O PADEIRO E AS REVOLUÇÕES episódio da série "Escritores Gaúchos" da RBS TV roteiro de Carlos Gerbase e Jorge Furtado versão de 01/08/2007 livremente inspirado no conto "De como um padeiro de Porto Alegre chegou à seguinte dedução: as revoluções não mudam apenas a vida dos povos", de Luiz Antônio de Assis Brasil *************************************************************** ANO: 1835 CENA 1 - QUARTO DE JOAQUIM - INT/NOITE Joaquim acorda, levanta, sua Esposa dorme. Ele lava o rosto numa bacia, veste-se em silêncio, põe o casaco, deixa cair um molho de chaves. A Esposa dorme. Ele recolhe o molho de chaves e sai. Trilha. CENA 2 - RUAS - EXT/AMANHECER Joaquim caminha pelas ruas da cidade. CENA 3 - PADARIA - INT/DIA Joaquim abre a padaria. Entra, abre as janelas, acende o fogo. Vai até a caixa de farinha, trancada com cadeado, procura algo nos bolsos, não encontra. Pára, pensa, olha para o molho de chaves. CENA 4 - CASA DE JOAQUIM - INT/DIA Joaquim entra em casa, em silêncio. Vai entrar no quarto, pára. Escuta voz de homem. Espia pela fresta da porta. Vê a esposa, na cama, com o Cabo. Joaquim pára, pensa. Sai da casa em silêncio. CENA 5 - RUAS - EXT/DIA Joaquim caminha pelas ruas. CENA 6 - PADARIA - INT/DIA Joaquim entra na padaria. Despeja sobre a mesa um caixa de ferramentas: facas, plainas, uma machadinha, um pé de cabra. Joaquim escolhe o pé de cabra. Com o pé de cabra, abre a caixa da farinha. Pega a farinha e começa a preparar o pão. NARRADOR (V.S.) Padeiros comem pão, talvez; no caso que veremos, Joaquim Patrício de Oliveira detestava-o com todas as suas vísceras, e tudo porque, naturalmente, fabricava-o. CENA 7 - DOCUMENTÁRIO Como era uma padaria? CENA 8 - MONTAGEM (TODOS OS CENÁRIOS ANTERIORES) Passagem de tempo: Joaquim preparando o pão, lavando o rosto, acordando, acendendo o fogo, vestindo-se, observando a mulher que dorme, caminhando pela rua, fazendo fogo, abrindo o cadeado, com a chave. NARRADOR (V.S.) Desde o dia em que sua mulher legítima o corneara com um cabo do 170 de Caçadores, ele se mantivera fiel à infiel CENA 9 - RUA DO MERETRÍCIO - EXT/AMANHECER Joaquim caminha pela calçada, vê Esperanza Barrios na janela. NARRADOR (V.S.) Até ontem quando, para distrair-se, caminhava pela zona do meretrício. Esperanza sorri para Joaquim, que pára de caminhar e olha para ela. Joaquim sorri de volta. ESPERANZA Deixa ver sua mão. JOAQUIM Minha mão? ESPERANZA É. JOAQUIM Vai ver o meu futuro? ESPERANZA Não. O seu passado. Ele estende a mão, ela examina. ESPERANZA Mãos fortes, macias. Você trabalha com as mãos. Mas não tem calos, não é agricultor. Você é... padeiro. JOAQUIM Impossível... ESPERANZA Eu já vi você na padaria. JOAQUIM É? Eu nunca vi você. ESPERANZA Talvez tenha visto, mas não prestou atenção. JOAQUIM Se eu tivesse visto, teria prestado atenção. ESPERANZA Está indo para o trabalho? JOAQUIM Estou. ESPERANZA Está com presa? JOAQUIM Não muita. Ela sorri. CENA 10 - CASA DE ESPERANZA - INT/DIA Joaquim na cama com Esperanza. NARRADOR (V.S.) Em vez de ir para o trabalho, Joaquim passou a manhã feliz, nos braços de Esperanza Barrios, prostituta paraguaia. Joaquim levanta-se e vai até a janela, que está encostada. Abre a janela e respira profundamente NARRADOR (V.S.) Foi sua primeira madrugada de infidelidade e sem o cheiro peçonhento do pão. Esperanza recosta-se na cama e sorri. ESPERANZA Não tens de ir à padaria? Joaquim