LUNA CALIENTE (CAP. 2) microssérie em 4 capítulos roteiro de Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil a partir da novela homônima de Mempo Giardinelli versão de 11/08/1998 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para TV Globo *********************************************************** PRIMEIRO BLOCO CENA 60 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / QUARTO Ramiro, sentado em sua cama, perturbado, fica olhando em direção a Elisa, parada na porta do quarto. A franja oculta parcialmente os olhos de Elisa. Ela está sorridente e parece confiante. ELISA Oi. Ramiro, ainda sentado na cama, não responde. Dona Maria aproxima-se de Ramiro, com umas roupas na mão. Estende as roupas para Ramiro, que demora um tempo para reagir. MARIA Vai te vestir, meu filho. Ramiro finalmente pega as roupas e levanta da cama. RAMIRO Com licença. Ramiro vai até o banheiro, passando perto de Elisa, que continua sorridente. Elisa vira-se, acompanhando Ramiro com o olhar. MARIA (para Elisa) Não liga, querida. Ele leva uma meia hora pra acordar de verdade. Tem que ver o suplício no tempo do colégio pra tirar ele da cama... Ramiro entra no banheiro e fecha a porta. Tem um acesso de tosse. MARIA (FQ) Você está bem? CENA 61 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / BANHEIRO Ramiro termina de lavar o rosto com bastante água. RAMIRO Estou. MARIA (FQ) Eu vou servir um café. Venham logo. RAMIRO Tudo bem. Ramiro coloca a calça e a camisa sem pressa. Vê a sacola de nylon e pega. Olha-se no espelho e abre devagar a porta do banheiro. CENA 62 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / QUARTO Elisa está sentada numa cadeira giratória, na escrivaninha de Ramiro, examinando com curiosidade as fotos e coisas de Ramiro sobre a escrivaninha. Ramiro entra. Da cozinha, ouvem-se o ruídos de dona Maria lavando louça. RAMIRO Como você está? ELISA (sem olhar para ele) Bem. RAMIRO (inseguro) Não sei o que dizer, Elisa... ELISA Você não precisa dizer nada. RAMIRO Ontem à noite fiquei louco. Queria que me desculpasse se fui bruto, entende? É uma bobagem falar nisso agora, mas... (hesita um pouco) Eu não queria machucar você. Elisa se vira para Ramiro, girando a cadeira. ELISA (balançando a cabeça, sensual) Não machucou. Ramiro se mantém em silêncio por um momento e começa a falar enquanto se dirige para a cama. RAMIRO Como você veio até aqui? ELISA Mamãe me trouxe. RAMIRO E ela, onde está? ELISA Procurando papai. Ele desapareceu. RAMIRO E não sabem onde ele está? ELISA Decerto se embebedou, como sempre. Deve andar com algum amigo. Pela primeira vez, Ramiro fica mais confiante. RAMIRO Ah... Me diz uma coisa... Elisa levanta e dirige-se à janela. RAMIRO Você falou com sua mãe sobre o que aconteceu ontem à noite? Elisa sorri. Leva a mão ao peito e abre mais um botão da blusa, revelando o início do contorno dos seios sob o sutiã. ELISA Como está quente... Elisa vira-se para Ramiro. Ramiro olha por um instante para o decote, mas logo recupera o autocontrole. Elisa aproxima-se de Ramiro. RAMIRO Você contou pra ela? ELISA Como você pode pensar uma coisas dessas? Elisa aproxima-se ainda mais de Ramiro. Ficam algum tempo em silêncio. Ramiro parece não saber o que dizer. ELISA Me dá um beijo. Elisa aproxima-se dele, olhos lânguidos, lábios entreabertos. Ramiro parece não ter mais defesa. Elisa abraça Ramiro, que está em transe. ELISA Eu gostei muito... Vão se beijar, mas o grito de dona Maria os interrompe. MARIA (FQ) Ramiro, Elisa! O café está pronto! Ramiro sai do transe e empurra Elisa. Ela sorri, diabólica. CENA 63 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / COZINHA Ramiro e Elisa estão sentados, frente a frente, numa mesa de refeições na cozinha, que é bastante espaçosa. Dona Maria, de avental, coloca dois bules na mesa, que já está ocupada por uma jarra de suco. Serve uma travessa de pães, queijo, presunto, etc. Elisa não desgruda os olhos de Ramiro. MARIA Que noite horrível. Mal consegui dormir. Esse calor ainda vai nos matar. RAMIRO (olhando rápido para Elisa) O que vai nos matar é outra coisa. Elisa sorri. MARIA (FQ) O que você disse? RAMIRO Não liga, eu não estou me sentindo muito bem. MARIA Quer um comprimido? Maria aproxima-se da mesa. RAMIRO Não. MARIA Não liga, Elisa. Às vezes ele acorda assim. (serve suco para Elisa) Como vai seu pai? ELISA Acho que está bem. MARIA (FQ) O seu pai e o meu marido eram muito amigos. ELISA Eu sei. O Ramiro me contou. MARIA (surpresa) Contou, é? Que novidade... O Ramiro não é de muita conversa. Ele é tão bicho-do-mato... ELISA (maliciosa) Não parece. MARIA Que bom. (tirando o avental e vindo sentar ao lado de Ramiro). Bem que eu disse que ele tinha que conversar um pouco. Eu tenho que ir ao mercado. O que você quer comer no almoço? RAMIRO Eu não sei se vou comer aqui. Não te preocupa. MARIA (para Elisa) Depois de tantos anos longe, não pára um minuto em casa. Eu compreendo, claro, para isso existem as mães, para compreender os filhos. Mas ele está chegando tardíssimo todas as noites. Hoje chegou eram quase quatro. Vai acabar se consumindo. Diz pra ele, Elisa, talvez ele te ouça. ELISA (divertida) Sua mãe tem razão, Ramiro. Ramiro sorri. Parece aliviado. RAMIRO Você me faz sentir um adolescente. MARIA Vocês nem experimentaram meu bolo de laranja! É uma receita nova. (parte o bolo e dá uma fatia para cada um) Quando eu voltar, vocês me dizem o que acharam. Dona Maria beija Elisa e Ramiro. Sai da cozinha. Maria caminha em direção à porta. Ramiro e Elisa ouvem o barulho da porta da sala fechando. Comem o bolo. Elisa limpa alguns farelos de bolo sobre a sua boca com um guardanapo. Sorri para Ramiro. Pela primeira vez, ele sorri de volta. Ramiro olha para Elisa. RAMIRO Por que você veio aqui? ELISA (voz baixa e sedutora) Precisava te ver. RAMIRO Eu não quis te machucar. ELISA Eu já disse que não me machucou. Eu gostei. Quero de novo. Elisa começa a brincar com os botões da blusa. Vai desabotoando um por um. Os seios pequenos aparecem. Ramiro não consegue desgrudar os olhos. A respiração de Elisa fica mais agitada. Os seios sobem e descem sob o sutiã. Elisa levanta. Dá a volta devagar na mesa. Tira o sutiã. Fica nas costas de Ramiro, com a blusa aberta. Ramiro está imóvel, indefeso. ELISA Me faz. Agora. RAMIRO (baixinho, sem a menor convicção) Não. Elisa abre a calça de Ramiro. Ramiro vira a cadeira. Elisa vai pra frente dele. Fica de costas pra câmera. Levanta o vestido e tira a calcinha, sob o olhar deslumbrado de Ramiro. Elisa senta no colo de Ramiro. Ele não resiste mais. Os dois se beijam na boca, com fúria. Transam em silêncio, rápidos, bruscos, mas com grande intensidade. No início, Ramiro lança olhares nervosos em volta, preocupado, mas depois fecha os olhos e entrega-se. Ramiro coloca Elisa sobre a mesa. A mão de Elisa segura a mesa. Um jarro com suco de laranja sacode. Elisa, para não gritar, morde a própria mão. Toca a campainha. Elisa começa a levantar. Ramiro olha em direção à porta. Elisa abotoa a blusa e levanta. Batidas fortes na porta da cozinha. GOMULKA (FQ, gritando) Ramiroooo!!! Os dois olham para a porta. RAMIRO (alto) Já vai! (para Elisa, apontando uma porta no fundo da cozinha) Ali. Vai. Ramiro empurra Elisa para dentro da casa e fecha a porta atrás dela. Ele volta e caminha na direção da sala, enquanto arruma as próprias calças. Vê, no chão da cozinha, o sutiã de Elisa. Ramiro abaixa-se e pega-o, vai até a porta por onde desapareceu Elisa e joga o sutiã pra dentro. Ramiro abre a porta da rua. Na porta, Gomulka sorri para Ramiro. RAMIRO Olá, Gomulka. GOMULKA E aí, irmão? Tô precisando do carro. Eu não vi aí na frente. Onde ele está? Ramiro olha para Gomulka, nervoso. FIM DO PRIMEIRO BLOCO SEGUNDO BLOCO CENA 64 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / COZINHA Gomulka entra e se dirige à geladeira. Gomulka certifica-se de que estão sós. GOMULKA Ramiro, eu tenho um programão para você hoje à noite. Ramiro se aproxima da pia. Traz da mesa algumas louças sujas. Gomulka se encosta na ponta da pia tomando alguma coisa. RAMIRO Gomulka... GOMULKA Não, não vá você começar com aquela conversa de que está cansado, que chegou de viagem há pouco. Até parece que você veio a pé. Chega de descansar. Ramiro vê a calcinha de Elisa no chão, perto do pé de Gomulka. GOMULKA Escuta só: a Márcia Interessante está de aniversário. Você não conhece. Mas você conhece a Márcia Chata, que é a irmã do Cardoso, que VOCÊ achou interessante, lembra? Você viu a Márcia Chata na casa do Cardoso e me disse que achou interessante. Pois a Márcia Interessante ganhou este apelido exatamente para diferenciar da Márcia Chata. Acompanhou? Ramiro abre a porta do armário debaixo da pia, abaixa-se, pega a calcinha e guarda no bolso. RAMIRO Sim, mas é que... GOMULKA A Márcia Interessante está de aniversário, vai dar uma festa e mandou convidar você. "Leva aquele teu amigo francês... ". Ela tá louquinha por você, meu filho, vai por mim. Me dá logo a chave do carro. Eu tenho que mandar lavar. Também tenho assuntos importantes hoje à noite. Ramiro olha para a louça. RAMIRO É que... esse é o problema. Ramiro aproxima-se da