INVERNO Roteiro de Carlos Gerbase, julho de 1982 baseado no conto "O Argonauta" de Carlos Gerbase ******************************************************************* CENA 1 - EXT/DIA - DIVERSOS LOCAIS Imagens do inverno. Amanhecer nebuloso, cerração, árvores sem folhas, frio, chuva, gente com montes de roupa, tudo em tons cinza, azul, marrom. Locações: cais do porto, muro da Mauá, centro, proximidades do apê. Música: Concerto "O Inverno", de Vivaldi, 1§ movimento. A introdução fica para as imagens iniciais; o primeiro acorde mais forte deve coincidir com o aparecimento do Herói. CENA 2 - EXT/DIA - RUA DA PRAIA Surge o Herói, caminhando pela rua da Praia. Pára e olha a vitrine da Falk's; não gosta. Pára na vitrine da Kosmos, entra e pede um livro. A vendedora diz que ainda não chegou. O Herói vai para a Galeria Chaves e vê a vitrine da King's. Volta a sair. A chuva está mais forte. Ele anda bem pelo meio da chuva e da rua, não se importando com a roupa molhada, retornando para a praça Dom Feliciano. Na esquina da Dr Flores, o Herói vê uma menina descendo a rua. Ela é muito bonita. Ele olha interessado para ela. Ela cmainha olhando para o chão. Quando se cruzam, ela ergue os olhos rapidamente, segue em frente. Ele quer olhar para trás mas não consegue. Segue em frente, confuso. A menina desaparece no movimento. O Herói segue até a banca da Sr. dos Passos, compra uma revista. Pega um ônibus, que sai e entra na cerração. CENA 3 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO E SALA Manhã no apê. O Herói está no banho, ouvindo "The Dark side of the moon". Pequenos flashes do apê, junto com a música, definindo ambiente e astral. O relógio mostra que é de manhã. Três sons combinados: música do disco, barulho do chuveiro e ele cantarolando baixinho a música, com razoável certeza da letra. Toca a campainha. Herói percebe que a campainha tocou e sai do chuveiro, puto da cara. Bota um roupão e vai abrir. É a vizinha do lado. VIZINHA Será que dá pra baixar um pouquinho a música? É que eu tenho criança pequena. O senhor entende, né? HERÓI (sem saco) Tudo bem. O Herói vai até o ampli e baixa o volume. Quase imediatamente, começa a ouvir uma música do Odair José, baixinho, mas perfeitamente identificável, vinda do apartamento de cima. Ele olha para cima, indignado. Fica puto. Vai enxugar o cabelo. De repente, faz uma expressão satânica. CENA 4 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA Começa a tocar "Brown sugar", dos Rolling Stones, a todo volume. Herói aparece na sala, colocando as caixas de som viradas para cima, de onde sai, a todo volume, a música dos Stones. Ele ri, dança e faz sinais ameaçadores pro teto. CENA 5 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO Corte seco para o Herói, que continua enxugando os cabelos, pensativo. Volta o Odair José, baixinho. CENA 6 - EXT/DIA - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI / ORELHÃO Herói sai do apê e vai para a rua. A câmara mostra o edifício. Ele vai até um orelhão e disca. A câmara segue fixa nele, mas ouve-se, bem claro, a outra voz no meio do movimento da rua. HERÓI Alô, a Mariana está? EMPREGADA (VS) Já vou chamar. Silêncio. Ele olha pra rua. MARIANA (VS) Alô. HERÓI Mariana? Oi, tudo bem? MARIANA (VS) Tudo legal. HERÓI Será que eu posso dar uma chegadinha aí na tua casa? MARIANA (VS) Legal. Vê se traz uns discos. HERÓI (contente) Que tipo de música? MARIANA (VS) Vê se traz música calma. HERÓI Calma? MARIANA (VS) É. Tu tem James Taylor? HERÓI (detestando) Não tenho, não. MARIANA (VS) Carole King? HERÓI (com cara de nojo) Também não. MARIANA (VS) (fazendo um esforço mental) Sei lá; quem sabe alguma coisa do Fagner... HERÓI Tudo bem, tudo bem. Eu levo alguma coisa calama, pode deixar. MARIANA (VS) Legal. Então tchau. Som do telefone desligando. HERÓI Mariana... Ele percebe que ela desligou. Fica olhando um pouco para o fone. Recoloca-o no gancho. CENA 7 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA Ele no apê, escolhendo discos na estante. CENA 8 - EXT/DIA - CASA DE MARIANA: FRENTE O Herói chegando na casa de Mariana, que é bem grande e tem um jardim bem cuidado. Classe-média alta. Aperta a campainha. Atende a empregada. Ele está surpreendido com a empregada, que não conhece. Ele fica meio sem jeito, sem saber o que dizer. Finalmente, consegue perguntar. HERÓI Ôi. A Mariana tá aí? EMPREGADA Ela tá lá no quarto dela. HERÓI Será que eu posso falar com ela? EMPREGADA (confusa, se desculpando) O senhor espera um pouquinho que eu vou ver. Fecha a porta. Ele fica de pé, do lado de fora, feito um imbecil. Dali a pouco, volta a empregada. EMPREGADA O senhor desculpe, mas é que eu sou nova na casa. (sorrindo amarelo) Pode entrar, a dona Mariana tá esperando. CENA 9 - INT/DIA - CASA DE MARIANA: ENTRADA, ESCADA, QUARTO Ele entra e sobe as escadas. Na frente da porta do quarto de Mariana, pára e hesita. Olha para os lados. Acaba batendo. MARIANA (voz abafada) Entra. Ele entra. Mariana está sentada na cama, lendo a "Cláudia", ou coisa assim. Ele sorri. MARIANA Ôi, tudo bem? Ele vai até a cama e dá um beijo rápido na boca. Ele está apaixonado. Ela é linda. HERÓI (tomando a iniciativa) Eu trouxe uns discos. Ela sorri e pega os discos, curiosa. Encosta-se na parede. Ele também se encosta e passa o braço pelos ombros dela. Ela pega dois discos de Vivaldi. MARIANA Mas isso é música chata, dá sono. É música de igreja, né? Ela pega um disco da Elis. MARIANA Agora que ela morreu todo mundo gosta. A voz dela é bonita, mas... não sei... falta alguma coisa. (taxativa) É muito técnica. Ela pega o disco da Simone ("Quatro paredes"). MARIANA Ih... mas essa é lésbica. (ri) Pega os dos Beatles ("Abbey road", "Let it be"). Fica mais entusiasmada. MARIANA Legal. (olhando as contracapas) Mas é meio velho, né? E depois que o John morreu é meio baixo- astral. (sorri) Quem sabe a gente ouve FM? Liga o rádio e ouve-se uma música horrível, melosa, tipo John Denver, "Sunshine on my shoulders". Ela sorri. Ele não sabe o que dizer. Ela olha pra ele e dá um beijo um pouco mais caloroso que o primeiro. Ele retribui na mesma medida. Olham-se. Ela sorri, divertida. Ele está confuso. Vai falar alguma coisa, mas desiste. Nada mais dizem. FADE OUT CENA 10 - EXT/NOITE - AV OSVALDO ARANHA O Herói caminha pela Osvaldo Aranha rumo ao Bristol. Noite fria. Passa por um bar (o que for mais fácil de filmar) e olha pra dentro. De repente, pára e volta. Entra no bar. CENA 11 - INT/NOITE - BAR DA OSVALDO ARANHA Herói entra, caminha em direção a uma mesa, onde está Leopoldo, um antigo colega de faculdade, sentado sozinho. Abraçam-se. HERÓI E aí, Leo, cumé que tá? LEOPOLDO Tudo bem, tudo bem. (Mas ele não tá bem.) HERÓI Eu tava indo ali no Bristol. LEOPOLDO Ah... HERÓI (sorrindo) Lembra quando a gente matava as aulas de Editoração e ia ver os filmes velhos? LEOPOLDO (sorrindo, mais animado) A revisão crítica! HERÓI (também rindo) Isso aí. De repente, silêncio. Não sabem o que dizer. HERÓI E tu? Tá trabalhando? LEOPOLDO Pois é. Quase peguei uma boca aí num jornal de empresa, mas depois despintou. Depois o Zeca, lembra o Zeca?, me convidou pra ir diagramar o jornal que ele trabalha, em Santa Maria. Não tô a fim. HERÓI (espantando) O Zeca em Santa Maria? LEOPOLDO É. HERÓI Não dá pra entender. E o Júlio, o Celso, o Duarte? LEOPOLDO Não sei. Não vi mais. Tu tem visto o Gordo? HERÓI Não. Não