volta-se para ela. JOAQUIM Hoje não há pão. (espreguiça-se) Fodam-se os comedores de pão, assim como eu bem fodi esta noite. (Ou: Morte aos comedores de pão!) Joaquim volta a olhar a paisagem da janela. O sol emerge do telhado do Convento do Carmo. Joaquim, sem pressa, veste as calças e a camisa, põe um casaco de lã cinzenta, pesquisa nos bolsos, encontra duas moedas de cobre com a cara do primeiro Imperador e as deixa sobre o criado-mudo. Esperanza sorri para ele. CENA 11 - RUAS - EXT/DIA Joaquim caminha pelas ruas. CENA 12 - PADARIA - INT/DIA Joaquim chega na padaria e entra. Encontra o dono da padaria, todo sujo de farinha, tentando bater a massa do pão. A confusão é grande sobre a mesa, demonstrando a inabilidade do dono, que olha para Joaquim, furioso. DONO O que aconteceu, Joaquim? Joaquim começa a colocar o seu avental. JOAQUIM (despreocupado) Nada. DONO Como, nada? JOAQUIM Nada. Me atrasei. DONO Pensei que fosse doença grave, acidente ou uma bala perdida dos revoltosos. JOAQUIM Que revoltosos? DONO (mais indignado) O senhor pode me dizer o motivo do seu atraso? JOAQUIM Esperança. DONO Esperança? Esperança de quê? JOAQUIM Esperança Barrios. DONO O senhor está despedido! Joaquim dá uma gargalhada, tira o avental e joga-o em cima da mesa. O dono da padaria não entende nada. CENA 13 - RUAS - EXT/DIA Joaquim vê um monte de gente subindo a rua da Ladeira. Vai junto. (O maior número possível de figurantes) CENA 14 - DOCUMENTÁRIO Como representar multidões. Fotos, ilustrações. Áudio da multidão. CENA 15 - PRAÇA Na rua da Igreja, Joaquim assiste a um desfile de cavalarianos garbosos, liderados por um coronel de espada à cinta e dragonas faiscantes, e que corresponde aos vivas com um breve aceno. JOAQUIM (para um popular) Quem é o tipo aí? POPULAR É o Coronel Bento Gonçalves da Silva. JOAQUIM Grande coisa, o que fez ele? POPULAR Depôs o Presidente da Província. Joaquim olha para o coronel, surpreso. Finalmente, grita. JOAQUIM Bento Gonçalves, filho de uma égua! O popular olha para Joaquim, surpreso. Dois homens armados aproximam-se rapidamente. Um deles encosta uma espingarda nas costas de Joaquim. CENA 16 - DOCUMENTÁRIO Bento Gonçalves, vida e obra, em 30 segundos. CENA 17 - CADEIA - INT/DIA Joaquim está numa cela, ao lado de seis outros homens. NARRADOR (V.S.) Joaquim passou o resto do dia e a noite na companhia de quatro vagabundos e dois passadores de moeda falsa. Mas não achou ruim. Joaquim sorri. JOAQUIM Pelo menos aqui não sinto cheiro de pão. CENA 18 - CADEIA - INT/DIA A porta da cela é aberta e Joaquim acorda. Olha para a porta e vê sua Esposa, que traz uma cesta de vime pendurada no braço. NARRADOR (V.S.) Na manhã seguinte, recebeu a visita da mulher, que lhe trouxe algo inédito em toda a vida pregressa do casal. A Esposa abre a bolsa e retira uma fatia de bolo coberta com um guardanapo xadrez. Joaquim olha para o bolo, curioso, e depois começa a comê-lo. Primeiro com desconfiança, depois com gula, depois como se fosse a melhor coisa que já comeu na vida. JOAQUIM (para a Esposa) Que gosto! Que gosto maravilhoso! Para isso ao menos serviu a cadeia. ESPOSA O que aconteceu? JOAQUIM Xinguei Bento Gonçalves. ESPOSA (surpresa) Tu xingaste o novo Presidente! Ele fez uma Revolução. JOAQUIM Eu não sabia. As coisas estão mudando rápido. Joaquim beija a esposa. ESPOSA Já vão te soltar. Está chegando um bandido e não tem mais lugar na