mesa. Gomulka permanece ao fundo, encostado na pia. GOMULKA Que problema? RAMIRO O carro. Gomulka vem para perto da mesa. GOMULKA (preocupado) O que é que tem o carro? Cadê o meu carro, Ramiro? Ramiro se vira para Gomulka. RAMIRO Aconteceu... um problema. GOMULKA Fala, homem! O carro estragou? (assustado) Não me diga que você bateu o meu carro? RAMIRO Não, não. É que ele não está comigo. GOMULKA (nervoso) Como é que é? Está com quem? Ramiro vai para a pia, Gomulka vai atrás. RAMIRO Eu... emprestei. GOMULKA Emprestou? Emprestou MEU carro? Para quem? RAMIRO (falando baixo) Para o doutor Bráulio Tennembaun. Ramiro volta para a mesa. Gomulka segue atrás dele. GOMULKA (furioso, falando alto) O quê? Bráulio Tennembaun? Que merda, como é que você foi fazer uma coisa dessas? Você emprestou meu Ford quarenta e sete, que eu levei oito anos e meio restaurando, peça por peça, para aquele velho bêbado e irresponsável? Por que você fez isso, Ramiro? Elisa surge na cozinha. Os dois olham para ela. Gomulka olha, sem entender nada. Olha para Ramiro. Olha outra vez para Elisa, já entendendo um pouco mais. Olha outra vez para Ramiro. Elisa entra. ELISA Minha mãe está aí. RAMIRO Gomulka, você conhece a Elisa, filha da dona Carmem e do... GOMULKA Conheço. Tudo bem? Maria entra, seguida por Carmem. MARIA (entrando) Elisa! Sua mãe está aí! Carmem, com a aparência muito preocupada, entra e senta na ponta da mesa. CARMEM Não o encontrei, minha filha. Não sei o que pensar, estou desesperada. GOMULKA (para Ramiro) O que aconteceu? Ramiro fica sem resposta. MARIA O doutor Bráulio. CARMEM Ele não voltou pra casa. GOMULKA Ele sumiu? Com o meu carro? MARIA Vamos, Carmem, ele anda por aí. Não é a primeira vez. GOMULKA A senhora já foi à polícia? CARMEM Ainda não. Tenho medo de ir. Liguei para o Braulito, ele disse que vem o mais rápido possível. Homem eles respeitam mais. Vou parecer ridícula dizendo para a polícia que o meu marido fugiu. CARMEM O que vocês fizeram ontem à noite, Ramiro? Elisa senta ao lado da mãe. Elisa olha para Ramiro. GOMULKA É, Ramiro: o que vocês fizeram ontem à noite? Maria serve um copo d'água para Carmem. RAMIRO Na verdade, nada. O doutor Bráulio me convidou para tomar alguma coisa e... eu não aceitei. CARMEM Você consertou o carro? GOMULKA O carro estragou? RAMIRO Estava apenas afogado, e ele me pediu que o trouxesse para a cidade. Embarcou e... a verdade é que não pude impedir. CARMEM Ele sempre foi assim. Quando mete uma coisa na cabeça... RAMIRO Bem, nós chegamos na cidade e eu fiquei em casa. Ele me pediu o carro e outra vez não pude negar. GOMULKA (irritado) Pffu! RAMIRO Inclusive agora estou preocupado porque o carro não é meu, a senhora sabe, é do meu amigo Gomulka. GOMULKA (afastando-se) Ex-amigo. CARMEM Mas a que hora vocês saíram? Você já estava deitado. RAMIRO Não sei, seriam mais ou menos... três da manhã. Eu não podia dormir por causa do calor. Ramiro olha para Elisa. Elisa cruza as pernas, olha para Ramiro. RAMIRO Decidi me levantar e vir embora. Encontrei o doutor Bráulio fora da casa, muito... CARMEM Embriagado. Ramiro olha para Carmem, faz um sinal afirmativo com a cabeça. GOMULKA Que merda, Ramiro! Carmem apóia a mão na cabeça. CARMEM Que calvário, Deus meu... Carmem se recompõe, ergue-se. CARMEM Bem, vamos embora. Sai de braço com Elisa, em direção à porta. Ramiro segue as duas. CENA 65 - EXT/DIA - FRENTE DA CASA DE RAMIRO Ramiro e Maria seguem Carmem e Elisa até a calçada. Carmem e Maria passam pela frente do carro em direção à porta do motorista. Ramiro e Elisa seguem para a porta do passageiro. CARMEM Vou continuar procurando, ainda me falta passar na casa do Romero e no Freschini. MARIA Ele deve aparecer. CARMEM Dessa vez eu mato esse miserável! MARIA Calma. Me avise de qualquer coisa. Elisa entra no carro, Ramiro segue-a e apóia-se na porta. Elisa, sentando-se, coloca as pernas para dentro do carro, ajeita o vestido e sorri para Ramiro. ELISA (para Ramiro) Depois você me devolve as duas. Ramiro fecha a porta, põe a mão no bolso. Ramiro olha para Elisa, tenso. CENA 66 - EXT/DIA - FUNDO DO RIO / FORD 47 Dentro do carro tomado pelas águas do rio, a calcinha rasgada de Elisa dança suavemente, saindo do bolso de Bráulio. CENA 67 - EXT/DIA - FRENTE DA CASA DE RAMIRO Elisa abana para Ramiro enquanto o carro sai. Ramiro abana de volta. Maria e Gomulka estão na calçada. MARIA Coitada! Maria volta para dentro da casa. Gomulka aproxima-se de Ramiro. GOMULKA Ramiro, isso que você fez... RAMIRO Me desculpe, Gomulka... GOMULKA Desculpar? Nem morto! Isso foi um abuso de confiança. RAMIRO