vejo ninguém. Depois que a Faculdade terminou, não vi mais ninguém. LEOPOLDO E tu? Tá com algum basquete? HERÓI (meio envergonhado) É... Consegui uma boca numa imobiliária. LEOPOLDO (surpreso) Imobiliária? HERÓI É. Tu vê, bacharel em Jornalismo, mas só trato com aluguéis, impostos, síndicos... É isso. LEOPOLDO (sem jeito) ainda tá morando com os velhos? HERÓI Não. Me mudei logo depois de conseguir o emprego. Tô morando sozinho, num apartamento ali na Cristóvão. LEOPOLDO (olhando o relógio) Tu não ia no cinema? São quase dez. HERÓI É mesmo. Tenho que cair. Ele vai levantando. Leopoldo também levanta. LEOPOLDO Eu vou junto. CENA 12 - EXT/NOITE - AV OSVALDO ARANHA O Herói e Leopoldo saem do bar e começam a caminhar lado a lado. LEOPOLDO (meio rindo, meio sério) Quais são as perspectivas? HERÓI (surpreso, não esperava esse tipo de papo) Não sei. Não tem emprego aqui. Pro interior é que eu não vou. Tudo muito saudável. Muito verde. Eu prefiro a fumaça. CENA 13 - INT/NOITE - CINEMA BRISTOL Chegam no Bristol. O Herói compra entradas para os dois. Sobem as escadas. LEOPOLDO E os velhos? Não se importaram com a tua saída? HERÓI (pensativo) Não sei explicar direito. Alguma coisa mudou, não sei o quê. LEOPOLDO Mas tu continua vendo eles seguido? HERÓI Ãh-hã. Amanhã combinei de almoçar lá. (pensa um pouco) Tô com saudade da comida da mãe. Mas às vezes acho que não compensa. Entram na sala de projeção, de onde sai o som do "Brasil em Notícias". CENA 14 - INT/DIA - CASA DOS PAIS: SALA DE JANTAR O Herói chegando na casa dos pais. A Mãe o abraça, o Pai já está na mesa. A Mãe busca a comida na cozinha. O Herói beija o Pai na testa. HERÓI E daí, pai, tudo bem? PAI Tudo bem. (mas não tá tudo bem) MÃE Fiz a lasanha que tu gosta. HERÓI (sorrindo) Que bom. Ele começa a comer. PAI (cortante) Já pagou o aluguel desse mês? HERÓI (enquanto come) Ainda não. Só recebo dia dez. PAI Mas o aluguel vence dia cinco. HERÓI Mas eu sempre pago pelo dia dez, não tem galho. PAI Mas tá errado. Se vence dia cinco, tem que pagar dia cinco. HERÓI (sm saco) Não te preocupa. O Pai quer mostrar que tem mais experiência e acentuar o grau de dependência que o Herói ainda tem em relação a ele. PAI Eu sou o teu fiador, meu filho. Depois, vem tudo pra cima de mim, e tu sabe que eu não tenho tempo. MÃE (intervindo, apascentadora) Calma, Francisco. O menino tá dizendo que não tem mal nenhum. PAI Ele não se preocupa com nada. MÃE Vamo comê. Tá boa a comida, filho? O Herói come, quieto, tentando navegar por cima do diálogo. PAI (voltando à carga) Cumé que tá o emprego na imobiliária? HERÓI Tudo bem. PAI Não tá procurando coisa melhor? MÃE Não começa, Francisco. Tá boa a comida, filho? PAI Eu sei que é difícil conseguir emprego em jornal, mas eu já te falei que talvez eu consiga alguma coisa... MÃE (cortando) Ele não quer. PAI (para o Herói) Quanto tu tá ganhando nessa imobiliária? HERÓI (sem saco) Mais do que se fosse repórter. PAI Então por que fez Jornalismo? MÃE Porque ele quis. PAI Olha, meu filho, se eu fosse tu partia pra outra. Sei lá, quem sabe fazer outro curso. A mãe gosta da idéia, mas não tem coragem de abandonar sua posição de defesa incondicional do filho. O Herói continua comendo. HERÓI Pai, não te preocupa. Eu tô bem. MÃE (sorrindo) Claro, Francisco. Ele tá fazendo o que gosta. PAI (irônico) Trabalhar numa imobiliária? MÃE Quer mais arroz? Silêncio. Todos comem. O Pai desiste de incomodar. Sabe que não adianta nada, mas considera seu dever dizer sempre as mesmas coisas. MÃE (para o filho) Sabe o Antônio? HERÓI Ãh-hã. MÃE Chegou uma carta da tia Lice dizendo que ele anda amasiado com uma dona no Rio de Janeiro. HERÓI (surpreendido) O Antônio? MÃE É. Diz que ela tem uns quarenta. A tia Lice também não tá muito bem. HERÓI A tia Lice? MÃE A catarata dela piorou. Agora vai pros Estados Unidos, tentar uma operação complicada. Só tem um problema: os filhos não querem dar o dinheiro pra ela ir. HERÓI (surpreendido) Ué, mas o tio não deixou nada pra ela? MÃE Deixou, mas ela dividiu tudo duma vez, pra não haver briga depois de morta. Aliás, eu ouvi dizer que ela já tentou até encaminhar... O Herói vai comendo e ouvindo a conversa da Mãe. O som da voz da Mãe vai baixando, enquanto mixa com a música. CENA 15 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: COZINHA Herói sentado na cozinha do seu apartamento, na frente de uma xícara com café-com-leite e uma fatia de pão, bananas ao fundo. Come, satisfeito, tranqüilo. CENA 16 - INT/DIA - CASA DOS PAIS: SALA DE JANTAR Volta outra vez pra casa dos pais. Mãe continua falando. MÃE Tá boa a comida, filho? HERÓI Ótima, mãe. Boa mesmo. PAI (sem acreditar muito) E tu fica comendo mal fora daqui. HERÓI Pois é. PAI Passa mal porque quer. HERÓI Pois é. CENA 17 - EXT/DIA - PUC: EM FRENTE À FACULDADE DE DIREITO Herói na PUC, sentado no murinho defronte ao Direito, esperando Mariana. Ele gosta de almoçar com ela porque assim fazem alguma coisa juntos. Ele lê a Folha da Tarde. Faz frio e sol. A turma sai. Mariana o vê, se aproxima, beijam-se. Uma colega cochicha alguma coisa com uma outra. Els saem conversando em direção à Famecos. MARIANA (carinhosa) Que bom que tu veio. HERÓI (sorrindo) Eu disse que vinhe, vim. MARIANA Mas não é uma mão vir lá do centro até aqui? Ele abre a Folha da Tarde. Ela olha por cima dele, sorri e arranca o jornal. MARIANA Que legal. Vamo olhar o horóscopo! (concentra-se) Primeiro o meu. Tá aqui. Capricórnio... Sorte nos negócios... bobagem... deixa eu ver o que interessa... Amor: boas perspectivas, dia propício a namoro, poderá conhecer pessoa muito interessante. (ri) Cor azul, que legal! Ela está de azul e bate palmas, satisfeita. MARIANA Agora o teu. Tu é... deixa eu lembrar... Ele está decepcionado com o esquecimento dela, mas disfarça. HERÓI (atalhando) Aquário. MARIANA É isso. É isso. Deixa eu ver aqui... Amor: uma pequena discussão acabará bem. Seu relacionamento começa a amadurecer. Bom dia para passeios a dois. Que bom. Ela fecha o jornal e o abraça. HERÓI (divertido) Então a gente pode ficar junto hoje? MARIANA (defendendo-se) Eu sei que tu acha bobagem, mas esse negócio de horóscopo às vezes dá certo. HERÓI (contemporizando) Eu acho que alguma coisa tem que ser real nesse negócio de Astrologia. Mas horóscopo da Folha da Tarde?... Pelo amor de Deus! MARIANA (irritada) Quê que tem? Tá pensando que eu acredito em tudo? Tá pensando que eu sou burra? Ele fica quieto. MARIANA Às vezes tu me trata como uma débil mental. HERÓI (carinhoso) Desculp, querida, mas é que... Ele não sabe o que dizer. Tenta beijar, ela evita. MARIANA Aqui não; tem muita gente. HERÓI Quê que tem? MARIANA Nada. HERÓI (paciente) Então quem sabe a gente dá uma volta por aí? MARIANA (já calma) Tudo bem. Só que eu tenho que almoçar cedo. Ainda quero estudar antes da aula. HERÓI (carinhoso) Tudo bem. Levanta-se. Eles caminham lado a lado, sem grandes carinhos. De vez em quando ele faz carinho no braço dela. Só. HERÓI Já começou o Germinal? MARIANA Aquele livro que tu me deu ontem? (com cara de quem comeu e não gostou) Acho que eu não vou gostar muito. O cara fica caminhando não sei quantos quilômetros de campo de beterraba. HERÓI (sem entender) Cumé que é? MARIANA Eu não curto muito esses negócios de século dezenove. HERÓI Por quê? MARIANA Muito velho. HERÓI Tudo bem. Eu vou te far um troço mais moderno, mais século