cadeia. Eu disse que a partir de agora serás um bom patriota. Joaquim sorri e termina de comer o bolo. NARRADOR (V.S.) Como nas revoluções tudo se revoluciona, e em atenção ao bolo, Joaquim Patrício silenciosamente perdoou a esposa de tudo. CENA 19 - CASA DE JOAQUIM - INT/NOITE Joaquim levanta-se da cama, onde sua esposa continua dormindo. Vai até a cozinha, pega uma faca e sai, sem fazer barulho. CENA 20 - CASA DE ESPERANZA - INT/NOITE Esperanza é acordada por batidas na porta. Levanta-se e vai até a porta. ESPERANZA Quem é? JOAQUIM É Joaquim. Esperanza sorri e abre a porta. Joaquim entra. Esperanza abraça Joaquim. ESPERANZA (maliciosa) O que queres, Joaquim? JOAQUIM Na revolução passa-se tudo a limpo. E, com um golpe rápido, enfia a faca no peito de Esperanza, que grita e cai no chão. Joaquim enxuga a lâmina na manga do paletó e sai rapidamente. Esperanza continua gritando. NARRADOR (V.S.) Esperanza Barrios foi levada para a Santa Casa nos braços das outras mulheres e não morreu, ficando apenas com uma cicatriz abaixo do seio direito. CENA 21 - QUARTEL - EXT/DIA Joaquim, no pátio do quartel, assiste a um exercício de ordem unida feito por uma tropa de dez soldados. NARRADOR (V.S.) Joaquim endireitou-se, arranjou emprego de auxiliar de almoxarife no 170 de Caçadores... O Cabo dá ordens para a pequena tropa, que obedece aos comandos. CABO (BG) Esquerda... Volver! Direita... Volver! Meia-volta.... Volver! NARRADOR (V.S.) ...onde conheceu melhor o Cabo seu rival. E, por incrível que pareça, simpatizou com ele. CABO Esquerda... Volver! Um dos soldados, Vanderlei, vira para o lado errado. CABO Ordinário... Alto! A tropa pára de marchar. O Cabo se aproxima do soldado, furioso e estende a sua mão esquerda. CABO Que mão é essa? Direita ou esquerda? SOLDADO Esquerda... (todo atrapalhado) Quer dizer... direita, cabo! CABO Senhor cabo! SOLDADO Senhor cabo. O cabo levanta um pouco seu pé direito. CABO E esse pé? SOLDADO É o esquerdo, senhor cabo. CABO Não, não é o pé esquerdo. É o pé que vai te endireitar. Soldado Vanderlei... Meia-volta... Volver! O soldado faz meia-volta. O cabo empurra-o com o pé, e Vanderlei cai. Os outros soldados riem. Joaquim também ri. O cabo olha para Joaquim e ri ainda mais alto. ANO: 1836 CENA 22 - CASA DE JOAQUIM - INT/DIA Joaquim, sua esposa e o Cabo tomam sopa juntos. NARRADOR (V.S.) Joaquim passou a recebê-lo em casa, vivendo assim em doce e trilateral convívio... CABO (para Esposa) A senhora pode me passar o pão? A Esposa passa o pão para o cabo, que o molha rapidamente na sopa e engole, satisfeito. CABO Muito agradecido. A sopa está ótima. (olha para Joaquim) E o pão, melhor ainda. Joaquim olha para ele e sorri. JOAQUIM Obrigado. Comprei ali na padaria do Seu José. CABO Casa de padeiro, pão de padaria. JOAQUIM Ex-padeiro! CABO Eu te entendo, Joaquim. No dia que eu der baixa - e queira Deus que não seja dentro de um caixão (o cabo se benze) - vou pra bem longe do quartel e esqueço até o "Ordinário, marche!". JOAQUIM (olhando para a esposa) Eu gosto mesmo é de bolo. Mas tem que ser feito em casa. O bolo do Seu José é muito ruim. A esposa não reage à indireta de Joaquim. Corta o pão, sob o olhar triste de Joaquim, e entrega uma fatia para cada homem. O Cabo come sua fatia de pão, bem satisfeito, enquanto Joaquim molha o pão na sopa até que ele se desmancha totalmente. CENA 23 - CASA DE JOAQUIM - INT/DIA