LUNA CALIENTE (CAP. 4) microssérie em 4 capítulos roteiro de Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil a partir da novela homônima de Mempo Giardinelli versão de 11/08/1998 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para TV Globo *********************************************************** PRIMEIRO BLOCO CENA 102 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO Ramiro permanece sentado em sua cadeira, no centro do escritório de Monteiro. À sua frente, de pé, o caminhoneiro o encara. Ao lado da porta, Monteiro observa os dois. Ramiro olha rapidamente para Gomulka que, de pé ao seu lado, faz cara de quem não está entendendo nada. Ramiro resolve encarar o caminhoneiro. MONTEIRO (para o caminhoneiro, insistindo) Conhece este homem? O caminhoneiro olha para Monteiro e depois, meio envergonhado, para Ramiro. Ramiro levanta o olhar e encara-o com ar superior. O caminhoneiro encolhe-se, hesita. CAMINHONEIRO Não tenho certeza. MONTEIRO (para Ramiro) Fique de pé, por favor. Ramiro levanta-se. Monteiro fecha a porta e volta até a sua mesa. MONTEIRO Dê uma volta na cadeira. GOMULKA Inspetor, o senhor pode me explicar o que está acontecendo? Monteiro senta-se, calmamente. MONTEIRO Segundo o depoimento do seu cliente, o doutor Bráulio deixou-o em casa, às quatro horas. Mas o senhor João Pedro aqui (apontando) passou pela ponte de Resistência às cinco, provavelmente pouco depois que o seu carro, doutor Gomulka, caiu no rio. GOMULKA E o que o meu cliente tem a ver com isso? MONTEIRO O senhor João Pedro declarou que deu carona a um homem, da ponte até a cidade. (lendo um papel sobre a mesa) Um homem moreno, de mais ou menos quarenta anos. GOMULKA Então isso é uma acareação? O senhor sabe que o meu cliente pode se negar a isso. MONTEIRO Sim, doutor Gomulka. O seu cliente pode se negar a isso, se achar que vai ser incriminado. (para Ramiro) É sua a escolha. Ramiro olha para Monteiro, depois para o caminhoneiro e por fim para Gomulka. RAMIRO Tudo bem. Ramiro caminha, pausadamente, em volta de sua cadeira. O caminhoneiro observa-o. Ao passar por ele, Ramiro mantém o olhar erguido. MONTEIRO Agora o reconhece? CAMINHONEIRO É parecido, senhor, mas a verdade é que... não tenho certeza. Estava muito escuro e eu vinha distraído. MONTEIRO Mas ele não esteve sentado mais de meia hora ao seu lado? CAMINHONEIRO (nervoso, amassando o chapéu com as mãos) Quem sabe se o moço falasse... MONTEIRO (para Ramiro) Fale alguma coisa, por favor. RAMIRO (escolhendo as palavras) Não sei o que quer que eu diga, inspetor. (olhando fixo para o caminhoneiro) Eu nunca vi este homem em toda a minha vida e não estou compreendendo o que o senhor deseja. O caminhoneiro olha para Ramiro, nervoso. Monteiro observa os dois. MONTEIRO E então? CAMINHONEIRO Não, senhor, a pessoa que levei era um gringo, acho que um paraguaio. O moço é parecido, mas fala brasileiro. MONTEIRO O senhor Bernardes viveu na Europa, certamente fala outra língua... RAMIRO Je parle français, inspecteur. É a língua que se fala em Paris, onde eu morei. Monteiro levanta-se, dirigindo-se ao caminhoneiro. MONTEIRO Esqueça o jeito que ele fala. Diria que é a pessoa que levou ou não? CAMINHONEIRO Pois... me parece que era de outra condição. Este senhor... MONTEIRO Era de madrugada, ele devia estar sujo, cansado... Você só precisa dizer se o reconhece ou não. Não tenha medo. O caminhoneiro, cada vez mais nervoso, olha para Monteiro e para Ramiro, indeciso. CAMINHONEIRO Olha, senhor, eu não... eu acho... (balançando a cabeça) Sinceramente... MONTEIRO (interrompendo) Tudo bem. Você não precisa dar uma resposta agora. Você será chamado a depor mais tarde, no inquérito. Ramiro, aliviado, olha para Gomulka, que reage. O caminhoneiro, ainda confuso, coloca o chapéu na cabeça e prepara-se para sair. GOMULKA Isso é altamente irregular, inspetor. O senhor sabe que não pode fazer uma coisa dessas. Se isso fosse um interrogatório formal, se nós estivéssemos na presença de um juiz... Ramiro tira do bolso a carteira de cigarros. Pega um cigarro, bate-o duas vezes na mesa. Antes de colocá-lo na boca, pára, como se percebesse alguma coisa. Olha com o canto do olho para o caminhoneiro. INSERT DA CENA 49 - EXT/NOITE - CAMINHÃO Ramiro põe a mão no bolso e tira um cigarro. Distraidamente, bate duas vezes com o cigarro no painel do caminhão. VOLTA PARA CENA 102 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO O caminhoneiro está olhando para Ramiro, reconhecendo-o. MONTEIRO Eu conduzo o inquérito, advogado. (para o caminhoneiro) Pode ir embora. Você será procurado em breve. Obrigado. Ramiro olha para o inspetor, e percebe que ele não percebeu nada. Volta a olhar para o caminhoneiro. O caminhoneiro, humildemente, baixa a cabeça e vai embora. CAMINHONEIRO Com licença... Monteiro conduz o caminhoneiro até a porta. Abre-a. Gomulka olha para Ramiro, sem entender a sua inquietação. O caminhoneiro sai. Parado junto à porta aberta, Monteiro volta-se para Gomulka. MONTEIRO O senhor também pode ir embora, advogado. Seu cliente agora está aos cuidados da polícia. Gomulka balança a cabeça afirmativamente. Depois, olha para Ramiro e bate-lhe amigavelmente no ombro. GOMULKA Boa sorte. Te vejo amanhã. Ramiro concorda com a cabeça, preocupado. CENA 103 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE IDENTIFICAÇÃO A carteira de identidade de Ramiro é depositada em uma caixinha de metal. Ramiro tira o relógio do pulso e entrega-o para o policial Oliveira, à sua frente na sala de identificação. Oliveira coloca o relógio dentro da caixinha e faz um sinal indicando a cintura de Ramiro. O cinto de Ramiro é retirado das calças. Ramiro entrega-o a Oliveira. Um cordão de sapato é puxado, soltando-se do último furo. Ramiro entrega dois cordões de sapato a Oliveira. As mãos de Ramiro, espalmadas, encostam-se