Eu lhe pago, juro. GOMULKA Não tem dinheiro no mundo que pague o meu prejuízo moral. Aquele Ford... Eu conheço cada parafuso daquele Ford, Ramiro. Cada arruela. Os trincos das portas, Ramiro, eu mandei cromar em Buenos Aires. Gomulka vai saindo. RAMIRO Onde você vai? GOMULKA Onde eu vou? Vou chamar a polícia para achar meu carro! RAMIRO Calma. Ele... deve ter dormido na casa de alguém. GOMULKA Deve ter é caído dentro de uma garrafa de cachaça. E com o meu carro junto. RAMIRO Tá bom. Vamos procurar o carro, eu vou com você. Espera um pouco. Ramiro sai, em direção a casa. Gomulka pára, irritado. CENA 68 - ELIMINADA CENA 69 - INT/DIA - CASA DE RAMIRO / QUARTO Ramiro coloca a calcinha embaixo do colchão. Depois, pega o cigarro e os documentos sobre a cama, acende um cigarro e sai. MARIA (FQ) Passem no La Estrella. Ele vive por lá. RAMIRO Deve ter sido o primeiro lugar onde Dona Carmem procurou. Maria aparece na porta. MARIA Mas ela é mulher dele, ninguém ia dizer nada. Para vocês... RAMIRO Me empreste sua chave. Deixei a minha no chaveiro do carro. CENA 70 - EXT/DIA - FRENTE DA CASA DE RAMIRO Gomulka está encostado no muro. Ramiro chega, vindo de dentro da casa. Antes de Ramiro chegar ao seu lado, Gomulka sai caminhando. Ramiro tenta alcançar Gomulka. RAMIRO Você está de carro? GOMULKA (muito irritado) Não, não estou. RAMIRO Sua irmã... será que ela não empresta o carro? GOMULKA Para você, não! RAMIRO Vamos, Gomulka! Imagina se a polícia encontra e reboca o seu carro. Você sabe o que eles fazem com os carros nos depósitos da polícia. GOMULKA Se aquele velho bêbado arranhou um cromado do meu Ford, eu mato o desgraçado. Juro que mato! E você junto! FIM DO SEGUNDO BLOCO TERCEIRO BLOCO CENA 71 - EXT/DIA - FRENTE DA CASA DE GOMULKA Rua suburbana, um pouco mais movimentada que a de Ramiro. Ramiro está parado ao lado de um TL. Gomulka sai de uma casa, em direção ao carro, com uma chave na mão. O carro está estacionado na contra-mão. Gomulka senta no carro e abre a porta do carona. Ramiro entra e bate a porta. GOMULKA Pra onde? RAMIRO Não sei... Pra estrada. Quem sabe ele voltou pra casa? GOMULKA Se ele tivesse voltado pra casa, a dona Carmem não andava por aí, desesperada. RAMIRO Vamos ao La Estrella, ao Panorama... Alguém deve ter visto ele por lá. Gomulka liga o carro e parte, afastando-se na rua. CENA 72 - EXT/DIA - FRENTE DO LA ESTRELLA La Estrella é um boteco de paredes gastas, com uma grande estrela azul na fachada, no meio de uma rua de bastante movimento. Uma FAXINEIRA passa o rodo na calçada em frente ao bar. A água escorre pela calçada até a sarjeta. Junto à calçada, o TL da irmã de Gomulka estaciona, pouco à frente de um guincho. Dentro do carro, Ramiro apressa-se em abrir a porta. Gomulka faz menção de desligar o carro, mas Ramiro o impede com um gesto. RAMIRO Pra ganhar tempo, Gomulka, (aponta em frente) você poderia ir perguntando no Panorama. Daqui a cinco minutos eu te encontro ali na praça. GOMULKA (concordando) A placa é nove, vinte e três, dezoito. RAMIRO Eu não vou perguntar pelo carro, Gomulka. O carro não entrou no bar. Ramiro sai do carro e bate a porta. Inclina-se para falar com Gomulka e sorri, amistoso. RAMIRO Pergunta pelo doutor Bráulio. Todo mundo conhece ele por aqui. Gomulka faz que sim com a cabeça e arranca. O carro sai. Ramiro acompanha com o olhar, entra no bar, enquanto a faxineira continua limpando a calçada. CENA 73 - INT/DIA - BAR LA ESTRELLA No balcão, o DONO DO BAR, 40 anos, magro e de olheiras profundas, está fazendo contas, concentrado, com o auxílio de uma antiga máquina de calcular, uma pilha de papéis à sua frente. Ramiro entra no bar e vai direto ao balcão. Fala com o dono do bar. RAMIRO Bom dia! Eu estou procurando um amigo meu, o doutor Bráulio Tennembaun, ele... O dono do bar faz um gesto, pedindo que Ramiro espere um pouco, e concentra-se ainda mais em suas contas. RAMIRO Desculpa, eu não queria interromper, eu só queria saber se o doutor Bráulio... O dono do bar visivelmente se perde nas contas, puxa com força a manivela da máquina de calcular, joga o lápis sobre o balcão e encara Ramiro, sério. RAMIRO ... Se ele esteve aqui ontem à noite, o senhor saberia me dizer? DONO DO BAR (seco) Não. E vira-se de costas para Ramiro. RAMIRO (insistindo) Ele tem uns sessenta anos, é um pouco gordo e... DONO DO BAR (sem se virar) Eu conheço o doutor Bráulio. Mas ontem ele não esteve aqui. Eu já falei isso pra esposa dele. RAMIRO Certo, mas ele me disse que viria aqui, eram umas quatro da manhã. O senhor esteve aqui a noite toda? DONO DO BAR Sim. E