vinte. Pausa. HERÓI Mariana, tá a fim de ir pra praia? MARIANA Que praia? HERÓI Sei lá. Pode ser Arroio do Sal. Meus velhos têm casa lá. MARIANA No inverno? HERÓI Quê que tem? MARIANA Ninguém vai pra praia no inverno. HERÓI Eu vou. MARIANA Qual é a graça? HERÓI É muito melhor que no verão. MARIANA É muito frio, não dá pra tomar banho, nem pra pegar sol. HERÓI E daí? A gente pode caminhar bastante, tirar umas fotos, ler. MARIANA (pesando a proposta) É. Até que pode ser. Só que eu vou ter que estudar lá. Tu tem que prometer que vai deixar. HERÓI (feliz) Claro, claro. MARIANA Te amo. Ela, rapidamente, dá um beijo na boca dele. Ele quer mais, ela não deixa. MARIANA (rindo) Depois, na praia. HERÓI (contrariado) Tá legal. MARIANA Agora eu tenho que almoçar. HERÓI Será que a gente pode ir no teu carro? MARIANA Sempre no meu carro. Será que tu não pode pedir o carro do teu pai emprestado? HERÓI Posso... É que... MARIANA Eu sei. Tu não gosta. HERÓI Não, não tem nenhuma. Eu peço. MARIANA Não precisa. Vamos no meu. HERÓI (tendo uma idéia) Pô, a gente podia ir de ônibus. Ninguém incomoda e... MARIANA De ônibus? Tá maluco? Vamos no meu carro. Entram no bar. CENA 18 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI Herói no apê, esperando Mariana chegar. Tá com tudo pronto. Olha pela janela. Música "Country honk", desde o início. CENA 19 - EXT/DIA - EDIFÍCIO DO HERÓI Chega o carro, ela buzina. Ele entra no carro, que arranca. Os dois estão felizes, quase bobos. CENA 20 - EXT/DIA - ESTRADA Entram na free-way. Ela corre bastante. Ele buzina o carro, faz que vai dar um beliscão nela. Ela reage fazendo de conta que vai largar a direção. Ele corrige, se fazendo de assustado. Galinhagens em geral. CENA 21 - EXT/DIA - PRAIA: RUAS Quando chegam, o astral muda. As ruas tão vazias, cheias de areia. Faz frio. Tempo nublado. Ninguém à vista. Ela tá muito assustada. Vão direto pra casa. CENA 21B - INT/DIA - CASA DE PRAIA: SALA Abrem a porta da casa. Entram juntos. Típico astral de casa na praia no inverno. Tudo escuro, meio mofado. Ele pega as coisas e traz pra dentro. Ela abre as janelas. Ele abre a bolsa e tira um livro. É "O Caso Morel". Leva até ela, que está parada, de pé, sem saber o que fazer a seguir. HERÓI Olha, trouxe pra ti. MARIANA (examinando o livro) Rubem Fonseca? Nunca ouvi falar. HERÓI É bem moderno, como tu pediu. MARIANA Legal. Vou começar a ler hoje de noite. HERÓI (sem jeito) Tá. MARIANA E agora? HERÓI Agora o quê? MARIANA O quê que a gente faz? HERÓI (confuso) Sei lá. A gente podia olhar o quarto, arrumar as coisas... MARIANA É. Pode ser. HERÓI (tentando vencer o gelo) Querida, querida, querida... E dá um beijo bem carinhoso. Ela retribui. Entram no quarto. CENA 22 - EXT/FIM DA TARDE - CASA DE PRAIA: VARANDA Herói e Mariana sentados na varanda da frente da casa de praia, abraçados, com frio. Ele está de olhos fechados. HERÓI Tá vendo? Não é legal? MARIANA Vendo o quê? HERÓI (abrindo os olhos) Tudo. É tão bonito. A câmara mostra o que ele quer dizer, terminando na cara dela, meio confusa. CENA 23 - INT/NOITE - CASA DE PRAIA: QUARTO Os dois estão deitados na cama de casal. Cada um dum lado, debaixo das cobertas, lendo seus livros. Ela lê "O Caso Morel". O Herói pára de ler. Olha pra ela, divertido. HERÓI Sabe, Mariana, eu pensei que ia ficar um negócio gozado a gente dormir na mesma cama. Eu pensei que talvez pintasse algum grilo, ou que tu quisesse... MARIANA (cortando, sem levantar os olhos do livro) Tá pensando outra vez que eu sou uma débil mental? HERÓI Não, não. É que... Sei lá. Podia pintar alguma coisa. MARIANA (lendo) Não tem grilo nenhum. (pára de ler) Eu te amo. Ela dá um beijo nele. Ele quer aproveitar. Encomprida o beijo o máximo possível. Tenta ir pra cima. Ela não deixa. MARIANA Agora não. Tô lendo. Ele volta à posição inicial. Pausa. De repente, ela pára e afirma. MARIANA Quanta besteira! HERÓI (surpreso) Onde? MARIANA Aqui no livro. HERÓI Não pode ser. Eu já li duas vezes. É tri bom. MARIANA Não gosto de ler esse tipo de coisa. HERÓI Que tipo? MARIANA Esses negócios aqui. É sexo pelo sexo. HERÓI (tentando entender) Cumé que é? MARIANA Pornografia. Ele tá escrevendo só sobre sexo. Não tá explicando nada. HERÓI (confuso) Não entendi. MARIANA É isso. O cara tá escrevendo só pelo sexo em si. HERÓI E tem que ter mais alguma coisa? MARIANA (perdendo o saco de explicar) É isso. Não gosto. Acho que vou dormir. Mariana apaga a lâmpada de cabeceira do seu lado da cama. O Herói não apaga a sua, mas também pára de ler. HERÓI Mariana, eu queria conversar uma coisa contigo. MARIANA (com sono) O quê? HERÓI Sei lá. Ele vai chegando mais perto. Olha pra ela, linda, embaixo das cobertas. HERÓI Acho que não tem nada pra conversar. (ela ri) Então acho que eu vou dar um beijo de boa noite. Ele beija, com tesão. Ela responde. Ele acaricia o rosto dela. Beija uma das orelhas. Ela gosta. Ele tira as cobertas de cima dela. Dá um jeito e segura os peitinhos por baixo da camisola ou camiseta. Ela gosta. De repente, ela pára de gostar. MARIANA Tira a mão. ele faz que não ouve, continua. MARIANA (mais forte) Tira a mão daí! HERÓI Por quê? MARIANA Não quero. HERÓI Eu tô só fazendo carinho. MARIANA (ainda forte) Não tô a fim. HERÓI Tá legal. Ele tira a mão, volta pro seu próprio canto da cama. Ela fica envergonhada, mas logo parte pra ofensiva. MARIANA (carinhosa) Tô com soninho. HERÓI (meio puto) Tudo bem. MARIANA (muito carinhosa) Não fica assim, amor. É que, sei lá. Não sei explicar direito. Não quero ainda, ainda não, dá pra entender? HERÓI Não, não dá. Tu sente tesão por mim? MARIANA Claro. HERÓI Tu não fica molhada (aponta pra checheca dela) aqui? MARIANA (rindo) Fico. HERÓI Pois eu fico também. Então por que a gente não pode trepar? MARIANA Eu te amo, pequeninho. E o beija, primeiro na boca, depois no rosto todo. HERÓI Te amo, te amo. E a beija com vontade, quase violento. Tenta ir pra cima outra vez, ela não deixa. MARIANA Amanhã, meu amor, amanhã. Ele desiste, vai pro seu canto e apaga a luz. CENA 24 - EXT/DIA - PRAIA O Herói e Mariana na praia, caminhando lado a lado, bem agasalhados, sozinhos. Ela tá abraçada nele, mais por causa do frio que por carinho. O mar faz barulho. Vento. Dia nublado. De vez em quando, ela treme de frio. MARIANA Tá frio. HERÓI É. MARIANA Quem sabe a gente volta pra casa? HERÓI Eu só queria andar mais um pouquinho. MARIANA Tá bem. Continuam andando. De repente, ele pára e olha pra ela. HERÓI Sabe duma coisa? Sempre que eu venho pra praia, eu lembro do "Interiores". MARIANA Que interiores? HERÓI Aquele filme do Woody Allen, lembra? MARIANA Não. Acho que eu não vi. HERÓI Mas a gente viu junto. Era aquele que a família se reunia numa casa de praia no inverno... MARIANA (sem paciência) Não lembro. HERÓI Pena. Continuam caminhando. Ele fecha os olhos, larga o braço dela e começa a andar de olhos fechados. HERÓI Sabe, no inverno a gente pode caminhar quilômetros pela beira da praia de olhos fechados. Sem medo de nada! Já pensou? Não tem ninguém na frente. Ninguém. Experimenta. Ela o segue de boca aberta, sem entender nada. Ele continua caminhando, satisfeito. De repente, ele pára. Abre os olhos. HERÓI Experimentou? MARIANA Não. Eu prefiro andar com os olhos abertos. Ele olha para ela decepcionado, mas sacando tudo. Faz carinho no rosto dela. O zoom afasta. Os dois estão com frio. FADE OUT CENA 25 