na parede, a três palmos de distância uma da outra. Ramiro está de costas, pernas abertas, as mãos na parede, e Oliveira se abaixa para revistá-lo. Na caixinha de metal, uma carteira de couro é colocada sobre os demais objetos de Ramiro. Pequenos números de madeira são colocados em seqüência dentro de um pequeno trilho, formando uma data: 17-1-1970 Ramiro, ar perplexo, posiciona-se frente a um fundo preto, olhando para a frente. Como que por reflexo, sua boca tenta esboçar um sorriso, a que o rosto inteiro não corresponde. Um flash congela a expressão de Ramiro. CENA 104 - INT/NOITE - DELEGACIA / CELA E CORREDOR Ramiro está sentado, sem sapatos, cabeça baixa, a um canto do chão de cimento de uma cela escura e pequena, mas de teto bem alto. A seu lado, uma pequena cama simples, com um lençol sujo. A luz vem de uma vigia gradeada, na parte de cima da parede. As paredes da cela têm manchas de umidade, e algumas palavras e desenhos pouco identificáveis riscados a carvão. De repente, ouve-se um ruído brusco, uma porta de ferro sendo aberta, a uma certa distância. Ramiro levanta o olhar. Ouve a voz frágil e assustada de um preso. PRESO (FQ) O que é isso? Pra onde vocês estão me levando? Ramiro ergue-se, ficando de pé na cela. PRESO (FQ) Eu já disse que eu não sei onde eles estão. Por que vocês não me deixam dormir? Ramiro corre até a porta da cela, que possui uma pequena abertura retangular quase junto ao chão. Ramiro agacha-se e olha pela abertura, tentando espiar para fora. No corredor escuro, um PRESO vem vindo arrastado pelos ombros por DOIS GUARDAS. Ao passar pela cela de Ramiro, o preso procura auxílio com os olhos, e sua voz vai ficando mais desesperada. PRESO Por favor, alguém me ajude. Alguém pode me dizer que dia é hoje? Ramiro, com ar de pavor, enfia o rosto na vigia gradeada, tentando acompanhar a trajetória do preso corredor afora. PRESO Eu preciso voltar pro meu trabalho, pra minha casa. Eu já disse que eu não sei onde eles estão. Por que vocês não param com isso? A silhueta dos três chega ao fim do corredor, onde se abre uma porta para algum lugar mais iluminado. PRESO (gritando) Não! Eu não quero voltar lá! Vocês não podem fazer isso comigo. Assassinos! Assassinos! Assassinos! O preso é arrastado pelos policiais através da porta, que se fecha atrás deles, com um estrondo. Ramiro ainda fica com o rosto colado à abertura, tentando ver alguma coisa. Mas a porta permanece fechada. Os gritos que continuam vindo de lá não são mais identificáveis. Ramiro afasta-se da porta e fica parado, encostado à parede, sem saber o que fazer. Ouve um berro apavorante. Depois, um rádio tocando música bem alta. Ramiro olha em volta. A música parece entrar pelas paredes da cela. Ramiro coloca as duas mãos nos ouvidos, mas a música continua. Sempre com as mãos apertando os ouvidos, Ramiro escorrega as costas pela parede até cair no chão, enquanto seu rosto se contrai de dor. Ramiro aperta os olhos e começa a chorar, enquanto fala baixinho, como que para si mesmo. RAMIRO Eu não sou um assassino. Eu não sou um assassino... FADE OUT CENA 105 - INT/NOITE - DELEGACIA / CELA FADE IN Ramiro está deitado na cama da cela, encolhido. Sua cabeça está entre as mãos, os olhos fechados. A música agora é outra, mas continua soando através das paredes. De repente, Ramiro abre os olhos, assustado. Ouve passos no corredor. Ramiro senta-se na cama, as costas apoiadas na parede da cela. Esfrega os olhos com as mãos, com força. Os passos aproximam-se. Ruído na tranca da porta. Ramiro põe-se de pé. A porta se abre. Aparece um GUARDA, armado, que dá passagem ao Policial 1. POLICIAL 1 Me acompanhe, por favor. RAMIRO Para onde? MONTEIRO O senhor já vai descobrir. Ramiro caminha para a porta, lentamente. Passa pelo policial e pelo guarda, sai da cela. CENA 106 - INT/NOITE - DELEGACIA / CORREDOR Ramiro chega ao corredor, escoltado pelo guarda e pelo policial 1. Monteiro está esperando por ele, à frente de uma porta. MONTEIRO Boa noite. RAMIRO Por enquanto a noite está muito agradável. Ouvi gritos na cela ao lado. E depois uma música alta. A sua delegacia não parece muito discreta, inspetor. MONTEIRO (balançando a cabeça) Acho que eles vão continuar a noite toda. Eu quero deixar claro que eu sou contra este tipo de procedimento. Eu sou um policial, não me envolvo com política. RAMIRO Que política? MONTEIRO Eu não julgo ninguém. Meu trabalho é descobrir criminosos e prendê-los. Só isso. Mas, o senhor entende, eu também tenho que prestar conta dos meus atos. RAMIRO Para quem? MONTEIRO O senhor já vai descobrir. Aproximam-se da porta. Monteiro bate. GAMBOA (FQ) Entre. Monteiro abre a porta. CENA 107 - INT/NOITE - DELEGACIA / SALA DE GAMBOA Monteiro e Ramiro entram na sala, que é muito bem arrumada, contrastando com a sujeira e desorganização do resto da delegacia. Uma prateleira com livros, um tapete. Poltronas de couro, quadros na parede. Uma grande mesa de reuniões ao centro, com cadeiras de espaldar alto. De pé, de costas para Ramiro e Monteiro, examinando um livro na estante, está o capitão GAMBOA, 35 anos, magro, terno e gravata impecáveis. MONTEIRO Capitão... Esse é o doutor Ramiro. Gamboa indica a mesa de reuniões e continua examinando o livro. GAMBOA Ele pode sentar, já cuido disso. E o senhor pode sair, inspetor. MONTEIRO Capitão, se o senhor quiser a minha participação no interrogatório... GAMBOA Sim? MONTEIRO Eu estou acompanhando o caso desde o início e... Qualquer dúvida... GAMBOA Tenho certeza que o doutor Ramiro é uma pessoa razoável. O senhor está dispensado. Monteiro sacode a cabeça e sai, dando uma olhada para Ramiro, que permanece de pé ao lado da mesa de reuniões. GAMBOA O senhor pode sentar. Ramiro puxa uma cadeira e senta, cauteloso. Gamboa volta a examinar o livro que tem nas mãos. Lê em voz alta. GAMBOA "A morte é