoa ele pode querer cobrar da criança. Juca sai. Roza senta. ROZA Chico, eu... CHICO Desculpa. ROZA Desculpa por quê? CHICO Por aquele dia. Eu fiquei louco, desculpa. Uma hora eu ia ter um filho, meia hora depois não ia mais, fiquei louco. É estranho, mas eu estava achando legal ter um filho. Mesmo que isso fosse abagunçar completamente a minha vida, eu estava achando legal ter um filho. Um filho contigo. ROZA Chico... CHICO Desculpa. ROZA Eu estou grávida. Roza fica olhando para ele e sorri. CENA 85A - ECOGRAFIA Um bebê se mexe na barriga da mãe. CENA 85B - TABLE-TOP Notícia de jornal: "Pílulas Falsas Geram Processo". Foto de Roza e Chico. CENA 85C - PORTA DE QUARTO DE HOSPITAL - INTERIOR/DIA Mão de Chico pendura na porta os sapatinhos cor-de-rosa que encontrou no bric. CENA 85D - TABLE-TOP Notícia de jornal: "Laboratório vai pagar indenização". Foto de Roza, Chico e Bebê. CENA 86 - PRAIA - EXTERIOR/DIA Chico abre um sorriso. Ergue uma máquina fotográfica e bate um flash. Roza, com uma Menina no colo, posa para a foto. CHICO (OFF) Desta vez era verdade. Eu errei nos patos e conheci a Roza. O irmão de Roza com a Menina no colo. Juca com a menina no colo mostra uma manchete de jornal CHICO (OFF) O laboratório vendeu pílulas de farinha e a Roza ficou grávida. Juca e Roza com a menina no colo. CHICO (OFF) A gente processou o laboratório e eles vão pagar uma mesada para a Margarida até ela completar dezoito anos. A menina sozinha. Chico e Roza fazem caretas para provocar o riso do bebê. HOMEM (da cena 1, GARÇON da cena 85) passa ao fundo caminhando pela praia. CHICO (OFF) Acho que até lá eu arrumo um emprego. Homem cai num buraco, uma armadilha igual a da cena 1. Chico e Roza ajudam o Homem a se erguer. O Homem resmunga e vê Juca. Juca fica duro, tentando não rir. Garçon reconhece Juca. Brigam. O bebê assiste a briga. FIM ******************************************************************* (c) Jorge Furtado, 2001-2002 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br