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS Herói chega num apartamento. Os amigos estão lá, sentados no chão e nas cadeiras (poucas) existentes. Tomam mate. HERÓI Oi. E vai entrando. JÚLIO Chegou o caminhante solitário. Todos riem. Ele sorri para todos, meio sem jeito. MILTON (chato) E daí, lobo da estepe? Cumé que anda o astral? HERÓI Tudo bem. Ele senta no chão. CLÁUDIA Quê que fez no fim de semana? HERÓI Fui pra praia. CLÁUDIA Sozinho? HERÓI (medroso) Com a Mariana. MILTON (chato) Com a Mariana! MARIA (carinhosa) A Mariana é aquela guria que tu me falou há tempo? HERÓI É. MARIA Vocês ainda tão transando? HERÓI Mais ou menos. MILTON História! Ele não larga o pé da guria. Tou sabendo, tou sabendo. Eu tenho os meus informantes lá pela PUC. JÚLIO Por que tu não traz ela pra gente conhecer? MILTON É, traz. Aliás, pelo que eu sei, ela é um tesãozinho. Uma menina toda gostosinha... O Herói, sem saco, fala com Alexandre. HERÓI E daí, tchê, tudo bem? ALEXANDRE Tudo bem. Na mesma. MILTON (muito chato) Fugiu da raia, é? HERÓI (pra Maria) Cumé que tá o emprego? MARIA Uma bosta. O Herói ri pela primeira vez. HERÓI Como sempre. MARIA Como sempre. CLÁUDIA (se intrometendo) Vocês sabem duma coisa? Eu andei lendo o Relatório Hite, e menos de dois por cento das mulheres têm orgasmo quando trepam. LÚCIA Não acredito. CLÁUDIA Tá lá. Depois te mostro. LÚCIA Isso vale lá nos Estados Unidos. Aqui é diferente. CLÁUDIA Não sei. Acho que tem muita gente que finge. MARIA (interressada) Também acho. LÚCIA Não sei, não sei. MILTON (se metendo, chato) Eu garanto que comigo não tem fingimento. Risos educados para a piada infame. Cláudia olha para o Herói, encarando. CENA 26 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO Cláudia e o Herói na cama, trepando. Ela está por cima e gosta bastante. Gemidos um pouco exagerados. Ela se acaba. Ele olha, fascinado, maravilhado, quase sem acreditar. Ela sai de cima e desaba ao lado dele. O Herói olha pra ela, ainda maravilhado consigo mesmo, terno, inocente. HERÓI Tava bom? CLÁUDIA (se assoprando) Quê que tu acha? HERÓI Tava, né? CLÁUDIA (rindo) Tava ótimo. HERÓI (se explicando) É que eu nunca tinha visto uma guria se acabar assim. Porra... É um troço quase violento. CLÁUDIA Eu sou assim. Não pensa que eu tava fingindo. É que pouca gente consegue ter um orgasmo realmente bom. HERÓI Como assim? CLÁUDIA Não sei explicar direito. Mas esse foi dos fortes. Foi por dentro e por fora, entende? HERÓI Não. CLÁUDIA É difícil encontrar um pau que dê o contato exato, sem faltar nada e sem pisar o útero. HERÓI E o meu é bom? CLÁUDIA (sorrindo, carinhosa) Perfeito. HERÓI Eu sempre achei que fosse pequeno. CLÁUDIA Bobagem. É perfeito. Ele raspa direitinho nos lugares certos. Ele sorri e a beija. CENA 27 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS Volta pro apartamento dos amigos. O Herói está olhando para Cláudia. Ela também olha para ele, sacando o que ele tá pensando. De repente, ela levanta e vai sentar ao lado do Milton. Dá um beijo nele. O Herói se incomoda. Parte pra ofensiva. HERÓI E daí, Milton, tá firme no Hermann Hesse? MILTON Agora tô lendo o "Sidarta". MARIA É aquele dos hindu, né? MILTON É. (para todos) Alguém mais já leu? HERÓI Eu li há muito tempo, no colégio. Na época eu gostei. Acho que hoje ia detestar. MILTON (muito chato) É claro. Ele já leu (faz cara de importante) "Ulisses", de James Joyce. HERÓI Não tem nada a ver. MARIA (intercedendo, conciliadora) Tu já foi ver "Reds", Cláudia? CLÁUDIA (olhando fixo pro Herói) Tô cagando pro Joyce e pro Hermann Hesse. Eu queria é o Warren Beatty na minha cama. Ela ri, todos riem, o Herói quieto. CENA 28 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO O Herói acorda na cama com Cláudia. É a manhã seguinte à grande trepada. Ele está segurando o seio esquerdo de Cláudia. Levanta devagar, depois de tirar a mão com cuidado. CENA 29 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: COZINHA O Herói vai até a cozinha e prepara café com leite e duas torradas. CENA 30 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO Volta para o quarto com a bandeja cheia. Coloca tudo na cama. Beija a orelha de Cláudia, que abre os olhos, muito sonolenta. CLÁUDIA (arrastado) Que horas são? HERÓI Dez e quinze. CLÁUDIA (quase dormindo) Muito cedo... Cláudia vira pro outro lado e continua dormindo. Ele está decepcionado, mas não insiste. Começa a comer rapidamente as torradas. CENA 31 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: SALA O Herói dando uma olhada no apartamento. Nenhum livro. Discos de Gilberto Gil, Caetano Veloso (todos), Fagner, A Cor do Som e coisas assim. Bota os fones. CENA 32-35 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: QUARTO E SALA Na cama, Cláudia dormindo. Na sala, Herói esperando. Cláudia continua dormindo. O tempo passa. Herói olha pro relógio: meio dia. CENA 36 - INT/DIA - APARTAMENTO DE CLÁUDIA: SALA Herói vai até o quarto e beija os cabelos de Cláudia, que continua dormindo, nem aí. Ele pega papel e lápis e escreve: TIVE QUE IR PRO TRABALHO. POR FAVOR ME TELEFONA LOGO (41.37.12). UM BEIJO. Lê, relê, faz cara de quem não gostou. Amassa o bilhete e começa outro: NÃO TIVE CORAGEM DE TE ACORDAR. O NÚMERO DO MEU TRABALHO É 41.37.12. SE TU ME LIGAR, CERTAMENTE ME LIVRA DE UM SÍNDICO MANÍACO-DEPRESSIVO. JÁ VIU CIDADÃO KANE? Lê, gosta, coloca o bilhete em cima da cama. Olha pra Cláudia mais uma vez. Sai do quarto. CENA 37 - INT/DIA - IMOBILIÁRIA Herói na imobiliária, trabalhando. Toca o telefone, ele corre pra atender. Não é com ele. Toca de novo. Ele vai atender, esperançoso, mas alguém inicia um papo complicado, que ele logo corta e dá um jeito pra desligar. Volta pra mesa. Olha o relógio na parede: seis e dez. Ele faz cara de saco cheio. Todo mundo começa a ir embora. Ele olha pro telefone, concentrado. Toca de novo, ele vai atender, mas alguém atende antes e fica assustado com a afobação do Herói. Ele espera, ansioso. Era engano. Volta pra mesa. O chefe tá saindo. CHEFE Ué, não vai embora? HERÓI (sem jeito) Já tô indo, já vou. CHEFE Vamo duma vez, que a porta vai fechar. HERÓI Já vou. Levanta e sai bem devagar. Ainda olha uma última vez pro telefone, mudo, frio, odioso. CENA 38 - INT/NOITE - APARTAMENTO DOS AMIGOS Cláudia ainda tá rindo da piada do Warren Beatty. O Herói olha pra ela, magoado, confuso. Cláudia ri, satisfeita, sem olhar pra ele. Ele sorri, confuso. FADE OUT CENA 39 - EXT/ENTARDECER - RUA SIQUEIRA CAMPOS O Herói está no fim da Siqueira Campos. Entardecer-anoitecer. A cãmara mostra os edifícios, o astral do ambiente, o astral dele próprio. CENA 40 - EXT/ENTARDECER - FRENTE DO RIB'S Mariana no Rib's, muito movimentado, cheio de carros e gatinhas. Ela ri, enquanto toma milk-shake rodeada por amigos e amigas. CENA 41 - EXT/ENTARDECER - PRAÇA JÚLIO DE CASTILHOS A Praça Júlio de Castilhos está quase vazia. Exceção dum mendigo, meio bêbado, sentado num banco, que olha o movimento com uma expressão vazia. Ponto de vista do mendigo. CENA 42 - EXT/ENTARDECER - RUA SIQUEIRA CAMPOS O Herói continua no mesmo lugar, sentado, apreciando o pôr-do- sol. A luz penetra direto na objetiva da câmara. Ele pisca os olhos, ofuscado. Fecha os olhos. Abre de novo. Muita luz. Fecha outra vez. Quando abre, Mariana está olhando pra ele. Ele sorri. Ela não está entendendo nada. O sol está bem detrás do rosto dela. HERÓI É