o fato primeiro e mais antigo, e quase me atreveria a dizer: o único fato. Tem uma idade monstruosa e é sempiternamente nova." Ramiro acompanha a leitura de Gamboa, sem entender. Gamboa recoloca o livro na estante, vem até a mesa e senta-se, de frente para Ramiro. GOMULKA Não esperava encontrar Canetti numa biblioteca de delegacia do interior. Ramiro não diz nada. GAMBOA Sabe quem eu sou? RAMIRO Não tenho o prazer. GAMBOA Capitão Alcides Carlos Gamboa. Ramiro escuta o nome mas não parece muito impressionado. GAMBOA Vamos colocar as coisas claramente. Você se saiu muito bem com o caminhoneiro, mas nós sabemos que você matou o doutor Tennembaun. Ramiro vai responder, mas desiste. GAMBOA Ainda não temos como provar, mas isso é o de menos. Quando nós queremos provar algo, provamos e pronto. Não vá pensar que estamos na França, doutor. Estamos num país em guerra, uma guerra interna, mas sempre uma guerra, correto? RAMIRO Eu não matei ninguém. Gamboa tira do bolso um estojo de couro e coloca-o sobre a mesa. Abre-o, tira papel e fumo, e começa a enrolar um cigarro. GAMBOA Meu querido doutor Bernardes, eu disse que eu SEI que você matou Tennembaun. Não estou fazendo suposições. Verdade que ainda não sei por quê, mas, sinceramente, nem faço questão de descobrir. Você sabe que, se eu quisesse fazê-lo confessar... não ia ser difícil, correto? Ramiro tenta disfarçar o nervosismo. Arrisca. RAMIRO Vai me torturar, capitão? Pensei que esses métodos eram só para os subversivos. GAMBOA (indiferente) Isso não é um assunto que eu queira discutir com você. Não agora. O que quero dizer é que... é uma pena que logo você esteja envolvido neste crime. RAMIRO Por que "logo eu"? GAMBOA Porque se esperava muito de você. Neste país estão faltando homens preparados e sem contaminação ideológica. RAMIRO Que quer dizer com isso? GAMBOA Você não está sendo admitido na universidade apenas por seus estudos, ou por seus títulos. Atualmente, isso não é possível sem a aprovação das Forças Armadas. Gamboa oferece o cigarro que acabou de enrolar para Ramiro, que o recusa com um gesto. GAMBOA Seus antecedentes são impecáveis. Este... digamos, este incidente estraga tudo. Por isso eu tenho uma porposta: se confessar, eu posso ajudá-lo. RAMIRO (escolhendo as palavras) Eu não entendo. Se eu fosse o assassino e confessasse, o que eu ganharia? Gamboa acende o cigarro e dá uma primeira tragada. GAMBOA Se confessar, podemos ajeitar as coisas. Atenuá-las. Um crimezinho desses, você sabe, acontece toda hora. Podemos encerrar o processo por falta de provas. Na verdade, o senhor está apenas sob prisão preventiva. Podemos até mesmo desistir de processá-lo pela morte do doutor Tennembaun. RAMIRO Eu não matei ninguém. Gamboa levanta-se, fuma, fica de costas para Ramiro. Caminha até a janela. GAMBOA Não me decepcione, Bernardes! Tudo o que tem que fazer é confessar. Eu garanto que você sai inteiro dessa. Pode retomar sua vida, assumir seu posto na Universidade... Basta querer colaborar conosco. Está claro? RAMIRO Claríssimo, capitão. Eu assino uma confissão, mas ela é escondida em alguma gaveta. O senhor encerra o processo e eu passo a ser chantageado o resto da vida, trabalhando como dedo-duro na Universidade. Se eu me recusar a delatar os colegas, o senhor "encontra" a confissão e eu volto pra cadeia. É isso? Gamboa, ainda à janela, coloca o cigarro na boca e dá uma longa tragada antes de responder. GAMBOA Veja, Bernardes. Nosso verdadeiro inimigo é muito maior. Pequenas violências como a morte desse doutor Tennembaun podem ser esquecidas. Você não acha? RAMIRO (ajeitando-se no sofá) Não. (mudando de tom) De qualquer forma, eu não matei o doutor Bráulio. E também não sei se eu iria colaborar com vocês. GAMBOA Isso nós veremos. Porque neste país, agora, não há neutros. Ramiro não responde. Gamboa volta-se para Ramiro, encarando-o. GAMBOA Então? Que me diz? RAMIRO Não sei o que espera que eu diga, capitão... GAMBOA Não vai confessar? RAMIRO Não tenho nada para confessar. Gamboa balança a cabeça, decepcionado. Volta à janela e continua fumando. GAMBOA É uma pena. Acho que você vai se arrepender. CENA 108 - INT/NOITE - DELEGACIA / CELA A música volta a soar através das paredes da cela. Em um canto da parede, inscrições feitas com pedra, carvão, canivete: nomes de pessoas, desenhos simples e quase pornográficos, palavras desconexas. Ramiro está deitado de costas na cama, olhando a parede, suando. Coloca as mãos nos ouvidos, rola na cama. A música pára. Silêncio. Em seguida, um quadrilátero de luz é projetado no chão da cela, através da abertura na porta. Ruídos no corredor. Ramiro ergue-se na cama, olha na direção da porta. Sombras no chão, ruídos de passos: guardas arrastando o preso, movimento em sentido contrário ao da cena 104, mas agora sem gritos, sem gemidos. A luz do corredor volta a apagar-se. Ramiro volta a virar-se na cama, encolhendo-se e voltando o rosto em direção à parede. Silêncio. Ramiro sozinho na cela, a cama ao lado do chão de cimento. FADE OUT CENA 109 - INT/DIA - DELEGACIA / CELA FADE IN Ramiro, deitado de costas sobre a cama na cela, de repente abre os olhos, assustado. Ouve um ruído de passos no corredor. RAMIRO Elisa... Ruído no trinco da porta. Ramiro senta-se sobre a cama, passa a mão nos cabelos, tenta recompor-se. A porta se abre. O policial 1 aparece no vão da porta. POLICIAL 1 Visita pra você. Ramiro ergue-se. FIM DO PRIMEIRO BLOCO SEGUNDO BLOCO CENA 110 - INT/NOITE - DELEGACIA / SALA DE VISITAS Uma sala pequena com uma única janela basculante. Com grades. A janela dá para um corredor interno onde eventualmente passam policiais. Dora, sentada numa das duas cadeiras da sala, em frente a uma mesa pequena, usa um vestido escuro e está sem maquilagem. Carrega um pacote de papel. Ramiro entra e senta na outra cadeira. Dora tenta sorrir, sem