LUNA CALIENTE (CAP. 3) microssérie em 4 capítulos roteiro de Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil a partir da novela homônima de Mempo Giardinelli versão de 11/08/1998 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para TV Globo *********************************************************** PRIMEIRO BLOCO CENA 82 - EXT/DIA - TL / PONTE Ramiro e Gomulka terminam de entrar no TL que está estacionado de frente para a ponte ao lado da porteira. Monteiro abaixa-se para falar com eles pela janela de Ramiro. MONTEIRO Vão devagar. Estou bem atrás de vocês. Monteiro afasta-se. Ao fundo, o carro de Monteiro. Ramiro ajeita o retrovisor para poder falar com Gomulka enquanto observa Monteiro. GOMULKA Ramiro, namorada eu não tenho... RAMIRO Gomulka... GOMULKA Mas se você quiser acabar com a minha vida de vez eu posso te dar o meu aparelho de som, para você jogar no rio. RAMIRO Gomulka, você vai ter que me ajudar. Carro de Monteiro sai pela porteira. Gomulka arranca. CENA 82A - EXT/DIA - TL GOMULKA Claro... Que tal o carro da minha irmã? Quer emprestar para algum outro bêbado? RAMIRO (interrompendo) Eu não emprestei o carro. GOMULKA Como é que é? Ramiro olha para Gomulka. RAMIRO É que... (hesita) Tem umas... coisas que eu não contei ainda. GOMULKA Que coisas? RAMIRO Você sabe como era o doutor Bráulio... Como é o doutor Bráulio. GOMULKA Não, não sei. Nunca fui com a cara dele. RAMIRO Ele estava muito alterado, tinha bebido demais... GOMULKA Isso eu já sei. RAMIRO Ele estava agressivo, me acusou de uns troços absurdos... GOMULKA Como... RAMIRO Você conhece a filha dele... GOMULKA Acho que não tanto quanto você. RAMIRO Ela estava no jantar, conversamos um pouco. E... GOMULKA E... RAMIRO O velho insinuou que eu dei em cima dela. GOMULKA E você deu. RAMIRO É uma criança, Gomulka! GOMULKA Claro. Você só conversou com ela, olhou pras pernas dela... RAMIRO Não olhei nada. O velho estava fora de órbita. Ele se enfiou no carro e começou a dizer as maiores barbaridades. GOMULKA Certo. Um velho bêbado, chamando você de tarado, e você ainda empresta o carro pra ele. RAMIRO Eu NÃO emprestei o carro pra ele. Eu dei um soco nele. GOMULKA (surpreso) Você bateu no velho? Por que não disse isso antes? RAMIRO Achei que ficava mal pra mim. O velho desaparecido, depois morto... GOMULKA E ele reagiu? RAMIRO Não. Desabou na hora, parecia desmaiado. Eu parei o carro, não sabia o que fazer. Saí para procurar ajuda. Quando eu vi, ele tinha ligado o carro e estava indo embora. Me deixou no meio da estrada. GOMULKA Velho desgraçado! Então você não emprestou o carro. Foi ele que roubou! Eu sabia que você não ia... RAMIRO Gomulka, quero que você me ajude a trocar meu depoimento. Esse Monteiro vai pegar no meu pé quando o velho contar da briga. Gomulka olha para Ramiro. GOMULKA Não é bem a minha área. Eu cuido mais de herança, inventários... RAMIRO Não vou conseguir outro advogado agora. Eu estou pedindo como amigo, mas vou te pagar. GOMULKA Não é questão de dinheiro. RAMIRO Eu te compro outro carro. GOMULKA Não existe carro igual aquele. RAMIRO O carro do Rildo. GOMULKA O Chevrolet 45? RAMIRO Eu compro e te dou. GOMULKA Eu já tentei comprar um milhão de vezes. RAMIRO Ele é meu tio. Eu garanto. Gomulka pensa um pouco e depois olha para Ramiro, muito sério. Ramiro tira do bolso da camisa um cigarro, bate-o duas vezes no painel do carro e o acende. Gomulka faz uma careta e afasta a fumaça sacudindo a mão. GOMULKA Como é que você consegue fumar essa porcaria sem filtro? RAMIRO Peguei costume na França. GOMULKA Você mudou bastante nesse tempo que ficou fora. Ramiro olha para Gomulka, outra vez preocupado. Traga e solta a fumaça pela janela. Gomulka olha para Ramiro, como que pensando sobre esta última frase. Depois de um tempo, Ramiro insiste. RAMIRO É, mudei. (pausa) Afinal, você vai me ajudar ou não? O TL passa pela estrada asfaltada, seguido pelo carro de Monteiro. CENA 83 - EXT/DIA - FRENTE DA DELEGACIA Os carros chegam e estacionam. Monteiro sai do carro. Gomulka também sai e caminha apressado até Monteiro. CENA 84 - INT/DIA þ DELEGACIA / RECEPÇÃO Monteiro entra na delegacia, seguido por Gomulka. GOMULKA Doutor Monteiro... MONTEIRO Não sou doutor. GOMULKA O meu cliente... Monteiro olha para Gomulka, meio desconfiado. MONTEIRO Cliente? GOMULKA O doutor Ramiro. Ele lembrou de alguns detalhes sobre os acontecimentos de ontem à noite e gostaria de comentá-los com o senhor. Monteiro olha para Ramiro por cima do ombro de Gomulka. Depois, começa a caminhar em direção à porta de sua sala. Gomulka vai atrás, quase correndo. GOMULKA Ele quer falar com o senhor agora. É possível? MONTEIRO O seu cliente parece estar um pouco nervoso. Gomulka olha para Ramiro. GOMULKA Impressão sua... MONTEIRO Primeiro vou falar com o doutor Bráulio. Monteiro volta-se para a porta, indica um banco de madeira. MONTEIRO Podem esperar aí. Ramiro olha para Gomulka, que aponta para o banco. Os dois olham para Monteiro, que está entrando em sua sala. Gomulka senta. GOMULKA Ele já vai nos atender. RAMIRO (baixinho) O velho vai me ferrar, Gomulka. Monteiro reaparece na soleira da porta. MONTEIRO Por favor, entrem. CENA 85A - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE IDENTIFICAÇÃO Gomulka e Ramiro entram na sala. Dois policiais, nas mesas, olham para Ramiro. Ramiro diminui o passo. MONTEIRO O doutor Bráulio quer falar com vocês. CENA 85 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO BRAULITO, 23 anos, pele morena, ar preocupado está sentado em frente à mesa de Monteiro. BRAULITO Na verdade eu ainda não sou doutor. Me formo ano que vem. Ramiro olha para Braulito, surpreso. MONTEIRO (apontando Ramiro para Braulito) Este senhor estava no carro com o seu pai ontem à noite. RAMIRO Braulito? BRAULITO E você é Ramiro. Eu lembro de você. Não entendo como pôde emprestar o carro para o papai, sabendo que ele estava embriagado. GOMULKA (para Monteiro) Pois é justamente isso que o Ramiro queria... RAMIRO (cortando rápido) Foi tudo muito rápido, Braulito. O seu pai estava... GOMULKA Fora de controle. RAMIRO Não te mete, Gomulka. (para Braulito) Ele tinha bebido um pouco, mas parecia capaz de dirigir. Foi uma fatalidade, talvez um pneu estourado. GOMULKA Mas... MONTEIRO (para Ramiro) O seu advogado disse que você tinha lembrado de uns detalhes. Monteiro dirige-se à sua mesa. RAMIRO Lembrei. Lembrei sim. (hesita por um instante) O carro estava com um problema... Toca o telefone. Monteiro atende em sua mesa. Fica ouvindo. GOMULKA (baixinho, para Ramiro) Que problema? Ramiro, não estou entendendo... RAMIRO (seco) Depois te explico. Monteiro desliga o telefone. Olha para Ramiro. MONTEIRO (devagar) Encontramos... Monteiro olha para Braulito. MONTEIRO O corpo de seu pai. Sinto muito. Braulito senta, desolado. Gomulka coloca a mão sobre seu ombro. CENA 86 - INT/DIA - CASA DE BRÁULIO / SALA Na sala lotada, umas trinta pessoas cercam um caixão fechado, suspenso em cavaletes metálicos. Dona Carmem e Braulito recebem os pêsames dos presentes. Um padre abraça Dona Carmem e fala alguma coisa no seu ouvido. Ela chora. Dona Maria também chora. Apesar das janelas abertas e dos três ventiladores ligados, o calor é sufocante, fazendo todos suarem muito. Ramiro olha constrangido para as pessoas. Duas mulheres olham para ele. Depois um homem e ainda outro grupo de pessoas, todos olhando para Ramiro. Braulito aproxima-se de Gomulka e Ramiro, estende a mão para Gomulka. BRAULITO (para Gomulka) Muito obrigado. Se não fosse a sua ajuda, isso tudo seria ainda mais difícil. GOMULKA Não foi nada. Essas perícias às vezes demoram. BRAULITO Eu sei. Braulito encara Ramiro. Ficam por alguns segundos frente a frente, olho no olho, as duas testas suadas. Finalmente, Braulito estende a mão para Ramiro, que a aperta. Braulito não larga a mão de Ramiro. BRAULITO É uma pena que, depois de tanto tempo, a gente se reencontre assim. RAMIRO É. BRAULITO Mamãe disse que você não teve culpa. Que o pai estava naqueles dias terríveis, em que nem o diabo pode com ele. RAMIRO (culpado) Eu... Gostava muito do seu pai. Braulito solta a mão de Ramiro. BRAULITO Eu sei. Ramiro desvia os olhos de Braulito. BRAULITO Com licença. Braulito sai. CENA 86A þ CASA DE TENNEMBAUN þ ESCADA DO ALPENDRE Ramiro e Gomulka no patamar. GOMULKA Não esquece de falar com o Rildo. RAMIRO Sobre o quê? GOMUKA Já esqueceu? Do carro dele. RAMIRO Num velório? Amanhã eu falo. GOMULKA Sei. Não esquece. Você vai comigo? RAMIRO (para Gomulka) Não, vou ficar mais um pouco. Ramiro começa a subir a escada mas encontra Elisa que desce o lance mais alto da escada. Ela está com um vestido negro até a metade da coxa, tecido leve, justo no torso. O cabelo está preso com um passador. Não há sinal de lágrimas em seu rosto. Ramiro olha para ela, indefeso. ELISA Me leva para andar um pouco. Ramiro e Elisa descem e se afastam para os fundos da casa. CENA 87 - EXT/CREPÚSCULO - CASA DE BRÁULIO / FUNDOS Por um caminho de terra, Ramiro e Elisa afastam-se da casa. Ramiro olha para Elisa. Ela parece estar calma. Caminham por algum tempo em silêncio. ELISA (sem olhar para Ramiro) A polícia esteve aqui. Ramiro continua calado. ELISA Fizeram perguntas. Para mim, para mamãe e para Braulito. Elisa aproxima-se de uma árvore. Pára e olha para Ramiro. Ramiro olha para trás. A casa não está mais à vista. Elisa encosta-se na árvore. Ramiro volta-se para ela. ELISA Queriam saber a hora em que você e papai saíram. RAMIRO E aí... ELISA Ninguém soube dizer. RAMIRO Nem você? ELISA Nem eu. RAMIRO E o que você disse, afinal? Elisa está encostada na árvore, cujo tronco possui uma leve inclinação. A respiração de Elisa fica agitada. ELISA Não te preocupa. Elisa passa a mão nas suas coxas, suave e sugestivamente, de cima para baixo. Sua boca se entreabre. A respiração se acelera ainda mais. Alguns raios do sol conseguem driblar a vegetação e iluminam apenas o rosto de Elisa, deixando seu corpo na penumbra. Ramiro olha para ela. ELISA (erguendo a saia) Vem. As pernas de Elisa surgem perfeitas, torneadas, de um bronzeado mate. Ramiro, nervoso, testa suada, aproxima-se dela. Ficam frente a frente, sem se tocar. RAMIRO Elisa, pelo amor de Deus, você vai me enlouquecer. Elisa sorri, diabólica. Ramiro a abraça. Beija-a. Elisa beija- lhe a orelha. Flexiona as pernas, facilitando os movimentos de Ramiro, que a levanta com facilidade, usando o tronco da árvore como apoio. Ramiro a penetra com um ronco selvagem. Fazem movimentos bruscos, quase brutais. As mãos dela cravam-se nas costas de Ramiro, ao mesmo tempo em que morde sua orelha e lambe o seu pescoço. Gemem de prazer. As mãos de Elisa crispam-se, segurando-se na árvore. Quando terminam, continuam abraçados, de olhos fechados, as duas respirações ofegantes. Ramiro abre os olhos e se afasta. Olha para cima e vê o tronco da árvore, que exibe um emaranhado de linhas, como cicatrizes. Num rompante, Ramiro afasta-se de