bonito, isso aqui, né? MARIANA (sem entender) Eu acho triste. Não quero ficar aqui. Ela movimenta o rosto. O sol bate direto na lente. Ele fica novamente ofuscado. Fecha os olhos. Quando abre, os amigos estão sentados com ele. Ele reage naturalmente à presença deles, que estão contra o sol. JÚLIO E daí, tchê, quê que se faz? MILTON (se intrometendo, chato) Não tá vendo, Júlio? Como tu é burro! Ele tá pensando, cara. Ele tá curtindo o ambiente. Ele tá tentando encontrar uma maneira de resolver todos os problemas do mundo, sentado num muro da Siqueira Campos. LÚCIA Não enche o saco, Milton. MILTON Mas é isso, é bem isso. Não é, ô lobo da estepe? HERÓI (de saco cheio) Olha lá, que troço estranho. E aponta prum casal que vem em direção ao grupo. Começa a tocar "Gimme shelter", primeiro bem baixinho, mas vai aumentando à medida que o casal se aproxima. O cara é alto, louro, tipo estudante de teologia. Caminha todo torto, com uma das pernas curvadas num ângulo ilógico. A cada passo, é obrigado a fazer uma dança horrível como quadril. Apóia- se numa bengala de metal. Ela usa um vestido com bolinhas pretas e uma sandália vermelha presa com pequenas tiras ao tornozelo. Tem a boca permanentemente aberta, num sorriso debilóide. Anda devagar, pra poder acompanhar o paraplégico. Aproximam-se. Os dois se amam, estão completamente felizes. Fazem carinho um no outro enquanto andam. O Herói olha pros dois, surpreso, confuso. MILTON Mas o que é isso? Meu deus, que aparição. E aponta, rindo, tirando sarro. LÚCIA Tu vê, cara, eles tão bem, tão numa boa. "Gimme shelter" bem alto. O Herói continua olhando pro casal, já bem perto. HERÓI Incrível, né? Eles tão felizes. Puta merda, tão felizes. "Gimme shelter" a todo volume. O Herói acompanha o casal, atônito. MILTON (rindo, gritando) Ô vaca, vê se fecha essa boca, que a baba tá respingando aqui. Sai daí ô manco, perneta, paralítico. (rindo muito) No mínimo, ainda é poeta... CLÁUDIA (rindo) O que é a sandalinha... O Herói continua com a mesma expressão, sem saber o que fazer. O casal passa na frente dele. CLÁUDIA Que belo par. Lindo! Desaparecem os amigos. O Herói tá sozinho no muro. Acompanha o casal, que agora caminha de costas pra ele. O casal dobra a esquina e desaparece de vista. O Herói olha pro fim da rua, tenso. Tudo vazio. Música a mil. Devagar, o Herói levanta e caminha até a esquina. Quando consegue olhar pro lado, vê os dois abraçados, quase beijando. O Herói está completamente tenso. Os dois se beijam, ternamente, completamente felizes. O Herói abre a boca, respirando fundo, e assiste o beijo. O sol está bem atrás da cabeça dele. FADE OUT CENA 43 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA E COZINHA O Herói chega em casa, ainda chocado com a cena da Siqueira Campos. Está chovendo. Ele abre a janela e a sala fica mais clara. Vai até a cozinha e toma um gole dágua na garrafa. De volta à sala, dirige-se ao amplificador. Liga. Vai até a estante dos discos. Olha as capas de vários, mas não se decide por nenhum. Senta no colchão da sala. Olha a estante de livros. Pega um deles, ilustrado (pode ser um de ficção científica). Folheia, pouco interessado. Enche o saco. Levanta e desenha o bolha na janela embaçada. Volta a sentar. Fecha os olhos. CENA 44 - EXT/DIA - DIVERSOS LOCAIS Imagens do inverno na cidade, semelhantes às dos créditos. Nuvens correndo. Frio. Gente na parada de ônibus, com o ar quente da respiração fazendo "fumaça". Cachorro dormindo. CENA 45 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói continua no seu apartamento, sentado no colchão da sala. Abre os olhos. Fecha outra vez. CENA 46 - INT/DIA - IMOBILIÁRIA O Herói na imobiliária, trabalhando mecanicamente. De repente, pára e olha em volta. O som ambiente some. A câmara faz uma panorâmica pelos rostos dos colegas de trabalho (mais velhos, engravatados, medíocres, com um bom saldo no banco). Volta pro Herói. Volta o ruído da imobiliária. CENA 47 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói outra vez no seu apartamento, parado, pensando. Levanta, vai até a máquina de escrever e senta. Bota o papel. Olha a folha em branco. FADE OUT CENA 48 - EXT/DIA - CASA DE MARIANA: FRENTE O Herói e Mariana conversam, em frente à casa dela. Ela está comendo pêssegos em conserva. MARIANA Quer um pouquinho? HERÓI Não. Ela continua comendo, satisfeita. HERÓI Ontem eu lembrei daquele filme que a gente viu outro dia na tevê. "Cidade das ilusões", lembra? MARIANA Não. HERÓI É aquele do cara que era boxeador, que tinha uma mulher bêbada que andava com um negro. Ele tinha um amigo bem guri. MARIANA Lembro. HERÓI Lembra o final? MARIANA (fazendo um esforço mental) Acho que não. E continua comendo. HERÓI É o cara num bar, no meio dum monte de velhos. De repente, ele se dá conta que vai ficar do mesmo jeito. Não tem saída. Pra ninguém. Nem pra ele, nem pro guri. MARIANA Baixo-astral... HERÓI É, eu lembrei ontem, na imobiliária. MARIANA (oferecendo o potinho) Não quer mesmo um pouquinho? HERÓI Não, Mariana, tu sabe que eu não gosto de pêssego. MARIANA Tá legal. (come) Vamo no cinema, hoje de noite? HERÓI Eu combinei de ir na casa da Lúcia. MARIANA Fazer o quê? HERÓI Sei lá. Conversar. O pessoal vai tá lá. MARIANA Tu cansa de dizer que os papos são chatos... HERÓI É... quer dizer... não é. Tem umas pessoas legais, outras chatas. MARIANA Cumé o nome daquele cara que tu não gosta? (faz um esforço) Milton... É isso? HERÓI (rindo) É. O Milton é dose. MARIANA O quê que ele faz? HERÓI Agora tá planejando ir pra Moçambique. MARIANA Fazer o quê? HERÓI Não sei. Tem um outro amigo meu, o Maurício, que foi pra Israel. Deve tá colhendo laranja em algum kibutz. MARIANA (surpresa) Colhendo laranja? HERÓI (divertido) É. Lsranja. (pra ela, sério) O que será que se colhe em Moçambique? MARIANA (nervosa com o teste) Sei lá... (oha pra tigelinha dos pêssegos) Sei lá. (tomando coragem) Pêssegos? CENA 49 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE LÚCIA O Herói no apartamento de Lúcia, com todos os amigos. Sentado no chão, em cima de uma almofada. Música desde o início da cena. Lúcia sai dum quarto e chega na sala. Senta bem na frente do Herói e o encara. À medida que se desenvolve o "stream of consciousness" do Herói, a câmara descreve os movimentos como se fosse os seus olhos. HERÓI (VS) Sentou na minha frente de propósito / quer brincar comigo / mas eu faço que não tô interessado e olho pros posters na parede / mas que saco / como são horríveis / quem sabe só virar um pouquinho a cabeça? / mas aqui tá ela de novo / puta merda, coninua me olhando / parece que ela tá a fim de conversar / quem sabe ela não tá brincando? / Lúcia, eu nunca sei se é sério / eu gosto de ti, sabe? / agora ela desviou os olhos / vai voltar daqui a pouco, pra conferir se eu ainda tô olhando pra ela / será que ela sabe que eu tenho vontade de conhecer ela? / ela tá voltando / voltou / ela tá rindo pra mim / eu acho que ela me acha chato / o Júlio disse / a Maria acha que não / agora é a minha vez de desviar / pequeno passeio pela sala / Lúcia, tu vai estar quando eu voltar? / devagar agora / Lúcia... Lúcia levanta, rápido, e vai até onde está Milton. Corta música, entra ruído ambiente. Lúcia cochicha alguma coisa no ouvido de Milton, que sorri, bota a mão no bolso do casaco e tira um cigarro. Acende. Lúcia dá uma tragada funda e olha pro Herói, divertida. Close