muito sucesso. Ramiro nem tenta. DORA Como você está? RAMIRO Mal. DORA Está precisando de alguma coisa? RAMIRO Sair daqui. Ela tira uma fruta do saco de papel e mostra a ele. Guarda a fruta e tira do saco um leque. Abre e abana-se. O leque tem um desenho de motivos parisienses. Dora cobre a boca com o leque e pisca rapidamente os olhos, tentando fazer uma graça. Ele sorri. Ela põe o leque no saco. Entrega-lhe o saco. RAMIRO Obrigado. DORA Precisa de mais alguma coisa que eu possa trazer? RAMIRO Não, obrigado. Queria um fio dental, mas eles não deixam entrar. Têm medo que eu me enforque, ou enforque alguém. Já imaginou? Enforcar alguém com um fio dental, com flúor. Dora sorri. Ficam alguns segundos em silêncio. DORA O que foi que você fez, Ramiro? Ramiro fica olhando para Dora. Suspira fundo. RAMIRO Você também acha que eu sou um assassino? DORA Não sei. Você está diferente. RAMIRO Eu já lhe disse, muita coisa aconteceu. Dora fica observando Ramiro, em silêncio. DORA Você me contou uma vez que, quando seu pai morreu, vocês foram passar uns tempos com uma tia, numa fazenda. RAMIRO É. Era a colheita do algodão. Isso distraía a minha mãe um pouco. Ela estava muito mal. Por quê? DORA Você contou que, num fim de semana, você precisou voltar à cidade, acho que para um exame médico. RAMIRO Por que você lembrou disso agora? DORA Você passou em casa e viu que uma família de gatos estava morando na cozinha. RAMIRO Você lembra disso? DORA Lembro. RAMIRO Dois gatos fugiram pela janela da cozinha quando eu entrei, levei um susto. DORA Aí você viu uns gatinhos, filhotes recém nascidos, morando embaixo do fogão. Ramiro fica observando Dora. RAMIRO Entendi por que você lembrou disso agora. DORA Você fechou a janela e a porta da cozinha. RAMIRO (justificando-se) Eles tinham sujado a casa toda. DORA Você deixou os gatinhos trancados na cozinha e foi embora. RAMIRO O meu pai tinha morrido, eu não estava bem. DORA E vocês só voltaram um mês depois. RAMIRO Eu estava com muita raiva. DORA Você contou essa história para mais alguém? Pausa. RAMIRO Não. Nunca. Só para você. DORA Como eles estavam? RAMIRO Quem? DORA Os gatinhos. Como eles estavam quando vocês voltaram para a casa? RAMIRO Mortos, claro. Um mês... DORA Mortos como? RAMIRO Mortos. Mortos, que diferença faz? DORA Eles morreram onde? No chão? Quantos eram? RAMIRO Eram quatro, eu acho. Morreram no chão. DORA Estavam perto da janela? A janela que você fechou? RAMIRO Estavam. DORA Quem encontrou? Quem abriu a cozinha? RAMIRO Minha mãe. DORA Tinha cheiro? Ou já estavam secos? RAMIRO Dora... DORA Tinha ou não? RAMIRO Tinha. Um cheiro insuportável. Mas já estavam secos. Pareciam uns... pedaços de couro, colados nas lajotas do chão. Tive que raspar com uma espátula, para tirar. DORA E sua mãe? Ela não se perguntou como aqueles gatos foram parar ali? RAMIRO Perguntou. DORA Perguntou para você? RAMIRO Perguntou. DORA E o que foi que você disse? RAMIRO Disse que eu não fazia idéia. Que talvez eu tivesse fechado a janela, quando fui buscar as roupas. DORA "Talvez"? Dora fica em silêncio alguns segundos. O Policial 1 surge no corredor, bate no vidro. Dora, com um gesto, pede ao policial 1 que lhe dê mais algum tempo. Ele mostra o relógio. Ela se levanta. DORA Você me disse, ontem, que sua vida estava uma confusão. Que tipo de confusão? RAMIRO O pior tipo. DORA Quer me contar? RAMIRO Não. Não posso. Ela pára junto a porta. DORA Eu vou voltar para Paris hoje à noite. RAMIRO Eu sei. DORA Você não quer me dizer nada mesmo? RAMIRO Não posso. DORA Então... é isso? Ramiro sacode levemente a cabeça. DORA Você fez alguma coisa... Pausa. Ramiro pensa um pouco. RAMIRO Talvez. DORA Talvez? RAMIRO É. Talvez. Dora observa Ramiro alguns segundo antes de abrir a porta e sair. CENA 111 - INT/NOITE - DELEGACIA / CELA A música soando através das paredes da cela. Através da janela, por sobre o telhado do velho prédio da delegacia, um jato cruza o céu estrelado, deixando um rastro iluminado pela grande lua cheia. Ramiro está deitado na cama, sem camisa, suando muito, olhando para cima. FUSÃO PARA: CENA 112 - INT/DIA - DELEGACIA / CELA Ramiro está deitado em sua cela, dormindo, posição um pouco diferente da cena anterior. A luz da cela é acesa e a porta se abre. Ramiro desperta. Senta na cama. Policial 1 entra. POLICIAL 1 Levante-se. O inspetor Monteiro quer falar com o senhor. Ramiro pega os seus sapatos e a camisa. Pega o leque parisiense de Dora sobre a cama. CENA 113 - INT/DIA - DELEGACIA / SALA DE MONTEIRO A porta se abre e Ramiro entra, já de camisa, com o Policial 1 atrás. Em sua escrivaninha, Monteiro pega uns papéis, confere. Indica a cadeira à sua frente. MONTEIRO Sente-se. Ramiro obedece. Monteiro pega um saquinho, confere rapidamente, entrega-o a Ramiro. MONTEIRO Veja se não falta alguma coisa. RAMIRO O que é isso? MONTEIRO Suas coisas. Você vai sair, mas antes quero que saiba umas coisinhas. RAMIRO Encontraram o assassino? Monteiro dá uma olhada para Ramiro. MONTEIRO O assassino é você. Não tenho nenhuma dúvida e inclusive já sei por que fez aquilo. Na verdade até o invejo. De certo modo, claro. Monteiro ri. RAMIRO De que está rindo? MONTEIRO Você é um fenômeno, doutor. RAMIRO Por quê? MONTEIRO Você disse que sua mãe podia testemunhar que sua volta para casa foi antes das quatro, não é? RAMIRO Disse. MONTEIRO Pois a senhorita Elisa disse que você passou a noite do crime com ela. E na cama dela. Ramiro olha para Monteiro mas não diz nada. MONTEIRO Por isso eu disse que o invejava. Você é um fenômeno... mas, para mim, continua numa situação de merda. Os policiais do carro- patrulha confirmaram que lhe viram com o doutor Bráulio, às três e pouco. Mas ela disse que você voltou para o quarto dela e que, juntos, vocês viram o doutor Bráulio ir embora com o Ford, completamente bêbado. Pausa. MONTEIRO