Elisa, que tranqüilamente arruma sua roupa e ajeita o cabelo. Sorri, como uma menina, para Ramiro. ELISA Temos que voltar. Ramiro enxuga o suor da testa. Ramiro e Elisa voltam juntos, em silêncio, pelo mesmo caminho. Na saída do mato, um vulto surge de costas, cortando-lhes o caminho. Ramiro pára, aterrado, ao perceber que é Monteiro. MONTEIRO Boa noite, doutor Ramiro. Boa noite, senhorita. Ramiro fica olhando para Monteiro. FIM DO PRIMEIRO BLOCO SEGUNDO BLOCO CENA 88 - EXT/NOITE - CASA DE BRÁULIO / FUNDOS Ramiro parece constrangido, ajeita a roupa, tenta compor-se. Elisa não demonstra constrangimento. MONTEIRO Doutor, é preciso que me acompanhe. RAMIRO Agora, inspetor? MONTEIRO Sim, por favor. (para Elisa) A senhorita pode ir para casa. ELISA Eu estou em casa. (para Ramiro) Boa noite. Elisa afasta-se em diração à casa, ao fundo. Monteiro olha para Elisa. RAMIRO Isto é uma prisão, inspetor? Qual é o motivo? Monteiro olha para Ramiro. MONTEIRO O senhor me acompanhe. Monteiro toca levemente o braço de Ramiro. Ramiro o segue. Andam, lado a lado, por um caminho que se afasta da casa, em direção ao carro. MONTEIRO Lá na delegacia, nós conversaremos. RAMIRO Alguma novidade? MONTEIRO Recebemos os resultados da perícia no carro. E o relatório do médico legista. Quero confirmar com o senhor alguns detalhes da sua declaração. RAMIRO Devo chamar meu advogado? MONTEIRO (ri) O dono do carro? Tem certeza que o senhor não quer chamar um advogado mais experiente para defendê-lo? RAMIRO O senhor acha que eu vou precisar? MONTEIRO É possível. Chegam ao carro da polícia. Os POLICIAIS 1 e 2 estão no carro, nos bancos da frente. O policial 1 desce do carro e abre a porta de trás para Ramiro. MONTEIRO Se o senhor achar necessário, poderá chamá- lo da delegacia. Mas nós estamos tratando de ser discretos. RAMIRO Eu ouvi dizer que, neste país, a discrição da polícia pode ser perigosa. Monteiro vira-se e entra no carro. MONTEIRO Eu estou apenas cumprindo o meu dever. Mas, se o senhor preferir, eu posso ligar a sirene. Ramiro se vira, dá uma olhada em direção à casa e vê, ao longe, Elisa. Elisa termina de subir a escada. Ela o observa. Ramiro entra no carro. O policial 1 fecha a porta e dá a volta no carro. Carro some atrás do galpão. CENA 89 - EXT/NOITE - CARRO DA POLÍCIA / ESTRADA ASFALTADA Ramiro e Monteiro, sentados lado a lado no banco de trás do carro. Monteiro procura algo. Ramiro recosta-se no banco, olha a paisagem: pequenos ranchos adormecidos, uma ou outra luz em bares de beira de estrada, alguns animais no pasto. Ramiro ainda olha para a paisagem. Monteiro continua procurando. MONTEIRO O senhor esqueceu mais alguma coisa no carro? Monteiro acende a luz do carro. RAMIRO Como? MONTEIRO Além da sua chave, o senhor esqueceu mais alguma coisa, no carro ou com o doutor Bráulio? Monteiro abre sua pasta. RAMIRO O quê, por exemplo? Ramiro olha para a pasta. Monteiro põe a mão no bolso do paletó e tira uma carteira amassada de cigarros. MONTEIRO É exatamente o que eu estou lhe perguntando. Esqueceu ou não? Ramiro observa-o. RAMIRO Que eu lembre... MONTEIRO Não deu falta de nada? Monteiro procura fósforos pelos bolsos. Não encontra. RAMIRO Inspetor, se o senhor me disser o que o senhor encontrou e pensa que possa ser meu, talvez seja mais fácil eu... MONTEIRO Eu não encontrei nada que pudesse ser seu. RAMIRO Então... MONTEIRO Então, nada. Ramiro observa Monteiro alguns instantes, depois vira o rosto e volta a olhar a paisagem que passa. Um caminhão se aproxima, iluminando o interior do carro. MONTEIRO (para Ramiro) O senhor tem fogo? RAMIRO Não, não tenho. Monteiro toca no ombro do motorista. MONTEIRO Tem fogo, Oliveira? O caminhão passa. O homem ao lado do motorista, sem se virar, entrega uma caixa de fósforos por sobre o ombro. Monteiro pega a caixa de fósforos, abre, risca um fósforo, acende o cigarro. Ramiro tenta abrir a janela, descobre que só é possível abrir uma pequena fresta na janela de trás. Abre o último botão da camisa. Segura a camisa e abana-se com ela. RAMIRO (para Monteiro) O senhor me daria um cigarro? Monteiro pega o maço de cigarro no bolso, examina. Está vazio. MONTEIRO Acabou. Era o último. Monteiro dá uma longa tragada no cigarro, observa Ramiro. Ramiro faz um gesto de "deixa para lá". Tenta mais uma vez abrir a janela, mas não consegue. Parece que o mecanismo que desce o vidro está quebrado. O carro cruza a estrada. A grande lua cheia ilumina os campos. CENA 90 - INT/NOITE - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO Ramiro entra no escritório do Monteiro. Monteiro já está sentado numa cadeira de couro em frente a uma velha mesa de madeira em completa desordem. Um fichário de metal com gavetas que não fecham muito bem, um quadro de avisos, uma cadeira de madeira, giratória e reclinável, na frente da mesa. A luz da lua entra filtrada pelos vidros não muito limpos das basculantes semi-abertas. MONTEIRO Ligou? RAMIRO Liguei. MONTEIRO Quer esperar que ele chegue? Podemos ir conversando, extra-oficialmente, para ganhar tempo. RAMIRO O que o senhor quer saber? Ramiro senta na cadeira de madeira em frente à mesa. Monteiro procura alguns papéis sobre a mesa. A cadeira de Ramiro é bastante instável mas ele procura se acomodar. MONTEIRO Olhe, doutor, vou ser bem claro: neste assunto há um montão de coisas que não se encaixam. Monteiro acende uma luminária sobre a mesa. Um rasgo na pantalha que cobre a lâmpada joga uma luz direta sobre o rosto de