no Herói, confuso. CENA 50 - INT/DIA - CASA DE MARIANA: QUARTO O Herói e Mariana no quarto dela. Cada um lê a sua revista: ela, Cláudia; ele, ???. MARIANA (levantando os olhos) Amanhã é aniversário da Cristina. Vai comigo? Ele finge que continua lendo. HERÓI Hã? MARIANA É a minha prima mais chegada. Vai fazer dezesseis anos. Ele abandona a revista e estende as pernas. HERÓI Mariana, eu já te expliquei antes. Não gosto daqueles caras, não me sinto bem. MARIANA Por quê? HERÓI Não gosto das músicas... (pensa um pouco) E também não gosto da tua prima. E tu sabe que ela não gosta de mim. MARIANA Não. HERÓI Tu sabe que não gosta. (pausa) Me dá uma boa razão pra eu ir que eu vou. MARIANA Me acompanhar. HERÓI (fechando os olhos) A gente podia ir no cinema... MARIANA (emburrada) Eu vou na festa. HERÓI (abrindo os olhos) Não suporto essas festas. Não lembra da última? Fiquei num canto o tempo todo, me embebedando com cuba-libre. Mariana faz cara de quem não se lembra. HERÓI E tem mais. Eu acho que tu também não gosta. Só vai pra satisfazer a família, a vaidade, sei lá o quê! Mariana está com raiva, mas ainda não entendeu o alcance da última frase do Herói. Pega a revista e folheia duas vezes, com gestos secos e concentrados. Fica um tempo fingindo que lê. Depois, baixa a revista, encara o Herói fixamente e começa, mastigando as palavras. MARIANA Vaidosa? Eu, vaidosa? O Herói sente o que vem por aí. Está arrependido, mas agora não adianta mais. MARIANA Vaidosa? Que coragem a tua, hein? Eu não uso exatamente três calças e quatro camisetas minhas porque tu não gosta. Eu parei de usar salto alto porque o senhor diz que é bagaceiro. Não uso pintura porque o senhor não gosta. Não prendo o cabelo. Não corro mais no Parcão. Não posso mais andar de barco com os meus amigos porque tu não sabe nadar. Vaidosa? Vaidosa? Mariana joga a revista longe. O Herói admira, entre maravilhado e medroso, a explosão de Mariana. Mariana levanta e vai até onde está o Herói. Senta na frente dele. Coloca a mão esquerda no joelho direito do Herói. As unhas são pequenas, sem pintura. Ela tem uma tristeza de mártir nos olhos. MARIANA Não pinto mais as unhas. Mariana olha pra ele, com pena de si mesma. Ele não agüenta. Começa a beijá-la em todas as partes do corpo. Mariana resiste apenas no começo. Ele levanta a blusa dela pra beijar o umbigo. MARIANA (séria) Então vamos no aniversário juntos, né? HERÓI (sem pensar) É. É. CENA 51 - EXT/NOITE - FRENTE DO CINEMA VITÓRIA O Herói na fila do cinema Vitória. Em cartaz, um típico filme do Vitória. Ele tá encucado, sem tesão de ir ao cinema. CENA 52 - INT/NOITE - BILHETERIA DO CINEMA O Herói chega na bilheteria, se agacha para perguntar alguma coisa. Fica surpreso. Os olhos que aparecem são os de Mariana. MARIANA Meia ou inteira? HERÓI Cumé que tá a festa? MARIANA Meia boca. Mas tem uns caras legais! HERÓI O quê? MARIANA Um amigo da minha prima. Ele faz Medicina. (sorri) Legal, ele. HERÓI (confuso, arrependido) Meia. CENA 53 - INT/NOITE - SALA DE ESPERA DO CINEMA O Herói entra na sala de espera e senta. Olha pro outro lado. Mariana e um quintanista de Medicina estão sentados no sofá, alegres, bem arrumados, com astral de festa. Cada um segura um copo. Ela ri bastante. Ele, o quintanista, parece cobiçar aquela menina tão bonita que acaba de encontrar. Ela ri muito e se apóia no ombro dele. O Herói está com raiva. Fecha os olhos, com força. Abre-os e volta a olhar pro mesmo lado. O sofá em frente agora abriga um outro casal. O Herói levanta, decidido, e desce a escada em direção à sala de projeção do cinema. Antes de entrar, pára um pouco, indeciso, e acaba olhando pra trás. No sofá, Mariana e o quintanista olham-se ternamente. Com raiva, triste, angustiado, o Herói entra na escuridão. CENA 54 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói na sala do seu apê, sentado, pensando. Pega uma folha de papel e caneta. A câmara mostra, em close, a mão dele iniciando uma carta: ISABEL. AQUI TÁ MUITO FRIO. SEMPRE QUE EU SINTO FRIO, LEMBRO DE TI E DE MONTEVIDÉU. Pára de escrever. Levanta a cabeça. Pensa. Entra narração. HERÓI (VS) Isabel. Aqui tá frio. Sempre que eu sinto angústia, lembro de ti e de Montevidéu. CENA 55 - EXT/ENTARDECER - RODOVIÁRIA DE MONTEVIDÉU (Entra música, junto com a primeira imagem de Montevidéu.) Rodoviária. O Herói descendo do ônibus, encontrando Isabel. Abraçam-se bem forte. Saem caminhando abraçados, conversando. CENA 56 - EXT/ENTARDECER - RUAS DE MONTEVIDÉU O Herói e Isabel na rua, caminhando abraçados, rumo ao apartamento dela. HERÓI (VS) Ano passado, tava muito frio quando eu cheguei. Seis e meia da tarde, mais ou menos. Tava quase escuro. Eu tava preocupado, não via Isabel há muito tempo. E todo mundo mente nas cartas. Os dois, ainda caminhando. HERÓI (VS) Mas ela tava lá, me esperando, como disse que faria. CENA 57 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL Chegam no apartamento dela. Isabel prepara duas xícaras bem grandes de chocolate quente. Ela e o Herói bebem, sorrindo e conversando. HERÓI (VS) Isabel, sempre me esperando, ela e a cidade uma coisa só, que protege, cura. Como eu aprendi. CENAS 58-62 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU Herói caminhando pelas ruas do centro. Compra um jornal. Pergunta alguma coisa prum castelhano de chapéu. Olha vitrines. Senta numa praça, com a cabeça leve. HERÓI (VS) É ótimo andar numa cidade estranha. Se eu quero, não falo com ninguém, finjo que a língua é incompreensível. Ninguém me conhece, eu só conheço Isabel. CENA 63 - EXT/DIA - PRAIA DE MONTEVIDÉU O Herói caminha pela avenida que margeia a praia. Anda devagar, com as mãos nos bolsos. De vez em quando olha pra cima. Nuvens. Entra na areia, vai até a beira do mar, olha para a cidade e para as gaivotas. Volta para a avenida. HERÓI (VS) Montevidéu é parecida com Porto Alegre, talvez um pouco mais somria. Isabel é a síntese de tudo. Ela é parecida com as nuvens que aparecem de repente, com as gaivotas que ficam voando pela praia. CENA 64 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL O Herói e Isabel na cama, nus. Ela está deitada bem em cima dele, com os cotovelos apoiados perto da cabeça dele. Conversam serenamente. Ela sorri. HERÓI (VS) Só Isabel sabe o que eu sou de verdade. Não escondo nada. E nem poderia. Ela me ensinou a ir mais devagar, trocar de posição sem me precipitar, a descobrir pequenas coisas no corpo dela. CENA 65 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU O Herói na rua outra vez. Entrando na Sala Millington Drake. Depois, entrando em dois outros cinemas. HERÓI (VS) Ano passado, vimos "Annie Hall" juntos. Mas eu gosto de ir ao cinema sozinho, dois, três filmes seguidos, até os olhos se cansarem e a cabeça doer. A dor do cinema faz bem, alivia outra dor. CENA 66 - INT/NOITE - APARTAMENTO DE ISABEL (Entra "Angie", dos Stones, seguindo até o final da cena.) O Herói e Isabel dançando, bem juntos, mal se movendo, na sala escura do apartamento dela. Ele apóia a cabeça no ombro dela e fecha os olhos. HERÓI (VS) Isabel. Vontade de te ver logo. Dançar contigo com as luzes apagadas. CENA 67 - EXT/DIA - RUAS DE MONTEVIDÉU O Herói e Isabel caminhando lado a lado, rumo à rodoviária, ele com a sacola no ombro. HERÓI (VS) É duro ir embora. CENA 68 - EXT/DIA - RODOVIÁRIA DE MONTEVIDÉU O Herói e Isabel chegam na rodoviária. O ônibus já