É claro que eu não acreditei numa só palavra, mas é uma declaração assinada. Por enquanto, você está salvo. RAMIRO Por enquanto? Monteiro levanta-se. MONTEIRO Tenho um palpite que vamos voltar a nos ver. Vamos embora. Ramiro ergue-se. CENA 114 - INT/DIA - DELEGACIA / RECEPÇÃO Maria e Carmem estão sentadas num comprido banco de madeira, recostadas na parede, em silêncio, chorosas, vestidas de preto. Ao lado delas, Gomulka. De pé junto a uma janela, Elisa controla a porta da guarda com um olhar langoroso, braços caídos, mãos cruzadas sobre o púbis. Ramiro chega, com Monteiro ao seu lado. Ao vê-lo, Elisa corre para ele e se pendura no seu pescoço, beijando-o. ELISA Meu amor... Carmen começa a chorar, assoando-se com um lencinho, e Gomulka ergue-se como impulsionado por uma mola. ELISA Eu disse toda a verdade, meu amor, que ficaste a noite inteira comigo e que estamos apaixonados. Maria aproxima-se, balançando a cabeça. MARIA Ramiro, que fizeste... Gomulka olha para Ramiro com ar de desaprovação. Ramiro fica sem saber o que dizer, com Elisa, muito feliz, pendurada no seu pescoço. FIM DO SEGUNDO BLOCO TERCEIRO BLOCO CENA 115 - INT/DIA - BAR LA ESTRELLA Ramiro e Gomulka numa mesa do La Estrella. Tomam cerveja. Ramiro encosta o copo de cerveja no pescoço, nas têmporas, tentando atenuar o forte calor. Gomulka lê o código penal. GOMULKA (lendo) Sedução, artigo duzentos e dezessete: Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança. Pena: reclusão, de dois a quatro anos. RAMIRO Foi ela quem me seduziu, ela já declarou isso à polícia. GOMULKA Ninguém acreditou. Gomulka fecha o código penal, toma um gole de cerveja. GOMULKA Insanidade temporária. Estava quente demais, você bebeu e comeu demais. Ela era gostosa demais... Você enlouqueceu. Tudo isso é atenuante. RAMIRO Atenuante de quê? Eu não cometi crime algum. Gomulka sorri, observa Ramiro. GOMULKA Você acha que eu sou idiota, Ramiro? RAMIRO Você também não acreditou na minha história? GOMULKA Qual delas? Primeiro você me disse que o velho pediu o carro emprestado e você não teve como dizer não. Depois você me disse que o velho acusou você de seduzir a filhinha dele, você lhe deu uns tabefes, desceu do carro e ele pegou a direção e se mandou. Agora você me diz que estava na cama com a filhinha dele, ele pegou a chave e se mandou. Em qual destas histórias eu devo acreditar? Mais uma? RAMIRO Pode ser. Gomulka faz sinal para o garçon, ergue a garrafa de cerveja. GOMULKA Você não quer me contar mesmo? RAMIRO Contar o quê? GOMULKA O que realmente aconteceu. RAMIRO Por quê? Ao fundo, às costas de Ramiro e Gomulka, Braulito entra no bar. Ele vê Ramiro e se aproxima, decidido. GOMULKA Sei lá. Porque eu sou seu amigo. Aliás, seu único amigo. Porque eu sou seu advogado. Porque você destruiu meu carro. Porque... ia ser um alívio para você contar a verdade para alguém. Braulito dá um soco na cabeça de Ramiro, por trás. Gomulka ergue- se, tentando segurá-lo. Braulito continua batendo, chutando, socando, com raiva. Ramiro apenas se defende. GOMULKA O que é isso? Calma, Braulito. Pára, porra! BRAULITO Desgraçado, filho da puta! Copos e garrafas caem pelo chão. O GARÇOM chega para separar os dois. GOMULKA Calma, Braulito! Gomulka e o garçom conseguem seguram Braulito. Ele continua tentando chutar Ramiro. GOMULKA Te acalma, Braulito! BRAULITO Eu sei que foi você. Você matou meu pai! Assassino, desgraçado. Eu vou te pegar! Seu doutorzinho de merda! GOMULKA Calma, Braulito! Isso não resolve nada! BRAULITO Você acha que engana alguém? Você acha que me engana? Braulito se acalma um pouco. BRAULITO Acha que engana a Elisa? Um estranho sorriso ilumina o rosto de Braulito. BRAULITO Você não conhece a Elisa. O garçom arrasta Braulito para longe de Ramiro. RAMIRO Braulito, eu... GOMULKA Deixa, Ramiro... BRAULITO Você não sabe de nada. O garçom arrasta Braulito para fora do bar. BRAULITO Eu tenho pena de você! Gomulka junta do chão o código penal, pingando cerveja. GOMULKA Melhor sair daqui. Gomulka faz um gesto ao garçom. GOMULKA Podia ver a nossa continha, por favor? CENA 116 - EXT/DIA - RUA CALÇADA Ramiro e Gomulka caminham pela calçada. RAMIRO Foi como você disse. GOMULKA Como é? RAMIRO O que aconteceu. Foi como você disse. GOMULKA O que foi que eu disse? RAMIRO Estava quente demais. Eu bebi e comi demais. GOMULKA Ela é gostosa demais... RAMIRO É. Eu enlouqueci. Mas nada disso é atenuante. Pelo menos, não para mim. GOMULKA Ela te convidou para dormir lá? RAMIRO O pai dela. A mãe também. Eu não aceitei. GOMULKA Mas ficou. RAMIRO O carro afogou. GOMULKA O carro afogou? Não é possível, o carburador daquele carro... RAMIRO Eu afoguei. De propósito. GOMULKA Ah... RAMIRO Não sei o que me deu. Ela estava na janela, me olhando. Eu tinha bebido demais, estava quente demais. GOMULKA Você enlouqueceu. RAMIRO É. Acho que sim. GOMULKA E aí? RAMIRO Aí eu fiquei para dormir. Ela deixou a porta do quarto aberta. Estava quase nua. GOMULKA Ela é gostosa demais. Isso é atenuante. RAMIRO Eu achei que ela queria. E ela queria mesmo. GOMULKA Claro. Ela disse que sim, para a polícia. Disse e assinou. RAMIRO Pois é. Só que, na hora... GOMULKA O que é que tem? RAMIRO Na hora, ela disse que ia gritar. GOMULKA Como é? Na hora assim... na hora mesmo? RAMIRO Na hora mesmo. A gente na cama. E ela disse que ia gritar. Os pais dela ali do lado. Não sabia o que fazer. GOMULKA E o que você fez? RAMIRO Tentei impedir, sei lá. Tapei sua boca. Não sei. GOMULKA E aí? RAMIRO Aí, quando eu me dei conta, ela estava morta. Gomulka pára. GOMULKA Como é? RAMIRO Ela estava morta. Pelo menos eu pensei que estava. Acho que desmaiou, não sei. Parecia morta. Completamente morta. GOMULKA Puta que o pariu! RAMIRO Pois é. Imagina a minha situação. Estupro e assassinato. Que tal? GOMULKA O que você fez? Recomeçam a