Ramiro. MONTEIRO Conte-me de novo, com todos os detalhes que puder lembrar, o que fez ontem à noite. Ramiro suspira fundo. CENA 91 - INT/NOITE - DELEGACIA / CORREDOR Ramiro solta a fumaça do cigarro. Ramiro está sentado na escada, Gomulka de pé, apoiado no corrimão, ao seu lado. GOMULKA (baixinho) Você contou? RAMIRO O quê? GOMULKA Do soco. RAMIRO Não. GOMULKA Por que não? Devia ter contado. RAMIRO Pense bem, Gomulka: o que é motivo para dar um soco, pode ser motivo para matar. Não contei, agora é tarde. GOMULKA Devia ter contado. Esses médicos hoje, examinando um cadáver, descobrem até quantos traques um sujeito deu antes de morrer. Monteiro surge no corredor, ao fundo, secando as mãos num papel. Joga o papel no lixo. Erra. Pára, volta, junta o papel no chão e coloca no lixo. MONTEIRO Podemos continuar? Ramiro apaga o cigarro. RAMIRO Podemos. CENA 92 - INT/NOITE - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO Monteiro se senta. Gomulka e Ramiro sentam-se também. MONTEIRO Quer que lhe diga a verdade, doutor? Ramiro fica olhando para ele em silêncio. MONTEIRO Acho que tudo o que o senhor contou está certo em... noventa e nove por cento. O que me preocupa é esse um por cento restante. GOMULKA Se o senhor puder esclarecer em que pontos o depoimento do meu cliente não... combina.. não se harmoniza... Monteiro olha para Gomulka. MONTEIRO Não condiz. GOMULKA Obrigado. Se o senhor puder esclarecer em que pontos o depoimento do meu cliente não condiz com as suas observações... Monteiro agora olha para Ramiro. MONTEIRO É curioso que no carro haja mais impressões digitais suas do que do doutor Bráulio. No volante e na alavanca de mudança. Ramiro se apressa em responder. Gomulka tenta detê-lo com um gesto, mas não consegue. RAMIRO Quem guiou quase todo o tempo fui eu. MONTEIRO Mas segundo seu relato você não tem como saber quanto tempo guiou o doutor Bráulio. Monteiro fica observando Ramiro. Gomulka dá uma olhadinha para Ramiro e repreende-o com um olhar. GOMULKA Se ele deixou o Ramiro em casa antes das quatro e morreu pouco depois das cinco, não dirigiu por mais de uma hora. Ramiro pegou o meu carro pouco depois das oito, dirigiu até a casa do doutor Bráulio. E de volta para a cidade. Muito mais tempo. MONTEIRO Mesmo assim, se o doutor Bráulio dirigiu por mais de uma hora, é estranho que haja tão poucas impressões dele. Mas não é só isso. Monteiro pega algumas das fotos que estavam sobre a mesa e se levanta. Chega por trás deles e mostra as fotos. MONTEIRO O cadáver tinha uma machucadura, uma equimose, no maxilar inferior esquerdo, aqui. (batendo duas vezes em seu próprio queixo) E um corte no lábio inferior. GOMULKA Ele caiu, de carro, de uma altura de dez metros. É natural que tivesse muitas... Monteiro olha para Gomulka. MONTEIRO Equimoses. GOMULKA Isso. Monteiro dá a volta na mesa e senta em sua cadeira. Ramiro e Gomulka o acompanham com o olhar. MONTEIRO E tinha mesmo. Muitas. Mas sua roupa quase não tinha manchas de sangue. O que é natural, considerando-se que ele caiu, com o carro, dentro da água. Se os ferimentos sangraram, e possivelmente tenham sangrado muito, a água do rio cuidou de lavar suas roupas imediatamente. GOMULKA E qual é a dúvida? Monteiro fala para Gomulka. MONTEIRO A dúvida é que, como eu disse, sua roupa QUASE não tinha manchas de sangue. Monteiro fica mais um tempo examinando as fotos. E olha para Ramiro. MONTEIRO Há uma mancha, bem visível, junto ao colarinho esquerdo, perto das equimoses descritas, no maxilar esquerdo. Parece que esse ferimento foi feito algum tempo antes da queda. Por isso a água do rio não tirou a mancha. Percebem? Gomulka olha para Ramiro. GOMULKA Percebemos. Monteiro guarda as fotos num envelope e encara Ramiro. MONTEIRO Como se o tivessem feito dormir com um golpe e depois colocado suas mãos no volante e na alavanca para deixar as impressões digitais. Ramiro encolhe os ombros, engole saliva e fica olhando para a lâmpada. MONTEIRO Você não viu se ele deu carona para alguém, depois que o deixou em casa? RAMIRO Não, se tivesse visto eu teria dito. MONTEIRO Claro. Monteiro acende um cigarro. Dá uma tragada. E olha para Ramiro. MONTEIRO Imagino que alguém lhe deu um soco, para fazê-lo dormir. Depois o colocou no volante. E depois ligou o carro, na direção da ponte. Ramiro olha para Monteiro. Pausa. Ramiro pensa antes de falar. RAMIRO O senhor está pensando que fui eu? Monteiro encara Ramiro. Gomulka levanta-se, alterado. GOMULKA O que é isso, Ramiro? Você estava em casa, desde antes das quatro. MONTEIRO Isso é verdade. Sua mãe acordou e o viu chegar em casa, antes das quatro. O senhor tocou a campainha ao chegar? RAMIRO Não, claro que não. Mas ela tem o sono leve. Qualquer barulhinho... GOMULKA Minha mãe é igual. Não posso me virar na cama que... MONTEIRO O senhor então entrou em casa sozinho? RAMIRO Claro que sim. MONTEIRO Mas sua chave não estava com o senhor. Estava no carro, com o doutor Bráulio. Ramiro pára, sem saber o que dizer. Gomulka olha para Ramiro tentando, sem muito sucesso, aparentar calma. Ao fundo, Oliveira abre a porta e faz um sinal para Monteiro. RAMIRO Claro... agora que o senhor falou... Foi isso... eu desci do carro e, quando cheguei na porta, percebi que havia deixado a chave no carro. O doutor Bráulio já tinha partido... MONTEIRO E então? RAMIRO E então... eu dei a volta na casa e entrei pela cozinha. MONTEIRO Pela porta da cozinha? RAMIRO Na verdade, pela janela da cozinha. Está