MEIA ENCARNADA DURA DE SANGUE episódio da série BRAVA GENTE baseado no conto de Lourenço Cazarré roteiro de Jorge Furtado e Guel Arraes versão 09/11/2000 produção: Casa de Cinema de Porto Alegre para TV Globo ********************************************************** CENA 1 - CIDADE - EXTERIOR - DIA Panorâmica da cidade, hoje. Fusão para Panorâmica (sentido inverso), da cidade em 1953. NARRAÇÃO Esta história aconteceu numa pequena cidade do Rio Grande do Sul, em 1953. O personagem principal chama-se... CENA 2 - VESTIÁRIO, INTERIOR - DIA BONIFÁCIO está na ducha, a água caindo sobre suas costas. NARRAÇÃO ... Bonifácio. Nem alto, nem baixo, magro como a peste e leve como a brisa e dançarino como as borboletas. Bonifácio jogava pelo Grêmio Recreativo Farrapos, o time dos pobres, dos negros e dos mulatos. Bonifácio era o maior driblador e fazedor de golos da época. CENA 3 - FOTOS Fotos de Bonifácio, do time do Farrapos e manchetes de jornais. NARRAÇÃO Jogava de olhos abertos, cabeça erguida. Jogava rindo. Não era um sorriso, era um arremedo de sorriso, uma máscara que nada tinha a ver com o que lhe ia pelas entranhas. Era frio. Implacável. Isso dentro do campo. Fora, era outra coisa. CENA 4 - VESTIÁRIO - INTERIOR - DIA No vestiário todos os companheiros, entre eles VICENTE, estão celebrando a vitória, felizes. Vicente abre a porta do chuveiro, vazio. VICENTE Bonifácio? CENA 5 - EXTERIOR DO TRABALHO DE ELISA - FIM DE TARDE Bonifácio rodeia a casa antes de entrar. ELISA está no pátio, nos fundos, lavando roupas. BONIFÁCIO Ouviu? ELISA Só o primeiro tempo. Tive que fazer janta, ela não gosta de rádio na cozinha. BONIFÁCIO Três a um. Fiz dois. ELISA Quem fez o outro? BONIFÁCIO Ferrinho. De cabeça. ELISA Passe teu? BONIFÁCIO Do Vicente. Mas eu que lancei o Vicente. Tu vai poder sair hoje? ELISA Não sei. Acho que não. Tenho que acordar muito cedo amanhã. Dia bom de sair é sábado. BONIFÁCIO Sábado tu sabe que eu não posso. ELISA Pois é. ELVIRA, a patroa, surge na porta. ELVIRA Elisa, tu tá cuidando esse peixe? ELISA Vi há pouco, ainda falta. ELVIRA Não deixa secar demais. ELISA Já vou entrar. Elvira entra. Bonifácio põe o uniforme sobre a cerca. BONIFÁCIO Lava para mim? ELISA Lavo. BONIFÁCIO Então eu já vou. ELISA Tá bom. Bonifácio sai. Elisa estende a roupa no varal e vê Bonifácio se afastando. Elisa pega a camiseta do time e joga numa bacia. CENA 6 - MATADOURO - INTERIOR - DIA Um lugar sujo e pequeno. Vicente e Bonifácio estão trabalhando, desossando a carcaça de um boi. VICENTE Por que tu não foi ontem? BONIFÁCIO Tava cansado. VICENTE Hoje tu vai? BONIFÁCIO Não sei. VICENTE Vou pedir pra não treinar amanhã. Viu o meu joelho? BONIFÁCIO Vi. VICENTE Até domingo tá bom. Mas é melhor não treinar. Trabalham em silêncio. VICENTE Tu acha que o Telmo joga? BONIFÁCIO Não sei. VICENTE Acho que joga. Eles tão dizendo que não joga, então é porque joga. Tão morrendo de medo, treinando em dois turnos. Bate um sino. Eles param de trabalhar, largam as facas. VICENTE Sabe o que eu queria? BONIFÁCIO O quê? VICENTE Quatro a zero. Quatro a zero é para calar a boca deles. Lembra daquele cinco a um? BONIFÁCIO Lembro. VICENTE Quatro a zero é melhor que cinco a um. Não sei por que, mas é. O CHEFE DO MATADOURO se aproxima. CHEFE Bonifácio. O Belenho está aí. VICENTE O Belenho? CHEFE Tá aí fora. Quer falar contigo. Bonifácio tira o avental e