caminhar. RAMIRO Fiquei desesperado. Só pensei em fugir dali. Foi aí que encontrei o velho. GOMULKA Ele viu vocês? RAMIRO Não. Quer dizer, primeiro achei que sim. Depois eu vi que não, ele só estava bêbado. Depois achei que sim outra vez. Não sei. Acho que ele viu. GOMULKA Vocês saíram? RAMIRO Saímos. Ele queria beber mais. GOMULKA E aí? RAMIRO A Elisa. GOMULKA Onde? Ela saiu com vocês? RAMIRO Não. Ali. Elisa está sentada no muro da casa de Ramiro. Ela se ergue e se aproxima pela calçada. Tem um leve ferimento no rosto. ELISA Oi. RAMIRO O que foi isso? ELISA Braulito. Ele encontrou você? RAMIRO (tocando a boca ferida) Encontrou. ELISA Ele está louco. Posso dormir na sua casa? RAMIRO Não acho uma boa idéia. GOMULKA Eu também não. ELISA Eu não tenho onde ficar. RAMIRO É melhor você ir para casa. ELISA Você me leva? RAMIRO Não tenho carro. Ela olha para Gomulka. GOMULKA Minha irmã vai precisar do carro, é dela. Ficam os três parados, em silêncio. Gomulka olha para o carro, estacionado na frente da casa de Ramiro. GOMULKA Tudo bem... (pega a chave) Ramiro, pelo amor de Deus... RAMIRO Não se preocupe. GOMULKA Não diga isso! Na última vez que eu te mandei cuidar de um carro e você disse "não se preocupe" ele acabou no fundo de um rio! (olha para Elisa) Desculpa. Gomulka entrega a chave a Ramiro. GOMULKA Ela vai precisar do carro às nove. Olha lá, hein? Elisa e Ramiro entram no carro. RAMIRO Gomulka... GOMULKA O quê? RAMIRO Obrigado. Gomulka faz um gesto de "tudo bem". Ramiro liga o carro e se afasta. Gomulka fica na calçada, preocupado. FIM DO TERCEIRO BLOCO QUARTO BLOCO CENA 117 - EXT/CREPÚSCULO - FIAT / ESTRADA ASFALTADA O Fiat da irmã de Gomulka cruza a estrada. Dentro do carro, Ramiro dirige, com Elisa ao seu lado. ELISA Eu não quero ir para casa. Elisa tenta levar a mão ao rosto de Ramiro. ELISA Ele te machucou. Ramiro afasta a mão de Elisa com um tapa. RAMIRO Será que você não percebe que a cidade inteira está falando de nós, que é melhor a gente ficar bem longe um do outro? Eu vou te levar para casa. ELISA (infantil) Não. Por favor. A mãe não pára de chorar. Todo mundo me olha como se eu fosse uma criminosa. RAMIRO Você mentiu pra polícia. Você é uma criminosa. ELISA (sorrindo) Eu? Tem certeza? Ramiro olha para Elisa. Ela está linda. A saia, levantada acima dos joelhos, deixa as pernas à mostra. Ramiro fraqueja, e Elisa percebe. Ela movimenta-se no banco, aproximando-se dele. Ramiro reage empurrando-a com o cotovelo. RAMIRO Fica aí, Elisa. ELISA Tudo bem. Elisa volta a encostar-se na janela, mas puxa ainda mais a saia para cima. Ramiro lança um olhar rápido, mas depois fixa olhar em frente RAMIRO Elisa, nós precisamos esclarecer algumas coisas. ELISA Sobre o quê? RAMIRO Sobre tudo que aconteceu. Aconteceram muitas coisas. ELISA Eu não tenho nada para falar. Não quero falar. RAMIRO Por quê? ELISA Não quero porque não quero. Elisa liga o rádio do carro, sintonizando uma estação que toca um bolerão dramático. Ramiro franze o cenho. Dirige em silêncio, atravessando o centro da cidade. Ela se balança no banco, ao compasso da música. RAMIRO Afinal, onde te levo? ELISA Para onde você quiser. Vamos sair da cidade? Lá fora às vezes é mais fresquinho Elisa continua balançando-se, com as coxas à mostra. Ramiro faz o carro contornar o trevo de acesso à estrada. CENA 118 - EXT/NOITE - FIAT / ESTRADA ASFALTADA Arredores da cidade. O carro passa por um mal iluminado restaurante de caminhoneiros. Depois, a estrada vazia. A noite está clara, a lua cheia domina o céu. Ramiro dirige em silêncio. A música acaba e começa um programa de notícias. Ramiro apaga o rádio. Elisa volta a aproximar-se. Cola sua coxa na perna de Ramiro. Desta vez, Ramiro não a empurra de volta. ELISA (sensual) Pára o carro. RAMIRO Não, hoje não. Sossega, tá? Ramiro aperta o acelerador. O carro, mais veloz, faz uma curva com alguma dificuldade. Ramiro está suando. ELISA (manhosa, meio rouca) Eu quero. Eu quero agora. Elisa coloca a mão esquerda sobre a perna de Ramiro. RAMIRO (sem a menor força) Tira a mão. Elisa sorri e aperta a perna de Ramiro. RAMIRO Não, Elisa. Ramiro respira fundo e retira a mão dela. RAMIRO Hoje eu não conseguiria, mesmo que quisesse. Ficam algum tempo em silêncio. Ramiro dá uma espiada e vê que Elisa faz beicinho, como se fosse chorar, os olhos tristes e brilhantes. RAMIRO Não fica assim. Elisa funga e olha para Ramiro. ELISA Você não gosta mais de mim? Ramiro não responde. Fica alternando o olhar entre a estrada à sua frente e Elisa. De repente, ela se aproxima e coloca outra vez a mão sobre a coxa de Ramiro. Ramiro abre um pouco a boca, como se procurasse ar. Respira fundo. Outra vez. O carro rasga a estrada, que, iluminada pela lua, parece um caminho de prata. Elisa, sempre com a mão na perna de Ramiro, lança-se sobre ele. Começa a beijar-lhe o pescoço. Geme no seu ouvido. Ramiro fecha os olhos por um instante. O carro ziguezagueia. Ramiro recobra o auto-controle e aperta o freio, ao mesmo tempo que vira a direção para a direita. O carro pára no acostamento, perto de uma cerca. Ramiro empurra Elisa, ainda pendurada em seu pescoço. Ela resiste um pouco, mas depois se afasta. Então, outra vez sorridente, Elisa desliga os faróis e gira a chave na ignição, desligando o carro. ELISA (rouca) Me faz, meu amor, me faz. E mergulha sobre o ventre de Ramiro. Ele não resiste mais. Olha para a frente e vê a lua. Depois, olha para baixo e vê as pernas de Elisa, as coxas, o desenho da calcinha, que aparece na fenda da saia entreaberta. De repente, Ramiro geme alto, como se sentisse muita dor. Puxa a cabeça de Elisa com violência. RAMIRO O que você está fazendo? Quer me matar? ELISA Quero. Ramiro a agarra pelos cabelos e começa a beijá-la. Os dois parecem furiosos um com o outro. Mordem-se. Gemem. Ramiro, com um movimento brusco, a puxa para o