sempre aberta. Eu não queria acordar minha mãe... MONTEIRO Mas acabou acordando. RAMIRO Sem querer. MONTEIRO Claro. O senhor me dá licença um minuto? Monteiro levanta, sai e deixa a porta meio aberta. GOMULKA (falando baixo) Você devia ter contado do soco... Devia ter contado! RAMIRO Agora é tarde. Gomulka levanta-se e vai até a porta. Espia e fecha a porta. Aproxima-se da ponta da mesa de Monteiro, ao lado direito de Ramiro, e fica de pé, apoiado na mesa. GOMULKA E que merda é essa da chave? Você não me disse nada! RAMIRO Esqueci, que importância tem isso? Entrei pela janela da minha própria casa. Isso é crime? Monteiro entra pela porta, trazendo uma pasta. Aproxima-se da sua cadeira. GOMULKA Inspetor, se o senhor não tem mais perguntas... MONTEIRO Só mais uma, depois vocês podem ir. Monteiro senta, encara Ramiro. MONTEIRO Olhe, doutor Ramiro, o senhor me perguntou se eu acho que o senhor matou o doutor Bráulio Tennembaun. Monteiro faz uma pausa. RAMIRO Perguntei. O senhor acha? MONTEIRO Pois me dá um palpite que sim, que quer que eu faça? Ramiro olha para Gomulka. GOMULKA O senhor está acusando o meu cliente... MONTEIRO Não estou acusando de nada. Estou dizendo que é só um palpite. Um palpite que não posso provar. Ainda. Falta um detalhe. GOMULKA Qual? MONTEIRO Motivo. Que motivo teria o senhor para matá-lo? GOMULKA Nenhum. Nenhum motivo. MONTEIRO Olhe, doutor, o senhor é um homem jovem, de futuro. Estudou na França e tudo. Vai ser professor na universidade, não tem maus antecedentes... Além disso comprovamos sua velha amizade com a família Tennembaun. Então é isso, não consigo entender... por que haveria de matar esse médico provinciano? Ramiro fica em silêncio. MONTEIRO Que relações o senhor tem com a senhorita Elisa? Ramiro fica alguns segundos em silêncio, tentando conter o nervosismo. RAMIRO Quando eu fui para Paris, ela era muito criança. Só tornei a vê-la ontem à noite. Somos amigos. De família. MONTEIRO Claro. Ela está lhe esperando. RAMIRO Como? Onde? MONTEIRO Aí fora. Vocês podem ir agora. Ramiro e Gomulka levantam-se. MONTEIRO O senhor não pretende viajar nos próximos dias, pretende? RAMIRO Não. GOMULKA O senhor está querendo dizer que o meu cliente não pode sair do país? MONTEIRO Não, senhor Gomulka. (levantando-se) Eu estou querendo dizer que o seu cliente não pode sair da cidade. A porta da sala de Monteiro é aberta, Ramiro e Gomulka saem seguidos por Monteiro. Os três olham para a recepção, Monteiro entre eles, um pouco para trás. Através da porta da sala de Oliveira vêem Elisa sentada num banco da recepção. MONTEIRO Ela está muito bonita, não? Ramiro pensa um pouco antes de responder. RAMIRO Sim, muito bonita. MONTEIRO Sabe a idade dela? RAMIRO Sei. FIM DO SEGUNDO BLOCO TERCEIRO BLOCO CENA 93 - EXT/NOITE - FRENTE DA DELEGACIA Ramiro, Elisa e Gomulka saem da delegacia. GOMULKA (para Elisa) Quer que eu leve você em casa? ELISA Não, obrigado. Eu vou dormir na casa de uma amiga, aqui perto. Vou com o Ramiro. GOMULKA Não sei se é uma boa idéia. Gomulka olha para Ramiro e, com o canto do olho, olha para a delegacia. Monteiro está na janela e observa-os. RAMIRO Pode deixar, Gomulka. GOMULKA Você é quem sabe. Gomulka sai para a esquerda. Ramiro e Elisa caminham lado a lado, na calçada. CENA 93A - EXT/NOITE þ RUA DA CIDADE Ramiro e Elisa caminham em silêncio, afastando-se. RAMIRO Acho melhor a gente não se ver muito, nos próximos dias. ELISA Por que não? RAMIRO Esse inspetor, ele tem muita imaginação. ELISA Como assim? RAMIRO Ele... está pensando que talvez o seu pai... que talvez não tenha sido um acidente. ELISA Eu sei que não foi acidente. RAMIRO Sabe? ELISA Ele dirigia muito bem. RAMIRO Desculpe, mas ele estava bêbado. ELISA Ele estava sempre bêbado. RAMIRO Você acha... ELISA Acho que ele nos viu. RAMIRO Como assim? Nos viu? ELISA Eu e você. Acho que ele viu. RAMIRO Nós, no seu quarto? ELISA Ou antes. Ele não lhe falou nada? RAMIRO Não. ELISA Foi suicídio. Ele pulou. RAMIRO Por que ele faria isso? Chegam no portão da casa de Ramiro. Ramiro abre o portão. Os dois entram. ELISA Culpa. Ou ciúme. RAMIRO Ciúme? ELISA De mim. Ele nos viu e percebeu que tinha me perdido. Que agora eu era sua. Ramiro abre a porta. CENA 94 - INT/NOITE - CASA DE RAMIRO / SALA Ramiro e Elisa abrem a porta e entram na sala. Ramiro vê algo que o surpreende: DORA, 35 anos, morena, sentada numa poltrona. Ramiro fica estupefato. Dora se levanta, Maria aproxima-se dela. MARIA Ramiro, olha quem está aqui... RAMIRO Dora? DORA Tudo bem com você? RAMIRO O que você... DORA Eu queria te ver. Todos ficam alguns segundos sem saber o que fazer. Dora aproxima-se de Ramiro. DORA Não vai me dar um abraço, pelo menos apertar minha mão... Ramiro se aproxima, meio sem jeito, se abraçam. RAMIRO Desculpe. Que loucura... Eu estou ainda... surpreso. Elisa surge entre Ramiro e Dora. RAMIRO Por que você não avisou? DORA Se eu ligasse, você ia dizer para eu não vir. Não ia? RAMIRO Ia. Claro que ia. DORA Pois é. Dora pela primeira vez repara em Elisa. Dora vira-se para Elisa. Elisa senta no braço do sofá. DORA Tudo bem? RAMIRO Desculpe, eu... MARIA Essa é a Elisa. Ela é filha de uns amigos. Elisa, esta é a Dora, esposa do Ramiro. DORA Ex-esposa. Dora volta a sentar. MARIA Chegou agora, imagine, de Paris. Ramiro senta no sofá cujo braço é ocupado por Elisa. RAMIRO Você veio como? Você chegou... DORA Cheguei de manhã. Peguei um ônibus e vim para cá. Não faz uma hora, chegamos juntas, eu e