tá encostado. Ele entrega a bagagem, dá a passagem e recebe o beijo de Isabel. Entra no ônibus. HERÓI (VS) Ela sempre me leva até a rodoviária e me dá um beijo antes de eu subir no ônibus. Ele aparece em uma das janelas do ônibus. Observa Isabel encostada numa coluna, sorrindo pra ele. Ele sorri, triste, mas sem angústia. O ônibus sai. HERÓI (VS) E então é só esperar o ônibus sair. Isabel fica, sempre fica. Mas eu sei onde ela tá. Ponto de vista dele, vendo Isabel ficar pra trás. O ônibus vai embora, Isabel desaparece. HERÓI (VS) Ela tá me esperando, sempre. O ônibus desaparece na cerração. CENA 69 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói no apê, olhando pro papel, onde ainda estão escritas as mesmas palavras de antes. Ele coloca o papel na mesinha e levanta. Vai até a janela, olha para fora, onde a chuva cai devagar e as árvores estão molhadas. Close no papel. "Angie" desaparece, bem devagar. FADE OUT CENA 70 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO Sábado à tarde, apartamento do Herói. Ele e Mariana estão no quarto, não fazendo nada. Encostada numa almofada, Mariana olha para cima do armário e percebe a TV, meio escondida entre duas caixas de papelão. MARIANA Não sabia que tinha tevê aqui. Mariana levanta-se em direção à TV. Mas o Herói levanta-se também echega antes ao armário. HERÓI Não liga. MARIANA Se tem, é pra ligar. HERÓI Ver o quê, às quatro e meia da tarde? MARIANA (obviamente, sorrindo) Ver tevê. HERÓI (carregando-a de volta pra cama) Não acha que a gente pode fazer coisas bem melhores do que ver desenhos animados japoneses? MARIANA Se tu sabe o que tá passando, por que perguntou o que eu queria ver? HERÓI (desconcertado) Eu? Eu nem sei se tá mesmo pass... MARIANA (cortando) Então não tá passando nenhum desenho animado japonês? (inocente) Pena, eu gosto da carinha deles, sempre tão limpinhos e arrumados. O Herói pára um pouco pra pensar. Tenta descobrir se ela tá falando sério ou é ironia. Não consegue. Tenta dar outro rumo pra conversa. HERÓI Não acha que é uma perda de tempo ver esses desenhos mal-feitos se nós temos milhares de coisas melhores pra fazer? MARIANA (duvidando) O quê, por exemplo? HERÓI (depois de hesitar um pouco) Conversar, por exemplo. MARIANA Legal. Mariana pensa um pouco e aponta pra TV. MARIANA Por que a televisão, se eu nunca te vejo assistindo? HERÓI Porque eu só vejo uns filmes, quase sempre tarde da noite. Ela faz cara de quem não entendeu. Ele tenta explicar. HERÓI Eu só ligo quando sei que vai passar um filme bom. MARIANA (curiosa, cética) E como é que se descobre quando vai passar um filme bom? Ele simplesmente aponta uma pilha de jornais no chão e sorri. Ela olha pros jornais, pensa um pouco e faz cara de saco-cheio, como alguém que espera algo que não quer ouvir. MARIANA Por favor, não vem com o teu papo precisa-ler- jornal-comprar-livros-e-i-mais-ao-cinema. Ele sorri e olha pra Mariana, admirado com a reação. Pensa um pouco e tem uma idéia. HERÓI Quem sabe a gente vai ao cinema? MARIANA Agora? De tarde? HERÓI Quê que tem? MARIANA Sei lá... De tarde, parece coisa de quem não tem nada pra fazer. HERÓI (rindo) O que não é, nem de longe, o nosso caso. MARIANA (desconcertada) É. HERÓI Vâmo? MARIANA (levantando, indecisa) Vâmo. CENA 71 - EXT/DIA - RUA DA CASA DA LÚCIA Proximidades da cassa da Lúcia. Ela e o Herói conversam, enquanto caminham e tomam sol. LÚCIA Tu já viu aquele filme francês que tá passando no Coral? HERÓI "A Filha da minha mulher"? LÚCIA É. HERÓI Fui ver ontem, com a Mariana. LÚCIA E daí? HERÓI Eu gostei. LÚCIA E a Mariana? HERÓI Não sei, eu nunca tenho certeza se ela gosta dos filmes. LÚCIA Por quê? HERÓI Ela diz que gosta, mas... Sei lá. Se eu gosto, ela sempre gosta. LÚCIA (sorrindo) Como é que anda a transa de vocês? HERÓI (sem jeito) Tá legal, tudo legal. LÚCIA Ela faz... psicologia, né? HERÓI É. LÚCIA Eu vi ela uma vez, meio de longa, lá na Reitoria. HERÓI É? LÚCIA Era um show... sei lá de quem. Ela tava contigo, bem na frente. HERÓI Ela gosta de sentar bem na frente. LÚCIA (arriscando) Eu tinha vontade de conhecer ela melhor... HERÓI (assustado) A Mariana? LÚCIA É. Sei lá, de vez em quando eu tenho vontade de... sacar umas coisas. HERÓI É, a gente podia sair junto, ou se encontrar um dia de noite. Ele não tá acreditando no papo. Já teve vários parecidos e nunca aconteceu nada. MARIANA Tu vai encontrar ela hoje de noite? HERÓI Vou. LÚCIA Vão fazer alguma coisa? HERÓI Não tem nada planejado. LÚCIA Legal. A gente podia fazer o seguinte: se encontrar aqui em casa, tomar um vinho. HERÓI (sem jeito, escorragadio) É. Eu acho que é legal. LÚCIA (arriscando) Eu podia convidar o resto do pessoal... HERÓI (com medo) Legal. O Júlio, o Alexandre, a Maria, a Cláudia... Silêncio. Lúcia olha pra ele. HERÓI O Milton, acho melhor não. LÚCIA (condescendente) Tudo bem. CENA 72 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO O Herói e Mariana estão outra vez no quarto dele. Beijam-se sofregamente. A mão dele vai baixando, baixando, aperta a cintura, depois a perna e acaba no meio das pernas. Quando ela sente, dá um pulo. MARIANA (séria) Faz isso de novo, e tu nunca mais vai me ver. HERÓI (chateado) Desculpe. MARIANA Eu já te disse que eu não gosto. Ele vai um pouco pro lado, olha pra Mariana e pensa um pouco. Depois, decide enfrentar a parada e tentar alguma coisa. HERÓI Mariana, tu tem vinte e um anos, é maior de idade, etc. Eu tenho vinte e quatro. Nós tâmo namorando há seis meses. Eu gosto de ti, gosto pra burro, tu sabe disso. (toma fôlego) Tô meio cansado dos chupões e não entendo a tua tabela de permissividade. Qual é a diferença de mão nos peitos e mão no meio das pernas? MARIANA (confusa) Quê? HERÓI (cortando) Pera aí. Eu vou direto pro ponto: tu quer trepar comigo? Ela não responde, olha pro chão. MARIANA Tem medo? MARIANA Tu sabe que eu nunca trepei. HERÓI Eu sei. Tu não quer... comigo? MARIANA Eu quero. HERÓI (animado) E eu também! MARIANA (assustada) Mas não agora. HERÓI Por quê? MARIANA Por uma série de razões. Tenta entender. Ela está nervosa, tensa, insegura. Ele sente a barra, chega mais perto e a abraça. HERÓI Tudo bem. Ele passa a mão nos cabelos dela. HERÓI Eu te amo. (muda de assunto) Tu lembra da Lúcia? MARIANA Aquela amiga tua? HERÓI É. Eu falei com ela hoje de manhã. Ela me convidou pra ir lá na casa dela hoje de noite, tomar um vinho com o pessoal. MARIANA Legal. HERÓI Tu não tá a fim de ir também? MARIANA (admirada) Eu? HERÓI É... Sei lá. Acho que vai tá legal. Mariana pensa um pouco, avaliando o convite. MARIANA É, pode ser. Tu passa lá em casa pra me pegar? HERÓI (inseguro) Passo sim... Pelas nove, tá bom? MARIANA Tá. Silêncio. Os dois se olham. Devagar, ele levanta a mão e começa a passar no rosto dela, com carinho. Vai chegando mais perto, e acaba beijando, bem suave, três vezes. Encosta a boca. Beijam-se. Ele segura a nuca dela. Continua o beijo. Devagar, a mão dele vai baixando, passa pelas costas e se aproxima da bunda. Na cintura, pára um pouco e faz carinho. Depois, continua baixando. Chega na bunda. Pára. Está indeciso. Faz que vai apertar com força, mas desiste. Coloca a mão espalmada e faz um pouco de carinho. Afasta a mão, fecha com força. Volta, medroso, para o mesmo lugar de antes. Aperta, quase sem força. Desiste. CENA 73 - EXT/ENTARDECER - TRAILER O Herói está comendo um cheese-burger num trailer. Olha