seu colo. Levanta a saia e baixa a calcinha. Ramiro a penetra. Ela grita alto e depois começa a chorar de prazer. ELISA Meu amor. Meu amor... Esfregam-se. Estreitam-se cada vez mais. Parecem dois animais. O carro balança. Atingem o orgasmo juntos. O Fiat deixa de sacudir. Iluminado pela lua, parece um bicho que recebeu um golpe mortal. Passa um carreta carregada de toras de madeira, fazendo muito barulho. Ramiro abre os olhos. Elisa continua montada nele, de olhos fechados. Seus lábios ainda estão grudados no pescoço dele. Os dois corpos estão muito suados. Ramiro olha a noite além do pára-brisa. Ramiro tenta afastar Elisa para pegar o maço de cigarros, preso no cinzeiro do carro, mas ela se agarra nele. ELISA Não, não. Começou a lamber seu pescoço e mover os quadris lentamente, sensualmente. Ele ainda está dentro dela. Ramiro a segura com força, impedindo-a de mexer-se. RAMIRO (em voz baixa) Elisa, você pensa que matei seu pai, não é? ELISA E daí? Eu não quero falar. (infantil) Quero de novo... Só mais um pouquinho... E se move compassadamente, primeiro bem devagar, depois mais rápido. Ramiro vai se entregando, mas ainda tenta resistir. Agarra os pulsos de Elisa. RAMIRO Isso não pode continuar. Ela dá um salto, furiosa, erguendo o torso, mas sem afastar as virilhas. Bate com os punhos no peito dele e começa a cavalgá-lo com violência. ELISA Eu quero mais. Mais! Ramiro a empurra com toda força, lançando-a para o outro banco, contra a porta. Elisa se agarra no banco com uma das mãos, no retrovisor com a outra, e torna a erguer-se. Por um momento, ele pode ver os olhos dela desorbitando e um pequeno fio de sangue que lhe escorre da boca. Elisa respira fundo. Outra vez, parece uma criança. ELISA Você me bateu... RAMIRO Eu não queria. ELISA Mas você bateu. Bateu sim. Uma lágrima escorre pelo rosto de Elisa. Em silêncio, lentamente, ela volta a sentar no colo de Ramiro. Olha no fundo dos olhos dele. Num gesto rápido, abaixa uma das mãos e "encaixa-se" outra vez. Ramiro geme. Elisa sorri, diabólica. Arrebenta os botões da camisa de Ramiro e morde-lhe um mamilo. Ramiro grita de dor e dá um murro brutal na nuca de Elisa. Elisa solta-se. Ramiro pega o pescoço de Elisa e começa a apertar. Aperta com toda a sua força. O rosto de Ramiro mostra raiva e loucura. O de Elisa, surpresa e dor. Ramiro continua apertando. Elisa tenta resistir, mas não consegue soltar-se. Fecha os olhos. Ramiro, com o rosto muito suado, músculos todos tensionados, começa a chorar. Olha para trás de Elisa e vê a lua. Elisa abre os olhos. Desesperada, num impulso final de sobrevivência, fecha as mãos nos pulsos dele, arranhando-o, cravando-lhe as unhas até sangrar. Mas Ramiro não a larga. Continua a apertar. Ramiro vê que o rosto dela vai ficando roxo. Elisa começa a ter convulsões. Emite ruídos guturais, que pouco a pouco tornam-se mais profundos, até que, de repente, se acabam. Ramiro agora chora convulsivamente, arquejante, mas não deixa de apertar. O corpo de Elisa amolece completamente. Seu pescoço cai para o lado, num ângulo agudo demais. Está morta. Ramiro passa a mão no rosto e limpa a mistura de suor e lágrimas. Afasta um pouco o rosto de Elisa para olhá-la mais uma vez. O corpo de Elisa despenca sobre a direção do carro, à frente de Ramiro. CENA 119 - EXT/NOITE - FIAT / ACOSTAMENTO DA ESTRADA / CAMPO Ramiro desce do carro. Dá a volta e abre a porta direita. Puxa para fora o corpo de Elisa. Pelos pulsos, Ramiro arrasta o corpo para fora do acostamento, na direção do alambrado. Tem alguma dificuldade para passar o corpo pela cerca, mas consegue. Do outro lado, carrega o corpo por mais um dez metros, no meio de um campo preparado para a semeadura. Larga o corpo no chão. Limpa o suor da testa. Ajoelhado, começa a cavar com as mãos. No início, é fácil, porque a terra está bem fofa e revolta. Mas depois o terreno revela-se mais duro e compacto. Ramiro levanta. Caminha na direção do carro. CENA 120 - EXT/NOITE - ACOSTAMENTO DA ESTRADA Ramiro abre o porta-malas e tira a chave de rodas, que tem uma das extremidades em forma de cunha. CENA 121 - EXT/NOITE - CAMPO Ramiro usa a chave de rodas para perfurar e revolver a terra. Assim, consegue fazer uma cova rasa. Extenuado, arrasta o corpo de Elisa até a cova. Cobre o corpo com terra. Tenta disfarçar um pouco a cova, refazendo com os pés e as mãos os monturos alinhados de terra deixados pela passagem do trator. Ramiro observa seu trabalho e parece satisfeito. Pega a chave de rodas e dá um passo na direção do acostamento. Imediatamente olha para o chão e vê a pegada que acaba de imprimir na terra fofa. Ao lado dela, muitas outras, registros vívidos de suas várias passagens entre o local da cova e o acostamento. Respira fundo. Ramiro passa por cima do alambrado. Coloca a chave de rodas no chão. Inclina-se sobre o alambrado e espalha a terra, disfarçando as últimas pegadas. Olha para o campo, na direção da cova. O serviço está quase perfeito. Ramiro respira fundo e volta para o carro. CENA 122 - EXT/NOITE - ACOSTAMENTO DA ESTRADA / CAMPO Ramiro põe a chave de rodas no porta-mala, entra no carro e arranca, afastando-se rapidamente. A cova, sob a luz do luar. Uma nuvem, a mais escura e pesada vista até agora, passa sobre a lua. FIM DO QUARTO BLOCO QUINTO BLOCO CENA 123 - EXT/AMANHECER - ADUANA / POSTO POLICIAL O Fiat (da irmã) de Gomulka está parado num posto de polícia, atrás de uma cancela fechada. Na parede do posto, há um cartaz com a inscrição: BIENVENIDO A PARAGUAY Um POLICIAL, perto da janela do motorista, examina atentamente alguns papéis. Ramiro está sentado ao volante, fumando. O policial olha para Ramiro. Ramiro sorri amarelo para o policial. O policial dá a volta no carro e olha para a placa. O policial vai até um OUTRO POLICIAL e mostra os documentos para ele. Conversam alguma coisa. O