sai. CENA 7 - MATADOURO - EXTERIOR - DIA Um homem branco, BELENHO, espera perto do carro. Bonifácio se aproxima. BELENHO E aí? Pensou? BONIFÁCIO Pensei. BELENHO E aí? BONIFÁCIO Não sei ainda. BELENHO Tá esperando o quê? BONIFÁCIO Tô pensando. BELENHO Tem que decidir até amanhã. Amanhã de tarde. BONIFÁCIO Eu sei. BELENHO Eu não sei qual é a dúvida. Tu não ganha nada para jogar. Tu vai ganhar uma casa. E mais uma ajuda. Qual é a dúvida? BONIFÁCIO Tô pensando. BELENHO E depois tem o seguinte: eles querem um negro no time. Não fica essa coisa de time dos brancos, time dos negros. BONIFÁCIO Nosso time tem branco. Quer mais branco que o Ferrinho? BELENHO Mas o Serrano não tem negro nenhum. E agora eles querem ter. Isso não é bom? BONIFÁCIO Bom para quem? BELENHO Bom pra cidade. Bom pro futebol. BONIFÁCIO Só é ruim pra mim que vou ser o crioulo vendido. BELENHO Escuta, Bonifácio. Tu joga muito. Tu sabe disso, todo mundo sabe disso. O que tu não sabe é que isso dura pouco, dois, três, quatro anos. E depois? Depois tu estoura um joelho, tem uma lesão grave, e aí? Tô falando pro teu bem, não quero que te aconteça nada disso, Deus me livre. Mas pode acontecer. O que tu ganhou com isso, jogando de graça? BONIFÁCIO Eu sei. Tô pensando. BELENHO Uma casa. E mais uma ajuda. Onde já se viu um homem velho desses morando com a mãe? Tu não tem namorada? BONIFÁCIO Tenho. BELENHO Então. Olha aqui. (entrega a ele uma chave) Tu sabe qual é a casa? BONIFÁCIO Sei. BELENHO Leva tua namorada pra ver. Amanhã eu passo aqui. Mas amanhã é sim ou não. Se for não eu vou trazer um cara de Bagé. BONIFÁCIO Quem? BELENHO O Deco. BONIFÁCIO Cai-cai. E não sabe cabecear. BELENHO Eu sei, por isso que eu estou aqui. Mas é só até amanhã. CENA 8 - REFEITÓRIO DO MATADOURO - INTERIOR - DIA Vicente, pela janela do refeitório, vê Bonifácio se despedir de Belenho. Bonifácio entra no refeitório sob o olhar atento de todos. Bonifácio senta e abre sua marmita. Vicente vem sentar ao seu lado. VICENTE O que é? BONIFÁCIO O que é o quê? VICENTE O que ele queria? BONIFÁCIO Conversar. VICENTE Conversar o quê? BONIFÁCIO Assunto meu. Vicente fica olhando para Bonifácio, sem entender, surpreso com a resposta. Vicente pega a sua marmita e sai. CENA 9 - PÁTIO - TRABALHO DE ELISA - EXTERIOR - NOITE. Bonifácio e Elisa conversam no pátio, separados por uma cerca. Elisa está descascando aipim numa bacia. BONIFÁCIO O que tu acha? ELISA Tu que sabe. BONIFÁCIO Tu pode ir ver a casa amanhã? ELISA Vou ver. Elisa larga o aipim na bacia e pega um lençol para estender. BONIFÁCIO Na hora do almoço. ELISA Eu sei qual é a casa. BONIFÁCIO Ver por dentro. ELISA Vou ver. Elvira surge na porta. ELVIRA Elisa, tu ainda está nessa roupa? ELISA Falta só o lençol. ELVIRA Conversando demora mais. BONIFÁCIO Ela já vai. ELVIRA Não é hora nem lugar de namoro. ELISA Eu já vou. Elvira entra. ELISA Tenho que entrar. CENA 10 - MATADOURO - INTERIOR - DIA Bonifácio abre o armário do vestiário e vê que seu avental está todo rasgado. CENA 11 - MATADOURO - INTERIOR - DIA Bonifácio, com o avental rasgado, entra no matadouro e todos fazem silêncio. Ninguém olha para ele. CENA 12 - CASA NOVA - INTERIOR - DIA Bonifácio abre a porta de um casa vazia. Elisa entra. BONIFÁCIO (Na sala) Aqui cabe sofá e mesa de jantar. ELISA É grande. BONIFÁCIO Pra receber os amigos. Sem mãe dormindo na sala. (Caminham até a cozinha) Se tu