sua mãe. Ela me disse que vocês estavam num velório. Um acidente de carro, não foi? RAMIRO Foi. É... Ramiro percebe que está muito próximo de Elisa e afasta-se. DORA Que horror. Parece que ele tinha bebido demais... RAMIRO Era o... pai de Elisa. Dora fica surpresa e constrangida. Olha para Elisa. DORA Nossa, desculpe. ELISA Tudo bem. Ele bebia sempre. DORA Desculpe... Eu... sinto muito. Elisa sacode a cabeça e baixa os olhos. Maria ergue-se do sofá e se aproxima de Elisa. MARIA (para Elisa, carinhosa) Como você vai voltar para casa tão tarde, minha filha? ELISA Eu não quero ir para casa. MARIA (abraçando-a) Coitadinha... Se você quiser dormir aqui... RAMIRO Ela vai dormir na casa de uma amiga. (para Dora) Você não quer... comer alguma coisa, tomar um banho... MARIA Eu já disse para ela ficar à vontade. DORA Eu já peguei um quarto no hotel, não quero dar trabalho. MARIA Trabalho nenhum. DORA Eu me sinto mais à vontade num hotel, obrigado. Eu fumo... Gosto de ficar lendo até tarde, você sabe. RAMIRO Se você prefere... DORA Prefiro. MARIA Eu vou fazer um chá. Maria conduz Elisa para a cozinha. MARIA (para Elisa) Venha, minha filha, vamos deixar os dois conversarem um pouco. As duas saem. Ramiro e Dora ficam sozinhos na sala. RAMIRO Que loucura, Dora... Você devia ter ligado antes de vir. DORA Não gostou de me ver? RAMIRO Gostei, é que... A hora não podia ser pior. A minha vida está... Ramiro tenta encontrar uma palavra que defina como sua vida está. Não consegue. RAMIRO Você nem imagina. DORA A minha também está um confusão. Ramiro ri. DORA O que foi? RAMIRO Você não tem idéia... A minha vida está... realmente... uma confusão. DORA (irônica) Claro. Você nem sabe o que está me acontecendo, mas nada pode se comparar à SUA confusão. RAMIRO Dora, acredite em mim: por mais confusa que esteja a sua vida, nada... Esquece. Ficam em silêncio. RAMIRO Por que você veio? DORA Eu estive no nosso apartamento. Passei na Madame Claudel pra pegar a chave. Fui lá buscar as plantas. RAMIRO Sei. DORA Tinha um monte de jornais no chão, você não cancelou a assinatura. RAMIRO Não. DORA Pois é. Estava uma manhã de sol, aquele sol batendo na sacada, nos telhados, você sabe. RAMIRO Sei. DORA O sol é tão raro naquele inverno. Peguei os jornais, sentei na sacada e fiquei lendo. Eu me dei conta que eu fui muito feliz naquele apartamento. Nós fomos. Não fomos? RAMIRO Acho que sim. DORA Eu fui. Tenho certeza. E aí eu pensei que... que talvez eu e você... que talvez a gente estivesse perdendo uma coisa boa. Uma coisa difícil de conseguir. E que... talvez a gente devesse lutar um pouco mais. RAMIRO Você não pensou que... talvez... fosse um pouco tarde? DORA Não, não pensei. E não acho que seja tarde. Ficam em silêncio. RAMIRO Aconteceu muita coisa. DORA O quê? Elisa entra na sala. ELISA Ramiro. Eu já vou. Ramiro e Dora ficam olhando para Elisa. Dora olha para Ramiro. Ele se levanta, vai até a porta. ELISA (para Dora) Muito prazer. DORA A gente se fala depois. E desculpe... ELISA Imagina. (para Ramiro) Você tem razão, ela é bonita mesmo. (para Dora) É verdade que você não raspa embaixo dos braços? Dora hesita alguns segundos antes de responder. DORA (olhando para Ramiro) É. ELISA Legal. Outro dia você me mostra. Tchau. Elisa dá um beijo em Ramiro e sai. FIM DO TERCEIRO BLOCO QUARTO BLOCO CENA 95 - EXT/NOITE - RUA ARBORIZADA A rua é iluminada pela lua cheia e pelas lâmpadas de alguns postes. Ramiro e Dora caminham lado a lado, sem pressa, sem se olhar. DORA Que história é essa de raspar embaixo dos braços? RAMIRO (dando de ombros) Coisa de criança... DORA Essa... Elisa... não parece uma criança. RAMIRO As adolescentes, hoje em dia... DORA O que é que tem? RAMIRO Querem crescer antes do tempo. Mas continuam crianças. É só ver o jeito que falam... Dora parece dar o assunto por esgotado. Pára e olha para uma vitrine, muda de tom. DORA Lembra de Paris? Eu gostava de caminhar com você pela rua, à noite. RAMIRO É. Lá não era tão quente... DORA Você saía da Universidade e ia me encontrar no Restif. No verão, em vez de pegar o metrô, a gente voltava a pé até Levallois. Ramiro dá uma rápida olhada para o lado. Percebe que Dora o está fitando e volta a olhar para a frente. DORA O que você tem, Rami? Quer que eu vá embora? Não quer falar sobre Paris? RAMIRO (desconversando) Nada, não. É o calor... Ramiro segue caminhando, sem olhar para Dora. Ela o acompanha. CENA 96 - EXT-INT/NOITE - HOTEL DE DORA / ENTRADA E HALL Ramiro e Dora chegam ao hotel. Ele abre a porta de vidro e espera que ela passe para o hall. Ela passa, indicando a portaria, e o RECEPCIONISTA atrás do balcão. DORA Seja bonzinho e pegue a minha chave. É o vinte e seis. Dora vai em direção ao elevador. RAMIRO Dora, eu não quero... DORA (voltando-se, sorrindo) Só quero te mostrar uma coisa, Rami. Ramiro assente com a cabeça, resignado, e anda em direção à portaria. Dora, parada em frente ao elevador, acompanha-o com o olhar. Ramiro dirige-se ao recepcionista. RAMIRO O vinte e seis, por favor. Dora sorri para si mesma, aprovando. CENA 97 - INT/NOITE - HOTEL DE DORA / QUARTO A porta do quarto 26. Ramiro tira a chave na fechadura e fecha a porta. Dora acende a luz. Ramiro a segue e fecha a porta atrás de si. O quarto está praticamente intocado. Uma cama de casal com as cobertas estendidas, duas poltronas, uma janela com a persiana fechada, uma grande mala fechada sobre uma banqueta. Dora, do outro lado da cama, abre a frasqueira e tira