volta a virar-se para o balcão, com um caderno na mão. Coloca o caderno sobre o balcão e volta a encarar Ramiro. RAMIRO Será que alguém aqui não pode ter visto, falado com ele? Pode ser que ele tenha saído daqui pra um outro lugar... DONO DO BAR Pode ser. Se você quiser perguntar... E indica o bar com a mão. Ramiro vira-se, olha em volta. O movimento do bar é pequeno: apenas duas mesas ocupadas, as outras com as cadeiras por cima. Pela porta, a faxineira vem entrando, o rodo às costas. DONO DO BAR (para Ramiro) Quer uma cerveja? RAMIRO Não, obrigado. Quero um maço de cigarros. Continental, sem filtro. O dono do bar entrega-lhe o cigarro. Ramiro tira umas moedas do bolso, conta-as e coloca-as sobre o balcão. O dono do bar recolhe as moedas e volta às suas contas, bastante concentrado. Ramiro pega o maço de cigarros e volta a se virar para o bar. Numa das mesas, dois sujeitos de bigode, um LOIRO e outro MORENO, tomam cerveja, em silêncio, atirados sobre as cadeiras, entorpecidos pelo calor. Ramiro aproxima-se deles, meio sem jeito, enquanto abre o maço de cigarros. RAMIRO Bom dia! O bigodudo moreno apenas olha para Ramiro, mas o outro responde. BIGODUDO LOIRO Bom dia. RAMIRO Calorão, né? Os dois bigodudos se olham, meio desconfiados. BIGODUDO LOIRO É. Tá quente. Ramiro tira um cigarro do maço, coloca-o entre os lábios. Aponta uma caixa de fósforos sobre a mesa. RAMIRO Me empresta o fogo? O moreno alcança os fósforos a Ramiro. Ramiro abre a caixa, tira um fósforo, acende o cigarro. Traga, solta uma baforada. RAMIRO Acho que hoje vai fazer mais calor que ontem. Os bigodudos começam a se divertir com a situação. Olham-se e sorriem para Ramiro. BIGODUDO LOIRO É. É a lua. BIGODUDO MORENO A lua cheia. RAMIRO É verdade... Ramiro balança a cabeça e tenta sorrir também, mas só consegue fazer uma careta. Os dois bigodudos se olham e riem. CENA 74 - EXT/DIA - PRAÇA Na praça, o TL está estacionado. Gomulka, parado em pé ao lado do carro, olha em volta, esperando. Olha para o carro e vê uma sujeira no capô. Dá uma cuspidinha na manga da camisa e esfrega-a no local. Ramiro vem em direção a Gomulka. Gomulka, inclinado sobre o carro, levanta o olhar e vê Ramiro. GOMULKA Ramiro! Nada no Panorama. E você? RAMIRO (aproximando-se) Ele esteve no La Estrella. Mas saiu em seguida. GOMULKA E foi pra onde? RAMIRO Sabe o armazém do Raul, depois da ponte? GOMULKA Eu sabia! Que merda, Ramiro! CENA 75 - EXT/DIA - ESTRADA ASFALTADA O TL corre pela estrada. Dentro do carro, nervoso, Gomulka dirige, sem parar de falar. GOMULKA Eu tenho certeza, Ramiro! Agora eu tenho certeza. Esse velho de merda bateu com o meu Ford. RAMIRO Como é que você pode saber? GOMULKA Lembra da dona Marciana, mãe do Perácio? Ela tinha quatorze filhos, a velha. O mais velho tinha trinta anos quando nasceu o menor. Tinha filho espalhado por tudo quanto é canto. RAMIRO (impaciente) Tá, e daí? Ramiro olha para a estrada. GOMULKA Daí que qualquer um deles que se machucasse, pegasse uma gripe ou uma diarréia, a velha Marciana passava mal. Ela sentia, entende? RAMIRO Gomulka, você não é mãe de um Ford quarenta e sete. Carro você encontra em qualquer... GOMULKA (furioso) Não brinca com isso, Ramiro! Ramiro fica quieto. Gomulka encara-o, sério, e em seguida volta a olhar para a estrada. GOMULKA Eu sinto, o que é que eu posso fazer? Está dentro de mim. Pra dizer a verdade eu acordei hoje de manhã sentindo. Na verdade, eu nunca devia ter te emprestado esse carro... CENA 75A - EXT/DIA þ PONTE Ramiro pára de prestar atenção no discurso de Gomulka e olha fixamente para a estrada. A ponte se aproxima. Ramiro, de repente, interrompe Gomulka. RAMIRO (gritando) Pára o carro! Gomulka freia. O carro pára a poucos metros depois da ponte. Ramiro desce do carro e corre até a amurada. Olha para baixo. Gomulka desce e o segue. GOMULKA (para si mesmo) Não! O carro continua na mesma posição de antes, capotado, com as duas rodas saindo para fora do rio. Ramiro olha para Gomulka com o canto do olho. RAMIRO Achamos o teu carro. FIM DO TERCEIRO BLOCO QUARTO BLOCO CENA 76 - EXT/DIA - MARGEM DO RIO Ramiro e Gomulka descem, com alguma dificuldade, o barranco à margem do rio. Param o mais perto possível do carro, que está a uns cinco metros da margem, com as duas rodas para cima, aflorando da água. GOMULKA Meu carro... Você acabou com o meu carro. Ramiro tira a camisa, os sapatos e as meias. RAMIRO Talvez dê para consertar. Eu pago. GOMULKA (irritado) E você ainda vem me falar de dinheiro? Você não entende nada de carros, de responsabilidade, de porra nenhuma! Nenhum dinheiro