preferir dá pra fazer refeição na cozinha. ELISA De frente pro quintal. BONIFÁCIO O quarto do guri... ou dos guris. ELISA Ou das gurias. BONIFÁCIO E esse é o quarto de fazer guri. Ela ri encabulada. ELISA O pai disse que dá a cama. Presente de casamento. BONIFÁCIO Então não precisa mais nada. ELISA Precisa casar, ora... BONIFÁCIO Só depende de ti. Já temos até onde morar. ELISA Tu já assinou? BONIFÁCIO Ainda não. Queria saber o que tu achava. ELISA Nunca pensei de ter uma casa. Ela vive dizendo "a casa é minha". Pra dizer que ela manda. Eu tenho que ir. BONIFÁCIO Aqui tu vai ser a patroa, botar os pés pra cima. ELISA Ouvir rádio bem alto. BONIFÁCIO Sair pela porta da frente. Quando saem da casa, um casal de vizinhos brancos está no jardim e olha para eles com curiosidade. Elisa segura a mão de Bonifácio. CENA 13 - ESCRITÓRIO DE ALMEIDA - INTERIOR - DIA Bonifácio está sentado em escritório. ALMEIDA lhe entrega uma caneta. ALMEIDA A caneta. Bonifácio pega a caneta mas não sabe abrir. Almeida pega a caneta, abre. ALMEIDA Assim. Bonifácio escreve seu nome com dificuldade. Um fotógrafo bate fotos. Aplausos. ALMEIDA Um momento histórico. Vamos comemorar. Na minha casa. CENA 14 - COZINHA - TRABALHO DE ELISA - INTERIOR - NOITE Elisa está na cozinha. Elvira entra. ELVIRA Corta um queijo e um salaminho. Mas primeiro leva as cervejas. E quatro copos. ELISA Sim senhora. Elisa prepara uma bandeja com copos e duas cervejas. Leva para a sala. CENA 15 - SALA - TRABALHO DE ELISA - INTERIOR - NOITE Elisa entra na sala com as cervejas. Dá de cara com Bonifácio, sentado à mesa com Almeida e Belenho. ALMEIDA Começa um novo tempo de profissionalismo e de vitórias. Elisa serve os copos de cerveja. Na hora de servir o de Bonifácio, pega o copo e inclina, para não fazer espuma. ALMEIDA (ergue um brinde) Pelo fim da discriminação. Ao Serrano. BELENHO Ao Serrano. Bonifácio bebe. Elisa sai da sala. CENA 16 - CAMPO - EXTERIOR - DIA Bonifácio entra campo. Os brancos olham para ele, em silêncio. Um ALEMÃOZINHO sardento vem cumprimentá-lo. Belenho entrega as camisas. BELENHO Bonifácio com a nove. Telmo com a dez. Ademir, Juarez... CENA 17 - CAMPO - EXTERIOR - DIA Bonifácio pega uma bola e é derrubado por um carrinho violento. BELENHO Epa! (apita) O que é isso? Vamos deixar os carrinhos pro jogo. Não quero saber de carrinho em treino! Bonifácio se levanta sem reclamar e pega bola para bater a falta. CENA 18 - CAMPO - EXTERIOR - DIA Bonifácio pega a bola, dribla o zagueiro espetacularmente e, na hora de marcar, passa para o Alemãozinho, que faz o gol. BELENHO É isso aí, Bonifácio! Viu como é que é? Viu o jogador em posição mais favorável, não fomeia! Entrega a bola. O Alemãozinho cumprimenta Bonifácio. CENA 19 - MATADOURO - INTERIOR - DIA Bonifácio entra no vestiário do matadouro. Silêncio completo. Vicente passa por ele. Bonifácio procura suas botas. Descobre que elas estão cheias de bosta de vaca. CENA 20 - MATADOURO - INTERIOR - DIA Todos estão falando sobre o jogo de domingo. Bonifácio entra e todos param de falar. Bonifácio caminha até seu posto de trabalho, descalço, pisando o chão que está muito sujo. CENA 21 - MATADOURO - INTERIOR - DIA Bonifácio está sozinho, desossando um boi. Vicente chega. VICENTE Vai morar bem, né? Sair da rua do canal. BONIFÁCIO Que é que tem melhorar de vida? VICENTE Vai levar a mãe ou largar ela lá com a mobília