alguns papéis. Ramiro permanece de pé, ao lado da porta. RAMIRO O que você queria me mostrar? DORA Senta. Ramiro senta na cama, de costas para Dora. Ela faz a volta na cama e vem até ele, com os papéis na mão: é um folheto de companhia aérea, com passagens de avião dentro. Entrega para Ramiro. DORA A passagem. Ida e volta. Mas a volta é para duas pessoas. (em tom de brincadeira) É o que as agências chamam de "pacote turístico completo". Ramiro, com o folheto na mão, ergue o olhar para Dora, sem saber o que dizer. Ela volta a se afastar, em direção ao fundo do quarto, enquanto fala. DORA Está marcada para amanhã à noite. Mas, se você precisar de mais tempo, nós podemos transferir. Ramiro fecha os olhos. Respira fundo. Volta a abrir os olhos. Abre o folheto, retira as passagens. Olha as páginas do folheto, onde há várias fotos turísticas de Paris: torre Eiffel, um casal de namorados num parque, neve. Ramiro olha as fotos. Volta a olhar as passagens. Fala sem se virar, para Dora, às suas costas. RAMIRO Sabe qual é o problema, Dora? Não é você, não é Paris, não é a data. O problema... é esse nome na passagem. Ramiro esfrega os olhos com as mãos, com força. Está quase chorando, desamparado, indefeso. Ainda assim, continua falando sem se virar para Dora. RAMIRO Até ante-ontem, é possível... é bem possível que eu... eu ia querer voltar. Só que... esse Ramiro Bernardes não existe mais. Não tem mais volta. Pra mim não tem mais volta. Você entende que... De repente, Ramiro ouve um ruído vindo do banheiro. Vira-se, assustado, e percebe que está sozinho no quarto. A porta do banheiro se abre e Dora sai, de camisola. Ramiro faz menção de dizer alguma coisa, mas não diz. Dora olha para Ramiro, ainda sentado na cama, olhos vermelhos. Dora sorri, enternecida, ao ver a emoção de Ramiro. DORA Amor... Ramiro continua olhando para Dora, desamparado. Dora apaga a luz do quarto. Em seguida, abre a persiana da janela atrás de si, deixando a luz do luar entrar e iluminar o quarto. Dora tira a camisola, mostrando seu corpo nu, silhuetado pela luz que vem da janela. Ramiro, ainda sentado na cama, olha para Dora. Sempre sorrindo, Dora aproxima-se de Ramiro. Atrás dela, a luz do luar continua entrando pela janela. FADE OUT. CENA 98 - INT/AMANHECER - HOTEL DE DORA / QUARTO FADE IN. A luz da manhã entra pela janela do quarto. Na cama, sob o lençol, Dora dorme, com ar satisfeito. A seu lado, sentado na cama, sem camisa, Ramiro está acordado, preocupado, fumando. De repente, Ramiro vira-se para a janela. Percebe que já é dia. Devagar, sem fazer movimentos bruscos, cuidando para não acordar Dora, Ramiro levanta-se. Apaga o cigarro no cinzeiro sobre a mesa de cabeceira e vai pegar suas roupas no chão. Na cama, Dora se movimenta, abre lentamente os olhos. Procura Ramiro pelo quarto. DORA Rami? Ramiro, já de calças, a camisa sobre os ombros, aproxima-se de Dora. Volta a sentar na cama, ao lado dela. RAMIRO Tenho que ir em casa. Dora murmura um hum-hum satisfeito e preguiçoso, fecha os olhos e vira-se na cama, ficando de costas para Ramiro. Ramiro fica olhando para Dora, sério, enquanto termina de vestir a camisa. CENA 99 - EXT/DIA - FRENTE DO HOTEL DE DORA Ramiro sai pela porta de vidro do hotel e caminha, decidido, pela calçada. Já há algum movimento na rua. CENA 100 - EXT/DIA - FRENTE DA CASA DE RAMIRO Ramiro vem andando pela rua, em direção à sua casa. De repente, pára e olha, assustado. Em frente à casa de Ramiro, há dois carros de polícia. O policial 1, inclinado sobre a capota de um dos carros, preenche um volante de loteria esportiva. Ramiro toma fôlego e segue andando em direção à casa. Passa pelos carros. O policial 1 o vê, mas volta a trabalhar em seu volante. Ramiro abre o portãozinho de ferro e entra. De dentro da casa, surge dona Maria, preocupada, em direção a Ramiro. MARIA Ramiro! Meu filho, graças a Deus, você chegou. Eles estão mexendo em tudo. RAMIRO Calma, mãe, calma. O que houve? Nesse momento, Monteiro vem saindo da casa. RAMIRO Inspetor Monteiro! Faça o favor de sair da minha casa. E só volte aqui com um mandado! Monteiro, calmamente, caminha em direção a Ramiro. Tira do bolso do paletó alguns papéis. MONTEIRO Qual mandado o senhor vai querer? (entregando-lhe um papel) Busca e apreensão? Ramiro pega o papel e confere, derrotado. Mas Monteiro entrega-lhe outro papel. MONTEIRO Ou prefere um mandado de prisão? MARIA Deus meu! Ramiro não sabe o que fazer. Nesse momento, os policiais 2 e 3 vêm saindo de dentro da casa. O policial 1 aproxima-se por trás de Ramiro e algema-o. MONTEIRO Ramiro Bernardes, você está preso por suspeita de assassinato do doutor Bráulio Tennembaun, ocorrido na madrugada de ante- ontem. Pode ser uma boa idéia chamar o seu advogado. Ramiro, algemado, sem ação, procura socorro com sua mãe. RAMIRO Mãe! Chama o Gomulka! MONTEIRO É. O senhor conhece os seus direitos, eu não preciso ficar repetindo. Vamos embora. Monteiro faz um sinal para o policial 1, que conduz Ramiro em direção aos carros de polícia. RAMIRO (de costas, saindo) Chama o Gomulka, mãe! Os outros policiais vão saindo também, atrás de Monteiro. Dona Maria fica parada, sem ação, sozinha no jardim da casa. FIM DO QUARTO BLOCO QUINTO BLOCO CENA 101 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO Ramiro está sentado numa cadeira, no centro do escritório de Monteiro, com as mãos algemadas. A seu lado, de pé, apenas o policial 1. Ninguém mais na sala. Mais do que nervoso, Ramiro