outro policial sacode a cabeça, negando. Os dois caminham até a traseira do carro e olham para a placa. Ramiro fica olhando para eles pelo espelho retrovisor. Ramiro está suando. O primeiro policial volta e encara Ramiro. Devolve os documentos. Faz um sinal na direção do posto. A cancela abre. Ramiro olha para a frente. Engata a primeira. O policial, de repente, faz um sinal com a mão, detendo-o. A cancela baixa. O outro policial chega, com um rádio no ouvido, onde uma voz castelhana fala alguma coisa ininteligível. Os dois policiais olham fixamente para Ramiro. A voz no rádio pára de repente. O primeiro policial sorri. O segundo policial faz sinal de positivo. A cancela abre. Ramiro acelera e o carro arranca. CENA 124 - EXT/DIA - ESTRADA ASFALTADA O carro (da irmã) de Gomulka, em alta velocidade, passa por uma placa que indica: ASSUNCIÓN - 190 km CENA 125 - INT/DIA - HOTEL EM ASSUNCIÓN / QUARTO A porta abre. Um BOY de hotel entra, carregando uma sacola grande de plástico de uma loja de roupas de Assunção. Coloca a sacola em cima de uma cadeira e faz aquelas coisas tradicionais na entrada de um novo hóspede: acende as luzes, mostra o banheiro, acende a TV, fecha a janela e liga o ar condicionado. Ramiro abre a carteira e dá uma cédula para o boy, que sai. Ramiro pega a sacola e senta na cama. Tira da sacola uma calça, uma cueca, uma camisa branca, uma camiseta e um par de meias. Levanta e tira as próprias roupas, ainda sujas de terra. CENA 126 - INT/DIA - HOTEL EM ASSUNCIÓN / BANHEIRO DO QUARTO Ramiro toma banho. Olha para as mãos. Suas unhas estão pretas. Esfrega os dedos, tentando limpá-las. CENA 127 - INT/DIA - HOTEL EM ASSUNCIÓN / QUARTO Ramiro, de cueca, veste a camiseta. Guarda as outras roupas no armário. Vai até a janela. O ar condicionado faz muito barulho. Ramiro olha para fora e vê a cidade, oito andares abaixo: achatada, subdesenvolvida, suja, mas com traços de sua antiga beleza colonial. Há um rio ao longe. Não ouvimos som algum da cidade, apenas do motor possante do ar condicionado. Ramiro vai até o frigobar e pega um refrigerante. Olha-se no espelho na frente da cama. Passa a mão no pescoço, que exibe a marca do chupão de Elisa. Levanta a camiseta e coloca a ponta dos dedos no mamilo. Faz uma careta de dor. Ramiro acende um cigarro e recosta-se na cama para fumá-lo. Bebe outro gole do refrigerante. Um tremor percorre seu corpo. Leva os braços de encontro ao peito. Está com frio. Sorri e balança levemente a cabeça, como se não acreditasse naquela sensação. Olha para a janela, onde o ar condicionado continua fazendo muito barulho. Ramiro levanta e fecha a cortina. O quarto fica na penumbra. Volta para a cama, apaga o cigarro e deita. Primeiro puxa o lençol. Depois, ainda com um sorriso nos lábios, puxa a colcha. Encolhe-se. Fecha os olhos. CENA 128 - INT/NOITE - HOTEL EM ASSUNCIÓN / QUARTO Ramiro abre os olhos. O quarto está mais escuro que antes. E, principalmente, muito mais silencioso: o ar condicionado está mudo. O rosto de Ramiro está todo suado. O lençol e a colcha estão no chão. A camiseta está molhada. Ramiro levanta e vai até a janela. Abre a cortina e olha para fora. É noite. As luzes da cidade parecem tímidas e desbotadas, perto do esplendor vigoroso e espetacular da lua cheia no horizonte. Ramiro respira fundo quando olha para a lua. Examina o botão do ar condicionado. Vira o botão para todos os lados, bate no aparelho, esmurra-o com força, mas é inútil: ele continua mudo. Ramiro, num gesto brusco, abre a janela. O som da rua chega forte: buzinas, carros, o apito de um guarda de trânsito. Ramiro volta para a cama. Senta. Enxuga o suor da testa. Um ruído agudo de sirenes. Ramiro vai até a janela e olha para baixo: dois carros de polícia estacionam na frente do hotel. QUATRO POLICIAIS desembarcam e entram no hotel. Ramiro acende a luz do quarto. Vai até o banheiro. CENA 129 - INT/NOITE - HOTEL EM ASSUNCIÓN / BANHEIRO DO QUARTO Ramiro lava o rosto. CENA 130 - INT/NOITE - HOTEL EM ASSUNCIÓN / QUARTO Ramiro pega as roupas limpas no armário. Parece calmo. Começa a vestir-se. Toca o telefone. Ramiro atende. Ouve. RAMIRO Tudo bem. Eu já vou descer. CENA 131 - INT/NOITE - HOTEL EM ASSUNCIÓN / PORTARIA Ramiro sai do elevador e olha para a recepção, que está movimentada, com alguns hóspedes novos chegando. Os quatro policiais estão ali, bem no meio da confusão. Caminha, resoluto, até eles. Pára na frente do que parece ser o chefe. RAMIRO Boa noite. POLICIAL PARAGUAIO Buenas noches. RAMIRO Sou Ramiro Bernardes. O policial olha para Ramiro, sem saber o que dizer. Ramiro fica um pouco confuso, mas logo retoma sua expressão de mártir. RAMIRO Vocês vieram me buscar? Na portaria disseram que... Os outros três policiais também olham para Ramiro. POLICIAL PARAGUAIO Hay algun engaño, señor. Estamos acá por una pelea. O outro policial sorri. POLICIAL PARAGUAIO El calor pone la gente loca. Algunos pueden incluso matar-se. Ramiro sorri amarelo e dá as costas para os policiais. Vai até um FUNCIONÁRIO DO HOTEL, que está atrás do balcão. RAMIRO Alguém me telefonou, dizendo que me procuravam. FUNCIONÁRIO Ah, señor Ramiro. Por supuesto. Alli... O funcionário aponta na direção da grande porta envidraçada do hotel. Uma MENINA muito bonita, parecida com Elisa, está pegando um cartão postal numa gôndola sobre o balcão do hotel. Ramiro, por um momento, fica perturbado. Uma SENHORA, 50 anos, chega junto da menina, fala com ela e as duas se afastam. Ao saírem, a menina e a senhora revelam, atrás delas, Elisa, que está junto ao balcão, e sorri para Ramiro, mais linda e mais diabólica do que nunca. Imagem congela. FADE-OUT FIM *********************************************************** (C) Jorge Furtado, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, 1998 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br