do mundo paga o que eu fiz nesse Ford... Ramiro começa a entrar no rio. Gomulka fica na margem. RAMIRO (cortando) Talvez tenha gente morta ali dentro, e você só pensa no carro. Ramiro entra na água, dá alguns passos, fica com água até a cintura. Caminha devagar na direção do carro. GOMULKA Tô me lixando pro idiota que tá lá dentro. Ramiro pára ao lado da janela do motorista, já com a água na altura do peito. RAMIRO Eu vou dar uma olhada. Ramiro toma fôlego e mergulha. CENA 77 - EXT/DIA - FUNDO DO RIO (PISCINA) O carro está bastante amassado, mas o capô agüentou relativamente bem o impacto, de modo que é possível olhar para dentro. Não há corpo algum no carro. Ramiro fica observando por algum tempo, surpreso. Tenta abrir a porta, mas não consegue. Com pouco ar, sacode os braços e sobe à superfície. CENA 78 - EXT/DIA - MARGEM DO RIO Ramiro emerge, respira e olha para Gomulka. RAMIRO Não tem ninguém. GOMULKA Claro! Aquele velho bêbado se salvou. Só eu, que não bebo, não fumo, não como ninguém, me dei mal. É típico... RAMIRO (olhando rio abaixo) Dá uma olhada naquele lado, talvez a correnteza tenha levado o corpo. GOMULKA Não olho porra nenhuma. A lataria tá muito amassada? RAMIRO Mais ou menos. Ramiro volta a mergulhar. Gomulka tira os sapatos e a camisa. Também entra na água, resmungando. GOMULKA Mais ou menos, mais ou menos... CENA 79 - EXT/DIA - FUNDO DO RIO Ramiro enfia-se pela janela do carona, que está menos amassada, e olha para o banco de trás. Afasta a lama e a sujeira, deixando a água mais escura. Nada. Olha para o painel e vê o molho de chaves, ainda na ignição. Pega as chaves. Volta a emergir. CENA 80 - EXT/DIA - MARGEM DO RIO Ramiro volta a aparecer na superfície do rio. Gomulka está do outro lado do carro, desesperado. Enquanto os dois discutem, descobrimos que três POLICIAIS, mais o inspetor MONTEIRO, 60 anos, estão de pé, olhando para eles. GOMULKA Olha só o que você fez... RAMIRO Não fui eu, Gomulka. GOMULKA (gritando) Claro que foi. Foi você que fez! MONTEIRO O que foi que ele fez? Ramiro e Gomulka olham para a margem. MONTEIRO É melhor vocês virem até aqui. Os dois caminham até a margem. Monteiro usa chapéu, uma calça azul e uma camisa clara, com as mangas arregaçadas. A gravata está com o nó frouxo. Aponta para a mão de Ramiro. MONTEIRO Eu fico com isso. Ramiro fica olhando para Monteiro, sem entender. GOMULKA Este é o inspetor Monteiro. MONTEIRO (para Ramiro) E o senhor quem é? RAMIRO Ramiro Bernardes. GOMULKA Filho da Dona Maria. Ramiro estende a chave para Monteiro, que a pega. Monteiro se dirige para a margem do rio, passando pelo meio dos dois que se viram acompanhando-o com o olhar. MONTEIRO É o seu carro, Gomulka? GOMULKA Era. Até esse idiota (vira a cabeça na direção de Ramiro) acabar com ele. MONTEIRO (para Ramiro) Você estava dirigindo quando houve o acidente? RAMIRO Não. Emprestei o carro ontem à noite para um amigo. Gomulka se aproxima do rio e se abaixa. MONTEIRO Que amigo? RAMIRO O doutor Bráulio Tennembaun. Gomulka segue abaixado na margem. Monteiro pega um bloco de anotações no bolso da calça e dá uma olhada. MONTEIRO (para Gomulka) Você estava com eles? GOMULKA Claro que não. Eu nunca ia deixar meu Ford quarenta e sete nas mãos de um velho bêbado. Foi o Ramiro que emprestou. MONTEIRO Deixa eu ver se eu entendi. (olha para Gomulka) Você emprestou o carro para ele, que por sua vez o emprestou para o doutor Bráulio. RAMIRO Exatamente. Monteiro dirige-se para o carro. GOMULKA O senhor pode conseguir um guincho pra tirar meu carro da água? MONTEIRO Está sendo providenciado. CENA 80A - EXT/DIA þ CLAREIRA - MARGEM DO RIO Monteiro está fotografando a lateral da ponte por onde o carro caiu. Ramiro aproxima-se, já de camisa. Embaixo da ponte, Gomulka e outros policiais continuam olhando para o carro. RAMIRO Vocês sabem onde está o corpo? MONTEIRO Que corpo? RAMIRO Ora, do doutor Bráulio... MONTEIRO Corpo? Por que você perguntou sobre um corpo? Acha que ele morreu? RAMIRO (nervoso) Não acho nada. Vocês encontraram o doutor Bráulio? Onde ele está? Monteiro vira-se e vê as marcas dos pneus do carro. Monteiro segue as marcas do carro até o outro lado da estrada, Ramiro o segue. MONTEIRO Calma, meu amigo. Ficar nervoso não vai adiantar nada. Por que você estava examinando o carro? RAMIRO É óbvio, não? A família do doutor Bráulio está desesperada. Ele não voltou para casa ontem à noite. MONTEIRO E como vocês descobriram que o carro estava aqui? RAMIRO Perguntando. MONTEIRO Para quem? RAMIRO Nós fomos ao bar onde ele sempre vai, o La Estrella. MONTEIRO Nós