parece irritado. A porta se abre e entra Monteiro, seguido por Gomulka. Monteiro pára na porta e aponta Ramiro. MONTEIRO Aí está o seu cliente, doutor Gomulka. Como pode ver, ele não foi molestado. (para o policial) Pode soltar, Oliveira. O policial tira do bolso uma chave e inclina-se para abrir as algemas de Ramiro. Monteiro fecha a porta atrás de si. Gomulka aproxima-se de Ramiro, como que para verificar se ele está bem. GOMULKA Tudo bem, Ramiro? Ramiro termina de soltar-se das algemas, rotaciona os pulsos, abre os braços. Olha para Gomulka, faz que sim com a cabeça. MONTEIRO Pode esperar lá fora, Oliveira. O policial pega as algemas e sai, sem falar nada. GOMULKA Posso saber por que o meu cliente está detido? MONTEIRO Ele demoliu o seu carro, doutor Gomulka. GOMULKA (sem achar graça) Muito engraçado. Monteiro senta-se em sua cadeira, atrás da escrivaninha. MONTEIRO Prisão preventiva. Ele é suspeito de homicídio qualificado. Não tem um álibi convincente para a noite do crime. E estamos muito perto da fronteira. GOMULKA Mas isso são suposições suas. Eu não entendo por que esse tipo de raciocínio pode justificar uma prisão preventiva. Meu cliente é primário e... MONTEIRO O juiz entendeu. É o que basta, por enquanto. Gomulka balança a cabeça, tentando ganhar tempo para pensar. GOMULKA E eu imagino que o senhor tenha apresentado ao juiz alguma evidência que eu desconheço. MONTEIRO Não foi necessário. Mas, na verdade... (abrindo uma gaveta da escrivaninha) Tem uma coisa que eu gostaria de perguntar ao seu cliente... GOMULKA (para Ramiro) Meu cliente não é obrigado a responder nada. Monteiro tira da gaveta um saco plástico transparente. Ramiro fica tentando espiar o seu conteúdo. MONTEIRO Não, ele não é obrigado. Mesmo assim, eu gostaria de saber se ele pode imaginar o que isto... (mostrando o saco plástico)... estava fazendo no bolso das calças do doutor Bráulio. Monteiro estende o saco plástico a Gomulka. Dentro do saco, há uma calcinha branca de mulher. Gomulka pega o saco com a ponta dos dedos e coloca-o diante dos olhos de Ramiro. Ramiro e Gomulka se olham rapidamente. GOMULKA Como o meu cliente já disse... RAMIRO (cortando) Como eu já disse, o doutor Bráulio estava bêbado e falou mais de uma vez que queria ir ao La Estrella, continuar bebendo. (cada vez mais irritado) É bem possível que ele tenha ido a outro lugar, encontrado uma mulher, rasgado a calcinha dela, sei lá... O que é que eu tenho a ver com isso? GOMULKA Ramiro, é melhor você não dizer mais nada. Monteiro ergue-se em sua cadeira, atento. MONTEIRO O senhor afirma então que nunca viu antes essa calcinha? RAMIRO Não, nunca. GOMULKA Eu exijo conversar a sós com o meu cliente antes que o senhor prossiga com... MONTEIRO (com autoridade, mas sem levantar a voz) O senhor vai se sentar e não vai exigir coisa nenhuma. Gomulka, resignado, senta. MONTEIRO Além do mais, eu já estou terminando. Só gostaria de saber do senhor Bernardes como ele sabe que a calcinha encontrada no bolso do doutor Bráulio estava rasgada. RAMIRO (rindo, nervoso) Essa não colou, inspetor. O senhor não disse que ela estava rasgada. Mas eu acabei de ver e ela estava rasgada. MONTEIRO O senhor viu que ela estava rasgada? Mesmo dentro de um saco plástico? Ramiro não responde. Gomulka, temeroso, olha a calcinha dentro do saco plástico em suas mãos. MONTEIRO Doutor Gomulka, pode me devolver? Gomulka levanta-se e devolve o saco com a calcinha a Monteiro. MONTEIRO Curioso. O mais estranho é que ela não está rasgada. Monteiro mostra a calcinha a Ramiro e Gomulka. Está intacta. Gomulka olha para Ramiro. Uma gota de suor escorre pela testa de Ramiro, que não diz nada. MONTEIRO Já sei! Eu me enganei. Monteiro volta a abrir a gaveta da escrivaninha. De dentro dela, tira um segundo saco plástico, com outra calcinha dentro. MONTEIRO Esta aqui foi encontrada no bolso do doutor Bráulio. E está rasgada mesmo, vejam. Aquela outra, que eu mostrei antes por engano, e que o senhor disse que nunca viu, estava no seu quarto, doutor Bernardes. Embaixo do colchão. Não é uma coincidência? Gomulka volta a sentar, desistindo. Monteiro segura as duas calcinhas, uma ao lado da outra. MONTEIRO São parecidas, não é? Eu diria que são quase iguais. Não fosse o fato de uma delas estar rasgada, dava até pra confundir... Monteiro encara Ramiro e Gomulka. Gomulka olha para Ramiro. Ramiro faz para Gomulka um sinal negativo com a cabeça, como de desistência. GOMULKA Meu cliente não tem mais nada a dizer. Monteiro levanta-se da cadeira. MONTEIRO Ótimo. Porque agora ele não precisa dizer mais nada. Monteiro vai até a porta, abre-a. MONTEIRO Agora vamos ver o que outra pessoa tem a dizer. (falando alto, para fora) Pode trazer, Oliveira! (para Ramiro) O nome dele é João Pedro de Assis. Profissão: caminhoneiro. Ramiro olha para Monteiro, não mais conseguindo disfarçar o pavor. Uma gota de suor escorre até o seu queixo e pinga. Gomulka olha para Ramiro, depois para Monteiro, sem saber o que fazer. Pela porta, o caminhoneiro entra, baixo, forte, braços tatuados, chapéu na mão. Meio envergonhado, pára no meio da sala, sem saber o que fazer, para onde olhar. Monteiro aponta Ramiro e pergunta para o caminhoneiro. MONTEIRO Conhece este homem? O caminhoneiro e Ramiro encaram-se. FIM DO CAPÍTULO 3 *********************************************************** (C) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1998 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br