Joaquim, sua esposa e o Cabo tomam sopa juntos, mas estão com roupas diferentes e mais velhos. NARRADOR (V.S.) O bolo levado para a cadeia jamais se repetiu, aumentando a cada ano a tristeza de Joaquim. CABO Ouvi dizer que Bento Gonçalves proclamou a República. (Na verdade, a República Rio Grandense foi proclamada pelo general Antônio de Sousa Netto em 11 de setembro de 1836 ). Joaquim olha para ele, indignado. JOAQUIM Isso já é demais. CABO (surpreso) O que é demais? JOAQUIM Uma república. Eu sou monarquista. CABO Pode até ser, mas é bom falar baixo. Nesse momento, assim como és ex-padeiro, é melhor ser ex-monarquista. Joaquim lança um olhar de desprezo para o Cabo, levanta-se e vai até a janela. Abre a janela e começa a gritar com toda força. JOAQUIM Abaixo a República! Viva a Monarquia! Deus salve o Rei! O Cabo e a esposa de Joaquim olham-se, sem saber o que fazer. CENA 24 - DOCUMENTÁRIO Revolução farroupilha em 30 segundos. CENA 25 - CADEIA - INT/DIA Joaquim é jogado violentamente na cela. NARRADOR (V.S.) Joaquim foi posto a ferros pelos farroupilhas, mas não mudou seu ponto de vista. Joaquim sozinho na cela, com as roupas em péssimo estado, NARRADOR (V.S.) Sua esposa não fez qualquer visita e declarou-se doente. Joaquim dorme, magro e doente. É acordado pelo barulho da porta da cela se abrindo, NARRADOR (V.S.) Desta vez, a prisão foi mais demorada. CENA 26 - DOCUMENTÁRIO Técnicas de envelhecimento, maquiagem. ANO: 1845 CENA 27 - CADEIA - INT/DIA NARRADOR (V.S.) Um dia, Joaquim recebeu uma visita. Joaquim olha para a porta da cela e vê Esperanza Barrios, muito envelhecida, com uma cesta de vime pendurada no braço. ESPERANZA A guerra acabou. JOAQUIM Eu sei. ESPERANZA Dizem que Dom Pedro II vem aqui. Vai receber Bento Gonçalves. JOAQUIM Já me disseram. ESPERANZA Sabia que ele só tem 20 anos? JOAQUIM Quem? ESPERANZA O imperador. JOAQUIM Imperador... Imperador de quê? ESPERANZA Agora que a guerra acabou, você vai sair. E o seu lado ganhou. JOAQUIM Meu lado? ESPERANZA Você não era monarquista? JOAQUIM Era. Faz tempo. Esperanza aproxima-se e aninha Joaquim em seus braços. ESPERANZA Eu te esperei todo esse tempo. Esperanza abre a cesta e oferece para Joaquim um pedaço de bolo de milho. NARRADOR (V.S.) Joaquim comeu o bolo como se fosse o maná do deserto bíblico. CENA 28 - CASA DE JOAQUIM - INT/DIA Joaquim entra em sua casa. NARRADOR (V.S.) Quando a Revolução terminou, com a vitória da Monarquia, Joaquim saiu da prisão. Joaquim vê sua esposa e aproxima-se dela. A esposa esboça um sorriso, mas Joaquim dá-lhe uma facada, que mal lhe arranha o pulso. A esposa grita. JOAQUIM Isto é por não me servires mais bolo. CENA 29 - CASA DE ESPERANZA - INT/NOITE Joaquim está deitado na cama de Esperanza. Ela se aproxima, sorridente, com uma xícara fumegante e um prato com algumas fatias de pão. Esperanza senta na cama. Joaquim pega a xícara, toma um gole, e depois começa a comer o pão. NARRADOR (V.S.) Joaquim mudou-se para a casa de Esperanza, vivendo feliz no meio das mulheres de vida alçada - e comendo apenas pão. Joaquim sorri. Ouve-se o barulho forte de um canhão. A xícara treme. Joaquim olha para Esperanza. NARRADOR (V.S.) Até que, um dia, estourou a guerra do Paraguai. ***************************************************************** (c) Jorge Furtado e Carlos Gerbase, 2007 Casa de Cinema de Porto Alegre http://www.casacinepoa.com.br 01/08/2007