velha? BONIFÁCIO Não te mete, Vicente. VICENTE (amanhã) Tu vai perder, Bonifácio. E isso vai ser tua sorte. Porque tu já perdeu o gosto de ganhar. BONIFÁCIO É só um jogo. VICENTE Era um jogo. Dos pobres contra os ricos, dos crioulos contra os brancos. O único jogo que a gente pode ganhar. E vai ganhar. Agora virou uma guerra. Contra os ricos, contra os brancos e contra o crioulo vendido. Vicente sai. Bonifácio fica sozinho, desossando o boi com sua faca. Bonifácio separa a carne do osso cada vez com mais força, mais raiva. A faca escorrega e atinge o seu pé descalço. Bonifácio larga a faca e segura o pé direito. Sua mão se enche de sangue. FIM DO PRIMEIRO BLOCO SEGUNDO BLOCO CENA 22 - QUINTAL DA CASA DE BONIFÁCIO - EXTERIOR - DIA A água de uma bica cai sobre o pé de Bonifácio. Um corte fundo rasga seu pé direito do dedão ao calcanhar. Bonifácio tem uma agulha e uma linha de costura. Costura o pé. (mãe) Bonifácio veste a meia vermelha no pé cortado. Calça as chuteiras. Caminha pelo pátio, testando o pé. Pega uma bola e bate alguns balõezinhos, primeiro com o pé direito, depois com o pé esquerdo. Desequilibra-se e quase cai. Sai, mancando. CENA 23 - CARROÇA - EXTERIOR - DIA Bonifácio caminha, mancando, pela rua. SALVADOR, um carroceiro negro, se aproxima com sua carroça. SALVADOR Bonifácio! Bonifácio acena. SALVADOR Tá indo pro jogo? BONIFÁCIO Estou. SALVADOR Sobe aí. Te deixo lá. Bonifácio sobe na carroça. SALVADOR Quero só ver a cara dos alemão depois desse jogo. Passaram a semana me enchendo. Apostei dois golos de diferença. Mas acho que vai seu mais. Um carro com a bandeira do Serrano passa pela carroça. SALVADOR (grita) Farrapos! Três a zero! Não tem nada melhor que tocar flauta num branquelo para começar bem a semana. Salvador vê Vicente caminhando. SALVADOR Vicente! Sobe aí! Vicente se vira e vê Bonifácio. VICENTE Prefiro ir a pé. Salvador não entende a reação de Vicente, olha para Bonifácio. BONIFÁCIO Aqui está bom. Obrigado. Bonifácio desce da carroça. caminha mancando. SALVADOR Três a zero! CENA 24 - VESTIÁRIO - INTERIOR - DIA Bonifácio veste a camiseta do Serrano. Almeida entra com um repórter. ALMEIDA Quero uma foto com o Bonifácio. Bonifácio se posiciona para a foto. O fotógrafo bate a foto. Almeida vê sua chuteira. ALMEIDA Que chuteira é essa? Belenho, vê uma chuteira nova pro Bonifácio. BONIFÁCIO Ele já ofereceu, obrigado. Prefiro a minha. Estou acostumado. ALMEIDA Pelo menos dá uma graxa então. Mico! MICO, um garoto negro, se aproxima com sua caixa de engraxate. ALMEIDA Dá um lustre aqui na chuteira do Bonifácio. Mico se abaixa, Bonifácio põe o pé sobre a caixa. ALMEIDA O Belenho já falou dá importância desse jogo. Mico engraxa o pé esquerdo de Bonifácio. BELENHO É jogo decisivo. ALMEIDA Com dois pontos hoje a classificação tá encaminhada, a gente só vai precisar de mais um ponto em dois jogos. Mico bate na caixa. Bonifácio troca o pé. ALMEIDA O último jogo é aqui. Mas se a gente perder hoje vamos ter que pelo menos empatar em Bagé. Mico engraxa o pé direito de Bonifácio e percebe que ele se curva de dor. Mico pára, vê que a ponta dos seus dedos estão manchadas de sangue. Olha para Bonifácio. Bonifácio encara Mico. Mico limpa os dedos no pano e passa a engraxar a chuteira com mais cuidado. BELENHO O pessoal tá consciente dá importância da vitória. A gente trabalhou para isso. ALMEIDA Não quero