o relógio, seis e meia. Sai. CENA 74 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói chega no apê e bota um disco. Senta no colchão e pega o Correio do Povo de domingo. Começa a ler. FUSÃO CENA 75 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO Herói sentado na patente, ainda com o Correio. FUSÃO CENA 76 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA Ele no colchão, lendo um livro. Pára um pouco, olha pro relógio: oito horas. Close no rosto dele. Está com medo. CENA 77 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA O Herói e Mariana chegando na casa de Lúcia. Lúcia abre a porta, dá dois beijos em Mariana. Entram. O Herói olha em volta. Num canto da sala, com um sorriso irônico na cara, Milton observa a cena. CENA 78 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói ainda na sala do seu apê, sentado no colchão, ainda com o mesmo livro na mão. Ele estende as pernas, coça atrás da orelha. CENA 79 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA De novo na casa de Lúcia. Milton levanta-se e vai sentar ao lado de Mariana. Ela sorri quando ele chega. MILTON Eu gosto do teu nome, Mariana. O Herói observa a cena, angustiado. Mariana sorri. MILTON Tu deve valer por duas, né? Maria, mais Ana. Milton ri, Mariana também. MILTON Sabe, eu tava há horas a fim de te conhecer. MARIANA (orgulhosa, levemente sensual) É? MILTON É. Quê que tu estuda? MARIANA Psicologia. MILTON Que barato. Outro dia eu ainda tava lendo um livro... é dum cara aí. Ele diz que a psicologia e a psiquiatria, essas coisas aí, tão cavando um túnel numa montanha. No outro lado tá o marxismo, que também tá cavando um túnel. Só que as duas equipes nunca se encontram. MARIANA (rindo, mas sem entender nada) Montanha? Que montanha? MILTON A montanha é tudo isso aí. MARIANA (como quem entendeu) Ah, tá. MILTON (sorrindo) E se fosse na China, hein? MARIANA (confusa, mas aberta) Quê que tem? MILTON Na China, eles podiam botar uns milhares de chineses cavando de cada lado. Se eles se encontrassem, fariam um túnel. Se eles não se encontraseem, fariam dois túneis. Milton ri, Mariana também. Milton fica mais entusiasmado e ri mais alto. Mariana vai atrás. O Herói observa tudo, mudo, angustiado. CENA 80 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói no seu apê, ainda na mesma posição. Olha pro lado. Mariana tá ali com ele. MARIANA Eu achei o Milton muito legal. Não vi todas essas coisas que tu me falou dele. Sei lá, ele é bem divertido. CENA 81 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói na mesma posição da cena anterior, mas agora sozinho. Ele olha pro relógio: nove horas. Permanece sentado, olhando pra lugar nenhum. De repente, levanta, bota o casaco, vai até a porta. Segura o trinco. Pára. Volta, senta outra vez no colchão. Pensa. CENA 82 - INT/NOITE - CASA DE MARIANA: QUARTO Mariana deitada de bruços na cama, vendo TV, novela das 8. Quando anunciam as "cenas do próximo capítulo", ela levanta e vai até o telefone. Disca. MARIANA Betina? Oi, é a Mariana. (pausa) Quê que tu vai fazer hoje de noite? (pausa) É que eu tinha um troço... mas nem sei mais o que é. (pausa) O Rui? Tá legal, eu passo aí daqui a pouco. Desliga o telefone. CENA 83 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói ainda no colchão. Olha pro relógio: dez horas. Pega um livro. Tenta ler, mas não consegue. Está angustiado, mas sonolento. Fecha um pouco os olhos. CENA 84 - INT/NOITE - CASA DE LÚCIA Na casa de Lúcia, os amigos estão reunidos, conversando. De repente, Lúcia parece lembrar alguma coisa. LÚCIA Se não me engano, tá faltando alguém. JÚLIO Vamo até o Alaska tomar um chope? LÚCIA (indiferente) Vamo, pessoal? Todos levantam. CENA 85 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: SALA O Herói no colchão da sala, quase dormindo. Ainda consegue olhar pro relógio antes de dormir: onze e meia. Adormece. CENA 86 - EXT/NOITE - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI Na frente do edifício, surge Lúcia. ela vai até o porteiro eletrônico. Aperta e fica esperando. Logo depois, chega Mariana. Vai até o porteiro e também bate. Lúcia percebeu que Mariana tocou no apartamento do Herói. LÚCIA Oi. Tu que é a Mariana? MARIANA É. LÚCIA Vocês não tinham ficado de ir lá em casa hoje de noite? MARIANA Tu é a Lúcia? É, mas ele não apareceu lá em casa pra me pegar, não sei o que aconteceu, tô preocupada. LÚCIA Lá em casa ele também não foi. MARIANA Será que ele tá em casa? Aperta de novo. Lúcia aperta o botão com força. CENA 87 - INT/NOITE - APÊ DO HERÓI: COZINHA E SALA Detalhe do porteiro eletrônico do apê, mudo. A câmara desloca-se, devagar, até o Herói, que continua deitado no colchão. Ele parece sentir frio, enrosca-se mais, até atingir uma posição quase fetal. CENA 88 - EXT/NOITE - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI A frente do edifício, com o porteiro eletrônico bem no meio do quadro. Completamente deserta. A câmara faz uma panorâmica e mostra a rua, escura, com carros passando de vez em quando. FADE OUT CENA 89 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: SALA É de manhã. O Herói abre os olhos. Olha pro relógio: oito e meia. Levanta devagar e olha em volta, tentando descobrir por que não dormiu na sua cama. Olha pra fora. Tá chovendo. Nuvens passam devagar. As árvores, nuas, estão completamente molhdas, e os galhos retorcidos deixam a água escorrer devagar. A parede do edifício parece manchada com a umidade. A grama por perto tá toda queimada. O Herói bota um disco. É "Echoes". Aumenta o volume. Olha pra cima, desafiador. A chuva aumenta. Ele senta no chão da sala e toca os pés com as pontas dos dedos das mãos. Baixa a cabeça. Fica um tempo assim. Depois, levanta a cabeça, bem rápido, e a sacode, espantando os demônios. Levanta, vai em direção ao banheiro. CENA 90 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: BANHEIRO O Herói no chuveiro, tomando um banho quente. O vapor toma conta do banheiro. CENA 91 - INT/DIA - APÊ DO HERÓI: QUARTO O Herói veste-se: abrigo de nylon com capuz. CENA 92 - EXT/DIA - RUA O Herói caminha pela rua, com a cabeça baixa. Continua chovendo. Ele olha pro lado. Mariana tá caminhando com ele. Ele sorri e olha pra frente. A música do Pink Floyd continua. CENA 93 - EXT/DIA - BANCA DE REVISTAS O Herói chega na banca de revistas, sozinho, e compra o jornal. Bota debaixo do braço e começa a voltar, bem devagar. CENA 94 - EXT/DIA - RUA A chuva aumenta ainda mais. O Herói levanta a cabeça e deixa a chuva molhar bem o seu rosto. Continua caminhando. Já está nas proximidades do edifício. Numa esquina, pára e olha pro lado. Mariana já vai atravessar. Ele a segura. Corta a música. Mariana olha pra ele. HERÓI Pra que a pressa? Olha bem pros dois lados, Mariana. Não quero que tu morra atropelada. Tem um monte de coisa que a gente ainda tem que fazer. A câmara agora pega os dois pelas costas. Eles atravessam a rua. CENA 95 - EXT/DIA - FRENTE DO EDIFÍCIO DO HERÓI Entra "O Inverno", de Vivaldi. O Herói e Mariana caminham juntos em direção ao edifício. O Herói abraça Mariana pelos ombros. Os dois vão diminuindo no quadro, sempre rumo ao edifício. Entram. A câmara fica um pouco mostrando o edifício e a chuva. CRÉDITOS FINAIS FIM ******************************************************************* (c) Carlos Gerbase, 1982. Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br