falamos com o dono do La Estrella. Ele disse que não viu o doutor Bráulio ontem. Monteiro se abaixa, pega alguma coisa e volta a levantar. Ramiro tenta ver o que ele tem na mão. RAMIRO Dois sujeitos que estavam lá, ontem à noite disseram que ele veio pro armazém do Raul. Um guincho para no acostamento da estrada, perto da ponte, atrás de Ramiro e Monteiro. Dois sujeitos descem do caminhão e olham para baixo. MONTEIRO Sabe o nome desses sujeitos? RAMIRO Não. MONTEIRO Como eles eram? RAMIRO O que isso interessa? Monteiro olha para Ramiro de cima a baixo. MONTEIRO Quem é que sabe? RAMIRO Um era da minha altura, o outro mais baixo. Os dois tinham bigode. MONTEIRO Que mais? RAMIRO Um tinha cabelos pretos, o outro era loiro. MONTEIRO E as roupas? RAMIRO Comuns. MONTEIRO Comuns... RAMIRO Calça, camisa... Os dois sujeitos do guincho aproximam-se pelas costas dos dois. São os mesmos que estavam no La Estrella quando Ramiro passou lá naquela manhã. BIGODUDO LOIRO (para Ramiro) Calorão, hein? Monteiro olha para eles. Ramiro, por um instante, fica em pânico, mas consegue controlar-se. MONTEIRO Tirem o carro, mas bem devagar. Quero que ele fique exatamente como está para a perícia. O bigodudo moreno acena que sim com a cabeça. Monteiro passa pelo meio dos dois bigodudos, seguido por Ramiro. Os dois vão atrás. MONTEIRO (para Ramiro) Continue. O que mais? RAMIRO Mais nada. RAMIRO Posso ir? Preciso trocar de roupa. MONTEIRO Ainda não. Por que você pegou as chaves? RAMIRO Uma delas é da minha casa. Monteiro olha outra vez para seu bloco de anotações. MONTEIRO Você é advogado, não é? RAMIRO Sou. MONTEIRO E não aprendeu que não se deve mexer em nada na cena de um crime? RAMIRO Que crime? Foi um acidente! MONTEIRO Claro... Gomulka volta para perto deles, indignado. GOMULKA Que história é essa que eu vou ter que pagar o guincho? MONTEIRO O carro não é seu? A responsabilidade é sua. GOMULKA Era só que faltava! Por mim, podem deixar o carro onde está. RAMIRO Calma, Gomulka, eu pago o guincho. GOMULKA (perdendo o controle) Paga. E vai pagar mesmo! Que bom... Acha que pode resolver tudo com dinheiro. Então paga pra voltar no tempo, pra voltar pra ontem de noite, e dizer "não" para aquele velho bêbado, quando ele te pediu o carro emprestado. Você pode pagar pra fazer isso? Pode comprar uma máquina do tempo e reparar a merda que fez ontem à noite? RAMIRO Eu gostaria de fazer isso, Gomulka. Eu bem que gostaria. FIM DO QUARTO BLOCO QUINTO BLOCO CENA 81 - EXT/DIA - ESTRADA ASFALTADA Carro é retirado do rio. Gomulka acompanha o trabalho de perto. GOMULKA (grita) Calma! Puxem com cuidado! Cuidado com o cromado! Pelo menos isso dá para salvar. Os homens do guincho não dão muita importância à recomendação e amarram a corrente no pára-choques cromado. Monteiro tira fotos, Ramiro se aproxima. RAMIRO O senhor tem idéia da hora do acidente? Monteiro responde sem olhar para Ramiro. MONTEIRO Tenho. Ramiro espera a continuação da resposta, mas Monteiro silencia. RAMIRO O senhor acha que há alguma chance de ele ter sobrevivido? MONTEIRO Pequena. A queda é muito alta. E se ele não apareceu até agora... RAMIRO Vocês procuraram o corpo nas margens do rio? MONTEIRO Demos uma busca aqui perto. Mas essa correnteza é forte. Ramiro vira-se para a frente. RAMIRO Que desgraça... Monteiro olha para Ramiro, se vira, pega o braço de Ramiro e o conduz para o carro. MONTEIRO Compreendo seus... sentimentos, mas preciso fazer-lhe mais algumas perguntas. RAMIRO Que quer saber, inspetor? MONTEIRO Gostaria que me explicasse, detalhadamente, o que fizeram ontem à noite. CENA 81A - EXT/DIA - CLAREIRA Monteiro e Ramiro saem por trás dos arbustos que separam a clareira da margem do rio. RAMIRO Deixe eu ver... MONTEIRO Entenda, doutor, isto é quase rotineiro. RAMIRO Sim, sim... Bem: fui convidado para jantar com os Tennembaun, no sítio. MONTEIRO Quem estava lá? RAMIRO O doutor Bráulio, dona Carmem, a filha deles e eu. Por volta da meia-noite eu já estava indo embora, mas o carro não quis pegar, esse Ford. Acho que estava afogado, não sei. Então me convidaram para dormir por lá. Ramiro olha para a porteira. Um menino surge. Caminha em direção a Ramiro e Monteiro. Monteiro e Ramiro continuam caminhando. MONTEIRO Quem convidou? RAMIRO O doutor Bráulio. Insistiu em que o carro podia estragar no caminho. Me pareceu razoável, era muito tarde, mais de meia- noite. Fiquei, mas não podia dormir. O senhor sabe, o calor aqui é infernal, também à noite, e eu venho do inverno europeu... Ramiro percebe que o menino é o mesmo que cruzou por ele no final da cena 