ninguém fomeando hoje. O importante são os dois pontos. BELENHO Trabalho de conjunto. O pessoal tá consciente. ALMEIDA E vamos acionar o Bonifácio. Com o Telmo vindo de trás. BELENHO E cuidar da marcação. Todo mundo voltando para marcar, fechando o meio campo. Mico bate na caixa. Bonifácio desce o pé. ALMEIDA Agora sim. Chega de conversa! Muito esforço em direção ao gol. BELENHO Vamos pro jogo! O time sobe sai para o campo. Foguetes e vaias. CENA 25 - TRABALHO DE ELISA - INTERIOR - DIA Elisa está na cozinha escutando a partida pelo rádio e cortando carne numa tábua. RÁDIO Ademir leva o Serrano para o ataque, entrega para Telmo. Telmo encara a marcação de Vicente. Devolve para Ademir. Ademir para Bonifácio, marcado de cima pelo Ferrinho, devolve para Telmo. Bonifácio escapa, recebe na frente... CENA 26 - CAMPO - EXTERIOR - DIA Bonifácio escapa com a bola e é derrubado por Vicente. RÁDIO ... e é falta. Uma entrada dura de Vicente, por trás, Bonifácio no chão. O massagista examina Bonifácio. Mico lhe oferece água. Bonifácio bebe. Mico derrama o resto da água sobre o pé direito de Bonifácio. CENA 27 - TRABALHO DE ELISA - INTERIOR - DIA Elisa continua cortando carne. RÁDIO Bonifácio já está recuperado mas parece que sentiu a entrada. Caminha para a área com dificuldade. É falta para o Serrano, lado direito de ataque. Ademir pediu para bater. Vem bola para a área do Farrapos, dois homens na barreira. Até o Ferrinho desceu para marcar. Elvira entra na cozinha. ELVIRA E esse rádio, Elisa? RÁDIO Ademir toma distância. Bola na área... Elisa desliga o rádio. Elvira dá um dinheiro a Elisa. ELVIRA Vai até o Natal e me compra cinco folhas de papel almaço. ELISA Sim senhora. ELVIRA Se der o troco traz uma rosca também. Elisa guarda o dinheiro, tira o avental e sai, carregando uma sacola. CENA 28 - RUA - EXTERIOR - DIA Elisa caminha pela rua. Diminui o passo ao se aproximar de uma casa onde se ouve um rádio. RÁDIO ... Juarez lança Ferrinho, antecipação de Aloísio que entrega para Ademir. O Brasil não encontra espaço na defesa do Serrano, muito bem armada pelo Belenho. Ademir segura, Bonifácio marcado na frente, Ademir entrega para Telmo. Telmo carrega pela direita, Bonifácio vem buscar, pede a bola, recebe, se livrou de Vicente, grande jogada de Bonifácio... É falta! Mais uma falta sobre Bonifácio, essa é perigosa, na entrada da área. Bonifácio já levantou e pediu para bater. Elisa passa pela casa, o som do rádio vai diminuindo. RÁDIO Cinco homens na barreira, Bonifácio conta os passos, vai bater direto. Pode ser a chance do Serrano abrir o placar faltando menos de três minutos. Bonifácio bateu... Na trave! A bola explodiu na trave e saiu pela linha de fundo. Que cobrança, Sérgio nem se mexeu, teve mais sorte que juízo... Ele está dando escanteio. Não vi se a bola desviou na barreira, mas o juiz está dando o escanteio... CENA 29 - ARMAZÉM NATAL - INTERIOR - DIA Elisa entra. O rádio está ligado. Dois homens brancos tomam cerveja e escutam o jogo. O balconista, branco, vem atender Elisa. Salvador está num canto, bebendo cachaça e ouvindo o jogo. ELISA Cinco folhas de almaço e uma rosca. RÁDIO ... o escanteio está marcado, não adianta o Vicente reclamar, vai acabar sendo expulso. Um minuto e trinta para o encerramento. O Farrapos está todo na área, só ficou o Ferrinho aqui em cima. Quem bate é o Ademir, aqui pela direita. CENA 30 - CAMPO - EXTERIOR - DIA Bonifácio na área, marcado pelo Vicente. Ademir bate o escanteio. Bonifácio escapa da marcação de Vicente. Telmo se antecipa e desvia a bola de cabeça. Bonifácio acompanha a bola que se aproxima encobrindo Vicente. Bonifácio, de sem-pulo, acerta um chute certeiro. CENA 31 - ARMAZÉM NATAL - INTERIOR - DIA Os dois homens brancos comemoram. HOMENS Gol! É gol! Elisa pega as folhas de almaço e a rosca, põe na sacola. RÁDIO Goooooooollllllll...... Golaço! Bonifácio, no ângulo, de sem-pulo, sem chance para Sérgio. O Serrano faz um a zero, faltando menos de um minuto para acabar o jogo. Bonifácio, um a zero para o Serrano. Jogando no sacrifício, caminhando com dificuldade. Bonifácio, grande gol, um a zero. SALVADOR Crioulo vendido. Elisa vai saindo. SALVADOR Ei. Elisa pára. SALVADOR Tu esqueceu o troco. Elisa pega o troco sobre o balcão. Vai saindo. Os homens brancos comemoram. HOMENS Grande Bonifácio! Agora é segurar. Acaba logo isso aí, juiz! Acabou. CENA 32 - RUA - EXTERIOR - DIA Elisa caminha devagar pela rua, em silêncio. Aproxima-se da casa onde se ouve o rádio. RÁDIO ... o Farrapos, no ataque, bola na área do Serrano, corta Juarez de qualquer maneira pela lateral. O juiz está pedindo a bola. Acabou! Final de jogo, Serrano, um, Bonifácio, Farrapos zero. Foguetes estouram ao longe. Buzinas. Elisa sorri, acelera o passo. RÁDIO Com essa vitória o Serrano encaminha sua classificação para quadrangular... Elisa corre pela rua. CENA 33 - VESTIÁRIO - INTERIOR - DIA Todos cumprimentam Belenho pela vitória, Almeida dá entrevistas. Mico procura Bonifácio. Por baixo da porta do banheiro, Mico vê Bonifácio tirando as chuteiras com dificuldades. CENA 34 - VESTIÁRIO - INTERIOR - DIA Trancado no banheiro, Bonifácio tira as meias. A meia, encharcada de sangue, grudou no corte. Ele tira a meia e lava o pé cortado no chuveiro. Põe a meia num saco de papel. Por baixo da porta surge a mão de Mico com uma bandagem branca. Bonifácio pega a bandagem. Enrola o pé cortado. CENA 35 - TRABALHO DE ELISA - EXTERIOR - DIA Vestiário quase vazio. Belenho sai com o último jogador. Mico fica sentado, sozinho. Bonifácio abre a porta do chuveiro. Já está vestido, de sapatos, meias pretas. Caminha mancando até Mico. MICO Golaço, hein? Entrega as chuteiras para Mico. BONIFÁCIO Engraxa para mim. MICO Claro. Bonifácio sai. Mico examina as chuteiras, começa a passar graxa. CENA 36 - TRABALHO DE ELISA - EXTERIOR - DIA Bonifácio chega no pátio e acena para Elisa, no tanque. BONIFÁCIO Ouvisse? ELISA Só uns pedaços. Ouvi o teu gol. BONIFÁCIO Podia ter sido mais. Dei duas na trave. E o Telmo perdeu um gol certo. ELISA Um a zero tá bom. BONIFÁCIO Podia ter sido mais. ELISA Eu vi um sofá lá no centro. Quero te mostrar. Tu pode amanhã? BONIFÁCIO Pode ser. Na hora do almoço. ELISA Tu passa aqui? BONIFÁCIO Passo. (ele pega o saco com as meias) Lava para mim? ELISA Lavo. Ela pega o saco e deixa as meias caírem numa bacia de alumínio, com um pouco de água. ELISA Faz em três vezes. BONIFÁCIO O quê? ELISA O sofá. Uma entrada e mais duas. BONIFÁCIO Amanhã a gente vê. ELISA Tá bom. Ele sai. Ela olha a bacia. A água está tingida de vermelho. O reflexo do sol na água projeta riscos de luz sobre o rosto de Elisa. Elisa vê Bonifácio se afastar, mancando. FIM (c) Jorge Furtado e Guel Arraes, 2000 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br