44. INSERT/FB DA CENA 44 - EXT/NOITE - PONTE No banco de trás do carro, o menino, muito sério, de nariz colado no vidro, olha para Ramiro. O carro passa. MONTEIRO O senhor esteve viajando. Ramiro tenta deter o passo, mas tem que continuar seguindo Monteiro. RAMIRO Eu... morei na França oito anos. Voltei faz uma semana. E afinal não estava na minha cama, não sei, o caso é que decidi ver se fazia pegar o carro. MONTEIRO Lembra a hora? O menino passa a poucos centímetros de Ramiro, mas não parece reconhecê-lo. RAMIRO Sim... Bem, não exatamente, talvez... duas e meia ou três da manhã. MONTEIRO Continue, por favor. CENA 81B - EXT/DIA - PONTE Monteiro abre a porta do carro, senta-se com as pernas para o lado de fora. Ramiro se apoia à porta. Entre eles, no fundo do quadro, o menino segue olhando para Ramiro. Monteiro tira o filme da máquina, pega um envelope pardo e coloca o filme dentro. Ramiro percebe que o menino não o reconheceu. Continua, mais aliviado. RAMIRO Quando consegui fazer o carro pegar, apareceu o doutor. Monteiro pega uma fita adesiva e tenta achar a ponta. RAMIRO Me deu um susto, eu achei que ele estava dormindo. Me convidou para tomar um vinho, ele estava... bastante... muito embriagado, não aceitei. Mas ele entrou no carro e eu tive de levá-lo até a cidade. Não pude negar... Monteiro continua tentando achar a ponta da fita adesiva. MONTEIRO Que aconteceu depois? Menino pára e olha novamente para Ramiro. Ramiro percebe que menino olhou pra ele. RAMIRO Bem, eu me senti mal. Do estômago. E parei o carro para vomitar. Ramiro olha para menino. Menino continua caminhando. RAMIRO Apareceu um carro-patrulha e tivemos que nos identificar,... Ramiro volta a olhar para Monteiro. RAMIRO ... não sei que horas eram. MONTEIRO O carro-patrulha abordou vocês às três e vinte e cinco. RAMIRO Ah, sim? Monteiro desiste da fita adesiva. MONTEIRO Temos o registro. Continue. Monteiro larga a fita adesiva e pega um grampo. RAMIRO Bem... Depois chegamos em casa, na minha. O doutor Bráulio me pediu o carro emprestado. Outra vez não pude negar. E se foi. Monteiro coloca grampo no envelope. MONTEIRO Você lembra que horas eram, quando se despediram? Monteiro termina de colocar o grampo. RAMIRO Minha mãe me disse ter visto a hora quando eu cheguei. Eram quase quatro da manhã. Que desgraça... Ramiro dirige-se para a traseira do carro. Monteiro continua sentado no carro. Escreve no envelope. RAMIRO Ele tinha bebido muito. Eu devia ter imaginado que ele podia sofrer um acidente. MONTEIRO Não parece ter sido um acidente. RAMIRO Não? MONTEIRO Não. Há indícios de que o carro esteve parado no acostamento, um pouco antes da ponte. Monteiro olha para o guincho, que está saindo com o carro. Ramiro vira-se para Monteiro. Ramiro fica olhando para Monteiro alguns segundos. RAMIRO Isso quer dizer... Monteiro levanta-se e acompanha a saída do guincho, Ramiro ao fundo. MONTEIRO Por enquanto, quer dizer apenas que o carro esteve parado no acostamento, um pouco antes da ponte. Guincho passa na estrada. Monteiro grita alguma coisa para os homens do guincho. Ramiro aproxima-se de Monteiro. RAMIRO Desculpe, inspetor, mas o senhor acredita que ele possa ter... MONTEIRO Pensei nisso. Se ele parou aqui e quisesse se matar, teria pulado sem o carro. RAMIRO E então? MONTEIRO Então o quê? RAMIRO O que o senhor acha que aconteceu? MONTEIRO Não acho nada. Ouve-se uma voz vinda do rádio do carro. RÁDIO Inspetor Monteiro... Monteiro senta no carro. MONTEIRO Nem o corpo eu achei ainda. RÁDIO Central para inspetor Monteiro... Monteiro atende ao chamado. MONTEIRO Monteiro. Fala, Fernando. RÁDIO Inspetor, tem um sujeito aqui na central, ele está bastante nervoso, quer falar com o senhor. Mando que espere ou volte amanhã? MONTEIRO Quem é? RÁDIO O nome dele é... Bráulio, Bráulio Tennembaun. Ramiro se aproxima ainda mais da porta do carro. MONTEIRO Como é? RÁDIO Doutor Bráulio Tennembaun. Gomulka surge, vindo da margem do rio, carregando um pedaço do carro. MONTEIRO Diga que me espere. Estamos indo para aí. Monteiro desliga. Ramiro está petrificado. Monteiro olha para Ramiro. MONTEIRO O senhor ouviu? Parece que achamos o nosso corpo. RAMIRO (tentando aparentar alegria) Sim... ouvi... Que ótimo! MONTEIRO Esse nasceu de novo. O senhor quer me acompanhar até a central? MONTEIRO (FQ) O doutor Bráulio vai nos contar pessoalmente o que aconteceu ontem. FIM DO CAPÍTULO 2 *********************************************************** (C) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1998 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br